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RACIOCÍNIOS QUE GENERIFICAM, DIFERENCIAM E HIERARQUIZAM NO
CURRÍCULO DA ALFABETIZAÇÃO DE CRIANÇAS
Camila Amorim Campos1
Universidade Federal de Minas Gerais
Marlucy Alves Paraíso2
Universidade Federal de Minas Gerais
INTRODUÇÃO
O currículo escolar é um artefato cultural envolvido em relações de poder que opera
com diferentes raciocínios ou “sistemas de pensamentos” para diferenciar e hierarquizar as
crianças desde muito cedo (PARAÍSO, 2013 e 2014). Tais raciocínios são deduzidos de
saberes de diferentes “campos discursivos”, operados na escola por meio de práticas e
exercícios que, em seu conjunto, demarcam “posições de sujeitos” a serem ocupadas por
crianças e docentes nas escolas. Uma dessas posições de sujeito demandas é claramente a de
sujeitos generificados que se conduzam conforme o seu sexo.
Com o uso de fragmentos de uma pesquisa que investigou o currículo de duas turmas
de alfabetização de duas escolas3 públicas de Belo Horizonte e acompanhou as crianças de
seis e sete anos de idade em seus dois primeiros anos escolares do ensino fundamental, este
trabalho analisa como se dão os processos de diferenciação de gênero na alfabetização das
crianças e quais são os raciocínios de gênero usados nesses currículos e na condução das
práticas pedagógicas. Com base nos estudos pós-críticos de currículo, que o vêm como um
artefato cultural envolvido em relações de poder e na produção de sujeitos, e nos estudos pós-
estruturalistas de gênero, que vêm o gênero como uma norma que regula e governa os corpos,
mostramos neste trabalho como as normas de gênero se articulam com outras relações de
poder para subjetivar as crianças já no início do processo de alfabetização.
O argumento desenvolvido neste trabalho é o de que nos currículos investigados, ao
mesmo tempo em que se alfabetizam as crianças, são acionados nas mais diferentes práticas
analisadas discursos generificados e raciocínios que produzem e justificam diferenciações e
1 Estudante de pedagogia da Faculdade de Educação da UFMG, Bolsista de Iniciação Cientifica do CNPq orientanda da professora Marlucy Paraíso e membro do GECC- Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Currículos
e Culturas da mesma universidade. [email protected]
2 Professora Associada da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É
Pesquisadora Produtividade do CNPq 1D e coordenadora do GECC- Grupo de Estudos e Pesquisa sobre
Currículos e Culturas da mesma universidade. [email protected]
3 A pesquisa foi realizada em duas escolas, mas trabalharemos aqui somente com uma delas.
hierarquizações. Ensina-se às crianças a serem meninos e meninas e a se comportarem de
acordo com as “normas de gênero”. Essas normas definem o que é feminino e o que é
masculino, o que é certo e adequado para um e para o outro sexo, o que se espera de um
“menino de verdade” e de uma “menina de verdade” (PARAÍSO, 2011). Em um cuidadoso
processo de ensino e exercitação, tais normas são ensinadas, praticadas, vigiadas e controladas
nas escolas investigadas em diferentes momentos.
Contudo, todas as normas, para que se efetivem e cumpram sua função de
normalização, precisam de um longo e cuidadoso processo de repetição e vigilância, e, apesar
das diferentes estratégias usadas para garantir que elas se cumpram, há quem dela se afaste.
Analisamos neste trabalho, então, por um lado, as diferentes práticas no currículo investigado
que dividem, separam, agrupam, reagrupam e classificam no interior das salas de aulas,
usando para isso, raciocínios pedagógicos e patriarcais para produzir diferenciações e
hierarquizações generificadas que possuem efeitos nos processos de ensino, e limitam ou
aumentam as possibilidades de aprendizagem de meninos e meninas. Por outro lado,
mostramos escapes a essas normas, explorando como esses escapes funcionam e os efeitos
disso na sala de aula.
CURRÍCULO E GÊNERO
As discussões sobre gênero vêm assumindo importância e ocupando cada vez mais
espaço nas pesquisas em educação. O gênero define o lugar de homens e mulheres em nossa
sociedade ao mesmo tempo em que limitam ou potencializam as experiências das pessoas.
Gênero é aqui compreendido como uma construção sócio histórica, assentada em relações de
poder (Louro, 1997). Gênero, portanto, aponta para processos determinados e múltiplos de
construção discursiva. Isso porque o gênero, assim definido, “não é, nunca, simplesmente,
uma função de diferenças materiais que não sejam, de alguma forma, simultaneamente,
marcadas e formadas por práticas discursivas (BUTLER, 1999, p. 153). Práticas discursivas
que, de um modo geral, têm como efeito marcar, governar e subjetivar os corpos.
Uma das práticas discursivas que contribuíram para separar e hierarquizar homens e
mulheres e que ainda hoje marca sua existência em diferentes espaços e instituições é
certamente constituída por discursos patriarcais. As feministas do pensamento da diferença
sexual vem dedicando suas energias, há muito tempo, para “mostrar como o patriarcalismo
opera hierarquizando os gêneros e subjugando as mulheres” (PARAISO, 2015, p. 6). Esta
“ordem simbólica patriarcal” é “desnudada por essas feministas ao ponto de fazê-la mostrar-
se como ela de fato é: silenciadora, excludente, opressora, ambiciosa” (PARAISO, 2015, p.
8). Ambiciosa porque “o pensamento da diferença sexual mostra que a ordem simbólica
patriarcal não ocupou e jamais poderia e nem poderá ocupar tudo e a todos/as; há espaços a
serem ocupados por outras ordens simbólicas, por outros signos” (PARAISO, 2015, p. 8). É
esse outro espaço, essa outra ordem simbólica que essas feministas lutam para ocupar.
Nesse sentido, sabemos que diferentes espaços, instituições e artefatos, há muito
tempo, veem cumprindo a função de operar com e de divulgar práticas discursivas que
demarcam lugares, moldam os corpos, ensinam o correto e o errado no que se refere a gênero.
O currículo escolar é um desses espaços/artefatos que ensinam sobre gênero, que vigiam os
corpos, que demarcam os lugares e que associam discursos generificados e outros discursos
(como o pedagógico e o patriarcal, por exemplo) para garantir a normatização dos corpos e a
manutenção das diferenças de gênero. Como tem mostrado Paraíso (2010), os currículos
escolares “trabalham com uma grande fome de demarcações claras de gênero; fome de
identidades formadas, que possam ser claramente classificadas; fome por diferentes que
possam ser usados para justificar as “diferenças” de desempenho, de agrupamentos, de
condutas”. (PARAISO, 2010, p. 133).
O currículo é aqui entendido como “um espaço de ensino por excelência” (PARAISO,
2011, p.148), que “opera inúmeras diferenciações” com implicações significativas “na
produção de sujeitos e na aprendizagem das crianças” (PARAISO, 2011, p.148). Isso porque
o currículo divide, separa, agrupa, reagrupa e classifica no interior das salas de aulas em suas
mais diferentes atividades, e isso tem efeitos na forma como os alunos e as alunas se veem e
são vistos. Tais práticas, além de demarcar lugares, limitam ou aumentam as possibilidades de
aprendizagem de meninos e meninas (PARAÍSO, 2011). É isso que procuraremos detalhar
nas partes que se seguem.
ENSINO GENERIFICADO NO CURRÍCULO ESCOLAR: DIVISÕES, PROIBIÇÕES,
SILÊNCIOS E RESISTÊNCIAS
No currículo de alfabetização de crianças investigado, ensina-se, exige-se, forma-se,
controla-se modos de ser e estar no mundo. Isso ocorre de modo a ensinar lugares a meninos e
a meninas que contribuem para produzir sujeitos masculinos e femininos normalizados e
hierarquizados. Esses ensinamentos se dão de diversas maneiras e por meio de práticas
variadas, tais como: na formação das filas, na definição de quem faz as diferentes atividades,
nos agrupamentos para realização de tarefas, nas formas usadas para falar aos/às diferentes
alunos/as, enfim na regulação dos corpos. Em diferentes materiais e atividades realizadas nas
escolas tais como: filmes, personagens, material escolar, brincadeiras, falas constantes,
posturas exigidas, ensina-se para as crianças os modos considerados adequados de ser menino
e ser menina. Verificamos que junto com a grande preocupação e o grande investimento em
alfabetizar as crianças o mais rápido possível, ensina-se, minuciosamente e com muito
empenho, a essas crianças a se comportarem e a viverem como “meninos e meninas de
verdade”.
Nesse sentido, no currículo investigado, diferenciam-se meninos e meninas,
ensinando-lhes o que cada um pode ou não fazer, o que é ou não adequado para o seu sexo.
Jogar futebol na Educação Física, por exemplo, continua sendo, nas turmas que acolhem
crianças de seis e sete anos de idade, uma atividade exclusiva dos meninos. Uma das meninas,
quando solicita participar dessa atividade, é rapidamente proibida. Do mesmo modo, brincar
de se enfeitar, se maquiar, se embelezar é tarefa proibida aos meninos e incentivada para as
meninas. Os meninos que querem brincar de salão de beleza são rapidamente direcionados às
atividades consideradas adequadas ao seu gênero. Isso pode ser visto no episodio descrito a
seguir:
Episódio 1: “futebol e salão de beleza”
A professora Gisele³ diz às crianças para formarem as filas que irão para a
educação física. Daniel, Luiz e Gabriel ficam assentados porque não fizeram a
atividade realizada pelas crianças anteriormente. Nesse momento os meninos devem
jogar futebol e as meninas devem brincar de salão de beleza. Uma menina de outra
turma quer jogar futebol e a professora Gisele não deixa, dizendo-lhe: “E desde
quando você joga futebol? Você está vendo alguma menina lá?”. A menina olha
para a professora, não responde, mas fica com a cara fechada. Sua professora
chega perto dela e pergunta o que aconteceu. Ela rapidamente explica: “Ah quero
jogar com os meninos e a professora Gisele não deixa”! A professora Gisele olha e
diz-lhe então que ela pode ir, desde que ela consiga correr igual aos meninos. A
menina sorriu e rapidamente se junta aos meninos e joga futebol. No mesmo horário
as meninas são encaminhadas para outra atividade... Elas levaram maquiagem,
espelhos, escovas, pentes, perfumes, bolsas, esmaltes para brincar de salão de
beleza. No decorrer da brincadeira cada uma era a dona do salão. Elas escolhiam
quem seria a dona do salão e quem seria a secretária e iam revezando essas
funções. Feito isso, as mesmas iam para seu local de trabalho e as demais ligavam e
agendavam um horário. Ao chegar no salão, elas se cumprimentavam e enquanto
uma arrumava o cabelo a outra dedicava-se às unhas e/ou maquiagem. Um dos
alunos vê a brincadeira e pede a elas para brincarem. As meninas deixam, mas a
professora imediatamente interfere proibindo e lhe ordena: “Vai jogar futebol com
seus amigos! Anda logo!” Ele não questiona a ordem da professora e retorna ao
futebol. (Fragmentos do diário de campo, 20/03/13. Escola Municipal Desejos
Ocultos).
Essas divisões, separações e diferenciações são bastante comuns na turma investigada.
As interferências e os ensinamentos generificados também são comuns. A menina jogar
futebol, assim como o menino brincar de salão de beleza são brincadeiras consideradas como
não condizentes com o seu sexo. Contudo, há um diferencial entre as posturas da menina e do
menino no episodio narrado assim como na intervenção da professora para cada um deles.
Quando a menina pede para jogar futebol e a professora não aceita, a menina resiste ao
ensinamento de que meninas não devem jogar futebol. A professora acaba cedendo e
autorizando-a a entrar no jogo, mesmo colocando-lhe a condição de que deve “correr igual
aos meninos”. Já no que toca ao menino, verificamos que ele rapidamente aceita a proibição
da professora, que o impossibilita de brincar de salão de beleza. Embora não fosse que a
professora considerasse adequado, ela cede ao desejo da menina mas não cede ao desejo do
menino.
Isso parece mostrar que há, de fato, uma maior vigilância e uma menor aceitação que
se fuja à norma em relação aos meninos. .Do mesmo modo, parece ser mais difícil ao menino
resistir à norma. O menino nem mesmo hesitou em questionar a ordem da professora. Ele
simplesmente obedece. Essa maior vigilância sobre o masculino parece ser recorrente nas
escolas de diferentes níveis de ensino. Sales e Paraíso (2013) mostraram que no Ensino Médio
e nos discursos por elas analisados “o governo das condutas no que se refere à sexualidade
incide muito mais intensamente sobre os rapazes do que sobre as moças”. (SALES e
PARAISO, 2013, p. 616). Elas mostram também que, na escola, “ser macho é manter uma
postura corporal rígida” (p.613). Do mesmo modo, Carvalhar (2009), ao pesquisar em uma
escola infantil, mostra que “os discursos que instituem e atravessam os fazeres na educação
infantil definem e veiculam, de forma contínua e repetida, modelos identitários femininos e
masculinos bem diferenciados”. Ela afirma também que naquele contexto, “os meninos
devem se afastar ao máximo dessa forma de ser e estar no mundo considerado feminino”
(CARVALHAR, 2009, p.94).
Cabe registrar também que as crianças ainda não estão completamente normalizadas
com essas normas de gênero. Vejam que os meninos não contestaram a participação da
menina no futebol. Do mesmo modo, as meninas não viram qualquer problema em aceitar que
o garoto brincasse com elas de salão de beleza. Exatamente porque meninas e meninos ainda
não internalizaram as normas de gênero o currículo escolar ensina cotidianamente tais regras,
separando, dividindo, proibindo e diferenciando.
Além disso, esse tipo de controle, vigilância e proibição também está presente no que
se refere aos materiais escolares, como veremos no episódio a seguir:
Episódio 2: “caderno da galinha pintadinha”
A professora chega em sala e diz às crianças ( que irão começar a organizar os
cadernos de artes e literatura, porque vai ter reunião de pais e eles vão querer
olhar os cadernos. As crianças tinham muitos trabalhos realizados que precisavam
ser colados nos cadernos. A professora fala o nome de cada criança para verificar
quem ainda não tem o caderno. Segundos depois, ela levanta um caderno da
galinha pintadinha e pergunta: “de quem é?”. Douglas diz que é seu. A professora
ironicamente diz: “Ah tá; esse caderno é seu? Da galinha pintadinha?” Douglas
responde: “sim”, e continua brincando com seus lápis de cor. A professora coloca o
nome de Douglas no caderno balançando a cabeça negativamente recriminando o
caderno do menino. (Fragmentos do diário de campo, 16/04/2013, Escola
Municipal Desejos Ocultos).
Nesse currículo, o fato de Douglas sendo um menino ter um caderno da galinha
pintadinha é estranhando e ironizado pela professora. Contudo, embora a professora tenha
questionado e ironizado Douglas não se importa, pelo menos por enquanto, com a ironia. Para
ele, não tinha qualquer problema ele ser o dono do caderno. A professora claramente viu
nesse fato uma possibilidade de ameaça à masculinização do menino. É como se o caderno de
Douglas, da famosa Galinha Pintadinha, fosse inadequado para um menino. Com apenas 6
anos de idade, no início do percurso escolar, Douglas é ensinado que esse material é
inadequado ao seu sexo. Assim, com episódios corriqueiros e cotidianos o currículo ensina às
crianças desde a mais tenra idade padrões e normas generificadas.
Esse tipo de aprendizado e ensino, também está presente quando se destina tempo na
escola para assistir a filmes, como veremos no episódio a seguir:
Episódio 3: “cinema na escola”
A professora não chegou na hora correta. Todas as crianças já aguardavam
assentadas em suas carteiras na sala de aula. A pedido da coordenadora foram
para a sala 18, que é uma sala de vídeo bem parecida com um cinema. A
coordenadora e a vice-diretora da escola ficaram responsáveis por quatro turmas
nesse dia, incluindo a turma da professora Gisele. Todas as crianças entraram
alvoroçadas. A vice-diretora grita a todo o momento pedindo silêncio enquanto a
coordenadora coloca o filme. As crianças parecem não escutar até que começa o
filme The Flintstone. Por menos de um minuto as turmas se calam e, em seguida,
começam a conversar, balançar nas cadeiras e assim permanecem por alguns
instantes até o filme, de fato, começar. A vice-diretora grita pedindo silêncio
novamente e diz não estar ouvindo se o filme começou. A coordenadora sai da sala
e retorna rapidamente. O filme começa a travar e ela o adianta. Nada parece atrair
as crianças. A coordenadora volta e usa um microfone para tentar acalmá-las, mas
de nada adianta, pois continuam conversando e correndo pela sala. A
coordenadora e a vice-diretora parecem desistir e passam a fingir não estar vendo.
Alguns minutos depois, a coordenadora decide mudar o filme por “Alice no país das
maravilhas”. Rafael imediatamente grita: “Credo! Filme de mulher eu não quero
não!” Daniel olha pra mim e pergunta: “Você gosta?” Respondo que sim, e ele
então, assiste ao filme. A vice-diretora grita por silêncio mais uma vez. Diferente do
outro filme, esse parece atrair a atenção das crianças que começam a assistir
atentamente. Com exceção de André, o qual fica jogando bolinha de papel para
cima até a coordenadora chamar sua atenção. (Fragmentos do diário de campo,
13/05/2013, Escola Municipal Desejos Ocultos).
É interessante observar que Rafael já assumiu, aprendeu e está ensinando às outras
crianças que há filmes adequados para meninos e outros que são adequados para as meninas.
Isso, no entanto, não o impede de assistir ao filme e de gostar do que vê. Além disso, tanto a
vice-diretora quanto a coordenadora ao se silenciarem ante a afirmação de Rafael, perdem
uma boa oportunidade de problematizar essa afirmação e de ensinar discursos mesmos
sexistas na escola. Enquanto que Daniel, após o ensinamento de Rafael, fica em dúvida e
precisa do aval de alguém de confiança para entender que menino também pode assistir ao
filme.
Observa-se que nesse currículo escolar é acionado um conjunto de práticas, normas e
discursos que dizem, definem o que é ou não permitido, o que pode ou não ser feito por
meninos e meninas. São atividades e posturas que delimitam os espaços e diferenciam
meninos e meninas, instituindo o que é adequado, o que é inadequado, o que deve ou não
gostar. Além de as próprias crianças acabarem por aprender esses ensinamentos do que é
destinado a meninos e do que é destinado a meninas. Diante disso, é possível constatar como
o currículo escolar “está sempre cheio de ordenamentos, de linhas fixas, de corpos
organizados, de identidades majoritárias”. (PARAÍSO, 2009, p.278). Nesses currículos são
acionados discursos, estratégias que funcionam e operam com raciocínios generificados,
ensinando às crianças todos os dias as normas de gênero.
AS FILAS E OS RACIOCÍNIOS GENERIFICADOS
Os raciocínios generificados que são operados no currículo investigado, fazem com
que até mesmo as filas feitas para as crianças subirem para a sala, descerem para o recreio,
retornarem à sala após o recreio, irem à educação física, irem a alguma atividade extra e irem
embora, sejam organizadas de modo a separar e dividir meninos e meninas.
Quando uma das crianças tem algum comportamento inadequado, é punido indo para a
fila contrária ao seu gênero. Nesse sentido, estar juntos na mesma fila de meninos e/ou
meninas funciona como punição, como pode ser visto nos episódios a seguir:
Episódio 4: “filas de meninos e fila de meninas”
- Quando chega a hora do recreio, a professora Amanda pede para as
crianças se organizarem em filas: “fila organizada para merendar”. As crianças já
se colocam em uma fila de meninas e em uma fila de meninos. As meninas estavam
em fila com as mãos para trás, enquanto os meninos não. Cada um dos meninos
andava em um ritmo: alguns corriam, outros escorregavam de joelhos no corredor.
As meninas, por sua vez, permanenciam em uma fila impecável. (Fragmentos do
diário de campo, 18/03/2013, Escola Municipal Desejos Ocultos).
Nesse episódio é possível observar que as meninas aceitaram, mais que os meninos, a
ordem da professora e os ensinamentos sobre como devem se portar em uma fila. Aqui o
próprio discurso pedagógico que demanda disciplina e organização para o processo de ensino
opera generificando. Isso ocorre porque considera-se que é mais fácil manter a ordem
separando meninos e meninas e fazendo as crianças se postarem em filas. As meninas
assumem logo a “posição de sujeito de boa-aluna”. Talvez porque já tenham aprendido que “a
menina que não se adequar às normas, que ultrapassar as fronteiras do bom comportamento
ficará sozinha, feia e sem companhia na vida” (CARVALHAR, 2009, p. 47), como ensina o
currículo da educação infantil. Os comportamentos indisciplinados dos meninos, por sua vez,
não produzem estranhamento nesse dia porque é como se “fossem “naturalmente” agitados e
inquietos, como se eles tivessem nascido assim, algo natural do sexo masculino e de seu
corpo, que precisa se movimentar constantemente” (CARVALHAR, 2009, p. 89).
Todavia, conforme for a professora, há também a punição para aqueles meninos que
não se comportam de acordo com o esperado pela professora, como as mãos para trás, manter-
se em silêncio, olhar para frente, como veremos nos episódios a seguir:
Episódio 5: “a fila e a punição dos meninos”
Na hora em que as crianças estavam descendo para a quadra, Daniel não se
comporta da maneira considerada adequada pela professora na fila e fica puxando
o colega da frente. A professora puxa-o pelo braço e o coloca como primeiro na fila
das meninas. Ele reclama e diz: “Eu não gosto disso!” e a professora responde:
“Menino que não sabe comportar vai para a fila das meninas”. Todas as crianças
olham para ele e começam a rir. (Fragmentos do diário de campo, 20/03/2013,
Escola Municipal Desejos Ocultos).
Outro dia, quando voltavam do recreio, Matheus e Daniel vão para a fila das
meninas por não se comportarem como ensinado pela professora, já que não
paravam de conversar. Eles tentam permanecer na fila dos meninos e a professora
os manda para a fila das meninas. Eles voltam cabisbaixos para a fila das meninas.
As crianças ficam rindo discretamente. (Fragmentos do diário de campo,
09/04/2013, Escola Municipal Desejos Ocultos).
Episódio 6: “a fila e a punição das meninas”
Em um outro dia, na fila para o recreio, Ana Luiza não se comporta como ensinado
pela professor. Ela estava balançando os braços na fila. A professora pergunta-lhe
se ela quer ir para a fila dos meninos. Sem olhar para o lado, ela balança a cabeça
com sinal negativo. A professora pede que todas as crianças coloquem as mãos
para trás e que desçam em silêncio. (Fragmentos do diário de campo, 05/04/2013,
Escola Municipal Desejos Ocultos).
Um outro dia, ao saírem para o recreio, Gabriella fica pulando e puxando a colega
da frente. A professora pede a ela para ir imediatamente para a fila dos meninos.
Gabriella vai e faz careta, sem que a professora veja, para as outras crianças que
ficam rindo. (Fragmentos do diário de campo, 07/05/2013, Escola Municipal
Desejos Ocultos).
Diante da marcada separação entre filas para meninas e para meninos, a punição
àquele ou àquela que foge das regras estipuladas pela professora é feita fazendo com que a
criança ocupe a fila do sexo oposto. Quando uma criança é enviada para tal fila, ela se
intimida e é motivo de risos pelas outras crianças. Com isso, as professoras acabam por
reforçar os lugares e comportamentos adequados para cada um de acordo com os raciocínios
generificados. Apesar da tentativa de resistência, como no caso dos meninos que parecem se
sentir mais envergonhados em ocupar tal fila, os alunos não vêm outra possibilidade a não ser
sujeitar-se às ordens da professora.
Percebemos como os raciocínios generificados nesse currículo marcam, governam e
subjetivam os corpos das crianças, punindo as crianças que de alguma forma fogem às normas
esperadas pelo seu sexo.
CHORO, RELAÇÕES DE GÊNERO E ESCAPES
Ao pensarmos no choro em seu sentido etimológico, “Deplorar, prantear; Sentir a
perda de; Arrepender-se de”, podemos nos indagar: existem modos de chorar específicos de
meninos e modos específicos de menina? Existem diferenças quando o choro é de um menino
ou de uma menina? Existe sinceridade em um choro masculino? E no feminino? O choro
feminino deve ser poupado? Pensando nisso e nos atendo ao currículo observado, algo que
nos chamou a atenção foi uma diferenciação por parte de uma das professoras da escola ao
lidar com o choro de algumas crianças como veremos nos episódios a seguir.
Episódio 7: “a fila e a punição das meninas”
A professora Gisele entrega uma atividade de matemática sobre o número 3. Todas
as crianças, com exceção de Gabriel, começam a fazer a atividade antes da
explicação da professora. Gisele explica passo a passo, mas a turma quase todo já
está terminando. Gabriel levanta a mão, fala que não sabe qual é o número três. Ela
fala, de forma áspera, que ele sabe sim. Ele pede ajuda para outras crianças, as
quais o ignoram. Então, começa a chorar. O choro não é alto. É quase um
desespero. Gabriel levanta da cadeira e Gisele o busca pelo braço e o coloca na sua
cadeira de novo o mandando parar de chorar. As crianças perguntam se Gabriel
está de castigo. Gisele fala que sim e que não é nada não, para concentrarem na
aula. (Fragmentos do diário de campo, 18/03/2013, Escola Municipal Desejos
Ocultos).
Bruna volta do recreio chorando porque Agatha quebrou seu arquinho de cabelo.
Agatha diz que foi sem querer. A professora diz a ela para levar para casa e ver se
sua mãe pode comprar um. Professora: “Se pode comprar viu gente?” E diz que
caso a mãe de Agatha não possa, Bruna terá que desculpá-la porque foi sem querer.
Agatha ameaça começar a chorar. A professora imediatamente diz: “Não precisa
chorar. Eu não estou xingando”. (Fragmentos do diário de campo, 25/04/2013,
Escola Municipal Desejos Ocultos).
A professora relata que no dia anterior fizeram o aluno nota 10 e os vencedores
foram Robert e Lorena. Como prêmio ganharam um livro, uma caixa de massinha,
um lápis e um diploma de aluno nota 10, sendo o de Robert verde e o de Lorena,
rosa. Conta que Gabriel chorou por não ter sido ele o ganhador. Enquanto isso,
Gabriel conversa com Rafael e a professora diz: “Ah mais não vai ganhar aluno
nota 10 de jeito nenhum.” (Fragmentos do diário de campo, 03/09/2013, Escola
Municipal Desejos Ocultos).
A professora pede às crianças para colorirem todos os desenhos das folhas que ela
entregou. Léo fica virado para trás conversando e a professora pega sua agenda
para mandar um bilhete a seus pais. Léo entrega e começa a chorar. Uma criança
grita a professora diz que ele irá chorar. Professora: “Choro não mata não. Faz
bem para os pulmões”. Léo chora. (Fragmentos do diário de campo, 12/09/2013,
Escola Municipal Desejos Ocultos).
Nesses episódios, é evidente a forma diferenciada como os choros são tratados. No
que se refere ao choro feminino, é notório como a professora preocupa-se em não magoar a
aluna e rapidamente tenta justificar-se, evitando o choro da mesma. Diferentemente, no que se
refere ao choro masculino, percebemos uma certa intolerância, um motivo para não ser o
aluno nota 10 e até mesmo uma falta de preocupação com a reação dos meninos. No último
caso, por exemplo, ela encontra no choro um benefício aos pulmões.
Fica claro, que a professora tem uma postura de proteção em relação ao choro de
Ágatha, quando rapidamente explica que não está xingando a menina e acrescenta que não
precisa chorar. A maneira de agir da professora apenas reforça os ensinamentos generificados
dos currículos investigados. Ao que tudo indica, essa ação nos permite pensar que a menina
por ser mais comportada, é digna de um conforto a ponto de ter seu choro impedido. Ao
contrário dos meninos, em que seu choro não parece em nada comovê-la.
Contudo, há aí um escape, pois segundo as normas de gênero “no processo de
produção de identidades femininas como frágeis, desprotegidas e choronas, cria-se, também,
uma identidade masculina que tem características opostas à feminina. Desde a infância os
meninos são vistos como agitados e agressivos” (CARVALHAR, 2009, p. 88) os que não
choram, os que se mantêm sempre fortes e resistentes. Sendo assim, Gabriel e Léo, escapam
a essa norma, pois não conseguem conter o choro. Além disso, “os homens nomeados como
tal devem se comportar de modo a seguir rigidamente os preceitos de determinado tipo de
masculinidade”. (SHIRLEY E PARAÍSO, 2013, p. 614).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Verificamos que no currículo investigado, normas de gênero atuam para produzir
meninos e meninas. Procuramos mostrar que esse currículo junto de suas práticas divide,
exclui, separa e hierarquiza já no início da alfabetização em que as crianças desde muito cedo
aprendem o que é ser bom aluno, o que é ser boa aluna, quais são as atividades e brincadeiras
adequadas a seu sexo, a maneira como se comportar, agir, falar, de acordo com as normas de
gênero.
Tão desejável quanto aprender a ler e a escrever rapidamente nos primeiros anos do
ensino fundamental, é também que se aprenda a ser menino e menina. Para isso, as práticas
educativas que operam com raciocínios generificados presentes na escola deixam claro o que
cada um pode ou não fazer. Além disso, determinam posturas, modos de ser, modos de viver
de meninos e meninas, que acabam se tornando comportamentos naturais e próprios. A ponto
de os próprios alunos já se policiarem nos seus gostos, desejos, vontades, por serem
fabricados modos pelos quais passam a constituir a si mesmos como meninos e meninas.
No entanto, apesar das diferentes estratégias que tentam padronizar e controlar os
comportamentos e ações dos indivíduos há quem se afaste desse controle e, por isso, acaba
sendo rotulado e muitas vezes excluído. Nesse sentido, a escola assume-se como agente
responsável em produzir “verdadeiros” homens e “verdadeiras” mulheres, mantendo estrita
vigilância acerca do corpo de seus alunos, para que nada escape do desejável.
Contudo, no decorrer de todas as observações realizadas até agora, evidenciamos que
o currículo praticado na alfabetização da escola governa corpos, legitima modos de ser,
modos de se comportar, corrige corpos e mentes de maneira a padronizá-los para então
produzirem e se portarem de maneira adequada. Ou seja, o currículo investigado reforça
dicotomias existentes na sociedade para normalizar e regular os corpos, produzindo sujeitos
masculinos e femininos que são diferenciados e, muitas vezes, separados e hierarquizados, e
que têm como efeito a maior valorização das condutas de um sobre o outro. Em síntese,
mostramos como essas práticas e esses raciocínios, em seu conjunto, acabam alfabetizando de
modo distinto às diferentes crianças em sala de aula e contribuem para produzir e divulgar de
um lado crianças “confiantes”, “normais” e “adequadas” e, por outro lado, crianças
“inseguras”, “anormais” e “inadequadas” a seu sexo, a sua idade, a etapa da escolarização em
que se encontram e a estes tempos que estão demandando a antecipação da alfabetização das
crianças.
REFERÊNCIAS:
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(org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p.151-
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currículo: Ágora da diferença da experiência e do desejo? Relatório de Pesquisa de Estágio
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Disponível em: http://www.dicionarioweb.com.br/chorar visto em 23 de abril de 2015.