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RACIOCÍNIOS QUE GENERIFICAM, DIFERENCIAM E HIERARQUIZAM NO CURRÍCULO DA ALFABETIZAÇÃO DE CRIANÇAS Camila Amorim Campos 1 Universidade Federal de Minas Gerais Marlucy Alves Paraíso 2 Universidade Federal de Minas Gerais INTRODUÇÃO O currículo escolar é um artefato cultural envolvido em relações de poder que opera com diferentes raciocínios ou “sistemas de pensamentos” para diferenciar e hierarquizar as crianças desde muito cedo (PARAÍSO, 2013 e 2014). Tais raciocínios são deduzidos de saberes de diferentes “campos discursivos”, operados na escola por meio de práticas e exercícios que, em seu conjunto, demarcam “posições de sujeitos” a serem ocupadas por crianças e docentes nas escolas. Uma dessas posições de sujeito demandas é claramente a de sujeitos generificados que se conduzam conforme o seu sexo. Com o uso de fragmentos de uma pesquisa que investigou o currículo de duas turmas de alfabetização de duas escolas 3 públicas de Belo Horizonte e acompanhou as crianças de seis e sete anos de idade em seus dois primeiros anos escolares do ensino fundamental, este trabalho analisa como se dão os processos de diferenciação de gênero na alfabetização das crianças e quais são os raciocínios de gênero usados nesses currículos e na condução das práticas pedagógicas. Com base nos estudos pós-críticos de currículo, que o vêm como um artefato cultural envolvido em relações de poder e na produção de sujeitos, e nos estudos pós- estruturalistas de gênero, que vêm o gênero como uma norma que regula e governa os corpos, mostramos neste trabalho como as normas de gênero se articulam com outras relações de poder para subjetivar as crianças já no início do processo de alfabetização. O argumento desenvolvido neste trabalho é o de que nos currículos investigados, ao mesmo tempo em que se alfabetizam as crianças, são acionados nas mais diferentes práticas analisadas discursos generificados e raciocínios que produzem e justificam diferenciações e 1 Estudante de pedagogia da Faculdade de Educação da UFMG, Bolsista de Iniciação Cientifica do CNPq orientanda da professora Marlucy Paraíso e membro do GECC- Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Currículos e Culturas da mesma universidade. [email protected] 2 Professora Associada da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É Pesquisadora Produtividade do CNPq 1D e coordenadora do GECC- Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Currículos e Culturas da mesma universidade. [email protected] 3 A pesquisa foi realizada em duas escolas, mas trabalharemos aqui somente com uma delas.

RACIOCÍNIOS QUE GENERIFICAM, DIFERENCIAM E HIERARQUIZAM NO ... · controla-se modos de ser e estar no mundo. Isso ocorre de modo a ensinar lugares a meninos e a meninas que contribuem

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RACIOCÍNIOS QUE GENERIFICAM, DIFERENCIAM E HIERARQUIZAM NO

CURRÍCULO DA ALFABETIZAÇÃO DE CRIANÇAS

Camila Amorim Campos1

Universidade Federal de Minas Gerais

Marlucy Alves Paraíso2

Universidade Federal de Minas Gerais

INTRODUÇÃO

O currículo escolar é um artefato cultural envolvido em relações de poder que opera

com diferentes raciocínios ou “sistemas de pensamentos” para diferenciar e hierarquizar as

crianças desde muito cedo (PARAÍSO, 2013 e 2014). Tais raciocínios são deduzidos de

saberes de diferentes “campos discursivos”, operados na escola por meio de práticas e

exercícios que, em seu conjunto, demarcam “posições de sujeitos” a serem ocupadas por

crianças e docentes nas escolas. Uma dessas posições de sujeito demandas é claramente a de

sujeitos generificados que se conduzam conforme o seu sexo.

Com o uso de fragmentos de uma pesquisa que investigou o currículo de duas turmas

de alfabetização de duas escolas3 públicas de Belo Horizonte e acompanhou as crianças de

seis e sete anos de idade em seus dois primeiros anos escolares do ensino fundamental, este

trabalho analisa como se dão os processos de diferenciação de gênero na alfabetização das

crianças e quais são os raciocínios de gênero usados nesses currículos e na condução das

práticas pedagógicas. Com base nos estudos pós-críticos de currículo, que o vêm como um

artefato cultural envolvido em relações de poder e na produção de sujeitos, e nos estudos pós-

estruturalistas de gênero, que vêm o gênero como uma norma que regula e governa os corpos,

mostramos neste trabalho como as normas de gênero se articulam com outras relações de

poder para subjetivar as crianças já no início do processo de alfabetização.

O argumento desenvolvido neste trabalho é o de que nos currículos investigados, ao

mesmo tempo em que se alfabetizam as crianças, são acionados nas mais diferentes práticas

analisadas discursos generificados e raciocínios que produzem e justificam diferenciações e

1 Estudante de pedagogia da Faculdade de Educação da UFMG, Bolsista de Iniciação Cientifica do CNPq orientanda da professora Marlucy Paraíso e membro do GECC- Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Currículos

e Culturas da mesma universidade. [email protected]

2 Professora Associada da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É

Pesquisadora Produtividade do CNPq 1D e coordenadora do GECC- Grupo de Estudos e Pesquisa sobre

Currículos e Culturas da mesma universidade. [email protected]

3 A pesquisa foi realizada em duas escolas, mas trabalharemos aqui somente com uma delas.

hierarquizações. Ensina-se às crianças a serem meninos e meninas e a se comportarem de

acordo com as “normas de gênero”. Essas normas definem o que é feminino e o que é

masculino, o que é certo e adequado para um e para o outro sexo, o que se espera de um

“menino de verdade” e de uma “menina de verdade” (PARAÍSO, 2011). Em um cuidadoso

processo de ensino e exercitação, tais normas são ensinadas, praticadas, vigiadas e controladas

nas escolas investigadas em diferentes momentos.

Contudo, todas as normas, para que se efetivem e cumpram sua função de

normalização, precisam de um longo e cuidadoso processo de repetição e vigilância, e, apesar

das diferentes estratégias usadas para garantir que elas se cumpram, há quem dela se afaste.

Analisamos neste trabalho, então, por um lado, as diferentes práticas no currículo investigado

que dividem, separam, agrupam, reagrupam e classificam no interior das salas de aulas,

usando para isso, raciocínios pedagógicos e patriarcais para produzir diferenciações e

hierarquizações generificadas que possuem efeitos nos processos de ensino, e limitam ou

aumentam as possibilidades de aprendizagem de meninos e meninas. Por outro lado,

mostramos escapes a essas normas, explorando como esses escapes funcionam e os efeitos

disso na sala de aula.

CURRÍCULO E GÊNERO

As discussões sobre gênero vêm assumindo importância e ocupando cada vez mais

espaço nas pesquisas em educação. O gênero define o lugar de homens e mulheres em nossa

sociedade ao mesmo tempo em que limitam ou potencializam as experiências das pessoas.

Gênero é aqui compreendido como uma construção sócio histórica, assentada em relações de

poder (Louro, 1997). Gênero, portanto, aponta para processos determinados e múltiplos de

construção discursiva. Isso porque o gênero, assim definido, “não é, nunca, simplesmente,

uma função de diferenças materiais que não sejam, de alguma forma, simultaneamente,

marcadas e formadas por práticas discursivas (BUTLER, 1999, p. 153). Práticas discursivas

que, de um modo geral, têm como efeito marcar, governar e subjetivar os corpos.

Uma das práticas discursivas que contribuíram para separar e hierarquizar homens e

mulheres e que ainda hoje marca sua existência em diferentes espaços e instituições é

certamente constituída por discursos patriarcais. As feministas do pensamento da diferença

sexual vem dedicando suas energias, há muito tempo, para “mostrar como o patriarcalismo

opera hierarquizando os gêneros e subjugando as mulheres” (PARAISO, 2015, p. 6). Esta

“ordem simbólica patriarcal” é “desnudada por essas feministas ao ponto de fazê-la mostrar-

se como ela de fato é: silenciadora, excludente, opressora, ambiciosa” (PARAISO, 2015, p.

8). Ambiciosa porque “o pensamento da diferença sexual mostra que a ordem simbólica

patriarcal não ocupou e jamais poderia e nem poderá ocupar tudo e a todos/as; há espaços a

serem ocupados por outras ordens simbólicas, por outros signos” (PARAISO, 2015, p. 8). É

esse outro espaço, essa outra ordem simbólica que essas feministas lutam para ocupar.

Nesse sentido, sabemos que diferentes espaços, instituições e artefatos, há muito

tempo, veem cumprindo a função de operar com e de divulgar práticas discursivas que

demarcam lugares, moldam os corpos, ensinam o correto e o errado no que se refere a gênero.

O currículo escolar é um desses espaços/artefatos que ensinam sobre gênero, que vigiam os

corpos, que demarcam os lugares e que associam discursos generificados e outros discursos

(como o pedagógico e o patriarcal, por exemplo) para garantir a normatização dos corpos e a

manutenção das diferenças de gênero. Como tem mostrado Paraíso (2010), os currículos

escolares “trabalham com uma grande fome de demarcações claras de gênero; fome de

identidades formadas, que possam ser claramente classificadas; fome por diferentes que

possam ser usados para justificar as “diferenças” de desempenho, de agrupamentos, de

condutas”. (PARAISO, 2010, p. 133).

O currículo é aqui entendido como “um espaço de ensino por excelência” (PARAISO,

2011, p.148), que “opera inúmeras diferenciações” com implicações significativas “na

produção de sujeitos e na aprendizagem das crianças” (PARAISO, 2011, p.148). Isso porque

o currículo divide, separa, agrupa, reagrupa e classifica no interior das salas de aulas em suas

mais diferentes atividades, e isso tem efeitos na forma como os alunos e as alunas se veem e

são vistos. Tais práticas, além de demarcar lugares, limitam ou aumentam as possibilidades de

aprendizagem de meninos e meninas (PARAÍSO, 2011). É isso que procuraremos detalhar

nas partes que se seguem.

ENSINO GENERIFICADO NO CURRÍCULO ESCOLAR: DIVISÕES, PROIBIÇÕES,

SILÊNCIOS E RESISTÊNCIAS

No currículo de alfabetização de crianças investigado, ensina-se, exige-se, forma-se,

controla-se modos de ser e estar no mundo. Isso ocorre de modo a ensinar lugares a meninos e

a meninas que contribuem para produzir sujeitos masculinos e femininos normalizados e

hierarquizados. Esses ensinamentos se dão de diversas maneiras e por meio de práticas

variadas, tais como: na formação das filas, na definição de quem faz as diferentes atividades,

nos agrupamentos para realização de tarefas, nas formas usadas para falar aos/às diferentes

alunos/as, enfim na regulação dos corpos. Em diferentes materiais e atividades realizadas nas

escolas tais como: filmes, personagens, material escolar, brincadeiras, falas constantes,

posturas exigidas, ensina-se para as crianças os modos considerados adequados de ser menino

e ser menina. Verificamos que junto com a grande preocupação e o grande investimento em

alfabetizar as crianças o mais rápido possível, ensina-se, minuciosamente e com muito

empenho, a essas crianças a se comportarem e a viverem como “meninos e meninas de

verdade”.

Nesse sentido, no currículo investigado, diferenciam-se meninos e meninas,

ensinando-lhes o que cada um pode ou não fazer, o que é ou não adequado para o seu sexo.

Jogar futebol na Educação Física, por exemplo, continua sendo, nas turmas que acolhem

crianças de seis e sete anos de idade, uma atividade exclusiva dos meninos. Uma das meninas,

quando solicita participar dessa atividade, é rapidamente proibida. Do mesmo modo, brincar

de se enfeitar, se maquiar, se embelezar é tarefa proibida aos meninos e incentivada para as

meninas. Os meninos que querem brincar de salão de beleza são rapidamente direcionados às

atividades consideradas adequadas ao seu gênero. Isso pode ser visto no episodio descrito a

seguir:

Episódio 1: “futebol e salão de beleza”

A professora Gisele³ diz às crianças para formarem as filas que irão para a

educação física. Daniel, Luiz e Gabriel ficam assentados porque não fizeram a

atividade realizada pelas crianças anteriormente. Nesse momento os meninos devem

jogar futebol e as meninas devem brincar de salão de beleza. Uma menina de outra

turma quer jogar futebol e a professora Gisele não deixa, dizendo-lhe: “E desde

quando você joga futebol? Você está vendo alguma menina lá?”. A menina olha

para a professora, não responde, mas fica com a cara fechada. Sua professora

chega perto dela e pergunta o que aconteceu. Ela rapidamente explica: “Ah quero

jogar com os meninos e a professora Gisele não deixa”! A professora Gisele olha e

diz-lhe então que ela pode ir, desde que ela consiga correr igual aos meninos. A

menina sorriu e rapidamente se junta aos meninos e joga futebol. No mesmo horário

as meninas são encaminhadas para outra atividade... Elas levaram maquiagem,

espelhos, escovas, pentes, perfumes, bolsas, esmaltes para brincar de salão de

beleza. No decorrer da brincadeira cada uma era a dona do salão. Elas escolhiam

quem seria a dona do salão e quem seria a secretária e iam revezando essas

funções. Feito isso, as mesmas iam para seu local de trabalho e as demais ligavam e

agendavam um horário. Ao chegar no salão, elas se cumprimentavam e enquanto

uma arrumava o cabelo a outra dedicava-se às unhas e/ou maquiagem. Um dos

alunos vê a brincadeira e pede a elas para brincarem. As meninas deixam, mas a

professora imediatamente interfere proibindo e lhe ordena: “Vai jogar futebol com

seus amigos! Anda logo!” Ele não questiona a ordem da professora e retorna ao

futebol. (Fragmentos do diário de campo, 20/03/13. Escola Municipal Desejos

Ocultos).

Essas divisões, separações e diferenciações são bastante comuns na turma investigada.

As interferências e os ensinamentos generificados também são comuns. A menina jogar

futebol, assim como o menino brincar de salão de beleza são brincadeiras consideradas como

não condizentes com o seu sexo. Contudo, há um diferencial entre as posturas da menina e do

menino no episodio narrado assim como na intervenção da professora para cada um deles.

Quando a menina pede para jogar futebol e a professora não aceita, a menina resiste ao

ensinamento de que meninas não devem jogar futebol. A professora acaba cedendo e

autorizando-a a entrar no jogo, mesmo colocando-lhe a condição de que deve “correr igual

aos meninos”. Já no que toca ao menino, verificamos que ele rapidamente aceita a proibição

da professora, que o impossibilita de brincar de salão de beleza. Embora não fosse que a

professora considerasse adequado, ela cede ao desejo da menina mas não cede ao desejo do

menino.

Isso parece mostrar que há, de fato, uma maior vigilância e uma menor aceitação que

se fuja à norma em relação aos meninos. .Do mesmo modo, parece ser mais difícil ao menino

resistir à norma. O menino nem mesmo hesitou em questionar a ordem da professora. Ele

simplesmente obedece. Essa maior vigilância sobre o masculino parece ser recorrente nas

escolas de diferentes níveis de ensino. Sales e Paraíso (2013) mostraram que no Ensino Médio

e nos discursos por elas analisados “o governo das condutas no que se refere à sexualidade

incide muito mais intensamente sobre os rapazes do que sobre as moças”. (SALES e

PARAISO, 2013, p. 616). Elas mostram também que, na escola, “ser macho é manter uma

postura corporal rígida” (p.613). Do mesmo modo, Carvalhar (2009), ao pesquisar em uma

escola infantil, mostra que “os discursos que instituem e atravessam os fazeres na educação

infantil definem e veiculam, de forma contínua e repetida, modelos identitários femininos e

masculinos bem diferenciados”. Ela afirma também que naquele contexto, “os meninos

devem se afastar ao máximo dessa forma de ser e estar no mundo considerado feminino”

(CARVALHAR, 2009, p.94).

Cabe registrar também que as crianças ainda não estão completamente normalizadas

com essas normas de gênero. Vejam que os meninos não contestaram a participação da

menina no futebol. Do mesmo modo, as meninas não viram qualquer problema em aceitar que

o garoto brincasse com elas de salão de beleza. Exatamente porque meninas e meninos ainda

não internalizaram as normas de gênero o currículo escolar ensina cotidianamente tais regras,

separando, dividindo, proibindo e diferenciando.

Além disso, esse tipo de controle, vigilância e proibição também está presente no que

se refere aos materiais escolares, como veremos no episódio a seguir:

Episódio 2: “caderno da galinha pintadinha”

A professora chega em sala e diz às crianças ( que irão começar a organizar os

cadernos de artes e literatura, porque vai ter reunião de pais e eles vão querer

olhar os cadernos. As crianças tinham muitos trabalhos realizados que precisavam

ser colados nos cadernos. A professora fala o nome de cada criança para verificar

quem ainda não tem o caderno. Segundos depois, ela levanta um caderno da

galinha pintadinha e pergunta: “de quem é?”. Douglas diz que é seu. A professora

ironicamente diz: “Ah tá; esse caderno é seu? Da galinha pintadinha?” Douglas

responde: “sim”, e continua brincando com seus lápis de cor. A professora coloca o

nome de Douglas no caderno balançando a cabeça negativamente recriminando o

caderno do menino. (Fragmentos do diário de campo, 16/04/2013, Escola

Municipal Desejos Ocultos).

Nesse currículo, o fato de Douglas sendo um menino ter um caderno da galinha

pintadinha é estranhando e ironizado pela professora. Contudo, embora a professora tenha

questionado e ironizado Douglas não se importa, pelo menos por enquanto, com a ironia. Para

ele, não tinha qualquer problema ele ser o dono do caderno. A professora claramente viu

nesse fato uma possibilidade de ameaça à masculinização do menino. É como se o caderno de

Douglas, da famosa Galinha Pintadinha, fosse inadequado para um menino. Com apenas 6

anos de idade, no início do percurso escolar, Douglas é ensinado que esse material é

inadequado ao seu sexo. Assim, com episódios corriqueiros e cotidianos o currículo ensina às

crianças desde a mais tenra idade padrões e normas generificadas.

Esse tipo de aprendizado e ensino, também está presente quando se destina tempo na

escola para assistir a filmes, como veremos no episódio a seguir:

Episódio 3: “cinema na escola”

A professora não chegou na hora correta. Todas as crianças já aguardavam

assentadas em suas carteiras na sala de aula. A pedido da coordenadora foram

para a sala 18, que é uma sala de vídeo bem parecida com um cinema. A

coordenadora e a vice-diretora da escola ficaram responsáveis por quatro turmas

nesse dia, incluindo a turma da professora Gisele. Todas as crianças entraram

alvoroçadas. A vice-diretora grita a todo o momento pedindo silêncio enquanto a

coordenadora coloca o filme. As crianças parecem não escutar até que começa o

filme The Flintstone. Por menos de um minuto as turmas se calam e, em seguida,

começam a conversar, balançar nas cadeiras e assim permanecem por alguns

instantes até o filme, de fato, começar. A vice-diretora grita pedindo silêncio

novamente e diz não estar ouvindo se o filme começou. A coordenadora sai da sala

e retorna rapidamente. O filme começa a travar e ela o adianta. Nada parece atrair

as crianças. A coordenadora volta e usa um microfone para tentar acalmá-las, mas

de nada adianta, pois continuam conversando e correndo pela sala. A

coordenadora e a vice-diretora parecem desistir e passam a fingir não estar vendo.

Alguns minutos depois, a coordenadora decide mudar o filme por “Alice no país das

maravilhas”. Rafael imediatamente grita: “Credo! Filme de mulher eu não quero

não!” Daniel olha pra mim e pergunta: “Você gosta?” Respondo que sim, e ele

então, assiste ao filme. A vice-diretora grita por silêncio mais uma vez. Diferente do

outro filme, esse parece atrair a atenção das crianças que começam a assistir

atentamente. Com exceção de André, o qual fica jogando bolinha de papel para

cima até a coordenadora chamar sua atenção. (Fragmentos do diário de campo,

13/05/2013, Escola Municipal Desejos Ocultos).

É interessante observar que Rafael já assumiu, aprendeu e está ensinando às outras

crianças que há filmes adequados para meninos e outros que são adequados para as meninas.

Isso, no entanto, não o impede de assistir ao filme e de gostar do que vê. Além disso, tanto a

vice-diretora quanto a coordenadora ao se silenciarem ante a afirmação de Rafael, perdem

uma boa oportunidade de problematizar essa afirmação e de ensinar discursos mesmos

sexistas na escola. Enquanto que Daniel, após o ensinamento de Rafael, fica em dúvida e

precisa do aval de alguém de confiança para entender que menino também pode assistir ao

filme.

Observa-se que nesse currículo escolar é acionado um conjunto de práticas, normas e

discursos que dizem, definem o que é ou não permitido, o que pode ou não ser feito por

meninos e meninas. São atividades e posturas que delimitam os espaços e diferenciam

meninos e meninas, instituindo o que é adequado, o que é inadequado, o que deve ou não

gostar. Além de as próprias crianças acabarem por aprender esses ensinamentos do que é

destinado a meninos e do que é destinado a meninas. Diante disso, é possível constatar como

o currículo escolar “está sempre cheio de ordenamentos, de linhas fixas, de corpos

organizados, de identidades majoritárias”. (PARAÍSO, 2009, p.278). Nesses currículos são

acionados discursos, estratégias que funcionam e operam com raciocínios generificados,

ensinando às crianças todos os dias as normas de gênero.

AS FILAS E OS RACIOCÍNIOS GENERIFICADOS

Os raciocínios generificados que são operados no currículo investigado, fazem com

que até mesmo as filas feitas para as crianças subirem para a sala, descerem para o recreio,

retornarem à sala após o recreio, irem à educação física, irem a alguma atividade extra e irem

embora, sejam organizadas de modo a separar e dividir meninos e meninas.

Quando uma das crianças tem algum comportamento inadequado, é punido indo para a

fila contrária ao seu gênero. Nesse sentido, estar juntos na mesma fila de meninos e/ou

meninas funciona como punição, como pode ser visto nos episódios a seguir:

Episódio 4: “filas de meninos e fila de meninas”

- Quando chega a hora do recreio, a professora Amanda pede para as

crianças se organizarem em filas: “fila organizada para merendar”. As crianças já

se colocam em uma fila de meninas e em uma fila de meninos. As meninas estavam

em fila com as mãos para trás, enquanto os meninos não. Cada um dos meninos

andava em um ritmo: alguns corriam, outros escorregavam de joelhos no corredor.

As meninas, por sua vez, permanenciam em uma fila impecável. (Fragmentos do

diário de campo, 18/03/2013, Escola Municipal Desejos Ocultos).

Nesse episódio é possível observar que as meninas aceitaram, mais que os meninos, a

ordem da professora e os ensinamentos sobre como devem se portar em uma fila. Aqui o

próprio discurso pedagógico que demanda disciplina e organização para o processo de ensino

opera generificando. Isso ocorre porque considera-se que é mais fácil manter a ordem

separando meninos e meninas e fazendo as crianças se postarem em filas. As meninas

assumem logo a “posição de sujeito de boa-aluna”. Talvez porque já tenham aprendido que “a

menina que não se adequar às normas, que ultrapassar as fronteiras do bom comportamento

ficará sozinha, feia e sem companhia na vida” (CARVALHAR, 2009, p. 47), como ensina o

currículo da educação infantil. Os comportamentos indisciplinados dos meninos, por sua vez,

não produzem estranhamento nesse dia porque é como se “fossem “naturalmente” agitados e

inquietos, como se eles tivessem nascido assim, algo natural do sexo masculino e de seu

corpo, que precisa se movimentar constantemente” (CARVALHAR, 2009, p. 89).

Todavia, conforme for a professora, há também a punição para aqueles meninos que

não se comportam de acordo com o esperado pela professora, como as mãos para trás, manter-

se em silêncio, olhar para frente, como veremos nos episódios a seguir:

Episódio 5: “a fila e a punição dos meninos”

Na hora em que as crianças estavam descendo para a quadra, Daniel não se

comporta da maneira considerada adequada pela professora na fila e fica puxando

o colega da frente. A professora puxa-o pelo braço e o coloca como primeiro na fila

das meninas. Ele reclama e diz: “Eu não gosto disso!” e a professora responde:

“Menino que não sabe comportar vai para a fila das meninas”. Todas as crianças

olham para ele e começam a rir. (Fragmentos do diário de campo, 20/03/2013,

Escola Municipal Desejos Ocultos).

Outro dia, quando voltavam do recreio, Matheus e Daniel vão para a fila das

meninas por não se comportarem como ensinado pela professora, já que não

paravam de conversar. Eles tentam permanecer na fila dos meninos e a professora

os manda para a fila das meninas. Eles voltam cabisbaixos para a fila das meninas.

As crianças ficam rindo discretamente. (Fragmentos do diário de campo,

09/04/2013, Escola Municipal Desejos Ocultos).

Episódio 6: “a fila e a punição das meninas”

Em um outro dia, na fila para o recreio, Ana Luiza não se comporta como ensinado

pela professor. Ela estava balançando os braços na fila. A professora pergunta-lhe

se ela quer ir para a fila dos meninos. Sem olhar para o lado, ela balança a cabeça

com sinal negativo. A professora pede que todas as crianças coloquem as mãos

para trás e que desçam em silêncio. (Fragmentos do diário de campo, 05/04/2013,

Escola Municipal Desejos Ocultos).

Um outro dia, ao saírem para o recreio, Gabriella fica pulando e puxando a colega

da frente. A professora pede a ela para ir imediatamente para a fila dos meninos.

Gabriella vai e faz careta, sem que a professora veja, para as outras crianças que

ficam rindo. (Fragmentos do diário de campo, 07/05/2013, Escola Municipal

Desejos Ocultos).

Diante da marcada separação entre filas para meninas e para meninos, a punição

àquele ou àquela que foge das regras estipuladas pela professora é feita fazendo com que a

criança ocupe a fila do sexo oposto. Quando uma criança é enviada para tal fila, ela se

intimida e é motivo de risos pelas outras crianças. Com isso, as professoras acabam por

reforçar os lugares e comportamentos adequados para cada um de acordo com os raciocínios

generificados. Apesar da tentativa de resistência, como no caso dos meninos que parecem se

sentir mais envergonhados em ocupar tal fila, os alunos não vêm outra possibilidade a não ser

sujeitar-se às ordens da professora.

Percebemos como os raciocínios generificados nesse currículo marcam, governam e

subjetivam os corpos das crianças, punindo as crianças que de alguma forma fogem às normas

esperadas pelo seu sexo.

CHORO, RELAÇÕES DE GÊNERO E ESCAPES

Ao pensarmos no choro em seu sentido etimológico, “Deplorar, prantear; Sentir a

perda de; Arrepender-se de”, podemos nos indagar: existem modos de chorar específicos de

meninos e modos específicos de menina? Existem diferenças quando o choro é de um menino

ou de uma menina? Existe sinceridade em um choro masculino? E no feminino? O choro

feminino deve ser poupado? Pensando nisso e nos atendo ao currículo observado, algo que

nos chamou a atenção foi uma diferenciação por parte de uma das professoras da escola ao

lidar com o choro de algumas crianças como veremos nos episódios a seguir.

Episódio 7: “a fila e a punição das meninas”

A professora Gisele entrega uma atividade de matemática sobre o número 3. Todas

as crianças, com exceção de Gabriel, começam a fazer a atividade antes da

explicação da professora. Gisele explica passo a passo, mas a turma quase todo já

está terminando. Gabriel levanta a mão, fala que não sabe qual é o número três. Ela

fala, de forma áspera, que ele sabe sim. Ele pede ajuda para outras crianças, as

quais o ignoram. Então, começa a chorar. O choro não é alto. É quase um

desespero. Gabriel levanta da cadeira e Gisele o busca pelo braço e o coloca na sua

cadeira de novo o mandando parar de chorar. As crianças perguntam se Gabriel

está de castigo. Gisele fala que sim e que não é nada não, para concentrarem na

aula. (Fragmentos do diário de campo, 18/03/2013, Escola Municipal Desejos

Ocultos).

Bruna volta do recreio chorando porque Agatha quebrou seu arquinho de cabelo.

Agatha diz que foi sem querer. A professora diz a ela para levar para casa e ver se

sua mãe pode comprar um. Professora: “Se pode comprar viu gente?” E diz que

caso a mãe de Agatha não possa, Bruna terá que desculpá-la porque foi sem querer.

Agatha ameaça começar a chorar. A professora imediatamente diz: “Não precisa

chorar. Eu não estou xingando”. (Fragmentos do diário de campo, 25/04/2013,

Escola Municipal Desejos Ocultos).

A professora relata que no dia anterior fizeram o aluno nota 10 e os vencedores

foram Robert e Lorena. Como prêmio ganharam um livro, uma caixa de massinha,

um lápis e um diploma de aluno nota 10, sendo o de Robert verde e o de Lorena,

rosa. Conta que Gabriel chorou por não ter sido ele o ganhador. Enquanto isso,

Gabriel conversa com Rafael e a professora diz: “Ah mais não vai ganhar aluno

nota 10 de jeito nenhum.” (Fragmentos do diário de campo, 03/09/2013, Escola

Municipal Desejos Ocultos).

A professora pede às crianças para colorirem todos os desenhos das folhas que ela

entregou. Léo fica virado para trás conversando e a professora pega sua agenda

para mandar um bilhete a seus pais. Léo entrega e começa a chorar. Uma criança

grita a professora diz que ele irá chorar. Professora: “Choro não mata não. Faz

bem para os pulmões”. Léo chora. (Fragmentos do diário de campo, 12/09/2013,

Escola Municipal Desejos Ocultos).

Nesses episódios, é evidente a forma diferenciada como os choros são tratados. No

que se refere ao choro feminino, é notório como a professora preocupa-se em não magoar a

aluna e rapidamente tenta justificar-se, evitando o choro da mesma. Diferentemente, no que se

refere ao choro masculino, percebemos uma certa intolerância, um motivo para não ser o

aluno nota 10 e até mesmo uma falta de preocupação com a reação dos meninos. No último

caso, por exemplo, ela encontra no choro um benefício aos pulmões.

Fica claro, que a professora tem uma postura de proteção em relação ao choro de

Ágatha, quando rapidamente explica que não está xingando a menina e acrescenta que não

precisa chorar. A maneira de agir da professora apenas reforça os ensinamentos generificados

dos currículos investigados. Ao que tudo indica, essa ação nos permite pensar que a menina

por ser mais comportada, é digna de um conforto a ponto de ter seu choro impedido. Ao

contrário dos meninos, em que seu choro não parece em nada comovê-la.

Contudo, há aí um escape, pois segundo as normas de gênero “no processo de

produção de identidades femininas como frágeis, desprotegidas e choronas, cria-se, também,

uma identidade masculina que tem características opostas à feminina. Desde a infância os

meninos são vistos como agitados e agressivos” (CARVALHAR, 2009, p. 88) os que não

choram, os que se mantêm sempre fortes e resistentes. Sendo assim, Gabriel e Léo, escapam

a essa norma, pois não conseguem conter o choro. Além disso, “os homens nomeados como

tal devem se comportar de modo a seguir rigidamente os preceitos de determinado tipo de

masculinidade”. (SHIRLEY E PARAÍSO, 2013, p. 614).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Verificamos que no currículo investigado, normas de gênero atuam para produzir

meninos e meninas. Procuramos mostrar que esse currículo junto de suas práticas divide,

exclui, separa e hierarquiza já no início da alfabetização em que as crianças desde muito cedo

aprendem o que é ser bom aluno, o que é ser boa aluna, quais são as atividades e brincadeiras

adequadas a seu sexo, a maneira como se comportar, agir, falar, de acordo com as normas de

gênero.

Tão desejável quanto aprender a ler e a escrever rapidamente nos primeiros anos do

ensino fundamental, é também que se aprenda a ser menino e menina. Para isso, as práticas

educativas que operam com raciocínios generificados presentes na escola deixam claro o que

cada um pode ou não fazer. Além disso, determinam posturas, modos de ser, modos de viver

de meninos e meninas, que acabam se tornando comportamentos naturais e próprios. A ponto

de os próprios alunos já se policiarem nos seus gostos, desejos, vontades, por serem

fabricados modos pelos quais passam a constituir a si mesmos como meninos e meninas.

No entanto, apesar das diferentes estratégias que tentam padronizar e controlar os

comportamentos e ações dos indivíduos há quem se afaste desse controle e, por isso, acaba

sendo rotulado e muitas vezes excluído. Nesse sentido, a escola assume-se como agente

responsável em produzir “verdadeiros” homens e “verdadeiras” mulheres, mantendo estrita

vigilância acerca do corpo de seus alunos, para que nada escape do desejável.

Contudo, no decorrer de todas as observações realizadas até agora, evidenciamos que

o currículo praticado na alfabetização da escola governa corpos, legitima modos de ser,

modos de se comportar, corrige corpos e mentes de maneira a padronizá-los para então

produzirem e se portarem de maneira adequada. Ou seja, o currículo investigado reforça

dicotomias existentes na sociedade para normalizar e regular os corpos, produzindo sujeitos

masculinos e femininos que são diferenciados e, muitas vezes, separados e hierarquizados, e

que têm como efeito a maior valorização das condutas de um sobre o outro. Em síntese,

mostramos como essas práticas e esses raciocínios, em seu conjunto, acabam alfabetizando de

modo distinto às diferentes crianças em sala de aula e contribuem para produzir e divulgar de

um lado crianças “confiantes”, “normais” e “adequadas” e, por outro lado, crianças

“inseguras”, “anormais” e “inadequadas” a seu sexo, a sua idade, a etapa da escolarização em

que se encontram e a estes tempos que estão demandando a antecipação da alfabetização das

crianças.

REFERÊNCIAS:

BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo. In: LOURO, G. L

(org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p.151-

172.

CARVALHAR, Danielle Lameirinhas. Identidades generificadas no currículo da educação

infantil: entre princesas, heróis e sapos. 2009. 148 f. Dissertação (Mestrado em Educação) –

Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal de

Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009.

LOURO, Guacira. Gênero, Sexualidade e Educação: uma perspectiva pós-estruturalista.

Petrópolis: Vozes, 1997.

PARAISO, Marlucy Alves. O currículo entre a busca por "bom desempenho" e a garantia das

diferenças. In: SANTOS, L. Et all. (Orgs.). Convergências e tensões no campo da formação e

do trabalho docente. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p. 132-152.

PARAÍSO, Marlucy Alves. Raciocínios generificados no currículo escolar e possibilidades de

aprender. In: LEITE C.; PACHECO J. A.; MOREIRA A. F.; MOURAZ A. (Orgs.). Políticas,

fundamentos e práticas do currículo. Porto: Porto Editora, 2011, v. 1, p. 147-160.

PARAÍSO, Marlucy Alves. O feminismo da diferença sexual na Revista Duoda para pensar o

currículo: Ágora da diferença da experiência e do desejo? Relatório de Pesquisa de Estágio

Sênior/CAPES. Barcelona, 2015.

SALES, Shirlei ; PARAÍSO, Marlucy Alves . O Jovem Macho e a Jovem Difícil: governo da

sexualidade no currículo. Educação e Realidade, v. 38, p. 603-625, 2013.

Disponível em: http://www.dicionarioweb.com.br/chorar visto em 23 de abril de 2015.