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Dossiê A Música e suas Determinações Materiais https://revistaecopos.eco.ufrj.br/ ISSN 2175-8689 – v. 23, n. 1, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i1.27449 266 Racionais MCs, Indústria cultural, mercadoria e periferia Racionais MCs, culture industry, commodity and periphery Luciane Soares da Silva Professora associada da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Mestre pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutora em sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Presidente da Associação de Docentes da UENF e chefe de laboratório do LESCE (Laboratório de Estudos da Sociedade Civil e do Estado). É vice presidente da ADUENF e coordena o Núcleo de Estudos Cidade Cultura e Conflito (NUC). Submetido em 16 de março de 2020 Aceito em 07 de maio de 2020 RESUMO Entre as interpretações contemporâneas sobre a existência de um estilo juvenil, um dos principais demarcadores de seu comportamento é a forma de consumo nas grandes cidades. A música, principalmente após a década de 50, marca este estilo e insere determinadas formas de adesão a mercadorias (jeans, motos, bebidas, cigarros). Esta pesquisa aplica a técnica da análise de conteúdo sobre 16 letras de canções do grupo de rap Racionais MCs, propondo a problematização destes demarcadores de consumo também presentes na indústria fonográfica estadunidense. A crítica social acompanhada do desejo pela posse de bens exige uma análise sobre categorias centrais à sociologia contemporânea, como alienação, conflito social e cultura globalizada. É possível classificar/compreender esta geração a partir da exibição de determinado gosto por objetos? O referencial teórico para esta pesquisa partirá dos estudos culturais, dos trabalhos da escola de Frankfurt (especialmente as discussões de T. Adorno sobre arte e técnica) e da discussão de Peter McLaren sobre “multiculturalismo revolucionário” para pensar a relação entre música, política e consumo. PALAVRAS-CHAVE : favela, música negra, conflito racial, arte

Racionais MCs, Indústria cultural, mercadoria e periferia

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ISSN 2175-8689 – v. 23, n. 1, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i1.27449

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RacionaisMCs,Indústriacultural,mercadoriaeperiferia

RacionaisMCs,cultureindustry,commodityandperiphery

LucianeSoaresdaSilva ProfessoraassociadadaUniversidadeEstadualdoNorteFluminenseDarcyRibeiro.MestrepelaUniversidadeFederaldoRioGrandedoSul.DoutoraemsociologiapelaUniversidadeFederaldoRiodeJaneiro.PresidentedaAssociaçãodeDocentesdaUENFechefedelaboratóriodoLESCE(LaboratóriodeEstudosdaSociedadeCiviledoEstado).ÉvicepresidentedaADUENFecoordenaoNúcleodeEstudosCidadeCulturaeConflito(NUC).

Submetidoem16demarçode2020Aceitoem07demaiode2020

RESUMOEntreasinterpretaçõescontemporâneassobreaexistênciadeumestilojuvenil,umdos principais demarcadores de seu comportamento é a forma de consumo nasgrandescidades.Amúsica,principalmenteapósadécadade50,marcaesteestiloeinsere determinadas formas de adesão a mercadorias (jeans, motos, bebidas,cigarros).Estapesquisaaplicaatécnicadaanálisedeconteúdosobre16letrasdecanções do grupo de rap Racionais MCs, propondo a problematização destesdemarcadores de consumo também presentes na indústria fonográficaestadunidense.Acríticasocialacompanhadadodesejopelapossedebensexigeumaanálise sobre categorias centrais à sociologia contemporânea, como alienação,conflito social e cultura globalizada. É possível classificar/compreender estageraçãoapartirdaexibiçãodedeterminadogostoporobjetos?Oreferencialteóricopara esta pesquisa partirá dos estudos culturais, dos trabalhos da escola deFrankfurt (especialmente as discussões de T. Adorno sobre arte e técnica) e dadiscussãodePeterMcLarensobre“multiculturalismorevolucionário”parapensararelaçãoentremúsica,políticaeconsumo.PALAVRAS-CHAVE:favela,músicanegra,conflitoracial,arte

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ABSTRACTAmongcontemporary interpretationsof theexistenceofayouthstyle,oneofthemaindemarcatorsofhisbehavioristheformofconsumptioninlargecities.Music,especiallyafterthe50s,marksthisstyleandinsertscertain formsofadhesiontogoods(jeans,motorcycles,drinks,cigarettes).Thisresearchappliesthetechniqueofcontentanalysison16lyricsofsongsbytherapgroupRacionaisMCs,proposingtheproblematizationoftheseconsumptionmarkersalsopresentintheAmericanphonographicindustry.Socialcriticismaccompaniedbyadesireforpossessionofgoodsrequiresananalysisofcategoriescentraltocontemporarysociology,suchasalienation, social conflict and globalized culture. Is it possible to classify /understand this generation from the display of a certain taste for objects? Thetheoreticalframeworkforthisresearchwillstartfromculturalstudies,theworkoftheFrankfurtschool(especiallyT.Adorno'sdiscussionsonartandtechnique)andPeterMcLaren'sdiscussionof“revolutionarymulticulturalism”tothinkabouttherelationshipbetweenmusic,politicsandconsumption. KEYWORDS:slum,blackmusic,racialconflict,art

Introdução

Otextoapresentadoconstituiumaprimeiratentativadesistematizaçãode

questõessobreindústriacultural,periferiaeconsumo.Nestetrabalho,aculturaé

pensadaenquantoespaçodeconflito(Bourdieu,1989).Especificamenteinteressaa

produçãodiscursivadeumgrupopaulista,osRacionaisMCs.

Metodologicamente, seráaplicadaa técnicadeanálisede conteúdoem16

letras do grupo. A leitura de livros, teses, dissertações e artigos sobre o tema

colaborounapercepçãodequeamaioriadaspesquisastrabalhadeformacanônica:

asorigens,acrítica,omomentoatual,focandoarelaçãoentreperiferiaeindignação

comoprincipalqualidadedomovimentohip-hopnoBrasil.

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Na maioria das pesquisas sobre o tema, são empregadas técnicas de

entrevistas,eestasnãosedetêmsobreoconteúdodasletras,jáqueasexplicações

emgeralassemelham-seàsdadaspelosnativosdomovimento:acríticaaosistema

(quepodeassumirdiferentesrepresentações),aviolênciaeolugardasperiferias

nasgrandescidades.

O exercício de pensar a produção musical, as letras e seus artistas foi

realizadoporKhel(1999),avaliandoossignificadosdaformaçãodestesgruposna

periferia de São Paulo. O artigo é um dos primeiros a inaugurar uma chave

interpretativaquereapareceráempartedaproduçãocientíficabrasileirasobreo

rapemgeraleogrupoRacionaisMCsemparticular:

Éacapacidadedesimbolizaraexperiênciadedesamparodestesmilhõesdeperiféricos urbanos, de forçar a barra para que a cara deles sejadefinitivamente incluída no retrato atual do país (um retrato que ainda sepretende doce, gentil, miscigenado), é a capacidade de produzir uma falasignificativa e nova sobre que faz dos Racionais MCs o mais importantefenômenomusicaldemassasnoBrasildosanos90.(KHEL,1999,p.97)

Em2004,outroartigosobreotemaseguealinhadoanterior.Em“Onegro

dramadorapentrealeidocãoealeidaselva”(ZENI,p.2282004),aanálisede

letrasdosRacionaislevaoautoradeclararque:

OrapdosRacionaispretende,aoqueparece,levaraleidaselvaquedominaaperiferiaparaointeriordacasagrande,aosouvidosdaelite,comacertezabrutal–comaagressividadequeosafirmaeprotege–dequeelessãodemaisparaoquintaldasclassesdominantes.

AopçãoporanalisarorapcomoummovimentodeinterpretaçãodoBrasil

vindodaperiferiaéutilizadaporCamargo(2015)esegueamesmatônica:asletras

esuarelaçãocomosmarginalizadoseadesigualdade/racismo/violênciapolicial.

Nesteartigo,apropostaérealizarumaanálisedaproduçãodeletrassema

obrigação conclusiva de uma missão ou engajamento por parte dos artistas. O

estudo das letras de um grupo torna-se relevante como indicador de um tipo

específicodeprodução cultural e tambémda complicada relaçãoentremercado,

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arteepolítica.Asletrassãoumachavepoderosaparacompreensãodessasrelações

a partir de enunciados que deslocam a função das mercadorias para outras

possibilidades que não seu uso ou exibição. O desafio enfrentado neste artigo

consisteemanalisarasformascomoestesartistasdesfazemerefazemosignificado

debensdeconsumocomocarros,motos,relógios,bebidas,têniseoutrosobjetos

cujovaloréproblematizadonasletras.

Sobremudançasediásporamusicalnegra

Aproduçãomusicaldepessoasnão-brancas(negrxs,latinxs)empaísescomo

Estados Unidos e Brasil é comumente classificada como “menor” diante dos

demarcadoresdedistinçãodoqueconvencionou-seclassificarcomo“boamúsica”:

Parausarumaexpressãoprópriaàteoriamusical,tantonoBrasilcomonosEstadosUnidos, amusicalidadeafricanaapresentou-se comoumdefinitivo“contraponto”àculturanacional,oficializadanasidealizaçõescomunaisqueaspiravam à construção de uma nação inspirada na sociedade europeia.Portanto,asensibilidademusicalépensadaaquicomoprodutoradeafiliaçõesque expressamnão só umgosto estético. Afiliar-se a determinadas formasmusicais no Brasil produz demarcações identitárias, uma vez que estasafiliaçõessempreestiveramemdisputanaformaçãodogosto.Do lunduaosamba,passandoporexpressõesregionaisclassificadas(pelosmodernistas,por exemplo) como “folclóricas”. Em um primeiro momento, modinha,maxixe, lundu, samba, eram consideradas “expressões chulas” da culturanacional,enquantoaóperaapareciacomosinônimodenobrezaedistinçãodeclassesmaiscultivadas.Maistardeéamúsicaamericana(rockn’roll, jazz)que aparece como signo de modernidade em oposição ao que é nacional(sinônimode atraso).Mesmo comdivisões internas regionaisnaproduçãomusical, podemos falar em uma constante preocupação com o que eraeminentemente “nacional” e o que era importado. Estas fronteiras sãoalteradasapartirdadécadade90.Principalmentenaformadeassimilaçãodamúsicaeculturaestadunidensenasáreasurbanasbrasileiras.Seem1970osbailesemsubúrbioscariocastêmumamusicalidadenegraestrangeiracomofio condutor, apartirdadécadade90,aproduçãonacional apropria-sedebases sonoras para emissão de letras em língua portuguesa (SILVA, p.502019).

O advento da cultura de massas vem acompanhado da popularização de

músicasdeentretenimento,promovidasporumaindústria fonográficaquealiao

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desempenhodeartistaspopulares(oconceito“pop”quedominaomercadohápelo

menos duas décadas) à reprodução incessante de imagens e performances em

espaçostelevisivos.Oadventodasmáquinasdesomdomésticas(osaparelhosque

estãonaorigemmíticadosurgimentodohip-hop)colaboraramnamassificaçãode

umtipodeacessoaosbensculturais.Aquestãoqueseráproblematizadanestetexto

é a relação entre a produção no campo do hip hop e a indústria cultural. Seria

possívelpensarumpossíveldistanciamentoemrelaçãoaoconsumodemassas?

Classificações como “música de gueto”, “música de periferia”, “música de

bandidos”sãoempregadascomfrequênciaemrelaçãoàsproduçõesmusicaisfeitas

fora dos cânones de gosto mais largamente aceitas pela mídia e crítica musical

especializada.NoBrasil,podemospensarnasconfiguraçõesqueenvolvemosamba:

recusa, aceitação, consagração (de um tipo de samba que torna-se signo de

brasilidade, posteriormente presente no Carnaval como parte da brasilidade

estéticanacional).Apósosanos50,abossanovaservirácomotrilhadaurbanização,

enãoporacasoopresidenteJuscelinoKubitschekrecebeuoapelidode“presidente

bossa nova1”. Estes dois exemplos são fundamentais para entender amúsica no

séculoXXnoBrasil.Eapósaredemocratização,orockbrasileiro,juntoaopunkrock,

será pavimento de uma nova trilha. Questionadora da democracia, das

desigualdades e das formas de utopia e revolução perdidas. A década de 90

apresentará ao país o rap e o funk, primeiramente como importação e

posteriormentecomocriaçãodeletrasemlínguaportuguesa.

Oiníciodadécadade1980émarcadopelaaberturademocráticalenta,tendo

como expressões culturais o movimento punk e o Rock Brasil. Ambos já

tematizavamapolítica“quepaíséesse”,dabandaLegiãoUrbana,ouquestõessobre

desigualdade (“com tanta riqueza por aí, onde é que está, cadê sua fração?”), da

bandapunkPlebeRude,deBrasília.Ocenárioeraurbano,industrializadoenãomais

1Aletradacanção“Presidentebossanova”,deJucaChaves(“Depoisdesfrutardamaravilha/deseropresidentedoBrasil/voardaVelhaCapparaBrasília/veraalvoradaevoardevoltaaoRio[...]Mandarparenteajatoprodentista/almoçarcomtenistacampeão/tambémserumbomartistaexclusivista/tomandocomDilermandoumasaulinhasdeviolão”),ironizaumacertavisãodonovo,dourbano,damodaqueestariaemalta.Abossanovarepresentavaosanseiosdeumaparceladapopulação–anovaclassemédiaurbana–quereconheciaeexibiaseussignosdearrojoedistinção.

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rural.Oquestionamentoestavanasletrascomopartedeumcampotemático.Essa

geraçãoocupouatelevisão(emsuafasemaisexperimental,comoosmemoráveis

programasdoChacrinha)comexpressõesderebeldia,contestaçãodeinstituições

comoapolícia(“políciaparaquemprecisa”-Titãs)ouantecipandoatemáticadas

favelas(“alagados,Trenchtown,FaveladaMaré,aesperançanãovemdomar,nem

das antenasdeTV” –ParalamasdoSucesso).Oque tinhamemcomum, alémda

temática questionadora? Eram jovens, brancos e de classe média, filhos de

ministros, médicos, militares, engenheiros, psicólogas, professoras de violão...

Participavam de um movimento marcado pelo desejo de mudança social

acompanhadadecertadesconfiançaemrelaçãoàsinstituiçõespostas.

Ademocratizaçãodoacessoàinformaçãoeacertosbens(comotoca-discos,

caixasemicrofones)alteramestecenário.Amúsicaeletrônicaserviucomobasede

trabalhoparaumaparcelada juventude jáengajadadesdeadécadade1970nos

bailes black, ouvintes do ritmo funk (como praticado então nos Estados Unidos,

antesdoMiamibassquedominariaocenáriocariocanadécadade1990).Podemos

encontrarumelodeaproximaçãoentreaproduçãonacionalegruposdehip-hop

como Public Enemy, usando temporariamente o termo “música de diáspora”,

pensando nos trabalhos de Paul Gilroy sobre musicalidade africana e de

afrodescendentes?

AbasedamúsicanegraproduzidaprincipalmentenosEstadosUnidosesteve

presenteempraticamentetodocenáriomusicalocidentalemdiferentesmomentos,

sendoojazzeohip-hoposmaisconhecidos,masnãoosúnicos.Nocasoespecífico

dohip-hop,estáemjogoaconstruçãodeumaidentidadevisualsemelhanteàdo

rapper,comumgesticulareumestilodevidasemelhantes,quetorna-seumideal

nãoapenasparaaquelesquevivemnasperiferiasdeParis,SãoPauloouDetroit.

Tambémumapartesignificativadajuventudeoriundadasclassesmédiasadotauma

formadecomportamentosemelhanteade ídoloscomoTupacShakur,Emineme

ManoBrown.

Sãoreproduzidasaslinguagens(gírias,termoslocais,metáforas),formasde

vestir e, portanto, formasde consumo.Ogangsta rap torna-seumdosestilosde

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maior êxito na indústria fonográfica estadunidense a partir da década de 90,

principalmenteatravésdegravadorasalternativasaomainstream,comoaRuthless

Records e a Death Row Records. O mesmo fenômeno ocorre no Brasil com o

processodeproduçãodogrupoRacionaisMCs.Umdeseusmaisconhecidosálbuns,

SobrevivendonoInferno,ocupao14ºlugarentreoscemprincipaisálbunsdoBrasil

segundo a revista Rolling Stone. O álbum de 1997 foi produzido pelo selo Cosa

NostraFonográfica2,umselodogrupodedicadoaartistasderap.Ofatoderetratar

“situaçõescotidianasdeviolênciapolicial,racismoedesigualdade”fezcomqueuma

geração de pesquisadores focasse no estilo produzido nas periferias ocidentais

comotemadeartigos,livrosmonografiaseteses.Comfrequência,estaspesquisas

relacionam amúsica rap com o protesto dos excluídos na nova ordemmundial

capitalista. Talvez umadas referências principais desta tendência seja o livrode

PeterMcLaren,MulticulturalismoRevolucionário,noqualaatuaçãodosrappersé

comparadaaoconceitodeintelectualorgânicodeGramsci.Ocontextopolíticono

qualMcLarenescreveseu textoapaixonadosobreogangstarapamericanoéem

algunsaspectossemelhanteaoBrasilcontemporâneo:explosãodadiscussãosobre

racismo e ações policiais em bairros de periferia, abertura de espaço para

manifestações culturais de grupos cujo discurso explicita as contradições

econômicas,discussãodaspolíticaspúblicasparaosnegros,comoaçõesafirmativas

epolíticasdeassistênciasocial.

ArecepçãodogangstanoBrasilinfluenciouparteimportantedosgruposque

surgemapartirdadécadade1980-entreestes,emSãoPaulo,osRacionaisMCs.A

invasãodacenaurbanajuvenilpelohiphop(Herschmann,2000)recebeupesadas

críticasporpartedamídiaedoEstado,principalmenteórgãosligadosasegurança

pública.Asletrasocupamespaçonaconformaçãodeumcomportamentojovemde

periferiaparalelamenteàascensãodatemáticadaviolênciaedocrimedentrodas

ciências sociais no Brasil. Além disso, sucedem ao Rock Brasil, intensificando o

diálogocomoespaçodascidades,jápresentenastemáticassobrenação,juventude

epolítica.Aassociaçãoentreproduçãohip-hop,periferiaeviolênciadistingue-seda

2http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq131109.htm,acessadoem22demaiode2015.

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produção estadunidense por algumas razões: uma das principais refere-se às

condições materiais da indústria fonográfica, que possibilita a estes artistas

participarem de um circuito de consumo elevado. As cifras movimentadas por

artistascomoJayZ,Diddy,KanyeWest,SnoopDog,DrDreeEminemchegamàcasa

dosmilhões.Nãosóamúsica,masumuniversocompletodemarcasqueenvolve

roupas, perfumes, bebidas e outras mercadorias consumidas avidamente no

mercado estadunidense. Não há paralelo no Brasil a estas formas de lucro no

universohip-hop.

A crítica em relação à exibição de objetos de ouro, carros e mansões

apareceránasletrasdosRacionais,nanomeaçãodemarcaseobjetosdeconsumo

desejados.EmboraasrelaçõesentreclasseamúsicalevemoscríticosnoBrasila

acusarosartistasde“imitação”,essaexplicaçãopareceinsuficienteselevarmosem

contaadiferençanaatuaçãodomainstreamnosdoispaíses.Aexistênciadegangues,

conflitosgeradosporenfrentamentosentresociedadecivilepolícia(motivadoscom

frequênciaporabusospoliciais)emortesviolentasenvolvendocantoresconstituem

elementosimportantesdediferenciação.

Preliminarmente é possível inferir que a produção acadêmica sobre o

movimentohip-hopnoBrasilconcentrasuasexplicaçõesnarelaçãoentreperiferia,

desigualdade/violênciaeproduçãoculturalcomoaçãopolítica.Ouseja,amesma

tesedeMcLarensobreogangstarapestadunidense.Existeumtipoderoteiromais

oumenosfrequentenasproduçõesqueiniciacomarecuperaçãodosprimórdiosdo

movimento nos Estados Unidos e no Brasil. A temática da juventude é

frequentemente posta como condição da produção cultural. A produção destes

jovens seriaum indicadorde tensõesurbanas. Porúltimo, háumaadesãoquase

irresistívelaosconteúdosmanifestosnasproduçõesderapnaperiferia.

A construção do rapper enquanto um “intelectual orgânico”, como o faz

McLaren,estápresentenosartigoselivrossobreotema.Napesquisasobregangues

egalerasemFortaleza,Diógenes,(p.194,1998)endossaque:

AperspectivapolíticadoHip-Hop,atravésdoMH2O,projeta-senoqueelesvãodenominarcontracultura.Aideiapreconizadapelomovimentoéadeque

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aguerraentrericosepobrestemorap,ografite,obreakeosmurfdancecomoarmaspolíticasparatomaroquenospertenceeacabarcomasdesigualdadessociaiseaopressão,tornandoahumanidadeigual,justaefeliz.

A análise de Diógenes apresenta aspectos do cotidiano desses grupos

(violência,olugardosenfrentamentos,avisãosobreacidade).Apartirdosrelatos

de campo, suaanálise serve comocomplementoaodiscursonativo, construindo,

assim,umdiscursodeadesãoaostemasapresentadosporseusentrevistados.

O termo “abalou” foi empregado porHerschmann em sua pesquisa sobre

funk e hip-hop, como forma de demonstrar a importância dessas produções

culturaisparaocenárionacional.Seupontodepartidaparaanálisedofenômeno

nosanos90foramosarrastõesque“constituíramumaespéciedemarcoparaofunk

e o hip-hop, uma espécie de divisor de águas. A partir daquelemomento, coma

intensaveiculaçãodamídia,ambosadquiremumanovadimensão,colocandoem

discussãoolugardopobrenodebatepolíticoeintelectualdopaís”(HERSCHMANN

,P.17,1997).

Emtrabalhobemmaisrecente,Camargos(2015)segueomesmofioanalítico

apresentado por Diógenes dezessete anos antes. Para o autor “as experiências

negativasestimularamosrappersaverosresultadosdestastransformaçõessociais

deformabastantecrítica.Parteconsideráveldesuasmúsicasveiculoureferências

acercadovivernasociedadeatual”.

Camargosrelacionaofenômenodorapaumaideiaderesistência:

Dessamaneira,mesmosobahegemonianeoliberal construídaapartirdos1990, não se eliminaram os discursos que interpelam o funcionamento dasociedade capitalista e as questões a ela inerentes, como a exploração dotrabalho e as dificuldades de enfrentar os danos causados pelamercantilizaçãodavidanasuaquasetotalidade(p.150).

Reflexividadeepesquisa

Em maio de 2001, iniciei meu trabalho de pesquisa de campo sobre o

movimentohip-hop.UmfestivaldebreaktrouxeaPortoAlegreThaídeeDjHum,

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além de parte dos Racionais, Ed Rock e KL Jay. Durante um fim de semana,

acompanheiThaídeemsuaparticipaçãonofestivalqueuniadançarinosdaAmérica

Latina noAuditório Araújo Vianna. A presença de Thaíde conferia certa aura ao

evento. Demarcava o que deveriam ser os atos, os fundamentos, as atitudes dxs

participantes.Àépoca, tenteiumaentrevista comEdiRockeKL Jay.Após terem

cumprido uma agenda de shows, estavam exaustos, o que impossibilitou nosso

encontro. Mas, neste momento, um problema surgia. Já havia realizado várias

entrevistasnasquaisumdiscursoerabastantefrequente:“aquisomosumafamília

unida”.Asfalascontraosistemaeassituaçõesdedesigualdadeeramigualmente

frequentes,maseraperceptívelnaanálisedesituaçõesdocotidianoaexistênciade

rivalidades,sexismoecríticasinternas.Nãosaberiacomotrabalharoquepercebia

emcamponaquelemomento,pareciaimpossíveliralémdeumdiscursojápronto,

umdiscursoatraenteparapesquisadoresinteressadosemumaversãodohip-hop

comoummovimentoderesistênciadaperiferia.Comotrabalharcomdiscursose

práticas,oucomosaberquaisaspectosprivilegiarnaanálise?

Mais de uma década depois, morando em frente a uma das favelas mais

conhecidasdoRiodeJaneiro,afaveladoJacarezinho,percebiapermanênciados

mesmos temas que animavam xs ouvintes de rap em Porto Alegre em 2001. As

máquinas em bares e restaurantes na favela, nas quais são escolhidas músicas,

seguiamtocando“DiáriodeumDetento”,“FimdeSemananoParque”,“Capítulo4

Versículo3”.Umadécadanãohaviaalteradoamodanaquelesespaços.Eramais

como um tempo congelado, com acirramento dos enfrentamentos policiais,

aumentodonúmerodeprisõesdeadolescenteseterritorializaçãodasfacções.Em

2007,cânticosdoComandoVermelhoeramentoadosnoônibus474,queligavaa

zonanorteàzonasuldacidade.Ofantasmavoltariaemeassombrar:RacionaisMCs,

emáreasdebailefunk,deproibidãoefunkerotizado.Diantedaimpossibilidadede

fazerumtrabalhodecampocomxsouvintesdehip-hop,umcaminhopossívelfoi

compreenderoquediziamasletras.

Posteriormente,emumadasvindasdogrupoaoCircoVoador,espaçocentral

naformaçãodogostoculturalfluminense,naLapa,percebiqueumcorodecentenas

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devozesacompanhavaogrupoemletrascommaisdedezminutosdeduração,sem

repetições. O que explicaria esta adesão a um grupo que não fazia parte do

mainstream dedistribuição fonográfica?Erammaisde15pessoas emumpalco-

periferia (a construção do cenário apresentava elementos como barracos,

lembrando vielas de uma favela em qualquer lugar do país). Não seria exagero

afirmarqueohip-hopé,atualmente,umdosestilosmusicaisquegeramaioradesão

entreajuventudeurbanabrasileiradeclassemédia.

Não há uma única versão sobre a recepção do hip-hop no Brasil. Mas é

possívelafirmaraexistênciadeumcertoconsensosobreaocupaçãodeespaços

públicospordançarinosdebreakemSãoPaulonofimdosanos1980.Aruacomo

espaçodeexecuçãodeperformancesdedançaerima.

Entre Brasil e Estados Unidos existem semelhanças nas formas de

tratamentodenão-brancxs,napersistênciadeindicadoresdedesigualdadetendoa

corcomovariávelimportante,naperseguiçãoàsmanifestaçõesculturaismarcadas

porculturasafricanasoudeafrodescendentes(jazz,samba),nainteraçãoviolenta

comapolícia.Mesmoconsiderandoosistemaestadunidensedeclassificaçãoracial

distintodobrasileiro,creioqueosaspectoscitadosexemplificamaspossibilidades

dodiálogoculturalentrediferentescontextosnacionais.Certamenteestecenáriode

recepçãoculturaldorapémuitodistintodaformacomoosBeatlessãoapropriados

noBrasilapartirdaJovemGuarda.

A primeira demarcação biográfica importante no caso dos Racionais é a

construçãodesuatrajetóriaforadaindústriafonográfica(grandesgravadorascomo

aSomLivre)eforadatelevisão(RedeGlobodeTelevisão).Orockbrasil,aMPBea

bossa nova sempre foram acolhidos pelas grandes gravadoras e programa de

televisão. Contratados e, portanto, subordinados ao processo de “emplacar”

sucessosdevenda.Umaobrigaçãoquetornouboapartedessxsartistasdescartável.

Asegundaliga-sediretamenteàprimeira,poisdizrespeitoaopúblicoquesegueas

apresentaçõesdabanda.Sãoindivíduosentre10e40anos,muitxsnascidxsapósa

décadaneoliberal,pósanos90,presxs,egressxsdosistemaprisional,adolescentes

emconflitocomalei,moradorxsdefavela,líderesdefacção.Quandoxsintelectuais

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eopúblicomaisamplodescobremosRacionaiscomSobrevivendonoInferno(quarto

álbumdabanda),aquelxsdequemsuasletrasfalamjátinhamtotaldomíniosobre

“DomingonoParque”,umadasprimeirascomposiçõesdogrupoareceberatenção

como “a grande novidade do momento”. São diferentes formas de relação e

consumo. Embora participe da produção cultural de massa, a especificidade de

construçãodatrajetóriadogrupo,seualcancediscursivoesuarelaçãocomagrande

mídianãopossibilitamumaclassificaçãoapressadaqueenquadresuaobracomo

partedaindústriacultural.Esteargumentoseráretomadonaconclusãodotexto.

OmundoigualcidadãoKane

Emumtrabalhoanterior,aoselecionar21letrasderapnacional(Silva,2008,

p.172-3),aplicou-seatécnicadaanálisedeconteúdo,

técnicapropíciaparaobtenção,porprocedimentossistemáticoseobjetivos,dedescriçãodeconteúdodemensagens,indicadores(quantitativosounão)que permitam a inferência de conhecimento relativos às condições deprodução/reproduçãodestasmensagens(Bardin,1979,p.41).

Supunha encontrar termos relativos a crime e violência como tônicas temáticas.

Contrariamenteaisso,ostermosmaisempregadosforammãeedeus,seguidosde

crime,dinheiro,morte,inferno,guerra,droga,consciência,liberdadee,porúltimo,

prisão(Silva,2008,p.172-3).

OfatodenãoseapresentarnaGloboeaindaassimvenderquaseummilhão

de cópias criou uma espécie de “aura” em torno do grupo, e principalmente do

vocalistaManoBrown.O contextoemquea frase “queroomundo igual cidadão

Kane”écitadaservirácomotônicaparaanálisedasletras.Em“Daponteparacá”,

ouvimosque“eununcativebicicletaouvideogame/agoraeuqueroomundoigual

cidadão Kane”. No caso específico dos Racionais, há uma segunda inscrição: o

documentário Muito além do cidadão Kane3, dirigido por Simon Hartog. O

documentário tornou-se fonte importantede informação sobreo crescimentoda

3Podeserassistidoaquihttps://www.youtube.com/watch?v=s-8scOe31D0

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maiorrededetelevisãodoBrasil,aRedeGlobo,easuaimposiçãodeumpadrãode

comunicaçãoquenegaadiversidadenacional.Alémdisso,mostraarelaçãoentrea

emissoraeoperíododitatorialbrasileiro.

Apropostaconsisteemumrecorteapartirde16letraseposterioranálise,

semdesconhecerocontextoemquesãoproduzidas.Interessapraticarumcontrole

da complexa relação entre pesquisadorxs (produtorxs do discurso acadêmico) e

artistas(produtoresdasletrasedeumdiscursodeexplicaçãodofenômenosocial:

ohip-hopnasperiferiasbrasileiras).Estasletrasforamselecionadasseguindouma

pesquisa sobre popularidade, indicações de sítios especializados, potencial de

debatesentreconsumidorxseespecialistas.

Foram analisadas 16 letras, distribuídas em58 páginas (em espaçamento

simples),compoucasrepetições(semumrefrãosimpleseemmédiacommaisde7

minutosdeduração).Privilegiaram-serepetiçõesdepalavrasnasmúsicas“Negro

Limitado”, “Fim de Semana no Parque”, “Mano na Porta do Bar”, “Capítulo 4,

Versículo3”,“FórmulaMágicadaPaz”,“MágicodeOz”,“PeriferiaéPeriferia”,“AVida

éDesafio”,“CrimeVai,CrimeVem”,“NegroDrama”,“DaPontepraCá”,“Eusou157”,

“EstiloCachorro”,“VidaLoka(parteIeII)”,“CoreseValores”.Antesdaanálisedos

termos,algumasobservaçõesimportantes,externasàsletras.Opúblicoparaoqual

Racionais endereçam suas letras são moradorxs de periferias urbanas (Cohab,

Jardim Rosana, Tremembé, Capão Redondo, Santa Tereza, Baixada Fluminense,

Ceilândia, Guarulhos, Tucuruvi...). Sua saudação inicial, em formade convocação,

nomeiaestasáreasdacidade:zonasul,zonaleste,zonaoestedeSãoPaulo(eoutras

cidadescomoRiodeJaneiro).

Ocenárionoqualseestabelecenosshowsdesafiaxpesquisadorxapensar

termos como “entretenimento” e “cultura de massa”. Precisamos problematizar

estasnoçõesconsiderandoqueasrelaçõesdeconsumodestaparceladapopulação

fogem à definição tradicional de consumidor burguês dos produtos culturais (a

referênciaaquisãoostrabalhosdaEscolhadeFrankfurt).AcidadedeSãoPauloéo

temacentraldosRacionais,estápresentedeformaexplícitaemalgumasletras:“Em

SãoPaulo,deuséumanotadecem”,“passageirodoBrasil,SãoPaulo,agonia”,“em

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SãoPaulo,terradearranha-céu,agaroarasgaacarneéatorredeBabel”,“acada4

horas,umjovemmorreviolentamenteemSãoPaulo”.

Éatematizaçãosobreavidaemgrandescidadesapartirdaóticados“filhos

de baianos”, assinalando a intensificação do processo migratório na direção do

sudeste a partir dos anos 20 do século XX. Portanto, o outro aspecto central da

narrativaéaconstruçãoclássicadoenfrentamento“nósversuseles”.Masapartir

daanálisedasletras,importaobservarquegruposencarnamesteoutro.Emuma

leituraapressada,talvezatônicadominantenasinterpretaçõessobrerap,osistema

capitalista opressivo, apareça como objeto do discurso (ou assim seja percebido

pelos seus analistas mais entusiasmados). Mas nas letras analisadas, existem

oposições locais:o termo“zé-povinho” fazreferênciaàs interaçõesdentrodestas

áreas, mediadas por sentimentos como inveja, traição, rancor. Estas oposições

demonstrama existênciade fragmentaçõesdentrodos gruposnos territóriosde

periferia.Otermozé-povinhoevidenciaasrelaçõescomunsdeinvejaedifamação

existentesentrevizinhos,parentes,amantesedesconhecidosqueacompanhamo

êxitodequemconseguesairdessesespaços.

Épossívelafirmarqueháumarelaçãodialéticapresentenaconstruçãodas

letras. Esta dialética tensiona constantemente o fora e o dentro. Passagens que

narram temas ligados à vida dentro das periferias serão, para efeitos de

esquematização,classificadascomo“dentro”.Emumaproporçãomuitoequilibrada,

as letrasapresentam-secomoumadescriçãodassituaçõescotidianas,mirandoo

fora(principalmenteasrelaçõesdeconsumodeartigosdeluxo).Aomesmotempo

emquetermoscomo“playboy”sãocitadoscomfrequência,estascitaçõessãofeitas

a partir da relação que se estabelece com a periferia: “playboy bom é chinês,

australiano, fala feio,mora longeenãomechamademano”, “hojeeusou ladrão,

artigo157,ascachorrameamam,osplayboysederretem”.Apolíciaéooutrode

dentro, oposição, “inimigo” presente no espaço cotidiano. Assim como o termo

“prisão”,apolíciaparticipadeumcircuitonoqual“morte”,“crime”e“violência”são

termos que descrevem o cotidiano masculino nesses espaços. Não se trata de

criminalidadedifusa.Sãonomeadasasrelaçõessociaisesuasconsequênciassobre

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cadaumdosagentesqueparticipamdassituaçõesnarradas.Nasletrasrompe-sea

possibilidadedeumpactosocialharmônico.

Éprecisoesclarecerqueousodaoposiçãofora/dentropretendecolaborar

para uma primeira compreensão da construção das letras. É uma opção

instrumental entre outras formas de recorte possíveis.Não deve ser classificada

como filiada a uma explicação estruturalista, mas é necessária em um primeiro

momentodeapresentaçãodastemáticas.Outraobservaçãoimportanteéapresença

constantedetermossobrereligiosidade:“deus”,“fé”.Sãoconstantesasreferências:

“opromotorésóumhomem,deuséojuiz”;“unsjuntandodinheiro,outrosjuntando

inimigos,sempretemumparatestarsuafé”;“conhecioparaísoeconheçooinferno,

vi Jesus de calça bege e o diabo de terno”. A questão da religião não será

desenvolvidanesteartigo,masimportaobservarqueestádistribuídacomotemática

nasletrasanalisadas.

Natrajetóriadogruponãoháumamudançaprofundanoconteúdodasletras:

acidade,oterritórioperiférico,aoposiçãoagruposecomportamentosnomeados

emsuasletras,olugardareligiãonocotidianoe,paraosobjetivosespecíficosdeste

trabalho,arelaçãocomganhosfinanceiros,mercadoriasestatussocial.

Paraanálisedasletras,foramcontabilizadosostermos“dinheiro”(citado64

vezesnas16letrasanalisadas,alémdetermoscomo“ouroeprata”,“money”,“dólar”

e “verdim”, também presentes em 20 citações), “carro” (16 citações), moto (6

citações), tênis (6 citações). As grifes, nomes de empresas e bancos merecem

atençãoespecialcomoindicadoresparaanalisarasrepresentaçõessobreestilode

vidaemercadodebensde luxo.Oobjetivoéanalisaressaspassagensnarelação

comaletraecomasdemaisletras,masnãotemosapretensãodeapresentaruma

“verdadeúltima”sobreestasproduções.

Os trechos serão apresentados com comentários e, ao final, algumas

consideraçõessobreoconjuntodasletras.Agrafiapermaneceráfielàformacomo

escritapelogrupo,semcorreçõesortográficasougramaticais.Aprimeira,“Fimde

Semana no Parque”, certamente foi uma das responsáveis pela ascensão dos

Racionaisnocenáriodorapnacional:

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Um, dois, três carros na calçada/Feliz e agitada toda "prayboyzada"/Asgaragens abertas eles lavam os carros/ Desperdiçam a água, eles fazem afesta/Vários estilos vagabundas,motocicletas/Coroa ricoboca aberta, iscapredileta/Amolecadaládaáreacomoéquetá?/Provavelmentecorrendopraláepracá/Jogandoboladescalçosnasruasdeterra/É,brincamdojeitoquedá/Gritandopalavrãoéojeitodeles/Elesnãotêmvideogameeàsvezesnemtelevisão/Mas todos eles têm um dom São Cosme e São Damião/A únicaproteção.

Amúsica “Fim de Semana no Parque” pode ser pensada como a situação

inaugural,oquadro(frame)apartirdoqualconhecemosocotidianodazonalsulda

cidade de São Paulo. Ali estão alguns dos elementos que serão vocalizados

constantemente:apercepçãosobreasmercadoriaseostatus conferidoaosseus

detentores(carros,motos,sapatos,roupas),oprivilégionousodaáguaedoespaço

(emoposiçãoàscasasecondiçõesdesaneamentodosobservadores),asformasde

viver(brincardojeitoquedá)nasáreasdeperiferia/favela.Namesmamúsicasão

feitas referências a religião, família e dinheiro, outras constantes nas letras:

“dinheironobolso,Deusnocoração, famíliaunida”.Acríticaemrelaçãoaalguns

conhecidos/amigos/moradores é igualmentepresente, principalmentequanto ao

usodebens:“malandrobomnãohumilhaenãodesanda,ligaooutromano,odamil

e cem, pagandonoCapão é o quemais tem, deAudi ouCitroën”.O empregode

marcasdecarros,relógios,tênisegrifesderoupasseráigualmenteconstantenas

letrasanalisadas.

Saberdiferenciarosindivíduosesepará-losporsuacondutacomoamigosou

traidoresparececentralnocotidianodosterritóriosdeperiferia:“queméquem,diz

que diz, buchicho nãome faz feliz”. Há umamétrica que intercala explicações e

diálogosdiretosentreosintegrantesdabandaquesimulamumasituaçãorealdo

cotidiano, reproduzindo interações de rua, assaltos, mortes, enfrentamentos e

reuniõesdeamigosefamiliaresparafestejos.

O lugar de construção discursiva é o de um observador atento às ações

próximas ou mais ou menos próximas de seus iguais, mediadas pelo desejo de

obtençãodeganhosfinanceiros,convertidossimultaneamenteempossibilidadesde

conquistasamorosaseexperiênciassingularesemrelaçãoaocotidianodetrabalho

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(consideradomal remunerado). Vejamos “Mágico de Oz”, uma das cançõesmais

conhecidasdogrupo:

Como ganha o dinheiro?/ vendendopedra e pó/Rolex, ouro no pescoço àcusta de alguém/ uma gostosa do lado, pagando pau pra quem?/a políciapassouefezoseupapel/dinheironamão,corrupçãoaluzdocéu/quevidaagitadahein?/gentepobretem/periferiatem/vocêconhecealguém?

Novamenteumamarcaconferestatus.Nestecaso,amarcaderelógiosRolex,

conhecidamundialmente como sinônimo de distinção social. Amarca apresenta

informaçõesaosseuscompradoresquevãodeleilõesnaSuíçaacorridasdeFórmula

1,eospreçosvariamdeR$7.500atéR$40.000,dependendodomodelo,coleçãoe

outros critérios. Na comparação com a média salarial no Brasil, o que significa

desfilar emCapãoRedondo comum relógioRolex ou TagHeuer?De Citroën ou

Audi?Nestescontextos,ovalordasmercadoriastemdeserrepensado.Apresença

das marcas converte o objeto (valor de uso, como definido por Marx) em uma

qualidade muito específica, pois só pode ser compreendida dentro de uma

comunidadequevalorizaasrelaçõesapartirdaexposiçãodestesobjetos.Ouseja,

onde há algum consenso sobre o significado da marca-mercadoria. Em muitos

contextos, a marca Tag Heuer sequer é conhecida, e esta evidência se aplica

especialmenteemcenáriosdedesigualdadecomoobrasileiro.Aoiniciarapesquisa,

eu não saberia diferenciar relógios, pistolas e carros quanto aos seus valores. O

poder conferido pelas marcas só é possível se demonstrado publicamente no

território. Não é diferente das festas de luxo nos bairros nobres, mas enquanto

nestasaexibiçãodoRolexpoderiasignificarpertencimentodeclasseedistinção,

nas periferias a exibição pode ou não significar distinção em relação ao demais

moradores,denominadosrancorosamente,emalgumasletras,como“zé-povinho”.

Oconceitodefetichismodamercadoriacultural,desenvolvidoporAdornoe

HorkheimeremsuaspesquisasnosEstadosUnidos,seráútilnaanálisedestasletras.

Quanto ao caráter subjetivo, nota-se que o fetichismo, sob o ponto de vista

adorniano e horkheimeriano, não está vinculado tão somente aos objetos-

mercadorias,mastambémaummododeco-determinaçãodapsique.Aoapontar

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para um processo ideológico de “pseudo-humanização” dos objetos inanimados

(Silva,2010,378),teriacomocontrapartidaacoisificaçãodossujeitos,servindoeles

tãosomentecomo“apêndicesdaprodução”e,consequentemente,objetivandosuas

relaçõesintersubjetivas.

Gostaria de propor que o tratamento conferido aos objetos não fosse

equacionadopelateoriadefetichizaçãodamercadoria.Arazãoparaestatentativa

éaformacomoestessãoapresentadossobasmarcas.Emalgumassituaçõessãoa

demonstraçãododesejopelaobtençãodebens:“misériatrazmiséria,evice-versa/

inconscientemente/vemnaminhafrenteinteira,alojadetênis/oolhardoparceiro

feliz/ de poder comprar/ o azul, o vermelho/ o balcão, o espelho/ o estoque, a

modelo/nãoimporta/dinheiroéputa/eabreasportas”.Em“VidaLokaParteII”,

repete-se uma ideia presente em outrosmomentos. Não é apenas amercadoria

como ostentação. Ou melhor, esta explicação não resolve o tipo de atitude

apresentadanasletras.É“omundoigualcidadãoKane”,apossibilidadedecomprar

o estoque e a modelo, ou seja, obter mais do que a mercadoria: “vem de artes

marciais,queeuvoudeSigSauer,querosuairmã,seurelógioTagHeuer”.Emuma

cidadecomoSãoPaulo,naqualsãoexibidos“Cross,Fox,Tucson,X5”,serum“preto

tipoAcustacaro”.

Amanifestaçãodeumasensaçãodetempoperdido,deatrasoemrelaçãoà

obtençãodeumtipodestatussocial,deveserobservadaempassagenscomoesta,

em“NegroDrama”:“agoratádeolhonodinheiroqueeuganho,agoratádeolhono

carroqueeudirijo,demorou,euqueroémais,euqueroatésuaalma”.Juntas,essas

expressõessãomaisdoqueodesejoalienadopelaobtençãodecarros,motosou

roupasdegrife.Seriapossívelsuporqueaobtençãodestesbenséumadasformas

dedemonstraçãodaintensidadedoconflitosocialemumacidadecomoSãoPaulo.

Mas seria apressado ver, aqui, um discurso político contra a opressão ou seu

contrário,umaadesãoaoconsumoemumprocessodecoisificaçãodosujeito,como

emAdornoeHorkheimer.

Os custos desta aquisição/exibição de bens são evidenciados nas letras,

explicitandoumcircuitofechadodeconsumo:

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Semprefuisonhador/éissoquememantémvivo/quandopivete,sonhavaemserjogadordefutebol,vaivendo/masosistemalimitanossavidadetalforma/quetivequefazerminhaescolha,sonharousobreviver/osanossepassarameeu fuimeesquivandodociclovicioso/porémocapitalismomeobrigouaserbemsucedido/acreditoqueosonhodetodopobreéserrico.

Esta passagem, presente em “A vida é um desafio”, exemplifica o circuito

fechadoemqueseusagentessemovimentam.Massealetraexplicitaodesejode

riquezade“todopobre”,avançareflexivamenteapresentandouma“lição”(recurso

utilizadoemgrandenúmerodeletras)paraalertarsobrearelaçãocomocrimeea

aquisiçãofácilderiquezas:“embuscademeusonhodeconsumo,procureidaruma

solução rápida e fácil pros meus problemas/ o crime/ mas é um dinheiro

amaldiçoado/quantomaiseuganhava/maiseugastava/logofuicobradopelaleida

natureza/14anosdereclusão”.Em“Capítulo4Versículo3”,ogrupoenfatizaque

“emtrocadedinheiroeumcarrobom,temmanoquerebolaeusaatébatom”.Estas

observações sobre “vender-se” são presentes em parte das letras, enfatizando a

possibilidadede“perdadaalma”noprocessodeenriquecimento.Ouorompimento

doslaçosprimários.

Arelaçãoambivalente(ouambígua)comapublicidadeeostatusaparecem

aindanamesmaletra:“Vinteeseteanoscontrariandoaestatística/seucomercial

deTVnãomeengana/eunãoprecisodestatusnemfama/seucarroesuagranajá

nãomeseduz/enemasuaputadeolhosazuis/eusouapenasumrapaz latino-

americano/apoiadopormaisde50milmanos”.

Amensagememitidaéde“sobrevivência”(osnúmerossobrehomicídiosde

jovensnegros noBrasil demonstramque chegar aos 27 anos é contrariar dados

oficiais)emrelaçãoainúmerassituações:pobreza,prisão,desemprego,crime.Eo

desvelamentodolugardasmercadoriasvinculadaspelapublicidade(nãoapenasna

televisão,masemoutdoors,rádioseoutrasmídias)éapresentadoapartirdarecusa

àformahabitualdeconsumo.Aexperiênciaéampliada“atodapopulaçãopobreda

zona sul”, oquepoderiaabarcar todasasperiferiasmundiaisque contamcoma

presençadeletrasderap.Osindicadoressociaisemrelaçãoaempregoeeducação

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sobreestaparceladajuventudetêmpreocupadooEstado,tantonosEstadosUnidos

quantonoBrasil.Aacusaçãodeincitaçãoaoódioocorrefrequentemente,emalguns

casoscominterrupçãodosshowsdosRacionais,prisãodosintegrantesdebandase

instauração de quadros de violência. Atos como estes foram praticados contra

artistaspeloEstadoduranteoregimeditatorial.Seguemagoracomaproibiçãode

bailesfunknoRiodeJaneiroouapresençaostensivadapolíciaemshowsderapem

SãoPaulo.

Na obra dos Racionais, uma de suas principais letras surge no que

poderíamosanalisarcomooápicedeumprocessoreflexivo.Pós-reconhecimento,

augedeumprocessocriativodetrocascomplateiaecrítica;afinal,ogrupoteria

alcançadolugardedestaquenocenáriomusicalnacionaleagoracolheriaosfrutos

deste êxito. Este percurso apareceria em letras que problematizam a visão da

sociedade (dentroe foradeCapãoRedondo): “negrodrama/entreosucessoea

lama/dinheiro,problema,inveja/luxo,fama”.Aletrasegueapresentandotensões

inerentesaoreconhecimento:“euseiquemtramaequemtácomigo,otraumaque

eucarregopranãosermaisumpretofodido”.Novamenteaoposição“nósversus

eles”écitada,demonstrandoqueasrelaçõesdedesconfiançaoperamdentro/fora

daperiferia:“euseiquemtrama”.O“drama”narradoresgataoprocessodeascensão

socialpelaartevividopelogrupo.

Talvezumadasprincipaispassagenssobreesteprocessoreflexivoesobrea

relaçãocommobilidadesocialascendentepossaseraquisituada:“odinheirotira

umhomemdamiséria,masnãopodearrancardedentrodeleafavela”.Namesma

letra,arelaçãocomomercadooucomapublicidadedesencarnadaapareceemuma

nomeação dos bens que estão (nomomento atual) presentes nos territórios de

periferia:“cêdissequeerabomeasfavelaouviu/lá/temwhisky,redbull,tênisnike

e fuzil”.Para logoapósseremnovamentepontuadasasrelaçõesdistintascomos

bens:“admito,seucarroébonito,é,eunãoseifazê/internet/videocassete/oscarro

loco/atrasadoeutôumpoucosim/tôeuacho/sóquetemqueseujogoésujoeeu

nãomeencaixo/eusouproblemademontão/decarnavalacarnaval/euvimda

selva,souleão/soudemaisproseuquintal”.Ainterpelaçãopodeserlidacomouma

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recusa em relação à sociedade de consumo. O termo “selva” faria referência às

dificuldadesde interaçãocomo fora,umavezquemesmocomdinheiro,a favela

permanece como principal indicador social biográfico. Aqui a condiçãomarginal

está posta como sina, destino imutável, condição semelhante a cor ou origem

(nordestina,parda,negra).Restandoanegociaçãosocialapartirdacompreensãode

queobterganhosemudançadestatusatraiolharesdedesconfiança:“naépocados

barracosdepaulánaPedreira,ondevocêstavam?/oquevocêsderampormim/o

quevocêsfizerampormim?/agoratádeolhonodinheiroqueeuganho,agoratáde

olhonocarroqueeudirijo”.

Em“DaponteparaCá”,umapassagemfazanomeaçãodemarcasconsumidas

emumasequênciasingular,umacenacompleta,quepossibilitaacompreensãode

comoestesgruposconstituemrepresentaçõessobrestatus(considerandoabanda

comopartedeumaconfiguração,no sentido trabalhadoporNorbertElias): ”hey

truta,eu to louco,eu tovendomiragem,umBradescobememfrenteda favelaé

viagem/declasse’A’daTAMtomandoJB/ouviajardeblazerpro92DP/viajarde

GTIquebraabanca/sónãopodeviajarcomosmãobranca”.

Durantepesquisadedoutoradoemfavelascariocas,foipossívelobservarque

apesardeabrigaremumapopulaçãonumerosa,eramrarasasagênciasdebanco

nesses espaços.Apóspesquisanas favelasdaMaré,Acari, SãoCarlos,Morrodos

MacacoseRocinha,aúnicaagênciaencontradadentrodeumafavelalocalizava-se

emumaavenidamovimentadadaRocinha–nãoporacaso,umafavelaqueconta

comlojasdemóveisetodaumarededeserviços.Quantoàsduasexperiências,uma

representaria o ápice de uma ideia compartilhada historicamente no Brasil, de

distinção:aviagemdeaviãonaprimeiraclasse.Aoutra, igualmentepresentenas

representações de favela, é a viagem de camburão para delegacia. Novamente é

apresentadoocircuitodedeslocamentodosagentesquevivemnestesespaços.

As trêspróximas letras foramselecionadascomoexemplosdemomentos-

limite na relação entre ordem/desordem, legalidade/ilegalidade, percepção do

cotidianoedecisõesdiantedequadrosmaisamplos.Aoproporaanálisedasletras

enquantonarrativas/crônicasurbanas,seránecessáriorecuperarestaspassagens.

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A primeira, “Mano na Porta do Bar”, de 1993, narra a vida de um morador,

respeitadoporseucomportamentohumilde,porterumfusca1973eumamulher

apaixonada.Emsíntese,ahistóriadeumhomemcomum,semmaioresambições,

queemalgummomentosenteinsatisfaçãoemrelaçãoà“vidaqueleva”:

Você viu aquele mano na porta do bar/ultimamente andei ouvindo elereclamar/dasuafaltadedinheiro,eraproblema/quesuavidapacatajánãovaleapena/queriaterumcarroconfortável/eledissequeamizadeépouca/dissemais,queseuamigoédinheironobolso/particularmenteparamimnãotemproblemanenhum/pormim,cadaum,cadaum/aleidaselva,consumirénecessário/ compremais/ compremais/ supereo seuadversário/o seustatusdependedatragédiadealguém/éisso,capitalismoselvagem/elequertermaisdinheirooquantopuder/qualqueéadessemano?

Amudançaemrelaçãoàvidaque levava trouxeváriasmulheres, clientes,

inimigos.Armado,agoranomercadodedrogas,usadeaçõesviolentas,umtraficante

“peculiar”.Atéomomento emqueé fatalmentebaleado, “dois tirosna cara”.No

circuito fechado, sua ascensão meteórica tem como contrapartida uma morte

“inglória”aosolhosdosqueacompanhavamsuatrajetóriadehomemsimples,bom

cidadão,bomirmão.

Asegunda,“Eusou157”,narraumstatussingularexperimentadoquandose

opera a conversão do estigma de desviante. “Hoje eu sou ladrão, artigo 157/ as

cachorrameamam/osplayboysederrete”.Anarrativaapresentaesteanti-herói:

“eusóconfioemmim,maisninguém,cêmeentende/falagíriabem,atépapagaio

aprende/vagabundoassaltabancousandoGuccieVersace/Civildáoboteusando

caminhãodaLight”.Aadesãoao“mundodocrime”éjustificadanaletracomuma

fraseendereçadaàmãe:“juroqueeuvouteprovarquenãofoiemvão/mascumprir

ordemde bacana, não dámais não”.Novamente a situação final émarcada pela

mortedeumdosparticipantesemumatentativadeassalto.Nestaletra,apesarda

possível atração pelo anti-herói, o conselho vem ao final, pedagógico: “e aí

molecadinha, todeolhoemvocês,hein/nãovaipragruponão/a cenaé triste/

vamosestudar,respeitarpaiemãe/eviver,éessaacena”.

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Aterceiraletra,“EstiloCachorro”,é,dentretodas,aúnicaquenãoapresenta

umfinalviolento.Talvezportratardeumasituaçãode interaçãoparaconquista.

Somosapresentadosaumhomemquesabegerenciarmuitobemseusnegócios,é

eleganteeconquistador.“Temnaipedeartista,piquedejogador/impressionano

estilodepatife/roupasdeshop/artigosdegrife”.Éumtiposocialmuitocitadonas

entrevistascomjovensfunkeiros,moradoresdefavelascariocas,quemencionama

posse demoto e dinheiro como condição para conquista amorosa de “mulheres

desejáveis”.Algunsrevelavamsofrimentopornãoconseguiremexibirasmotose,

em alguns casos, por serem “trocados” quandooutros commotosmais potentes

apareciam nos bailes. A demarcação da conquista é constantemente vinculada à

possibilidadedeproporcionarumaexperiênciadedistinção(oespumante,amoto,

asroupas).“Nomomentoqueinteressa/elejátem/umaKawasaki/eliberdademeu

bem/oqueessecara temsanguebom?/os invejosoeuescuto/moto,dinheiro/

vagabundoficaputo/ah,istonãoéjusto,eosirmão?/umafatiadobolo,teorienta

doidão/conheceváriasgatas/ tiposdiferentes/aspretas,asbrancas,as frias,as

quentes”.

EmCoreseValores,últimoálbumdosRacionais,arepetiçãodorefrão“somos

o que somos”, quase como um mantra de afirmação de um tipo de “verdade

fundamental”,apresentaumapossívelterceirafasenaproduçãodiscursiva:

Difícilcompreendersematua,semassuasleis/nãosãominhasleis,nemasinventei/ eume adaptei/ guerra fria, muçulmanos e USA/ preto e brancocomojogodexadrez/unscorrecomojogodexadrez/unscorrenojogonacaçadeprataedoouro/Rolexamarelonobraçoéumestouro/umaCayenneeosbancoscobertodecouro/oscaradeolhoazulnãorepresentamomeutesouro/somosoquesomos/AudieHornet/deR1eGolfãonoboysdandochoque/Somosoquesomos/somosoquesomos.

Acitaçãodemarcasseguenasletras,mastemospelaprimeiravezumrefrão,

após25anosdeexistência.Consideradaaprincipalbandaderapnacional,ouvidos

comotrilhasonoraemperiferiase instituiçõesprisionais,abandademonstraem

sua letra a mesma oposição “nós versus eles” expressa em “Fim de Semana no

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Parque”, no início deste texto. Fora e dentro, lei e ilegalidade, constituem as

oposiçõesempregadasnaespinhadorsaldestaletra.

Kane,SomosoqueSomos,algumasconsideraçõesfinais

Nãoépossível(etalveznãosejanecessário)saberseaoescolherestetermo

(“omundoigualCidadãoKane”)osRacionaisconheciamaobradeOrsonWellesou

oimpactododocumentáriofeitosobreaRedeGlobo.Háumúnicopersonagemde

fala nas letras do grupo: ele é um homem, não branco,morador de periferia no

Brasil. Tem entre 18 e 40 anos e conhece perfeitamente o cenário em que se

movimenta.Suarelaçãocomomundodotrabalhoedosbenséatravessadaporuma

condiçãosocial,ouumabiografiaestigmatizadaeasexperiênciasviolentasestão

presentesnocotidiano.Suarelaçãocomoconsumonãoéadesimplesaquisiçãode

bens. Estes são exibidos como prêmios custosos. Os custos são apresentados ao

longodasletrasevãodaperdadocírculomaispróximodeafetosatéamorte(por

policiaisouporinimigoslocais).Esteéumcircuitofechadodedeslocamento.Mas

asletrasdemonstramumprocessoquesetorna,aolongode25anos,maisreflexivo,

beirandoomoral-pedagógico,comoem“Eusou157”.

Para quem falam os Racionais? As narrativas poderiam ser apresentadas

como “políticas de resistência”? Ou seria essa uma classificação externa, com

categorias exógenas ao narrado e vivido? Seria possível ver neste discurso a

articulaçãoexplícitadeumaposiçãopolítica?OsRacionaisfalamparaSãoPaulo,o

principalmercadodebenseserviçosdopaís.Oalcancedesuasletraséglobal,talvez

menosporumprocessointencionalemaisporumaaproximaçãodasrealidadesde

periferianomundoatual.

Ainfluênciadogangstarapéinegável,masaadesãoaumcomportamento

fetichistanãoseriaaplicávelàobradabanda.AimportânciadeestudarosRacionais

consiste no fato de que geram aquele tipo de adesão fervorosa. A orfandade

explorada por Kehl (1999) em texto sobre “a grande frátria Racional”

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experimentadaporseusadeptosédupla:nãosó“maisumfilhopardo,sempai”,mas

umarelaçãoestruturalmenteinadaptadaemrelaçãoaoEstado.Aproduçãodeum

tipode revoltaquanto à condiçãodemoradorxdeperiferia.Porúltimo, importa

frisarqueesteprimeiroensaioéumatentativadearticularumdiscursoapartirda

produçãoartística.Outrosrecortesedimensõespodemserprivilegiadosemoutras

pesquisas.Apropostaétentarousodetécnicasquefujamdousodasentrevistasou

análisededocumentosquecorroboramodiscursonativo.Libertarxsagentesde

nossasexpectativasdeseulugarde“intelectuaisorgânicos”quedesejaMcLarene

proporoutrasinterpretaçõespossíveis.

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