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Rádio e memória: uma reflexão sobre a primeira FM no Rio Grande do Norte Silvio Henrique Felipe RIBEIRO – Graduado em Comunicação Social – UFRN – Aluno Especial do Mestrado (PPGEM- UFRN) Luciano Ferreira OSEAS – Graduado em Comunicação Social – UFRN – Aluno Especial do Mestrado (PPGEM-UFRN) Resumo: Este artigo se propõe a resgatar a memória da primeira Rádio FM do Estado do Rio Grande do Norte, a 96 FM – Rádio Reis Magos, e refletir como suas experimentações, erros e acertos contribuíram para o desenvolvimento do rádio FM local e delimitaram um espaço referencial que se firmou como meio técnico-informacional no mercado radiofônico potiguar. O presente trabalho propõe-se a fazer uma análise e identificação das linguagens específicas usadas pela Rádio 96 FM como articuladoras de processos de vínculos identitários. Para tanto, recorremos ao Estudo de Caso como metodologia para análise do recorte temporal que compreende os últimos 29 anos (1981-2010), valendo-se, entre outras formas de abordagem do objeto de pesquisa, da História Oral como procedimento para coleta de dados, uma vez que não existem documentos que abordem a história da emissora em baila. Palavras-chave: rádio; 96 FM; história; memória; espaço referencial

RADIO E MEMORIA - uma reflexão sobre a primeira FM no Rio Grande do Norte

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Artigo de autoria de Silvio Henrique e Luciano Oséas publicado no Iº Encontro de Hístória da Mídia do Nordeste, realizado pela Rede Alfredo de Carvalho em parceria com a UFRN, Decom e PPGEM

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Rádio e memória: uma reflexão sobre a primeira FM no Rio Grande do Norte

Silvio Henrique Felipe RIBEIRO – Graduado em Comunicação Social – UFRN – Aluno Especial do Mestrado (PPGEM-UFRN)

Luciano Ferreira OSEAS – Graduado em Comunicação Social – UFRN – Aluno Especial do Mestrado (PPGEM-UFRN)

Resumo: Este artigo se propõe a resgatar a memória da primeira Rádio FM do Estado do Rio Grande do Norte, a 96 FM – Rádio Reis Magos, e refletir como suas experimentações, erros e acertos contribuíram para o desenvolvimento do rádio FM local e delimitaram um espaço referencial que se firmou como meio técnico-informacional no mercado radiofônico potiguar. O presente trabalho propõe-se a fazer uma análise e identificação das linguagens específicas usadas pela Rádio 96 FM como articuladoras de processos de vínculos identitários. Para tanto, recorremos ao Estudo de Caso como metodologia para análise do recorte temporal que compreende os últimos 29 anos (1981-2010), valendo-se, entre outras formas de abordagem do objeto de pesquisa, da História Oral como procedimento para coleta de dados, uma vez que não existem documentos que abordem a história da emissora em baila.

Palavras-chave: rádio; 96 FM; história; memória; espaço referencial 

Este artigo trabalha com lembranças e a memória de profissionais que atuam ou

atuaram na 96 FM – Rádio Reis Magos de Natal – RN desde sua fundação até os dias atuais.

Para trabalharmos este Estudo de Caso, é pertinente, em primeiro plano, considerar questões

relacionadas à memória. Halbwachs1 desenvolve uma teoria envolvendo memória apoiada nas

relações que a memória estabelece com o meio social do individuo, na necessidade deste de

viver em sociedade, extraindo da relação individuo/sociedade as bases para se pensar

memória. O referido autor acrescenta um dado abstrato na construção da memória: estamos

1 - HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Ed. Vértice/Editora Revista dos Tribunais, 1990.

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sendo permeados por pontos de vista e idéias dos indivíduos com os quais nos relacionamos

em grupo.

O rádio é um meio de comunicação à distância. Ao mesmo tempo em que alcança multidões, ele imprime em cada ouvinte a clara percepção de que é o interlocutor privilegiado da comunicação. É como se houvesse a identificação, no meio da massa de ouvintes, de um individuo em particular – cada ouvinte pode se sentir único no meio da multidão (Piovesan, 2004, p.41)

Se há uma personificação do ouvinte, pode-se, nesse sentido, entender o rádio como

“um individuo” que estabelece uma relação de contato entre percepções de um “grupo” que se

caracteriza por emissora/ouvinte. Partindo do pressuposto de que uma emissora de rádio ouve

seu ouvinte, ou seja, molda sua programação a partir desta interação, outras percepções do

mundo participam e constrói novas percepções, na emissora e no próprio ouvinte.

Para podermos compreender melhor esse processo de interação no âmbito da 96 FM, é

pertinente considerar o resgate da memória para construção de uma possível história do FM

potiguar. Para tanto, o uso da História Oral relaciona-se diretamente com o objeto em questão

uma vez que ela recorre à memória como fonte histórica espaço-temporal. Diante da ausência

de títulos que abordem a história do Rádio FM no Rio Grande do Norte e, especificamente, a

história da Rádio Reis Magos (96 FM) de Natal, utilizamos a História Oral como

procedimento para coleta de dados.

Fenômeno individual e psicológico (cf. soma/psiche), a memória liga-se também à vida social (cf. sociedade). Esta varia em função da presença ou da ausência da escrita (cf. oral/escrito) e é objeto da atenção do Estado que, para conservar os traços de qualquer acontecimento do passado (passado/presente), produz diversos tipos de documento/monumento, faz escrever a história (ef. filologia), acumular objetos (cf. coleção/objeto). A apreensão da memória depende deste modo do ambiente social (cf. espaço social) e político (cf. política): trata-se da aquisição de regras de retórica e também da posse de imagens e textos (cf. imaginação social, imagem, texto) que falam do passado, em suma, de um certo modo de apropriação do tempo (cf. ciclo, gerações, tempo/temporalidade).(LE GOFF, 1990:483)

Devemos atentar para o pensamento do historiador Jacques Le Goff (1990:37) quando

diz também que “tal como o passado não é a história, mas o seu objeto, também a memória

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não é a história, mas um dos seus objetos e simultaneamente um nível elementar de

elaboração histórica”. Por isso, não pretendemos construir, por meio dos depoimentos, uma

verdade absoluta, mas abrir um canal para que indivíduos anônimos que vivenciaram a

história da 96 FM resgatem e divulguem acontecimentos que possam amenizar a carência de

informações sobre o objeto em questão. Esse resgate e registro de memória se deram a partir

de entrevistas com aqueles que ajudaram a construir os discursos que compõe este artigo.

Memórias de escutas e de vivências de inúmeros fatos e ações ocorridos nos últimos vinte e

nove anos no rádio FM natalense.

Nosso FM começa oficialmente em 28 de dezembro de 1981 em um contexto de

expansão das FMs ainda influenciado pelo regime militar. Como afirma Nélia Rodrigues Del

Bianco2 “[...] a FM servia à meta de dotar as cidades de uma estação. Desta forma, o governo

esperava cobrir, em parte, as áreas de silêncio não atingidas pelas AM que possuíam potência

de 1 quilowatt”. Naquele ano, cidades do interior da Paraíba, como Campina Grande, já

operavam em freqüência modulada (a rádio Campina FM de Campina Grande foi fundada em

21 de outubro de 1978) 3

. Das capitais, Natal foi a última cidade do país a ter um canal de

rádio FM. Diante dessa realidade, reuniram-se sete influentes homens potiguares em torno do

um único objetivo: conseguir uma concessão de rádio FM para Natal.

Eu era adolescente, mas lembro bem. Esses homens, entre eles meu pai, se reuniam e só falavam em conseguir uma rádio. Eram eles: Silvino Sinedino de Oliveira, diretor administrativo do Diário de Natal; Afonso Laurentino Ramos, Aurino Suassuna, e Gilson Felipe de Souza, ambos do Grupo Marpas – importante concessionária de automóveis na época; Jairo Procópio de Moura, cartório do 1° ofício de notas da Natal, Luiz Maria Alves, superintendente do Diário de Natal e

Expedito Mendes de Rezende, que chegou a trabalhar na rádio. 4

2 FM no Brasil 1970-1979: crescimento incentivado pelo regime militar. Comunicação & sociedade, São

Bernardo do Campo: Instituto Metodista de Ensino Superior, ano 12, n.20, p 144, dez. 1993.

3 Disponível em HTTP://www.campinafm.com.br.

4 SINEDINO, Michelle. Entrevista concedida a Silvio Henrique Felipe Ribeiro. Natal. 2010. Não publicado.

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Após a liberação por parte do Ministério das Comunicações, no dia 28 de dezembro de

1981 entra no ar a primeira emissora FM do Rio Grande do Norte: a Natal Reis Magos, na

frequência de 96,7 MHz. Praticamente sem nenhuma estrutura física, a Reis Magos era

dividida em duas partes: a estrutura de transmissão, ou seja, o estúdio “A” e o estúdio de

gravação, que funcionavam ao lado dos estúdios da antiga Rádio Poti, no prédio dos Diários

Associados – e a estrutura de produção, que funcionava em uma sala do Edifício Cidade do

Natal, na Avenida João Pessoa.

A primeira equipe era formada por dois noticiaristas, Liênio Trigueiro (já falecido) e

Josenildo Caldas (ainda hoje na 96), e dois sonoplastas, Marco Araújo e Gilvan dos Santos.

Nos meses seguintes, Tim Kawasaki e José Eudo – ambos vindos do rádio AM natalense –

foram os primeiros locutores/apresentadores. Liênio Trigueiro e Josenildo Caldas passaram a

apresentadores em um segundo momento. Inicialmente, a programação musical, toda

comprada à Rádio Caetés de Recife – PE, era veiculada em fitas 1/4". Em 1983, Epitácio

Faustino e Passos Júnior são contratados pela Reis Magos para gravar, em rolos, a

programação produzida por Stênio Dantas e Ênio Sinedino, que larga o tráfego, dedica-se à

parte musical da rádio e insere as primeiras experimentações de programação local.

A rádio não produzia uma programação local. Nós recebíamos as fitas da Rádio Caetés de Recife – PE. Minha primeira função foi tráfego. Eu buscava essas fitas nos Correios e levava para a produção tocá-las alternadamente. Lembro-me que, nessa programação da Caetés, algumas músicas eram conhecidas, mas outras absolutamente desconhecidas. E isso gerava uma vontade de tocar músicas conhecidas do público natalense, como o forró. Outro fator determinante para a rádio produzir uma programação local é que eu observava que quando tocava músicas de discoteca nas boates de Natal, um ou dois casais estavam dançando, mas quando tocava forró o dancing enchia rapidamente. Eu pensei, e no rádio FM, será que o forró também não será ‘reconhecido’? Foi ai que inserimos forró na

programação. 5

5 SINEDINO, Ênio. Entrevista concedida a Silvio Henrique Felipe Ribeiro. Natal. 2010. Não publicado.

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Os primeiros anos da década de 1980, no que diz respeito ao rádio FM natalense, podem

ser considerados conservadores. Veiculava-se uma programação à base de música popular

brasileira, música internacional e até música instrumental que remetia às primeiras

programações de rádio FM dos grandes centros do país. Segundo o programador Epitácio

Faustino, um dos mais antigos funcionários da emissora, os primeiros programas da 96 FM

foram “Isto é Samba, Isto é Nosso”, veiculado das 06:00 às 07:00h; “Estério Espetacular” (um

programa só com músicas instrumentais), veiculado das 12:00 às 13:00h e “MPB Especial”,

no ar das 17:00 às 18:00h. Os nomes desses programas denotam como era a postura do nosso

FM naqueles anos. Cabe lembrar que o momento inicial da freqüência modulada no Brasil

trazia consigo um rótulo de “rádio dos ricos”. A revista Veja, em dezembro de 1970,

exemplifica bem como era, nos primeiros anos, o FM brasileiro.

Só existem dois sons tão caros e tão bons: o do melhor gravador estereofônico e da Difusora Frequência Modulada. Pelo tipo de ouvinte da Difusora, 10 milhões por um bom gravador não é muito, afinal. Mas deixar o ponteiro nos 98,5 da Difusora FM é bem mais fácil. A Difusora FM opera numa faixa onde não há concorrência. As músicas são selecionadas para pessoas ricas e inteligentes. Os espaços comerciais foram vendidos somente a 20 clientes: aqueles que têm o que dialogar com pessoas

desse tipo. Sintonize a Difusora FM. Não custa um tostão. 6

É fato que, até 1986, a Reis Magos era a única emissora FM de Natal. O pioneirismo da

rádio, por si só, introduz naturalmente um conceito de referência em FM na capital potiguar.

Foram cinco anos ditando “o que se deveria fazer em frequência modulada” na cidade de

Natal. Somente em 1° de dezembro desse ano é que surge a segunda emissora FM, a Rádio

Cidade do Sol (94,3 MHz). Após seu surgimento, alguns profissionais da 96 FM, dois

locutores e um programador musical, são contratados pela a Rádio Cidade e aplicam suas

experiências adquiridas na nova emissora.

É neste mesmo ano que a Reis Magos transfere-se para um prédio próprio, na Avenida

Deodoro da Fonseca, no bairro de Petrópolis. Também é a partir daí que a rádio decide

produzir toda a programação em Natal. Ênio Sinedino, assume a direção artística, passa a ser

6 A RÁDIO DOS ricos. Revista Veja, São Paulo: Abril, ano 3, n. 118, p.84-5, 9 dez. 1970.

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programador musical e ajuda a estruturar uma nova equipe. A rádio investe em equipamentos

de estúdio, amplia a discoteca e reformula a equipe de locutores. Passam a fazer parte da

grade de locução: Ricardo Motta, Fran Silveira, Gibson Melo, Neuzinha Farache, Flávio

Leandro, Jorge Luiz e Rô Medeiros, além de Josenildo Caldas e Tim Kawasaki, esses desde o

início da rádio.

Kawasaki, que já tinha inserido a freqüência da rádio em um nome de programa,

Paradão 96, ouvia emissoras de outras cidades através de fitas K-7 e enxergava uma

tendência em se usar a freqüência da rádio em detrimento ao nome. “Eu achava ‘96 ’ mais

radiofônico do que ‘Reis Magos’ 7. Com isso, Reis Magos entra em contagem regressiva e, ao

mesmo tempo, começa a surgir a 96 FM. Também nesse ano, Luiz Maria Alves, inicialmente

sócio, decide vender sua parte da rádio a Silvino e Ênio Sinedino. Com novo fôlego, tio e

sobrinho começam a viajar para cidades como Rio de Janeiro e São Paulo com intuito de

ampliar a discoteca e observar o que se vazia em rádio nas principais praças do Brasil.

Naquele momento, a 96 FM trabalhava com um leque de programação musical bastante

aberto. Com a intenção de se aproximar de todas as classes sociais, a rádio veiculava, por

exemplo, Paralamas do Sucesso, Madonna, Ultraje à Rigor, Maria Betânia, Guilherme

Arantes, José Augusto, Michael Jackson, entre outros, já esboçando uma aproximação ao que

se chamaríamos de rádio popular.

Em uma dessas viagens ao sudeste, Ênio conhece Antonio Augusto Amaral de Carvalho

Filho, conhecido como Tutinha, dono e diretor da Rádio Jovem Pan de São Paulo. Com o

contato estabelecido, as influências do chamado rádio jovem inevitavelmente chegam a 96

FM. A partir de então, as vinhetas – em sua maioria cantada, os temas, a locução, as

promoções, tudo na rádio ganha um roupagem mais jovem. Mas as “falas” dos locutores e a

programação musical continuam direcionadas para todas as classes sociais. A 96 FM continua

7 KAWASAKI, Tim. Entrevista concedida a Silvio Henrique Felipe Ribeiro. Natal. 2010. Não publicado.

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falando para todos, mas, a partir de agora, de uma maneira mais jovem. É ai que surge o

primeiro slogan: “96 FM, Jovem Como Você”.

Com uma produção musical focada no popular, mas com influências do rádio pop nas

vinhetas e na locução, a 96 FM estabelece uma nova definição artística a ser trabalhada na

emissora: um rádio popular com uma essência bastante jovem. Se, até então, rádio popular e

rádio pop estavam em extremos distantes, ou seja, tais modalidades caracterizando uma

dicotomia de segmentos radiofônicos específicos bem definidos, a 96 FM aproxima e mescla

esses conceitos gerando uma nova postura artística bastante aceita pelo mercado potiguar,

tendo em vista os bons índices de audiência conseguidos pela rádio durante toda sua

existência.

A terceira emissora FM de Natal, a FM Tropical (103,9 MHz), entra no ar em novembro

de 1987. Nesse momento, das três FMs que atuavam em Natal, apenas a 96 usava a freqüência

para identificação junto aos ouvintes. As outras, Cidade e Tropical, usavam o nome para o

mesmo fim. Percebendo isso, a rádio desenvolveu uma campanha para vincular mais

fortemente o termo “FM” a 96. Intitulada “96, a FM”, a campanha estabelece os primeiros

vínculos identitários entre o ouvinte e a 96. Passando a identificar a 96 com “a FM”, o ouvinte

passa a entendê-la de uma maneira “diferenciada”. É como se “ser FM” fosse algo superior,

ou melhor. Com isso, mercado e ouvintes começam a assimilar que FM é 96. As demais

seriam ‘apenas rádios’.

Paralelo a isso, conceitos de juventude, alegria, patriotismo, entre outros, foram inseridos

nas falas para produzir certos efeitos junto ao ouvinte e causar vínculos identitários.

Observam-se aplicações nesse sentido em, por exemplo, temas produzidos pela 96 FM. O

tema da copa do mundo de 2006, com duração de um minuto e nove segundos, diz na letra

“Vai meu Brasil com fome de bola, com muita raça e muita emoção, com toda ginga, com

todo riso que existe dentro do coração. Vai meu Brasil com muita alegria, esse caneco ta na

mão. Vai meu Brasil com peito, com garra, arrebenta seleção. Mostra essa força tão brasileira,

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vai com coragem e decisão. Copa do mundo é na 96 FM”. Ao cantar esse tema, e isso é bem

provável – já que algo desse tipo é veiculado em média seis vezes ao dia durante os trinta dias

que antecedem o evento – o ouvinte “se insere” no clima do mundial de futebol e passa a

enxergar a possibilidade de uma boa campanha por parte da seleção brasileira de futebol. O

termo “meu Brasil” cantado no tema passa a ser entendido como o “Brasil” de cada ouvinte

específico. Havendo personificação da mensagem, é a seleção brasileira “de João”, “de

Lucas”, “de Maria”, etc. que vai à copa, e não somente a seleção do país ou a seleção “da 96”.

Outros vínculos identitários foram estabelecidos a partir do uso de vinhetas por parte

dos locutores da 96 FM. O precursor foi o locutor Flávio Leandro, que, em 1986, recebeu um

presente de seu pai, o escritor e publicitário Nei Leandro de Castro: uma vinheta gravada na

produtora de áudio Tape Spot do Rio de Janeiro, que cantava “Flávio Leandro – A Voz do

Som Maior”. Logo os demais locutores também produziram suas vinhetas e, com o uso

sistemático, passaram a ser mais facilmente reconhecidos pelo público ouvinte.

Os depoimentos que ajudaram a construir os três parágrafos anteriores mostram que,

ao mesmo tempo em que investia em tecnologia e inovações mercadológicas, a emissora

passou a se preocupar com a linguagem trabalhada na rádio, mesmo que, até certo ponto, de

maneira inconsciente, experimental. Levando em consideração o impacto que as palavras

podem provocar na audiência, apostando na comunicação dialógica persuasiva como

diferencial de exploração e ampliação de vínculos emocionais e identitários com o público

visando à manutenção da liderança no mercado.

Para compreendermos melhor o destaque da 96 FM frente às outras emissoras no

tocante a forma de se relacionar com o público, recorremos à Teoria dos Atos de Fala, tendo

por base os estudos do filósofo inglês John L. Autin8 que defendia que há uma relação direta

entre o que se diz e o que se faz, ou seja, quando alguém fala algo além de passar informações

realiza ações, pois o ato de dizer algo resulta em produção de sentido.

8 Austin, J.L. Quando dizer é fazer – palavras e ações. Porto Alegre, Artes Médicas, 1990

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Na defesa dos Atos de Fala, Austin faz uma distinção entre enunciados performativos,

como sendo aqueles que realizam ações porque são ditos, e os enunciados constativos, que

realizam uma afirmação, confirmam algo. Dando seqüência a sua defesa dos Atos de Fala,

Austin propõe separar os níveis de ação lingüística por meio dos enunciados surgindo assim

os atos locucionários que consistem em enunciar cada elemento lingüístico presente na frase;

os atos ilocucionários são aqueles que se realizam na frase, ou seja, refletem o

posicionamento do locutor em relação ao que foi dito; e por último, os atos perlocucionários

que por sua vez não se realizam na frase em si, mas pela frase, no caso, são os efeitos

causados pela mensagem.

Diante do exposto, vimos que dirigir ao público mensagens como “96, a FM” (afirma

que a única FM é a 96) e “96 FM, Jovem Como Você” (afirma que as outras rádios não

atendem ao seu perfil e/ou estado de espírito de ser jovem) caracterizam a presença dos atos

ilocucionário e perlocucionários agindo simultaneamente, pois essas mensagens não só

informam o nome da rádio com intuito de fixar a freqüência na memória do ouvinte como

também agem sobre o ouvinte provocando-o a permanecer na programação de maior

audiência porque teria uma identidade jovem.

Com a chegada da segmentação ao rádio FM natalense, introduzida pela Rádio Cidade

– que inicialmente fazia uma programação à base de música popular brasileira e clássicos da

música mundial, e em 1988, influenciada pela homônima do Rio de Janeiro, passa a produzir

uma programação pop-rock – a 96 FM, sentindo-se ameaçada pelo crescimento da

concorrente resolve segmentar-se definitivamente. Insere músicas de grande apelo popular na

programação, entre elas “Tico-Tico”, com Sandro Becker e “Meu Mel”, com Marquinhos

Moura e assume uma postura completamente popular. É a partir daí que a 96 FM consegue

um dos maiores feitos de sua história: a maior audiência de rádio FM do Brasil. Segundo Ênio

Sinedino citando pesquisa da Sony/CBS, a 96 FM alcançou 75% de audiência dos aparelhos

de rádio ligados. Tal fato, além de reconhecimento nacional, rendeu-lhe disco de platina.

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Com altíssimos índices de audiência, a 96 FM atrai grande fatia do mercado publicitário

e, paralelamente, envolve-se com os maiores eventos artístico-culturais da cidade de Natal,

entre eles o Carnatal, considerado o maior carnaval fora de época do país, em uma parceria

desde a sua primeira edição, em 1991. A audiência da rádio atrai os eventos e esses eventos,

com sorteio de ingressos, ajudam a fidelizar a audiência. Em 2010, treze emissoras operam

em frequência modulada na grande-natal: Universitária FM (88,9 MHz), 89 FM (89,9 MHz),

Rádio Cidade (94,3 MHz), 95 FM (95,9 MHz), 96 FM (96,7MHz), Clube FM (97,9 MHz),

Rádio 98, (98,9 MHz), Rádio União (102,1 MHz), Rádio Paraíso FM (102,9 MHz), Mix FM

(103,9 MHz), 104 FM (104, 7 MHz), Rádio Senado FM (106,9 MHz). Segundo o IBOPE9,

em pesquisa divulgada em dezembro de 2009, a 96 é a rádio mais ouvida no chamado horário

nobre, das 07:00 às 14:00 h.

Durante a execução deste trabalho, foi possível presenciar o início de um novo desafio

para a 96 e para o rádio FM potiguar. “Nós já estamos com um transmissor digital no ar desde

os primeiros dias de maio. Agora são ajustes e esperar a digitalização” 10

.

Apesar de o rádio ser preterido nos inúmeros estudos acadêmicos, as informações

levantadas no presente trabalho sugerem a ampliação e aprofundamento desse objeto, uma vez

que tal veiculo, e mais especificamente o FM – embora historicamente entendido como novo

– tem passado por transformações conceituais e tecnológicas importantes nos últimos anos. A

implementação da chamada digitalização no rádio brasileiro, já parcialmente presente no FM

potiguar por meio da 96, não deve se consolidar como algo “isoladamente novo”. É preciso

enxergar e reconhecer todo um processo desenvolvido no rádio do Rio Grande do Norte

durante quase trinta anos que fundamentou a atual forma de se produzir em freqüência

modulada. A 96 tem muito para acrescentar nesse processo uma vez que, embora o “bolo” da

9 Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística. Pesquisa realizada na cidade de Natal/RN, entre os dias

09 e 16 novembro de 2009.

10 Boy, Bill. Entrevista concedida a Silvio Henrique Felipe Ribeiro. Natal. 2010. Não publicado.

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audiência, em função de crescente número de emissoras FM nos dias atuais, esteja dividido

em “mais fatias”, ainda observa-se sua hegemonia no rádio FM natalense. A FM pioneira no

estado delimitou um espaço referencial a partir de bons resultados em suas experimentações,

tanto no campo técnico como no campo da linguagem. Experimentações que se legitimaram

como uma forma vencedora de se fazer rádio em freqüência modulada.

REFERÊNCIAS

AUSTIN, J L.Quando dizer é fazer – palavras e ações. Porto Alegre, Artes Médicas, 1990

BARBOSA FILHO, André (Org.); PIOVESAN, Angelo (Org.); BENETON, Rosana (Org.). Rádio: sintonia do futuro. São Paulo: Paulinas, 2004

BIANCO, N. R. (Org.) ; MOREIRA, S. V. (Org.) . Rádio no Brasil: tendências e perspectivas. 1. ed. Rio de Janeiro: Eduerj, 1999.

FERRARETTO, Luiz Artur. Rádio. O veículo, a história e a técnica. Porto Alegre-RS. Editora Sagra Luzzatto. 2000.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo. Vértice editora. 1990.

LE GOFF, Jacques, História e memória; tradução Bernardo Leitão ... [et al.] -- Campinas, SP Editora da UNICAMP, 1990