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APRESENTAÇÃO O polêmico e polissêmico conceito de globalização se impôs como a ca- racterização mais difundida das transformações mundiais ocorridas desde a última década do século XX. Tem cabido aos historiadores, frequentemente, o papel de relativizar o ineditismo da conjuntura atual, identificando-a co- mo um novo momento em um processo de longo prazo de expansão e acele- ração dos múltiplos fluxos que integram os mais distantes pontos do planeta. Ainda assim, o corrente foco na perspectiva global tem gerado questionamen- tos e debates relevantes para o nosso ofício. Sabe-se que a institucionalização da disciplina histórica transcorreu inti- mamente articulada ao desenvolvimento dos modernos Estados nacionais e desempenhou papel fundamental na construção de suas bases simbólicas de legitimação. Até que ponto o enquadramento no espaço nacional limita a defi- nição dos objetos e perspectivas de análise na pesquisa histórica? Em que as diversas correntes e metodologias associadas à ideia de História Global podem contribuir para redefinir as abordagens sobre temas tradicionalmente recorta- dos nos limites de fronteiras nacionais? A chamada História Global representa um paradigma radicalmente inovador, um campo de diálogo entre diversas perspectivas, ou apenas um modismo intelectual influenciado pelo “espírito da época”? Até que ponto a História Global pode alterar nosso entendimento sobre o Brasil e seu lugar no mundo em diferentes momentos históricos? Ou seria justamente a ênfase nas particularidades dos fenômenos históricos no interior de um Estado nacional pós-colonial como o Brasil uma forma de romper com o eurocentrismo de narrativas “mundiais” ou “globais”? Essas foram algumas das indagações propostas aos autores que apresen- taram artigos para integrar o dossiê temático “O Brasil na História Global”, contido neste número da Revista Brasileira de História. Os trabalhos 7 Dezembro de 2014

RBH - V34 N68

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Edição da Revista Brasileira de História.Volume 35, Número 68

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  • APRE SEN TA O

    O polmico e polissmico conceito de globalizao se imps como a ca-racterizao mais difundida das transformaes mundiais ocorridas desde a ltima dcada do sculo XX. Tem cabido aos historiadores, frequentemente, o papel de relativizar o ineditismo da conjuntura atual, identificando-a co-moum novo momento em um processo de longo prazo de expanso e acele-rao dosmltiplosfluxos que integram os mais distantes pontos do planeta. Ainda assim, o corrente foco na perspectiva globaltem gerado questionamen-tos e debates relevantes para o nosso ofcio.

    Sabe-se que a institucionalizao da disciplina histrica transcorreu inti-mamente articulada ao desenvolvimento dos modernos Estados nacionais e desempenhou papel fundamental na construo de suas bases simblicas de legitimao. At que ponto o enquadramento no espao nacional limita a defi-nio dos objetos e perspectivas de anlise na pesquisa histrica? Em que as diversas correntes e metodologias associadas ideia de Histria Global podem contribuir para redefinir as abordagens sobre temas tradicionalmente recorta-dos nos limites de fronteiras nacionais? AchamadaHistria Global representa um paradigma radicalmente inovador, um campo de dilogo entre diversas perspectivas, ou apenas um modismo intelectual influenciado pelo esprito da poca? At que ponto a Histria Global pode alterar nosso entendimento sobre o Brasil e seu lugar no mundo em diferentes momentos histricos? Ou seria justamente a nfase nas particularidades dos fenmenos histricos no interior de um Estado nacional ps-colonial como o Brasil uma forma de romper com o eurocentrismo de narrativas mundiais ou globais?

    Essas foram algumas das indagaes propostas aos autores que apresen-taram artigos para integrar o dossi temticoO Brasil na Histria Global, contido neste nmero da Revista Brasileira de Histria. Os trabalhos

    7Dezembro de 2014

  • Apresentao

    selecionados oferecem um panorama significativo da diversidade de aborda-gens abarcadas sob o conceito de Histria Global.

    Em O maior incndio do planeta: como a Volkswagen e o regime militar brasileiro acidentalmente ajudaram a transformar a Amaznia em uma arena poltica global, Antoine Acker relata a surpreendente histria da ascenso e queda do projeto que visava transformar o Brasil em exportador de carne bo-vina empregando as modernas tcnicas de gesto da multinacional alem. Jos Juan Prez Melndez, por sua vez, valendo-se de pesquisa inovadora, oferece novas perspectivas sobre um tema clssico da histria brasileira do sculo XIX em Reconsiderando a poltica de colonizao no Brasil Imperial: os anos da Regncia e o mundo externo. Gnero, literatura e crtica sociedade escravista so os temas que se conectam nos relatos analisados por Ludmila de Souza Maia em Viajantes de saias: escritoras e ideias antiescravistas numa perspec-tiva transnacional (Brasil sculo XIX).

    Maria Vernica Secreto explora as possibilidades inovadoras abertas pelas correntes historiogrficas que buscam transcender o recorte do espao nacio-nal para entender as relaes entre nosso pas e seu maior vizinho em Histrias conectadas: histrias integradas. Brasil e Argentina em busca de um terceiro no sculo XIX. Em Como abelhas polinizando flores: gerncia e racionali-zao do trabalho no complexo coureiro-caladista de Franca-SP no sculo XX, Vincius de Rezende situa a experincia de um importante setor industrial brasileiro no quadro global do desenvolvimento das tcnicas de gesto empre-sarial. Helenice Aparecida Bastos Rocha e Flvia Eloisa Caimi, por sua vez, levam a temtica do nosso dossi sala de aula, com A(s) histria(s) conta-da(s) no livro didtico hoje: entre o nacional e o mundial.

    Completando esse quadro, publicamos entrevista indita com Patrick Manning, da Universidade de Pittsburgh, pesquisador consagrado e pioneiro no estudo da dispora africana e dos fluxos migratrios globais na perspectiva da Histria Mundial. O professor Manning tem se destacado ao longo das ltimas dcadas na articulao de redes continentais de pesquisadores interes-sados em explorar os potenciais da Histria Global.

    A seo de avulsos tambm traz um conjunto de trabalhos marcados por grande diversidade, tanto do ponto de vista da temtica quanto no escopo cronolgico.

    8 Revista Brasileira de Histria, vol. 34, no 68

  • Apresentao

    Ela se abre com Descontruindo mapas, revelando espacializaes: refle-xes sobre o uso da cartografia em estudos sobre o Brasil colonial, de Tiago Kramer de Oliveira. Victor Melo apresenta uma abordagem original sobre a histria africana do sculo XX em O esporte na poltica colonial portuguesa: as iniciativas de Sarmento Rodrigues na Guin (1945-1949). A histria po ltica britnica do sculo XVI o campo de anlise de Eoin ONeill em A inglria ilha de Gloriana: Elizabeth I, responsabilidade e honra na Guerra dos Nove Anos na Irlanda.

    Temas clssicos nos estudos sobre economia e da poltica no Brasil colo-nial so reexaminados por Thiago Alves Dias em O Cdigo Filipino, as Normas Camarrias e o comrcio: mecanismo de vigilncia e regulamentao comercial na capitania do Rio Grande do Norte. As linhas de continuidade e ruptura na histria do trabalho no Brasil entre os sculos XIX e XX so abor-dadas em Greve como luta por direitos: as paralisaes dos cocheiros e car-roceiros no Rio de Janeiro (1870-1906) de Paulo Cruz Terra.

    J Bruno Bontempi Jr. e Carlota Boto oferecem uma contribuio original para a reflexo sobre a relao entre polticas educacionais, identidade nacional e construo do Estado brasileiro em O ensino pblico como projeto de na-o: A Memria de Martim Francisco (1816-1823). Finalmente, trazemos um trabalho sobre histria poltica nacional no perodo recente: Informao, poltica e f: o jornal Mensageiro da Paz no contexto de redemocratizao do Brasil (1980-1990), de Andr Dioney Fonseca.

    O volume se conclui com quatro resenhas. Flvio Limoncic comenta A Justia do Trabalho e sua histria, organizado por ngela de Castro Gomes e Fernando Teixeira da Silva. Denise Soares de Moura analisa Governabilidade nas fronteiras da Amrica portuguesa, de Nauk Maria de Jesus. Poetry and the Police: Communication Networks in Eighteenth-Century Paris, de Robert Darnton, a obra examinada por Lus Felipe Sobral. Por fim, Magda Rita Ribeiro de Almeida Duarte apresenta A Reforma Papal (1050-1150): trajetrias e crticas de uma histria, de Leandro Duarte Rust.

    Alexandre Fortes

    9Dezembro de 2014