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1 INTRODUÇÃO O texto a seguir pretende constituir uma análise acerca dos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa no Brasil, comparando-os com a situação vivenciada pelo personagem Joseph K., do romance "O Processo", de Franz Kafka. Pretende-se ainda, estabelecer um paralelo entre a forma de acesso à justiça na realidade brasileira e nos tribunais apresentados no romance de Kafka. A importância desse estudo consiste na necessidade de avaliar como ocorre o acesso à justiça e ao devido processo legal no Brasil e em analisar as semelhanças com o modelo de justiça apresentado no romance "O Processo". Inicialmente, serão apresentados conceitos dos princípios supra-citados. Logo após, o conceito de acesso à justiça, suas dificuldades e propostas de efetivação, concluindo com a análise de alguns pontos interessantes do romance "O Processo", fazendo-se um paralelo com os princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório e do acesso à justiça. 2 O DEVIDO PROCESSO LEGAL, A AMPLA DEFESA E O CONTRADITÓRIO Os princípios gerais do direito processual são preceitos fundamentais que dão forma e caráter aos sistemas processuais. Alguns desses princípios são comuns a todos os sistemas, enquanto outros vigem somente em determinados ordenamentos. São embasados nos princípios constitucionais e podem ser classificados, segundo Gomes Canotilho e Jorge Miranda (apud Cintra, Grinover e Dinamarco, 2008, p. 57-58), em: a) estruturantes, assim considerados aqueles consistentes nas idéias diretivas básicas do processo, de índole constitucional (juiz natural, imparcialidade, igualdade, contraditório, publicidade, processo em tempo razoável etc.); b) fundamentais, que seriam aqueles mesmos princípios, quando especificados e aplicados pelos estatutos processuais, em suas particularidades; c) instrumentais, os que servem como garantia do atingimento dos princípios fundamentais, como são o princípio da demanda, o do impulso oficial, o da oralidade, o da persuasão racional do juiz etc. O princípio do devido processo legal está previsto no artigo 5º inciso LIV, o do contraditório e o da ampla defesa constam do inciso LV do mesmo artigo, todos na Constituição Federal de 1988. O devido processo legal também foi lembrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu artigo XI nº 1, garantindo que: "Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa". O indivíduo que se vê diante de uma acusação tem esse direito garantido, na maioria das vezes, apenas na letra da lei. O fato de ser réu em um processo faz com que a sociedade já o julgue culpado previamente. A mídia contribui bastante para o julgamento moral, juntamente com a morosidade da justiça. Quando o acusado consegue finalmente provar sua inocência todos já o esqueceram ou relembram apenas da acusação. Segundo Moraes (1999, p.112):

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resumo dos princípios

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1 INTRODUÇÃOO texto a seguir pretende constituir uma análise acerca dos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa no Brasil, comparando-os com a situação vivenciada pelo personagem Joseph K., do romance "O

Processo", de Franz Kafka. Pretende-se ainda, estabelecer um paralelo entre a forma de acesso à justiça na

realidade brasileira e nos tribunais apresentados no romance de Kafka.

A importância desse estudo consiste na necessidade de avaliar como ocorre o acesso à justiça e ao devido processo

legal no Brasil e em analisar as semelhanças com o modelo de justiça apresentado no romance "O Processo".

Inicialmente, serão apresentados conceitos dos princípios supra-citados. Logo após, o conceito de acesso à justiça,

suas dificuldades e propostas de efetivação, concluindo com a análise de alguns pontos interessantes do romance "O

Processo", fazendo-se um paralelo com os princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório e

do acesso à justiça.

2 O DEVIDO PROCESSO LEGAL, A AMPLA DEFESA E O CONTRADITÓRIOOs princípios gerais do direito processual são preceitos fundamentais que dão forma e caráter aos sistemas

processuais. Alguns desses princípios são comuns a todos os sistemas, enquanto outros vigem somente em

determinados ordenamentos. São embasados nos princípios constitucionais e podem ser classificados, segundo Gomes Canotilho e Jorge Miranda (apud Cintra, Grinover e Dinamarco, 2008, p. 57-58), em:

a) estruturantes, assim considerados aqueles consistentes nas idéias diretivas básicas do processo, de índole constitucional (juiz natural, imparcialidade, igualdade, contraditório, publicidade, processo em tempo razoável etc.);

b) fundamentais, que seriam aqueles mesmos princípios, quando especificados e aplicados pelos estatutos

processuais, em suas particularidades; c) instrumentais, os que servem como garantia do atingimento dos princípios fundamentais, como são o princípio da demanda, o do impulso oficial, o da oralidade, o da persuasão racional do juiz

etc.

O princípio do devido processo legal está previsto no artigo 5º inciso LIV, o do contraditório e o da ampla defesa

constam do inciso LV do mesmo artigo, todos na Constituição Federal de 1988. O devido processo legal também foi

lembrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu artigo XI nº 1, garantindo que:

"Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa".

O indivíduo que se vê diante de uma acusação tem esse direito garantido, na maioria das vezes, apenas na letra da

lei. O fato de ser réu em um processo faz com que a sociedade já o julgue culpado previamente. A mídia contribui

bastante para o julgamento moral, juntamente com a morosidade da justiça. Quando o acusado consegue finalmente provar sua inocência todos já o esqueceram ou relembram apenas da acusação.

Segundo Moraes (1999, p.112):

o devido processo legal configura dupla proteção ao indivíduo, atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa (direito à defesa técnica, á publicidade do processo, á citação, de produção ampla de provas, de ser processado e julgado pelo juiz competente, aos recursos, à decisão imutável, à revisão criminal).

A ampla defesa e o contraditório são as bases do devido processo legal. A ampla defesa consiste em assegurar que

o réu tenha condições de trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade. Já o

contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa. A todo ato produzido pela acusação caberá igual direito de

oposição por parte do réu, bem como de trazer a versão que melhor lhe apresente ou fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor.

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3 ACESSO À JUSTIÇAO conceito de acesso à justiça passou por uma importante transformação no momento em que deixou de ser, como

no dizer de Cappelletti (1988, p.9), "o direito formal do indivíduo agravado de propor ou contestar uma ação", para

tratar dos problemas práticos para o efetivo acesso à justiça. Cappelletti afirma que:

A partir do momento em que as ações e relacionamentos assumiram, cada vez mais, caráter mais coletivo que

individual, as sociedades modernas necessariamente deixaram para trás a visão individualista dos direitos, refletida

nas ‘declarações de direitos’, típicas dos séculos dezoito e dezenove.

O efetivo acesso à justiça é dificultado pelas custas judiciais; despesas com honorários advocatícios; pela

morosidade; pelas possibilidades das partes, pois de acordo com Cappelletti (1988, p. 21), "pessoas ou organizações que possuam recursos financeiros consideráveis a serem utilizados têm vantagens óbvias ao propor ou defender

demandas"; pela aptidão para reconhecer um direito e propor uma ação ou sua defesa; pela falta de habitualidade

com o sistema judicial; pelos problemas para defender interesses difusos. O maior de todos os obstáculos é que os

anteriores estão inter-relacionados, portanto, não podem ser eliminados um por um.

Cappelletti (1988, p. 31) aponta que:

[...] a primeira solução para o acesso – a primeira ‘onda’ desse movimento novo – foi a assistência judiciária; a segunda dizia respeito às reformas tendentes a proporcionar representação jurídica para os interesses ‘difusos’, especialmente nas áreas da proteção ambiental e do consumidor; e o terceiro – e mais recente – é o que nos propomos a chamar simplesmente ‘enfoque de acesso á justiça’ porque inclui os posicionamentos anteriores, mas vai muito além deles, representando, dessa forma uma tentativa de atacar as barreiras do acesso de modo mais articulado e compreensivo.

Santos também defende o fortalecimento da assistência judiciária para os pobres, através das defensorias públicas. Ele afirma que "a revolução democrática da justiça exige a criação de outra cultura de consulta jurídica e de

assistência e patrimônio judiciário, em que as defensorias públicas terão certamente um papel muito relevante." (Santos, 2007, p.46).

A defesa dos interesses difusos é prejudicada pela pressão política sofrida pelos órgãos governamentais que detém

sua tutela. Além disso, as agências públicas regulamentadoras têm suas limitações.

A terceira onda consiste em, segundo Cappelletti (1988, p. 67) "[...] centrar sua atenção no conjunto geral de

instituições e mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e mesmo prevenir disputas nas sociedades modernas." Ou seja, tratar as duas primeiras ondas de reforma como uma série de possibilidades para

melhorar o acesso à justiça.

4 O PROCESSO EM KAFKA E O ACESSO À JUSTIÇANa obra literária "O Processo", de Franz Kafka, o réu é julgado sem ter a mínima noção do porquê está sendo processado. Joseph K. ficou impossibilitado de se defender perante a "justiça", foi ouvido em apenas uma audiência

e nunca teve acesso aos autos do processo. Apesar de ter um advogado à sua disposição, o mesmo não lhe dava informações precisas sobre o processo, apenas lhe fornecia explicações vagas e deixava transparecer a importância

da influência junto ao juiz e os funcionários da justiça.

Infelizmente, o jogo de influências não ocorre só na ficção. Recentemente foram noticiados casos de venda de

sentenças envolvendo advogados, servidores públicos e um estagiário de direito, além de indícios da participação de juízes e desembargadores. Santos chama a atenção para a questão da corrupção nos tribunais, segundo o autor:

[...] sempre que levou a cabo o combate à corrupção, o judiciário foi posto perante uma situação quase dilemática: esse combate, se por um lado, contribuiu para a maior legitimidade social dos tribunais; por outro, aumentou exponencialmente a controvérsia política à volta deles. Por quê?

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Porque os tribunais não foram feitos para julgar para cima, isto é, para julgar os poderosos. Eles foram feitos para julgar os de baixo". (Santos, 2007, p. 22).

Em um diálogo que Joseph K. tem com o pintor Titorelli, o personagem principal afirma (2001, p. 176): "Mas todos

estão de acordo em que a acusação mais insignificante não fica anulada sem mais nem menos, senão que a justiça,

uma vez que formulou a acusação, está firmemente convencida da culpabilidade do acusado e em que dificilmente

se pode alterar tal convicção". Ao que o pintor responde que nunca a justiça abandona tal convicção. Portanto, a

partir do momento em que o indivíduo é acusado, já é considerado culpado, tanto pela "justiça" do romance, quanto pela justiça real, que deveria cumprir os princípios constitucionais. Porém, a maior parte dos brasileiros esbarra com

os obstáculos financeiros, organizacionais e processuais. A corrupção e a burocracia do judiciário contribuem para a

negação dos direitos fundamentais.

Interessante passagem do romance é a que o pintor explica as três possibilidades de "absolvição", que são: a

absolvição real, a absolvição aparente e a dilação indefinida. A real é impossível, pelo menos ninguém nunca alcançou, apenas existem lendas de que em um passado distante existiram absolvições reais: "O expediente do

processo desfaz-se inteiramente; as atas desaparecem do inquérito; destrói-se tudo, não somente a acusação, mas

também todo o processo e até a ata da absolvição" (Kakfa, 2001, p. 181). Portanto, não existe presunção de

inocência, o acusado é considerado culpado desde o início e uma absolvição real é praticamente impossível. Outro

princípio também é atingido, a da publicidade dos atos processuais, talvez até como uma forma de intimidação.

Na absolvição aparente a declaração de inocência não produz por si mesma outra modificação senão a de

enriquecer o expediente com ela, com a ata de absolvição e com as atas que fundamentam esta. Em tudo o mais, o

processo continua seu curso, continua-se levando-o a tribunais superiores, como o exige o trâmite ininterrupto entre

os diversos escritórios da justiça; volta depois outra vez aos tribunais inferiores e sofre deste modo oscilações grandes e pequenas e demoras mais ou menos prolongadas. Não é possível calcular o que pode acontecer com o

expediente. Visto de fora, poderia muitas vezes dar a impressão de que o processo foi esquecido, de que as atas se perderam e que a absolvição é, por conseguinte, completa. Mas um iniciado nestas coisas não o julga assim. Nunca

se perde nenhuma ata, a justiça na se esquece de nada. Um dia, sem que ninguém o espere, algum juiz toma em

suas mãos com maior atenção o expediente, reconhece que nesse caso a acusação está ainda em vigor e ordena imediatamente a detenção do acusado. (Kafka, 2001, p. 185).

Essa forma como o processo é levado lembra as conseqüências da morosidade do judiciário. Questões mais urgentes são colocadas à frente e alguns processos parecem ter sido esquecidos. Vale ressaltar que a urgência pode

ser assim classificada em seu sentido real ou no sentido de quem são as partes litigantes e a pressão que elas

exercem para que seus processos sejam considerados urgentes. O "esquecimento" (ou engavetamento) também pode favorecer, quando a pessoa influente é parte ré. Os processos "menos urgentes", quando lembrados, muitas

vezes, já estão prescritos, fato que não acontece no romance.

Já a dilação indefinida consiste em manter o processo permanentemente em uma das fases iniciais. Para conseguir

tal coisa é preciso que o acusado e seu colaborador, embora certamente sobretudo este último mantenham de modo

ininterrupto um contato pessoal com a justiça (...) É certo que o inquérito não termina, mas aqui o acusado está quase tão certo de não ser condenado como se estivesse em liberdade. (ibidem, p.186-187).

Muitos advogados ou envolvidos em um processo utilizam-se deste artifício para contribuir com a lentidão do processo e ganhar tempo.

Essas passagens demonstram a dificuldade de acesso à justiça e a desconsideração de princípios fundamentais. O

que vai determinar o destino do acusado é a influência que ele exerce sobre os servidores da justiça. No caso do romance, de forma bem explícita.

5 CONCLUSÃOOs princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório são garantias formais que na prática são

suprimidas a depender, principalmente das condições financeiras do litigante. Apesar de existirem outros fatores,

como a morosidade do judiciário; a burocracia e a influência da mídia, o que vai determinar o desfecho de um

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processo, na maioria das vezes, é a influência que as partes conseguem exercer sobre os juízes e os seus

funcionários. Sabe-se que a influência será maior ou menor dependendo das condições financeiras.

Sempre existe a esperança de que a situação se modifique com novos estudos sobre acesso à justiça, políticas públicas direcionadas às comunidades que só sentem a presença do Estado como órgão repressor. Percebe-se uma

preocupação em democratizar a justiça, torná-la efetivamente acessível a todos. Entretanto, este é um caminho longo

a ser percorrido, já que o poder judiciário não foi criado para ser acessível às classes populares.

A transformação é difícil, mas não impossível. Aos poucos, os direitos formais se tornam efetivos, a partir da

concepção de um Direito para todos e não apenas para alguns.

6 REFERÊNCIASCAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre:

Fabris, 1988. Título original: Acess to Justice: The Worlwide Movement to Make Rights Effective. A general Report.

CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do

Processo. 24. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008.

KAFKA, Franz. O Processo. 2. ed.Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2001. Título original: Der Prozess.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 1999.

SANTOS, Boaventura de. Para Uma Revolução Democrática da Justiça. São Paulo: Cortez, 2007.

VENDA DE sentenças na BA: revelado nome de três acusados na Operação Janus. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/noticias/99132/venda-de-sentencas-na-ba-revelados-nomes-de-tres-acusados-na-

operacao-

Leia mais: http://jus.com.br/artigos/12684/o-devido-processo-legal-o-contraditorio-e-a-ampla-defesa-no-brasil-e-na-obra-literaria-o-processo-de-franz-kafka#ixzz3cVPFCBgg

O processo em Kafka. Judiciário inalcançável. Processo sigiloso sem contraditório. Acusação. Cerceamento de defesa. Legislação. Ampla defesa Negligência. Vulnerabilidade diante dos atos jurídicos do Estado. Princípios Constitucionais. Dignidade da pessoa humana.

Relatório

O presente parecer aborda a questão do acesso à justiça, seus obstáculos e os caminhos para a sua efetividade, fazendo uma análise comparativa entre o procedimento processual vigente no Brasil e aquele narrado por Franz Kafka em sua obra “O Processo", demonstra ainda a importância da aplicabilidade dos princípios constitucionais ligados ao processo, a saber: do devido processo legal, da ampla defesa e contraditório, entre outros, os quais restaram tolhidos no romance em epígrafe.

Da Fundamentação

Narra a obra que em uma manhã aparentemente corriqueira, o bancário Josef K., personagem principal do caso, foi surpreendido em sua residência por dois guardas que vieram comunicar-lhe de um processo a que ele respondia, bem como de sua detenção, contudo sem prestar maiores esclarecimentos, nem ao menos quanto ao motivo ou possível crime cometido por Josef. Quando

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indagados os guardas afirmaram apenas estarem cumprindo ordens, embora não portassem nenhum documento determinando a detenção de K. Como desconhecia o motivo pelo qual estava sendo processado, K. de início imaginou tratar-se de uma brincadeira armada pelos colegas do banco e não levou os guardas muito a sério.

De início já é possível perceber grande disparidade entre o caso acima e o procedimento utilizado atualmente em nosso país, vez que Josef K. amparado pela legislação brasileira vigente não poderia ter seu domicílio violado sem determinação judicial, trata-se aqui de violação a um princípio previsto constitucionalmente, o da inviolabilidade do domicílio, disposto no art. 5º, inciso XI da Constituição Federal.

Senão vejamos:

CF. Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

Inciso XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;

 

Posteriormente, K. teve encontro com um inspetor que lhe certificou acerca de sua detenção; sem, no entanto, esclarecer as razões que norteavam o processo. Josef K. foi detido sem saber motivo e encontra-se privado de sua liberdade sem o devido processo legal, o que fere a outro princípio constitucional.

O direito ao devido processo legal vem consagrado pela Constituição Federal, estabelecendo em seu Art. 5º da CF;

Inciso LIV   - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

Garantindo a qualquer acusado em processo judicial o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

O processo de Josef. K. foi instruído obscuramente, em total sigilo, a ponto de ter sido impossibilitada a ampla defesa, sendo as provas produzidas contra ele totalmente desconhecidas, extrai-se da obra que não havia previsão legal à época quanto à publicidade do inquérito policial, sendo o processo sigiloso até a sentença final, o que diverge na nossa Lei atual onde temos o princípio da publicidade, art. 5º da CF:

Inciso   LX   - a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem;

Esse princípio visa proporcionar o conhecimento dos atos do processo a todos os interessados, constitui uma preciosa garantia do indivíduo no tocante ao exercício da jurisdição, devendo sempre ser respeitado, onde o magistrado que limita o livre acesso às informações nos autos, impõe medida autoritária a qual não deve ser admitida na nossa atualidade, em que pese admitida no processo de Josef.

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O devido processo legal também foi lembrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu artigo XI nº 1, garantindo que:

"Todo homem acusado de um ato delituoso tem   o   direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo   com   a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa".

Na obra é indicado ao réu três possibilidades, a) a chance da absolvição real, pela qual todos os documentos desapareceriam sendo arquivado o processo; b) a aparente, ficaria livre da pena, permanecendo os documentos, podendo ser utilizados novamente pelo Tribunal; e c) o adiamento indeterminado, interrompendo o processo. A absolvição real representa a existência de provas da inocência e o alcance da verdade real, mas o autor deixa claro que Josef K. jamais se conseguirá essa absolvição.

O fato de ser réu em um processo faz com que fosse considerado culpado previamente, sendo naquela época inadmitida a defesa, de modo que tudo era feito para dificultá-la, além da violação dos princípios anteriormente citados, vê-se a inexistência do princípio de presunção de inocência previsto no artigo 5º, da Constituição Federal;

inciso LVII   - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

No processo de Josef K. tanto o acusado quanto seu advogado não tinham acesso aos autos, desconhecendo seu conteúdo, eram pegos de surpresa pelas perguntas feitas no decorrer dos interrogatórios, nos quais geralmente não podia o defensor estar presente, tolhendo ainda mais qualquer possibilidade de defesa. A justiça não reconhecia a pessoa do advogado, o qual hoje é indispensável à administração desta, (art. 133 da CF/88), restando a este tentar fazer o jogo de influências junto ao juiz e os funcionários da justiça, buscando conseguir alguma vantagem para seu cliente.

Apesar de ter um advogado à sua disposição, este não dava informações precisas sobre o processo, apenas lhe fornecia explicações vagas e deixava transparecer a importância da influência no poder judiciário.

O juiz era figura totalmente ausente, sendo que Josef nunca o vira durante sua instrução processual.

Essas passagens demonstram a dificuldade de acesso à justiça e a desconsideração de princípios fundamentais no caso do romance de Kafka, de modo que o que vai determinar o destino do acusado é a influência que ele exerce sobre os servidores da justiça.

Os inquéritos, como já foi dito, eram secretos e o eram também para os funcionários hierarquicamente inferiores. O acusado não podia em hipótese alguma trocar de advogado, tinha que ficar com o que escolheu independente de qualquer coisa. Porém, o processo podia tomar rumos nos quais o advogado não mais pudesse seguir seu cliente.

A sentença de Josef K. chegara na véspera de seu aniversário quando completaria 31 anos, entram na casa de K. dois senhores que carregaram-no pelos braços, ele ainda tenta empreender fuga mas é detido pelos dois homens que levam-no a uma pedreira e lá golpeiam-no

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no coração com uma faca. A ele foi, então, imposta a pena de morte por um crime jamais informado.

Vê-se que fora aplicado à K. pena de morte instituto abolido pelo ordenamento jurídico vigente no Brasil.

Conclusão

Em harmonia com o exposto e por tudo mais que consta da obra denota-se que o acesso à Justiça e a efetividade da tutela jurisdicional são princípios violados pela sistemática judiciária descrita por Kafka, os princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, da publicidade, da presunção de inocência, são garantias formais que na prática do processo em análise foram suprimidas pelo sistema judiciário da época o que não se permite que aconteça hoje posto que vivemos num Estado Democrático de Direitos onde são ou pelo menos devam ser respeitados tais princípios constitucionais.

Apesar de existirem outros fatores, como a morosidade do judiciário; a burocracia e a influência da mídia, o que vai determinar o desfecho de um processo, na maioria das vezes é a produção de provas durante a instrução de um devido processo legal, respeitando a todos os direitos do réu.

Esse romance de Franz Kafka constitui uma grande crítica a todos os mecanismos jurídicos demonstrando os aspectos obscuros e incompreensíveis à administração da justiça, sendo de grande valia em nossa atualidade tendo em vista que ainda hoje, devem existir diversos "Josefs k". , andando feito fantoches sob as incertezas e injustiças na nossa justiça. Certamente, essa obra de Kafka ainda rendará muitas indagações e nos proporcionará uma indispensável reflexão sobre nossa vulnerabilidade diante dos atos jurídicos do Estado, que freqüentemente afronta seus cidadãos.Salvo melhor juízo, é o parecer.

A obra já inicia com a prisão de Joseph K., sem nenhuma explicação e de forma totalmente arbitrária.

Neste ínterim lemos: “Não – retrucou o homem que estava junto à janela, deixando o seu livro sobre uma mesinha e pondo-se de pé. – você não pode sair está detido” . Esta passagem descreve a tentativa de Joseph em avaliar o que está acontecendo e como não encontra resposta coerente alguma, tenta sair de casa.

Logo em seguida, o oficial que veio comunicar sua detenção o impede de sair do quarto. Diante dessa situação, Joseph indaga: “por que estou detido?” . A resposta que escuta é simplesmente injusta: “Não me cabe explicar isso. Volte para o seu quarto e espere ali. O inquérito está em curso, de modo que se inteirará de tudo em seu devido tempo” .

À luz do Direito pátrio tais acontecimentos são recriminados. Leciona o artigo 282 do Código de Processo Penal Brasileiro: “Á exceção do flagrante delito, a prisão não poderá efetuar-se senão em virtude de pronúncia ou nos casos determinados em lei, e mediante ordem escrita de autoridade competente”.

Coadunando com tal pensamento preceitua a Carta Magna de 1988: “O preso será informado de seus direitos [...]” (Artigo 5º, LXIII) e um dos direitos que assiste aos presos é o direito de saber do que está sendo acusado.

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Prosseguindo na leitura deparamo-nos com uma crítica de Kafka ao sistema processual da época. E, para nossa surpresa, ele já se queixava da morosidade dos processos, senão vejamos; “E quão demorados são os processos deste tipo, especialmente nos últimos tempos!” . Faz-se mister relatar que essa passagem percorre o ano de 1920.

A confusão jurídica da detenção de Joseph não para por aqui. Alguns trechos adiante lemos Joseph clamar por respostas: “Que espécie de homens eram estes? De que estavam falando? A que Departamento oficial pertenciam? Quem eram aqueles que se atreviam a invadir sua casa?” . E ainda continua perguntando: “Mas, como posso estar detido? E desta maneira? Teriam de responder – retrucou K. – Aqui estão os meus documentos de identidade; mostrem-me vocês os seus, e, especialmente, a ordem de prisão” .

Se estivéssemos sob a égide da Lei Brasileira, tais perguntas jamais poderiam pairar no campo das dúvidas. Nossa Carta Maior preconiza: “o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial”. (Artigo 5º, LXIV) e prossegue: “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém podendo entrar nela sem consentimento do morador [..]” (Artigo 5º, XI). Assim também pontifica o CPP: “a prisão poderá ser efetuada em qualquer dia e a qualquer hora, respeitadas as restrições relativas à inviolabilidade do domicílio”. (Artigo 283, CPP).

A insistência de Joseph K. em querer saber do que estar sendo acusado é algo predominante na obra de Kafka. Tanto que se criou o estilo kafkiano de ser processado. Ser processado kafkianamente é ser totalmente tolhido de qualquer preceito jurídico possível e conhecido. 

Parece que no mundo onde vive Joseph não há vigilância aos princípios democráticos de direito.

E mais uma vez aparecem suas argüições: “Quem me acusa? Que autoridade superintende o inquérito? Vocês são funcionários?.

Imaginem só, ser detido sem saber a causa e por pessoas que não demonstram a ordem prisional, as suas credenciais , o crime cometido, o ofendido, e tudo mais que se leciona em um devido processo legal.

Em certa passagem a personagem detida alega “Carece porventura de sentido chamar pelo telefone um advogado, já que sou declarado detido?” .

Não só carece como é um direito inalienável de quem foi detido ou preso. Encontra-se fundamentado em nossa Constituição no artigo 5º, LXII: “a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada”. E ainda defende o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil em seu artigo segundo, § 1º, que o advogado é essencial para a administração da justiça e tem importante função social.

Destarte, mais um direito previsto em nossa legislação pátria foi sumariamente desprezado neste título de Kafka.

Ultrapassada a fase da detenção de Joseph, o mesmo foi informado que deveria comparecer em certo dia e local para ser interrogado por um Juiz de instrução. Nesse ínterim, a personagem então aparece em um cenário semelhante a um fórum judicial, porém muito aquém de um recinto onde se possa promover a Justiça.

Estando, então, diante do Juiz, eis que Joseph observa: “no pescoço deste, que se achava tranquilamente sentado com as mãos no regaço olhando para baixo, o mesmo emblema” . Este emblema é vislumbrado por Joseph em um partido político popular de sua região. Desta forma, o

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Juiz então era parcial ou tendencioso às idéias de seus correligionários. Contraria frontalmente o estabelecido em nossa Carta Magna no capítulo que regula o Poder Judiciário. Em seu dispositivo 95, parágrafo único, inciso III, a Constituição leciona: “Aos juízes é vedado: III – dedicar-se à atividade político-partidária”.

Interessante é que o ilustre jurista Cesare Beccaria em sua obra “Dos Delitos e das Penas” chama a atenção para este fato: “Deve-se, igualmente, dar menos crédito a um homem que faz parte de uma ordem, ou de casta, ou de sociedade privada, cujos usos e máximas são geralmente desconhecidos, ou não são idênticos aos dos usos comuns, pois, além de suas próprias paixões, esse homem ainda tem as paixões da sociedade da qual é membro” .

O segundo capítulo que narra o pseudo exame conjeturatório de Joseph, encerra deixando-nos boa margem para contestar e afirmar que não houve no decorrer do processo da personagem nenhum formalismo; a presença marcante de um juízo de exceção terminantemente vetado em nossa Constituição(art. 5º, XXXVII); e a total ausência dos princípios do Devido Processo Legal(art. 5º, LIV) e do Juiz Natural (art. 5º, LIII).

O Capítulo quinto desta obra comentada é intitulado “o acoitador” e nestas páginas Kafka descreve uma verdadeira cena de escárnio e humilhação com as vítimas da tortura. Inclusive em uma obra escrita por Kafka na mesma época “A Colônia Penal”, também representa a descrição completa da carnificina e do vilipêndio à dignidade humana, nas torturas da máquina conhecida como “rastelo”.

No andamento do processo de Joseph K. a personagem, juntamente com seus prepostos, deparam-se com obstáculos injustos e desumanos. Diante de seu processo nem ele nem ninguém pode ter acesso aos autos, justamente para que não soubesse nada esclarecedor que fornecesse subsídios para elaborar a defesa. 

Vejamos o que ele exclama: “De modo que os expedientes da justiça e, especialmente, o escrito de acusação eram inacessíveis para o acusado e o seu defensor, o que fazia com que não se soubesse em geral ou ao menos com precisão a quem devia se dirigir a demanda” .

Ora, nós advogados possuímos direitos de vistoriar os processos, é assim que nos presta guarida o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, em seu artigo 6º. E prossegue: “no curso das declarações do acusado, as perguntas que se lhe formulavam revelavam com alguma claridade ou então permitiam adivinhar de que coisas era acusado e os motivos em que se fundamentava a acusação. ”.

Que espécie de justiça era essa? Obrigava o acusado a adivinhar o motivo de sua acusação, detenção, julgamento, humilhação, etc.. Não se pode olvidar que desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, esses processos nefastos devem ser banidos da face da Terra.  E o pior estava por aparecer: “no fundo a lei não permitia nenhuma defesa” .

Roma há milênios hasteia a bandeira do direito inegável de defesa. Nem mesmo o pior criminoso poderia ser julgado sem defesa em plagas romanas.

Joseph K., a personagem acusada de algo que nem sabe, comenta que não era permitido aos advogados presenciarem os interrogatórios. Em solo tupiniquim tal proibição é afronta aos direitos dos advogados e dos cidadãos e, com certeza, esses direitos são protegidos pela manta segura da Constituição Federal e leis apartadas.

Assim preconiza o Código de Processo Penal Brasileiro: “O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor, constituído ou nomeado”.

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Será considerado objeto de nulidade processual aquele processo que não funciona a defesa.

Certa ocasião, no bojo das páginas desta obra, em um diálogo de Joseph e um conhecedor daquela justiça, lemos a seguinte passagem: “Você acaba de me dizer que com a justiça não valem de modo algum argumentações ou provas” . 

A Constituição e todos os diplomas legais processuais dedicam páginas extensas a temática “provas”.

No nosso direito não é só permitida como essencial a um julgamento justo da querela.

Na fase decisória do processo ocorre “as sentenças definitivas da justiça não somente não se publicam, mas nem mesmo são acessíveis aos juízes. ”

A sentença, neste modelo judiciário do livro, fere frontalmente o princípio da publicidade e da motivação das decisões. Com fulcro em nossa Carta Magna asseveramos: “Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade [...]”.

Em palavras epígonas destes comentários da obra “O Processo” de Franz Kafka, iremos relatar algumas missivas em tom de críticas sobre a justiça daqueles dias.

Kafka demonstrando conhecer as teorias de Cesare Lombroso, jurista versado em Criminologia e autor de diversas obras, escreve em sua obra supracitada, exemplos de processos que foram julgados a favor do acusado por conta de sua fisionomia e deixa a personagem principal, Joseph, exasperado em saber se irá ou não ter um fim justo do seu processo por causa de seus lábios.

As teorias de Lombroso que influenciaram o estilo “lombrosiano” de analisar criminosos, hoje não mais possuem a força que tinham a época de Franz Kafka, que conhecia por ser estudioso do direito. Porém mesmo em período hodierno há seguidores da hipótese de Lombroso: “ladrão com cara de ladrão”.

Outra peculiaridade do escrito de Kafka se dá na sua descrição do que seria para ele uma petição formalizada por advogados: “um documento cheio de erudição, mas a verdade carecia de substância. Antes de tudo, havia nele muito latinório, que eu não compreendo; depois, ao longo de páginas e páginas, apelos gerais à justiça; e, por fim, um estudo de casos jurídicos de outros tempos que deviam ser semelhantes ao meu.”

Possuía a mesma feição que ainda hoje perpetua em nossas escrivaninhas ou laptops.

A obra O PROCESSO de Franz Kafka é recomendada para os amantes da literatura e os estudiosos e vigilantes do Direito com Justiça.