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Rebecca - A mulher inesquecível

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A heroína de Rebecca - A mulher inesquecível é uma jovem insegura de si. Ao pedi-la em casamento, Max e Winter, um belo e misterioso viúvo rico, altera para sempre o seu destino. O que seria o final feliz é apenas o início de uma trama de enganos assombrada pela memória de Rebecca, a falecida esposa de Max, e pela senhora Danvers, a soturna governanta devotada à antiga patroa.

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rebeccaa mulher inesquecível

rebeccaa mulher inesquecível

daphne du maurier

Tradução de Mariluce Pessoa

Título original em inglês: RebeccaCopyright © The Estate of Daphne du Maurier 1938

Amarilys é um selo editorial Manole.

Editor-gestor: Walter Luiz CoutinhoEditor: Enrico GiglioProdução editorial: Luiz Pereira, Márcia MenRevisão: Depto. editorial da Editora ManoleEditoração eletrônica: Luargraf Serviços GráficosIlustração de capa: Axel Sande | Gabinete de Artes

Todos os direitos reservados.Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, por qualquer processo, sem a permissão expressa dos editores.É proibida a reprodução por xerox.

A Editora Manole é filiada à ABDR – Associação Brasileira de Direitos Reprográficos.

1a edição brasileira – 2012

Editora Manole Ltda.Av. Ceci, 672 – Tamboré06460-120 – Barueri – SP – BrasilTel. (11) 4196-6000 – Fax (11) 4196-6021www.amarilyseditora.com.br | [email protected]

Impresso no Brasil | Printed in Brazil

Este livro contempla as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Du Maurier, Daphne, 1907-1989. Rebecca – A mulher inesquecível / Daphne Du Maurier ; tradução Mariluce Pessoa. -- Barueri, SP : Amarilys, 2012. -- (Coleção lanterninha)

Título original: Rebecca. ISBN 978-85-204-3402-4

1. Romance inglês I. Título. II. Série.

12-09793 CDD-823

Índices para catálogo sistemático:1. Romances : Literatura inglesa 823

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Ontem à noite sonhei que voltava a Manderley. Eu parecia estar em frente ao portão de ferro da entrada, e por um momento não conse-gui passar, pois o caminho estava bloqueado. Havia no portão um cadea-do e uma corrente. Em sonho, chamei o zelador, mas não houve respos-ta e, espiando mais de perto através das grades enferrujadas do portão, vi que a casa dele estava deserta.

Não havia fumaça na chaminé, e as pequenas janelas de treliça esta-vam abertas e desoladas. Então, como acontece nos sonhos, me vi de sú-bito com poderes sobrenaturais e, como um espírito, atravessei a barreira diante de mim. O caminho até a casa serpenteava à minha frente, com seu curso sinuoso de sempre, mas, à medida que eu avançava, percebia que uma mudança havia ocorrido; tornara-se estreito e estava abando-nado, não era mais o caminho que conhecíamos. A princípio, fiquei sur-presa, sem conseguir entender, e foi apenas quando abaixei a cabeça para evitar um galho de árvore oscilante que percebi o que ocorrera. A natu-reza aos poucos retomara seu domínio e, de forma insidiosa, invadira o terreno com dedos longos e tenazes. A floresta, sempre uma ameaça, até mesmo no passado, havia, por fim, saído triunfante. As árvores avança-vam, negras e indômitas, até os limites do acesso à casa. As faias com ra-

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mos nus esbranquiçados incli navam-se umas sobre as outras, entrela-çando-se num estranho abraço, formando uma abóbada sobre minha cabeça, como a arcada de uma igreja. E havia também outras árvores, ár-vores que eu não reconhecia, carvalhos pequenos e olmos tortuosos que se emaranhavam com as faias, brotadas da terra silenciosa, junto a plan-tas e arbustos monstruosos, nenhum dos quais eu recordava.

A estrada agora era uma faixa estreita, uma nesga apenas do que fora um dia, a superfície de pedregulhos desaparecera, tomada pelo capim e o musgo. As árvores haviam lançado galhos baixos, impedindo o avanço; suas raízes retorcidas pareciam garras esqueléticas. Espalhados aqui e acolá em meio àquele emaranhado, eu reconhecia arbustos que haviam sido marcos em nosso tempo, plantas cultivadas e encantadoras, hortênsias cujas flo-res azuis haviam se tornado famosas. Sem a interferência de mãos huma-nas para conter seu desenvolvimento, elas haviam se tornado plantas nati-vas e atingido uma altura monstruosa, sem um único botão, negras e horrendas como os estranhos parasitas que haviam crescido ao seu redor.

Ora para um lado, ora para outro, avançava sinuosa a trilha que um dia fora o caminho para nossa casa. Às vezes pensava tê-la perdido, mas logo reaparecia sob uma árvore caída, talvez, ou lutando para atravessar uma vala enlameada, formada pelas chuvas de inverno. Eu não imagi-nava que o percurso fosse tão longo. Sem dúvida os quilômetros haviam se multiplicado, assim como acontecera com as árvores, e aquela trilha me conduzia a um labirinto, a uma selva sufocante, e não à casa. Che-guei até ela de repente; o acesso, encoberto pelo crescimento excessivo de um arbusto imenso que se espalhava em todas as direções; então pa-rei, meu coração batendo forte no peito, a estranha sensação de lágri-mas no fundo dos olhos.

Lá estava Manderley, nossa Manderley, reservada e silenciosa como outrora, e, no sonho, suas pedras cinzentas brilhavam sob o luar, suas janelas envidraçadas refletiam o gramado verde e o terraço. O tempo não havia destruído a perfeita simetria daquelas paredes, nem tampou-co a área ao seu redor, uma joia na palma da mão.

O terraço avançava até o gramado, e o gramado se estendia até o mar; ao me virar, vi a faixa de prata plácida sob a lua, como um lago intocado

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pelo vento ou pela tempestade. Nenhuma onda agitava aquela água de sonho, e nuvem alguma, levada pelo vento oeste, obscurecia a luminosi-dade daquele céu límpido. Virei-me novamente para a casa, e, embora ela permanecesse inviolada, intacta, como se tivéssemos partido no dia anterior, vi que o jardim seguira a lei da selva, assim como as árvores da floresta. Os rododendros alcançavam uma altura de quinze metros, re-torcidos e emaranhados com as samambaias, e haviam constituí do um estranho casamento com inúmeros arbustos desconhecidos, pobres bas-tardos que se prendiam às raízes, como se conscientes de sua origem es-púria. Um lilaseiro juntara-se a uma faia acobreada, e para uni-las ainda mais intimamente, a hera malévola, sempre inimiga da beleza, lançara suas gavinhas em torno do par, aprisionando-o. A hera ocupava um lugar primordial naquele jardim perdido: seus filamentos longos rastejavam pela grama e logo invadiriam a própria casa. Havia outra planta também, um cruzamento que se originara na floresta, cuja semente se espalhara muito tempo atrás sob as árvores e havia sido esquecida, mas agora de-senvolvia-se em uníssono com a hera, impondo a forma desgraciosa de um ruibarbo gigante à grama suave, onde antes floresciam os narcisos.

As urtigas medravam em toda parte, a vanguarda do exército. Elas invadiam o terraço, espalhavam-se pelas trilhas e pendiam, vulgares e deselegantes, das próprias janelas da casa. Constituíam sentinelas indi-ferentes, pois em muitos lugares sua posição havia sido tomada pelos ruibarbos, e seu topo amassado e suas hastes caídas serviam de passa-gem aos coelhos. Deixei o caminho e me dirigi ao terraço, pois, para mim, que sonhava, as urtigas não constituíam barreira. Eu prosseguia encantada e nada me detinha.

O luar pode pregar peças à imaginação, até mesmo à imaginação da-queles que sonham. Enquanto permanecia ali, imóvel e em silêncio, eu podia jurar que a casa não era uma concha vazia, e sim vivia e respirava como antes.

A luz se insinuava pelas janelas, as cortinas esvoaçavam suavemen-te com a brisa noturna, e lá, na biblioteca, a porta se encontrava entre-aberta como a havíamos deixado, com meu lenço sobre a mesa, ao lado do vaso de rosas de outono.

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Aquela sala era testemunha de nossa presença. A pequena pilha de livros da biblioteca, marcados para serem devolvidos, e a cópia descar-tada do The Times. Os cinzeiros com uma ponta de cigarro; as almofa-das sobre o espaldar das cadeiras com a forma de nossas cabeças ainda impressa nelas; as brasas de nossa lareira, que continuavam a queimar pela manhã. E Jasper, o querido Jasper, com olhos expressivos e enor-mes bochechas caídas, espichado no chão, agitando a cauda ao ouvir os passos de seu dono.

Uma nuvem, até então despercebida, encobriu a lua, e pairou sobre ela um instante, como uma mão escura diante de uma face. A ilusão se foi com ela, e as luzes nas janelas extinguiram-se. Olhei para a casa de-solada, enfim desprovida de alma, desabitada, sem os sussurros do pas-sado entre suas paredes vigilantes.

A casa era um sepulcro, nossos temores e sofrimentos enterrados em suas ruínas. Não haveria ressurreição. Quando eu pensasse em Mander-ley em minhas horas de vigília, não o faria com amargura. Pensaria em como poderia ter sido se eu tivesse vivido lá sem medo. Pensaria no jar-dim de rosas do verão e nos pássaros que cantavam ao amanhecer. Chá sob o castanheiro, e o murmúrio das ondas vindo até nós dos gramados abaixo. Pensaria nos lilaseiros floridos e no Vale Feliz. Essas coisas eram permanentes, jamais se dissipariam. Eram lembranças que não faziam mal. Tudo isso, resolvi em meu sonho, enquanto as nuvens encobriam a face da lua, pois como a maioria das pessoas adormecidas, eu tinha consciência de estar sonhando. Na verdade, encontrava-me a centenas de quilômetros de distância, numa terra estranha, e acordaria, em não muitos segundos, num quartinho simples de hotel, reconfortante pela própria ausência de atrativos. Suspiraria um instante, me espreguiçaria, viraria de lado e, quando abrisse os olhos, me impressionaria com o sol resplandecente, um céu claro e inclemente, bem diferente da suave luz do luar de meu sonho. O dia se apresentaria diante de nós dois, longo, sem dúvida, e sem grandes acontecimentos, porém repleto de quietude, de uma tranquilidade preciosa que até então desconhecíamos. Não fa-laríamos sobre Manderley, eu não contaria meu sonho. Pois Manderley não era mais nossa. Manderley não existia mais.

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Não poderemos jamais voltar, isso é certo. O passado está ainda muito próximo de nós. Tudo o que tentamos esquecer e deixar para trás viria à tona outra vez, e o sentimento de medo, de inquietação furtiva, a luta enfim para ocultar um pânico irracional – agora misericordiosa-mente apaziguado, graças a Deus – poderia de alguma forma inespera-da tornar-se uma presença viva, como fora antes.

Ele é de uma paciência extraordinária e jamais reclama, nem mes-mo quando se lembra... o que ocorre, eu presumo, com muito mais fre-quência do que ele deixa transparecer.

Percebo isso pela maneira como de repente parece perdido e confu-so, e toda a expressão desaparece de seu rosto querido, como se varrida por uma mão invisível, e em seu lugar forma-se uma máscara, algo se-melhante a uma escultura, formal e fria, bela, porém sem vida. Ele pas-sa a fumar um cigarro atrás do outro, sem se preocupar em apagá-los, as pontas acesas espalham-se pelo chão como pétalas. Fala rápido e an-sioso sobre coisas sem importância, aproveitando qualquer assunto como panaceia contra a dor. Acredito que há uma teoria de que os homens e as mulheres se tornam melhores e mais fortes após o sofrimento e que

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para progredir neste mundo, ou em qualquer outro, devemos suportar a dor em toda a sua intensidade. Isso, nós fizemos integralmente, por mais irônico que pareça. Ambos vivenciamos o medo, a solidão e uma enor-me angústia. Suponho que mais cedo ou mais tarde na vida das pessoas surja um momento de provação. Todos nós temos nossos demônios par-ticulares que nos tiranizam e atormentam, e devemos lutar no final. Do-mesticamos os nossos, pelo menos assim creio.

O demônio não nos tiraniza mais. Superamos nossa crise, não incó-lumes, claro. A premonição que ele tinha do desastre foi correta desde o início; e como uma atriz aos brados numa peça medíocre, eu diria que pagamos pela liberdade. Mas já vivenciei muitos melodramas nesta vida e daria de bom grado meus cinco sentidos se eles pudessem garantir nos-sa paz e segurança atuais. A felicidade não é um bem precioso, é uma propriedade do pensamento, um estado mental. Claro que temos nossos momentos de desânimo; mas há outros momentos também, quando o tempo, indeterminado pelo relógio, flui para a eternidade, e vendo-o sor-rir, sei que estamos juntos, que caminhamos em uníssono, sem que con-flitos de pensamento ou de opinião criem uma barreira entre nós.

Não guardamos mais segredos um do outro. Tudo é compartilhado. Admitimos que nosso pequeno hotel é entediante, que a comida é pas-sável, e que as manhãs surgem iguais dia após dia, mas não poderia ser de outra forma. Encontraríamos muitas das pessoas que ele conhece nos grandes hotéis. Nós dois apreciamos a simplicidade e, às vezes, fi-camos entediados – bom, o tédio é um agradável antídoto para o medo. Levamos uma vida bastante rotineira, e eu – eu desenvolvi um talento para a leitura em voz alta. A única ocasião em que percebo a impaciên-cia dele é quando o carteiro se atrasa, pois isso significa que teremos de esperar pelo dia seguinte para a chegada de nossa correspondência da Inglaterra. Tentamos o rádio, mas o ruído é tão irritante que preferimos segurar nossa ansiedade; o resultado de um jogo de críquete disputado nos dias anteriores significa muito para nós.

Os campeonatos internacionais têm nos salvado da melancolia, as lutas de boxe, até mesmo as disputas de bilhar. As finais das competi-ções escolares, as corridas de cães, provas pequenas e estranhas nos con-

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dados mais remotos, todos eles são grãos para nosso ávido moinho. Às vezes cópias antigas da Field chegam às minhas mãos, e me transporto desta ilha sem graça para as realidades de uma primavera inglesa. Leio sobre riachos cristalinos, sobre as efeméridas, as azedinhas medrando nas campinas, os corvos sobrevoando os bosques, como costumavam fa-zer em Manderley. O cheiro da terra molhada me vem daquelas páginas manuseadas e rasgadas, o odor acre das turfas dos pântanos, a sensação do musgo saturado de água, salpicado de branco em alguns lugares pe-los excrementos das garças.

Uma vez encontrei um artigo sobre os pombos-torcazes, e à medida que o lia em voz alta, tive a impressão de estar mais uma vez nos bos-ques densos de Manderley, com os pombos adejando acima de mim. Eu ouvia seu canto suave e complacente, muito agradável e reconfortante, em uma tarde quente de verão, sem nada para perturbar sua paz até Jas-per aparecer correndo pela vegetação rasteira à minha procura, seu fo-cinho úmido farejando pelo chão. Como mulheres idosas interrompidas em meio a seus rituais de ablução, os pombos esvoaçavam de seus es-conderijos, numa agitação infantil e, batendo as asas num enorme tu-multo, fugiam para além das copas das árvores, ficando assim fora do al-cance de nossa visão e audição. Quando eles desapareciam, um novo silêncio recaía sobre o lugar, e eu – inquieta sem saber por quê – perce-bia que o sol não mais tecia um padrão sobre a folhagem rumorejante, que os galhos haviam escurecido, as sombras, aumentado; e de volta à casa, haveria framboesas viçosas para o chá. Levantava-me, então, de minha cama de samambaias, limpando a saia da leve poeira das folhas do ano anterior e, chamando Jasper com um assobio, voltava para casa sentindo-me diminuída por meus passos apressados, pelo breve olhar para trás.

Era muito estranho o fato de um simples artigo sobre pombos-torca-zes evocar o passado e me fazer hesitar, enquanto eu lia em voz alta. Foi a expressão sombria no rosto dele que me fez parar abruptamente e pas-sar as páginas até encontrar um parágrafo sobre críquete, muito prático e pouco interessante – Middlesex derruba um wicket no The Oval e acumu-la intermináveis corridas monótonas. Como eu abençoava aqueles corpos

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sólidos com uniformes flanelados, pois em poucos minutos o rosto dele readquiria um ar de repouso, a cor lhe voltava à face, e ele passava a ridi-cularizar os jogos de boliche de Surrey numa saudável irritação.

Escapáramos de um retorno ao passado, e eu aprendi a lição. Ler as notícias inglesas, sim, e a página de esportes, política e pompa bri-tânica, mas no futuro guardar para mim as coisas que ferem. Elas se-riam uma concessão secreta. Cores e fragrâncias, sons, a chuva e a ba-tida das ondas, até mesmo a neblina de outono e o odor da maré alta, essas são recordações indeléveis de Manderley. Algumas pessoas têm o hábito de ler os horários dos trens. Elas planejam inúmeras viagens pelo país pelo prazer de fazer conexões impossíveis. Meu hobby é me-nos entediante, embora estranho. Sou uma fonte de informações sobre o interior da Inglaterra. Sei o nome dos donos de cada propriedade, isso mesmo – e dos inquilinos também. Sei o número de tetrazes abatidos, de perdizes e de cervos. Sei onde se concentram as trutas e onde ocor-rem os saltos dos salmões. Participo de todas as reuniões, acompanho todas as corridas. Sei até o nome de quem leva os filhotes dos cães de caça para passear. Como andam as colheitas, o preço do boi gordo, as estranhas doenças dos suínos, eu aprecio todas essas coisas. Um pas-satempo de menor importância, talvez, e não muito intelectual, mas respiro o ar da Inglaterra enquanto leio e consigo enfrentar esse céu resplandecente com mais coragem.

Os vinhedos atrofiados e as pedras fragmentadas não significam nada para mim, pois se eu quiser posso dar asas à imaginação e colher deda-leiras e hibiscos de uma viçosa cerca viva.

Pobres caprichos da imaginação, suaves e gentis. Eles são inimigos da amargura e do arrependimento e adoçam este exílio a que nós mes-mos nos impomos.

Por causa deles, posso desfrutar minha tarde e voltar sorrindo e re-confortada para enfrentar o pequeno ritual da hora do chá. A ordem nun-ca varia. Duas fatias de pão com manteiga para cada um e chá chinês. Um casal conservador, devíamos parecer, presos a costumes, só porque os mantínhamos na Inglaterra. Aqui, nesta sacada limpa, branca e im-pessoal, com séculos de sol, penso em Manderley às quatro e meia e na

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mesa posta diante da lareira da biblioteca. A porta se abria, com uma pontualidade primorosa, e a invariável cerimônia de servir o chá, a ban-deja de prata, a chaleira, a toalha de um branco imaculado. Enquanto Jasper, as orelhas caídas dos spaniels, fingia indiferença à chegada dos bolos. Aquele banquete nos era sempre servido, e, no entanto, comía-mos tão pouco.

Os bolinhos amanteigados, vejo-os agora. Torradas crocantes em for-mato triangular e biscoitos recém-saídos do forno. Sanduíches de natu-reza desconhecida, misteriosamente condimentados e bastante saboro-sos, e o bolo, muito especial, de gengibre. O bolo de claras que derretia na boca, e seu companheiro mais pesado, repleto de cascas e passas. Havia ali comida bastante para alimentar uma família faminta por uma semana. Nunca soube o que era feito do que sobrava, e o desperdício às vezes me preocupava.

No entanto, jamais me atrevi a perguntar à senhora Danvers o que ela fazia com tudo aquilo. Ela teria olhado para mim com desprezo, dan-do aquele seu sorriso gelado e superior, e posso imaginá-la dizendo: “Não havia reclamações quando a senhora de Winter estava viva.” A senhora Danvers. Fico tentando imaginar o que ela estará fazendo agora. Ela e Favell. Acho que foi a expressão em seu rosto que me causou a primei-ra inquietação. Instintivamente pensei: “Ela está me comparando a Re-becca”; e incisiva como uma espada, uma sombra se formou entre nós...

Bom, está tudo acabado agora, encerrado para sempre. Não me ator-mento mais, e nós dois estamos livres. Até o meu fiel Jasper já partiu para os campos dourados, e Manderley não existe mais. Tornou-se uma concha vazia em meio ao emaranhado das densas árvores, assim como a vi em meu sonho. Um aglomerado de ervas daninhas e uma colônia de pássaros. Quem sabe, às vezes, um andarilho perambule por ali, em busca de abrigo a uma chuva repentina, e, se for destemido, poderá pas-sar por lá impune. No entanto, se for um indivíduo hesitante ou um ca-çador marginal – os bosques de Manderley não são para tais tipos. Caso o andarilho encontre a casinha na enseada, não se sentiria bem sob o teto caído; a chuva fina soaria como as batidas de um tamborim. Talvez ainda exista ali uma atmosfera de tensão... Aquele canto no caminho de

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chegada, também, onde as árvores avançam pelo chão de pedras, não é um lugar para se descansar, não depois que o sol se põe. Quando as fo-lhas se mexem, soam como o movimento furtivo de uma mulher de ves-tido longo, e quando de repente se agitam, e caem, e se espalham pelo chão, podem ser ruídos de passos, dos passos apressados de uma mu-lher, e as marcas no cascalho, a impressão de sapatos altos de cetim.

É quando recordo essas coisas que, com alívio, volto minha aten-ção para a vista de nossa sacada. Nenhuma sombra encobre a clarida-de intensa, os áridos vinhedos brilham sob a luz do sol, e a buganvília está esbranquiçada de poeira. Algum dia poderei olhar para esse cená-rio com afeição. No momento, ele me inspira, se não amor, pelo me-nos confiança. E confiança é uma qualidade que prezo, embora tenha surgido um pouco tarde. Suponho que o fato de ele depender de mim tenha, enfim, me tornado corajosa. Seja como for, perdi minhas reser-vas, superei a insegurança, a timidez diante de estranhos. Sou muito diferente daquela que chegou a Manderley de carro pela primeira vez, cheia de esperança e ansiedade, prejudicada por um terrível acanha-mento e com um desejo intenso de agradar. Foi minha falta de elegân-cia, é claro, que causou uma má impressão em pessoas como a senho-ra Danvers. O que achariam de mim depois de Rebecca? Vejo-me agora, as lembranças estendendo-se pelos anos como uma ponte, de cabelos lisos curtos e rosto jovem sem maquiagem, com um terninho mal-ajustado, e um suéter de minha própria criação, seguindo a senho-ra Van Hopper como um potro tímido e irrequieto. Ela caminhava à minha frente para o almoço, seu corpo baixo mal equilibrado sobre os saltos altos vacilantes, a blusa enfeitada, de babados, realçando os seios fartos e os quadris balouçantes, seu chapéu novo com uma imensa plu-ma enviesado na cabeça, expondo uma fronte larga, nua como o joe-lho de um colegial. Numa das mãos levava uma bolsa gigantesca, do tipo que contém passaportes, cadernos de anotações e as somas do jogo de bridge, na outra, os inevitáveis óculos de cabo longo, inimigos da privacidade das outras pessoas.

Ela seguia em direção a sua mesa habitual num dos cantos do res-taurante, próxima à janela, levava os óculos a seus olhos miúdos, super-

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visionando a cena ao seu redor, depois deixava-os cair sobre o tórax, pre-sos por uma fita preta, e exclamava enfastiada:

— Nenhuma personalidade importante, vou dizer ao gerente que me ofereça um abatimento em minha conta. O que eles pensam que vim fazer aqui? Olhar para os serviçais? — E chamava o garçom, sua voz rís-pida, em staccato, cortando o ar como uma serra.

Como é diferente o pequeno restaurante no qual estamos hoje dos enormes salões, decorados e suntuosos, do Hôtel Côte D’Azur em Monte Carlo; e como é diferente o meu atual companheiro, suas mãos firmes e bem torneadas descascando uma tangerina de forma discreta e metó-dica, e que de vez em quando ergue a vista de sua tarefa e sorri para mim, se comparado à senhora Van Hopper, dedos gordos, cobertos de joias, pedindo um prato de ravióli, os olhos indo da sua refeição à mi-nha por medo de eu ter feito uma melhor escolha. Ela não precisava ter se preocupado, pois o garçom, com a extraordinária rapidez de sua clas-se, logo percebera minha posição de inferioridade e subserviência e ser-vira-me um prato de presunto e língua que alguém devolvera ao bufê de frios meia hora antes por estar mal fatiado. Estranho aquele ressenti-mento dos serviçais, e sua óbvia impaciência. Recordo-me de ter me hospedado com a senhora Van Hopper numa casa de campo e de a em-pregada nunca atender ao meu tímido toque da sineta, nem me levar os sapatos, e de largar o chá da manhã, gelado, à porta do quarto. Acontecia o mesmo no Côte d’Azur, embora em menor grau, e, às vezes, a estuda-da indiferença se transformava numa familiaridade maliciosa e ofensi-va, que fazia da compra de selos na recepção uma provação que eu pro-curava evitar. Como devo ter parecido jovem e inexperiente, e como me sentia assim também. Eu era muito sensível, muito ingênua, e havia tan-tas palavras contundentes, tantas alfinetadas, que na verdade se esvae-ciam no ar.

Lembro-me bem daquele prato de presunto e língua. Estava seco, sem sabor, cortado em nacos, mas não tive coragem de recusar. Come-mos em silêncio, pois a senhora Van Hopper gostava de se concentrar na comida, e eu via, pela forma como o molho lhe escorria pelo queixo, que ela se deleitava com aquele prato de ravióli.

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Não era uma visão que despertasse o apetite pelo prato frio que me fora servido, e, quando desviei o olhar, notei que a mesa ao lado, vazia por três dias, voltaria a ser ocupada. O maître d’hôtel, com a mesura re-servada aos clientes especiais, conduzia o recém-chegado a seu lugar.

A senhora Van Hopper pôs de lado o garfo, e pegou seus óculos. En-vergonhei-me por ela, ao vê-la fitar o novo cliente que, alheio à sua curio-sidade, examinava o cardápio. Então, com um estalido, a senhora Van Hopper dobrou a armação de seus óculos e inclinou-se por sobre a mesa em minha direção, seus olhos pequenos brilhando de empolgação, sua voz num tom um pouco alto demais.

— É Max de Winter — disse ela —, o proprietário de Manderley. Certamente já ouviu falar dele. Parece doente, não é? Dizem que não consegue superar a morte da esposa...