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Filipa Maria de Paula-Coelho Caldeira Canavarro de Morais Gouvêa de Almeida RECIPROCIDADE E TROCA MERCANTIL: CONTRIBUTO PARA UMA ANÁLISE INSTITUCIONAL DO MICROCRÉDITO Tese no âmbito do Doutoramento em Governação, Conhecimento e Inovação orientada pelo Professor Doutor José Reis e apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra Janeiro de 2019

RECIPROCIDADE E TROCA MERCANTIL - Estudo Geral · custos de transação e riscos associados, e que agora se apercebem que este é um nicho de mercado, não só potencialmente rentável

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  • Filipa Maria de Paula-Coelho Caldeira Canavarro de Morais Gouvêa de Almeida

    RECIPROCIDADE E TROCA MERCANTIL:

    CONTRIBUTO PARA UMA ANÁLISE INSTITUCIONAL DO MICROCRÉDITO

    Tese no âmbito do Doutoramento em Governação, Conhecimento e Inovação orientada pelo

    Professor Doutor José Reis e apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

    Janeiro de 2019

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    Filipa Maria de Paula-Coelho Caldeira Canavarro de Morais Gouvêa de Almeida

    Reciprocidade e Troca Mercantil: Contributo para uma análise institucional do Microcrédito

    Tese de Doutoramento em Governação, Conhecimento e Inovação

    apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

    para a obtenção de grau de Doutor

    Orientador: Prof. Doutor José Reis

    Coimbra, Janeiro/2019

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    RESUMO

    O microcrédito na sua versão informal tem uma história de séculos, sobretudo nos países menos

    desenvolvidos onde, até hoje, constitui uma das poucas oportunidades de as populações mais pobres

    poderem aumentar os seus rendimentos. Foi sobretudo na sua versão formal popularizada por M. Yunus

    a partir dos anos 70 do séc. XX que o microcrédito ganhou maior visibilidade porque as instituições não-

    lucrativas de microfinança conseguiram encontrar maneiras inovadoras de abordar o problema da

    pobreza e exclusão. Entre elas está a concessão de microcrédito com vista ao desenvolvimento de

    iniciativas económicas sustentáveis que permitissem ao mutuário criar o seu próprio emprego e melhorar

    as condições de vida do seu agregado. Os sucessos desta abordagem da pobreza e marginalização social

    por estas instituições de microfinança passam, por um lado, por terem como vocação social procurar

    melhorar a situação económica das populações mais vulneráveis e, por outro, por o fazer através da

    inclusão destas na economia. Procurando viabilizar iniciativas empresariais, as instituições que concedem

    microcrédito desenvolveram práticas de acompanhamento e apoio aos mutuários e aos seus negócios,

    para além do seu financiamento. Isso traduziu-se em elevadas taxas de cumprimento, o que constitui um

    indicador da sustentabilidade destas iniciativas. A verificação de que é possível emprestar aos pobres de

    forma sustentável - graças aos mecanismos que as instituições de microcrédito desenvolveram para

    selecionar candidaturas, definir modalidades de reembolso, incentivar o seu cumprimento e a boa

    aplicação dos montantes concedidos – chamou a atenção dos Estados para uma forma alternativa de lidar

    com os problemas de pobreza, desemprego e marginalização social numa perspectiva mais sustentável e

    menos assistencialista. Chamou também a atenção do sector privado, que outrora tinha um reduzido

    interesse em conceder pequenos montantes de crédito a clientes pobres sem garantias face aos elevados

    custos de transação e riscos associados, e que agora se apercebem que este é um nicho de mercado, não

    só potencialmente rentável como de uma enorme dimensão, dados os milhões de indivíduos que ainda

    hoje, a nível mundial, não têm acesso a serviços financeiros formais.

    Mas o microcrédito, enquanto fenómeno social e objeto de estudo, está emerso em controvérsia.

    No que respeita ao papel do Estado, muitos consideram que afetar fundos públicos para o microcrédito é

    subsidiar iniciativas que, pela sua reduzida dimensão, terão poucas oportunidades de chegar a um nível

    de eficiência que lhes permita vingar num mercado competitivo, desviando os apoios públicos de outras

    iniciativas de desenvolvimento social ou do apoio às PME que também enfrentam problemas de

    financiamento. O sector privado, por sua vez, está cada vez mais presente no sector na forma de

    instituições de microfinança de estatuto lucrativo ou linhas/programas de microcrédito de bancos ou

    instituições financeiras comerciais convencionais. Mas discute-se a crescente especulação, concorrência,

    e assunção de outros riscos com maior probabilidade rendibilidade, favorecendo os interesses dos

    investidores em detrimento dos clientes pobres. E isso foi alvo de grandes críticas, sobretudo aquando

    das crises de sobre-endividamento e das consequências económicas e sociais daí resultantes. Ao mesmo

    tempo, aproveitou-se para questionar a vocação original do microcrédito de libertar os mais

    desfavorecidos de situações e dependência, pobreza e exploração.

    É nosso entendimento que o microcrédito tem virtudes e defeitos e que não existe uma resposta

    única à questão: qual o efetivo impacto do microcrédito? E também dificilmente haverá um modelo único

    de microcrédito virtuoso, aplicável a todos contextos geográficos, sociais, legais, económicos ou

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    institucionais. O que retemos da análise do microcrédito é que, como outros fenómenos que facilmente

    se classificam de natureza económica ou financeira, o microcrédito é antes de tudo um fenómeno social,

    afetado nas diversas modalidades, nas suas forças e fraquezas e nos seus impactos pelas características

    do contexto social mais amplo em que se insere.

    A Economia clássica, mas também a teoria social, centraram excessivamente a análise da sociedade

    a partir do mercado desde a industrialização e o surgimento da economia capitalista do século XIX. Como

    sustenta Polanyi (2012 [1944]), em vez de se perceber as relações económicas no seu contexto social,

    tomou-se o mercado como principal mecanismo de regulação da vida social.

    Em nosso entender existem hoje, como no passado, formas de organização económica a que as

    categorias de agente racional ou maximização do lucro não se aplicam. Há uma pluralidade de formas de

    atividade económica que escapam às categorias (neo)clássicas, e não se resumem ao que muitos definem

    como economias comunitárias de tipo pré-industrial, o que em si é já uma definição redutora das mesmas.

    Assim, fomos procurar, não só em perspetivas económicas não-ortodoxas, especialmente as correntes

    institucionalistas, como na nova Sociologia Económica, mas também na Antropologia, na Biologia e na

    Psicologia evolutivas, sustentação para pensar os fenómenos económicos de uma forma mais pluralista e

    abrangente, na diversidade e complexidade que eles se manifestam na prática. A contextualização social

    deste fenómeno levou-nos a considerar os contributos do Institucionalismo Económico, da Sociologia

    Económica, da Antropologia e das perspetivas evolucionistas que nos esclarecem, não só como explicar

    comportamentos de reciprocidade e cooperação na esfera económica, como a diversidade de

    representações e práticas que constituem as diferentes formas de organização da economia enquanto

    esfera da vida social, bem como a forma como as instituições evoluem. Estas perspetivas orientaram o

    enquadramento teórico deste trabalho e permitiram a discussão dos dados aqui analisados respeitantes

    ao desempenho, sustentabilidade e impacto das diferentes tipologias institucionais envolvidas no

    microcrédito.Tal levou-nos a considerar questionáveis os pressupostos da visão mainstream do que é o

    homem enquanto agente económico e de como a vida económica se organiza confinada ao mercado;

    consideramos que, como sustentam vários autores, não existem razões para tomar o homem apenas

    como sujeito racional, calculista e maximizador do seu benefício no mercado ou que este último tenha a

    capacidade de se autorregular e tender sempre para o equilíbrio. As crises financeiras que se tornam

    económicas e sociais e atingem dimensões globais revelam as limitações do mecanismo de mercado na

    afetação de recursos escassos à satisfação das necessidades dos indivíduos. E existe base teórica para

    sustentar que a vida económica não é necessariamente um contexto de competição feroz por recursos

    escassos e que o homem tem uma propensão para a partilha e cooperação. Essa capacidade de cooperar

    este por trás tanto do sucesso evolutivo de coletividades humanas como de não-humanas, pelo que

    rejeitamos a ideia de um homo-economicus calculista e hedonista e caracterizamos formas de organização

    económica em que noções como ação solidária, bem comum, confiança, altruísmo, coresponsabilidade e

    reciprocidade são aspetos sociais, institucionais e, portanto, normativos a que as relações económicas

    estão submetidas.

    Não encontramos estes laços de altruísmo e reciprocidade apenas nas comunidades rurais

    tradicionais, mas em outros tipos de iniciativa económica local em que se destaca a capacidade da

    sociedade civil ultrapassar falhas de Estado e de mercado e se organizar, não face ideologias políticas ou

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    imperativos de rendibilidade, mas em vista dos interesses dos membros do que chamamos comunidade,

    no sentido relacional do termo.

    É aqui que julgamos residir a virtude do microcrédito formal original. Vêmo-lo enquanto iniciativas

    que, antes de tudo, têm uma missão social de beneficiar os mutuários abrangidos e contribuir para o

    desenvolvimento local. Os protagonistas são instituições do terceiro sector ou inseridas em intervenções

    mais holísticas visando a melhoria da situação global das populações mais desfavorecidas, atendendo às

    várias dimensões da pobreza e exclusão social. Assume-se que há um conjunto de diferentes necessidades

    a que importa dar resposta em cada contexto específico. As iniciativas de microcrédito sustentáveis no

    plano económico e social terão que ser eficientes no plano financeiro, para atrair o investimento do sector

    privado que lhes permita aumentar a escala das suas operações para responder ao propósito social de

    servir aqueles que ainda não têm acesso a crédito e se encontram em situações de precaridade ou

    exploração; poderão também necessitar do apoio e supervisão por parte de instituições políticas

    nacionais e internacionais que lhes reconheçam o mérito de encontrar uma forma viável de combater a

    pobreza. Porém, a nosso ver, para além de Estado e mercado, e de relações de redistribuição ou troca

    mercantil, deveremos vê-las como relações de reciprocidade ou iniciativas de cariz solidário e natureza

    local, em que a qualidade das relações que se estabelece entre membros de grupos de empréstimo e

    entre mutuários e intermediários ou instituições de microfinança pode fazer a diferença entre o sucesso

    e o fracasso das iniciativas de microcrédito. Por último, procurar perceber todos os fatores que

    contribuem para o sucesso ou fracasso do microcrédito para credores e mutuários leva-nos a não

    esquecer que existe uma variedade de atores que intervêm no microcrédito, com missões institucionais

    e, consequentemente, atuações distintas que explicam a variedade dos resultados da concessão de

    microcrédito.

    Não existirá, senão na sua definição formal, um microcrédito, mas várias formas de microcrédito

    em contextos políticos, demográficos, económicos e geográficos distintos. Porque é do carácter das

    relações sociais que se estabelecem, de representações sociais e aspetos normativos que condicionam a

    ação no plano do microcrédito que se trata, entendemos que perceber as diferentes lógicas que animam

    os autores envolvidos - sobretudo olhando ao papel de Estado, mercado e terceiro sector, e as

    consequências das suas ações - implica a nosso ver, não só o enquadramento social do microcrédito, mas

    a sua análise institucional que nos propusemos realizar neste trabalho. É em função disto que o problema

    de investigação que nos acompanhará ao longo desta tese se pode formular do seguinte modo: em que

    medida o contexto institucional explica a variedade de lógicas e formas de atuação dos agentes

    intervenientes no microcrédito, o seu desempenho e os impactos daí resultantes para os mutuários.

    Palavras-chave:

    Microcrédito; institucionalismo; incrustação social da atividade económica; reciprocidade; Estado,

    mercado e terceiro sector

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    ABSTRACT

    Microcredit in its informal version has a history of centuries, especially in less developed countries

    where, to date, it is one of the few opportunities for the poor to increase their incomes. It was mainly in

    its formal version popularized by M. Yunus from the 1970s onwards. XX that microcredit gained greater

    visibility as microfinance institutions were able to find innovative ways to address the problem of poverty

    and exclusion. Among them is the granting of microcredit intending to develop sustainable economic

    initiatives that allow the borrower to create his own job and improve the living conditions of his

    household. The successes of this approach to poverty and social marginalization by these microfinance

    institutions are, on the one hand, having as social vocation to seek to improve the economic situation of

    the most vulnerable populations and, on the other, to do so by including them in the economy. In order

    to make business initiatives viable, microfinance institutions have developed follow-up and support

    practices for borrowers and their businesses, in addition to their financing. That has resulted in high

    compliance rates, which is an indicator of the sustainability of these initiatives. The fact that the poor are

    able to make a profit for themselves - thanks to the mechanisms that microcredit institutions have

    developed for the selection of applications, to set up reimbursement modalities, to encourage compliance

    with them and to ensure the proper application of the amounts granted - has drawn the attention of

    States for an alternative way of dealing with the problems of poverty, unemployment and social

    marginalization in a more sustainable and less assistentialist perspective. It also drew the attention of the

    private sector, which once had little interest in granting small amounts of credit to poor clients without

    guarantees given the high transaction costs and associated risks, and now realize that this is a niche

    market not only potentially profitable but of enormous size given the millions of individuals who still today

    do not have access to formal financial services worldwide.

    But microcredit, as a social phenomenon and object of study, is emerging in controversy.

    Concerning the role of the State, many consider that to allocate public funds to microcredit is to subsidize

    initiatives that, because of their small size, will have little opportunity to reach a level of efficiency that

    will avenge them in a competitive market, diverting public support from other social development

    initiatives or support to SMEs which also face funding problems. The private sector, in its turn, is

    increasingly present in the sector in the form of profitable microfinance institutions or microcredit lines /

    programs of conventional commercial banks or financial institutions. But it is discussed the growing

    speculation, competition and the option for other risk taking with greater probability of increased

    profitability, favoring the interests of investors to the detriment of poor customers. And that was

    criticized, especially in the wake of the crises of over-indebtedness and the resulting economic and social

    consequences. At the same time advantage was taken to challenge the original vocation of microcredit to

    free disadvantaged situations and dependence, poverty and exploitation.

    It is our understanding that microcredit has virtues and defects and that there is no single answer

    to the question: what is the real impact of microcredit? And there is hardly a single model of virtuous

    microcredit, applicable to all geographic, social, legal, economic or institutional contexts. What we retain

    from the analysis of microcredit is that, like other phenomena that are easily classified as economic or

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    financial, microcredit is first and foremost a social phenomenon, affected in its various forms, its strengths

    and weaknesses and its impacts by the characteristics of the social context in which it is inserted.

    Classical Economics, but also social theory, have over-centered the analysis of society in the market

    since the industrialization and the emergence of the capitalist economy of the nineteenth century. As

    Polanyi (2012 [1944]) maintains, instead of perceiving economic relations in their social context, the

    market was taken as the main mechanism of regulation of social life.

    In our view there are today, as in the past, forms of economic organization to which the categories

    of rational agent or maximization of profit do not apply. There is a plurality of forms of economic activity

    that escape the (neo) classic categories and that are not limited to what many define as pre-industrial

    community economies, which in itself is already a reductive definition of them. Thus, we have sought not

    only in non-orthodox economic perspectives, especially institutionalist currents, but also in the new

    Economic Sociology, evolutionary Anthropology, Biology and Psychology, support for thinking about

    economic phenomena in a more pluralistic and comprehensive way, in diversity complexity they manifest

    in practice. This has led us to consider the presuppositions of the mainstream view of man as an economic

    agent and of how economic life is organized confined to the market; we consider that, as several authors

    maintain, there are no reasons to take man only as a rational, calculating and maximizing subject of his

    benefit in the market or that the latter has the ability to regulate and always tend to balance. Financial

    crises that become economic and social and reach global dimensions reveal the limitations of the market

    mechanism in the allocation of scarce resources to the satisfaction of the needs of individuals. And there

    is a theoretical basis for sustaining that economic life is not necessarily a context of fierce competition for

    scarce resources and that man has a penchant for sharing and cooperation. This ability to cooperate is

    behind the evolutionary success both of human as non-human collectivities, so we reject the idea of a

    calculating and hedonistic homo-economicus and characterize forms of economic organization in which

    notions such as solidarity, common good, trust, altruism, co-responsibility and reciprocity are social,

    institutional, and therefore normative aspects to which economic relations are subject.

    We do not find these ties of altruism and reciprocity only in traditional rural communities, but in

    other types of local economic initiative in which civil society's ability to overcome state and market failures

    and organize, not against political ideologies or imperatives of profitability, but in view of the interests of

    the members of what we call community, in the relational sense of the term.

    It is here that we believe that the virtue of the original formal microcredit resides. We regard it as

    initiatives that, first and foremost, have as social mission to benef the borrowers involved and contribut

    to local development. The protagonists are third sector institutions or institutions within more holistic

    interventions aimed at improving the overall situation of the most disadvantaged populations, taking into

    account the various dimensions of poverty and social exclusion. It is assumed that there is a set of different

    needs that need to be addressed in each specific context. Socially and economically sustainable

    microcredit initiatives must be financially efficient to attract private sector investment that allows them

    to scale up their operations to meet the social purpose of serving those who do not yet have access to

    and are in precarious or exploitative situations; they may also need the support and supervision of

    national and international political institutions that recognize the merits of finding a viable way to fight

    poverty. However, in our view, in addition to state and market, and relations of redistribution or

    mercantile exchange, we should see them as relations of reciprocity or initiatives of solidarity and local

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    nature, in which the quality of relations established between members lending groups and between

    borrowers and intermediaries or microfinance institutions can make a difference between the success

    and failure of microcredit initiatives. Finally, seeking to understand all the factors that contribute to the

    success or failure of microcredit for creditors and borrowers leads us not to forget that there are a variety

    of actors involved in microcredit, with institutional missions and, consequently, distinct actions that

    explain the variety of the results of the microcredit concession.

    There will be, in its formal definition, only microcredit, but various forms of microcredit in distinct

    political, demographic, economic and geographical contexts. Because it is the character of the social

    relations that are established, of social representations and normative aspects that condition the action

    in the microcredit that is treated, we understand that to perceive the different logics that animate the

    authors involved - mainly looking at the role of State, market and third sector, and the consequences of

    its actions - implies in our view, not only the social framework of microcredit, but its institutional analysis

    that we propose to carry out in this work. It is because of this that the research problem that accompanies

    us throughout this thesis can be formulated as follows: to what extent the institutional context explains

    the variety of logics and forms of action of the agents involved in microcredit, their performance and the

    resulting impact to borrowers.

    Key words:

    Microcredit; institutionalism; social embeddedness of economic activity; reciprocity; State, market

    and third sector.

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    ÍNDICE

    Capítulo 1

    O microcrédito como fenómeno social

    1. Introdução ………………………………………………………………………………………………………………………………..…………. 1

    2. Relevância, finalidade e desenvolvimento do Microcrédito………………………………………………..…………………. 2

    3. O Microcrédito, a microfinança e os problemas que suscitam………………………………………………………………. 7

    4. Acesso e impactos do Microcrédito……………………………………………………………………………………………………. 14

    5. O microcrédito na Europa……………………………………………………………………………………………………................. 20

    6. Empréstimos de grupo e mecanismos alternativos de Microcrédito………………………………..………............ 24

    7. Relevância e as limitações do Microcrédito na atualidade………………………………………………………………..… 34

    Conclusão………………………………………………………………………………..…………………………………………………………… 42

    Capítulo 2

    O microcrédito enquanto objeto de estudo

    1. Introdução: a controvérsia atual suscitada pelo microcrédito………………………………………………..…………… 45

    2. Estado, mercado, terceiro setor e a sustentabilidade do Microcrédito…………………………………………..……. 48

    3. Sustentabilidade, taxas de juro, sobre-endividamento e liberalização do microcrédito………………………. 53

    4. Sobre-endividamento e crises da microfinança: análise da evolução recente do microcrédito…............. 58

    5. Discussão crítica: privatização versus papel social do microcrédito……………………………………..…….………... 63

    6. Questões metodológicas na avaliação dos resultados do Microcrédito.…………………………………………….… 70

    7. Pobreza, exclusão e o significado social do Microcrédito na atualidade…………………………………………..…... 74

    8. Limitações dos estudos de impacto: importância da contextualização social na avaliação dos resultados do Microcrédito…………………………….………………………………………………………………………………......... 83

    Conclusão…………………………………………………………………………………………………………………………………………….. 93

    Capítulo 3

    Teoria social, desenvolvimento e instituições: Contributos da análise sociológica e económica para a contextualização do microcrédito

    1. Introdução: Sociedade, Economia e Instituições……………………………………………………………………..…….…….. 97

    2. Contextualização social da organização económica: diversidade de atores e articulações institucionais…………………………………………………….……………………………. 99

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    3. Teoria social e desenvolvimento…………………………………………………………………………………………..……………. 110

    4. Comunidade, Sociedade e a dimensão relacional e institucional do Microcrédito................................. 118

    5. Microcrédito, comunidade local e modelos de desenvolvimento……………………….……………………………… 123

    6. Instituições e pluralidade de formas de organização económica………………………………………………………... 133

    7. Contributo do Institucionalismo para a compreensão das formas organizacionais, do lugar do mercado e das relações sociedade/mercado……………………………………………………………………….………………… 148

    8. Instituições, governação da economia e custos de transação………………………….…………………………………. 163

    Conclusão…………………………………………………………………………………………………………………………………………... 169

    Capítulo 4 A noção de Homo-economicus, o altruísmo recíproco e as relações económicas

    1.Introdução: cooperação, reciprocidade e limitações da economia ortodoxa para a análise do microcrédito………………………………………………………………………….......…………………………………………………....…. 171

    2. Homo-economicus e homo-reciprocans…………………………………………………………………………………………….. 175

    3. A explicação biológica do comportamento social: seleção natural e altruísmo………………………………….… 183

    4. O conceito de altruísmo recíproco……………………………………………………………………………………………………… 188

    5. O Dilema do Prisioneiro, as Estratégias Evolutivamente Estáveis e a explicação da cooperação………… 192

    6. As perspetivas biológicas e sociais da cooperação e sua aplicabilidade à compreensão das

    relações económicas…………………………………………………………………………………………………………………………… 204

    7. Seleção natural e evolução cultural……………………………………………………………………………………………….…… 211

    8. Aprendizagem social, instituições e altruísmo na punição………………………………………………………………….. 222

    Conclusão…………………………………………………………………………………………………………………………………………… 229

    Capítulo 5 Teorias sociais e Institucionalismo: Enquadramento teórico para a análise do Microcrédito

    1. Introdução: Importância do enquadramento social e institucional da realidade económica……………... 235

    2. O conceito de «embeddedness» e a contextualização social da organização económica……………………. 244

    3. Reciprocidade, troca e redistribuição de Polanyi e Triângulo de Evers……………………………………………….. 253

    4. Análise institucional, particularidades e articulações do terceiro sector…………………………………………..… 267

    5. Dinâmica social e variação institucional……………………………………………………………………………………………… 281

    6. Diálogo entre a Nova Sociologia Económica e o Institucionalismo Económico…………………………………... 288

    Conclusão…………………………………………………………………………………………………………………………………………… 310

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    Capítulo 6

    Microcrédito e Instituições

    1. Introdução: Estado, mercado e terceiro sector no Microcrédito………………………………………………………… 313

    2. Méritos, problemas e desafios atuais das instituições de microcrédito……………………………….……………… 397

    3. A pertinência de uma abordagem institucionalista do microcrédito…………………………………………………… 423

    4. Da transformação da sociedade pela economia de mercado ao enquadramento social dos fenómenos económicos……………………………………………………………………………………………………………………… 425

    5. Evolução, configurações institucionais, tipologias de microcrédito e seus resultados………………………... 443

    6. Diversidade de organização económica e necessidade de uma análise institucionalista para a compreensão da evolução do microcrédito………………………………………………………………………………………... 449

    7. O microcrédito como forma de governação institucional e a variação contextual……………………………... 460

    Conclusão…………………………………………………………………………………………………………………………………………… 467

    Capítulo 7

    Evolução institucional do Microcrédito no mundo: Análise Empírica

    1. Introdução: Microcrédito, reciprocidade, concorrência mercantil e impacto social………………………….… 471

    2. Metodologia…………………………………………………………………………………………....……………..………………………… 474

    3. Análise de Conteúdo de 14 estudos do Microcrédito e da discussão dos seus resultados…………………… 477

    4. Proposta para a conceptualização dos condicionantes dos resultados de diferentes tipologias

    de instituição/modalidades de microcrédito……..…….……………………………………………………………………………. 490

    5. Comparação de tipologias de Instituições de Microcrédito……………………………………………….…………………505

    6. Discussão de Resultados……………………………………………………………………………………………….………………….. 530

    7. Conclusões………………………………………………………………………………………………………………………………...……… 535

    Considerações Finais: A relação Estado-sociedade-mercado e o que a análise institucional do microcrédito nos ensina……….. 539 Referências……………………………………………………………………………………………………………………………………….…. 543

    Anexo 1 …………………………………………………………………………………………………………………………………………..…… 569

    Anexo 2 …………………………………………………………………………………………………………………………………………....… 570

    Anexo 3 ……………………………………………………………………………………………………………………………………………….. 613

    Anexo 4 ……………………………………………………………………………………………………………………………………………….. 615

  • xvi

    ÍNDICE DE FIGURAS

    Fig. 1 - Percentagens de agregados com acesso a serviços bancários, aferido pela posse de uma conta de depósitos numa instituição financeira formal, em 2009……………….………………………………………………..….. 3

    Fig. 2 - Distribuição geográfica de contas bancárias em 2014…………………………………………………………………….... 4 Fig. 3 – Fontes de novos empréstimos formais e informais por regiões geográficas…………………………………..… 4 Fig. 4 – Distribuição geográfica do acesso a crédito formal em 2014……………………………………………………………. 5 Fig. 5 – Cobertura geográfica por fornecedores de serviços financeiros………………………………………………………. 6 Fig. 6 - Cobertura pelas MFI………………………………………………………………………………………………………..……………….. 6 Fig. 7 - Retrato do sector de acordo com o Microfinance Barometer: Portfólio de empréstimos e número de mutuários em 2014……………………………………………………………………………………………………………….................. 14 Fig.8 - Percentagem de adultos com conta bancária e contas móveis (mobile accounts) em 2014……………... 18 Fig. 9 - Canais de distribuição alternativos da microfinança………………………………………………………………………... 18 Fig. 10 - Penetração do mobile banking por país de acordo com o Mobile Banking Overview 2015………….... 19 Fig. 11 – Impacto da migração para canais móveis nos custos de transação dos bancos…………………………….. 19 Fig. 12 - Agências de bancos comerciais por 100000 adultos em 2015……………………………………………………..… 23 Fig. 13 – Fontes de financiamento por tipo/estatuto legal de FSP……………………………………………….……………. 64 Fig.14 - Razões para a candidatura dos indivíduos analisados a um empréstimo (Spandana)…………………..… 67 Fig. 15 - Teoria da Mudança do Microcrédito……………………………………………………………………………………………… 75 Fig. 16 – Teoria da Mudança dos Modelos de Graduação segundo Devereux e Wheeler (2015)………….……… 77 Fig. 17 – Impacto do microcrédito nos 6 RCTs conduzidos por Banerjee, Karlan e Zinman (2015)………………. 90 Fig. 18 - Variação do Impacto do Microcrédito em seis países segundo Sandefur (2015)……………………………. 91 Fig. - 19 Relação entre duas ordens de valores sociais e duas formas de dívida económica……………………... 116 Fig. 20 – Atributos dos principais modos de Governação segundo Williamson…………………………………………. 168 Fig. 21 - Dilema do Prisioneiro………………………………………………………………………………………………………………….. 173 Fig. 22 – Evolução dos atos de Altruísmo, Egoísmo e Spite por Kin Selection, segundo Wilson………………….. 187 Fig. 23 – Matriz do Dilema do prisioneiro de A. W. Tucker 1983 [1950]………………………………………………….… 192

  • xvii

    Fig. 24 - Ilustração da Evolutionary Game Theory no Jogo Falcão-Pombo……………………………………………….… 197 Fig. 25 - Classificação de comportamentos sociais (Ruhela e Sinha, 2010)…………………………………………….….. 217 Fig. 26 - Componentes do Triângulo de segurança e bem-estar sociais de Evers (1991)……………………………. 266 Fig. 27 - Relação entre o Triângulo de Evers e os Princípios de regulação de Polanyi segundo Almeida……. 271 Fig. 28 - Conceptualização do «lugar do terceiro sector» na Governação de Almeida (2010)…………………….. 271 Fig. 29 – Estrutura da economia plural de Roustang et al. (1997) in Evers e Laville (2004)………………………... 273 Fig. 30 - O welfare mix de Pestoff (1992) na adaptação de Evers e Laville ……………………………………………….. 274 Fig. 31 - A “civil and solidarity-based economy”………………………………………………………………………………………... 275 Fig. 32 - Os papéis das OTS segundo Neumayr e Meyer (2010)…………………………………………………………………. 321 Fig.33 - Tipologia de Fornecedores de Microfinança quanto ao grau de formalização……………………………… 329 Fig.34 – Classificação das MFIs segundo o seu grau de formalização…………………………………………………………. 331 Fig.35 - Vantagens e desvantagens dos principais tipos institucionais………………………………………………………. 335 Fig.36- Formalização, alcance, rendibilidade sustentabilidade das MFIs…………………………………………………... 337 Fig. 37 - Continuum de fornecedores de crédito – GDRC………………………………………………………………………….. 339 Fig. 38 - Características principais dos fornecedores de serviços financeiros institucionais segundo Ledgerwood (2013)………………………………………………………………………………………………….……………………………… 354 Fig. 39 - Tipologia dos principais tipos de Instituições que oferecem Microcrédito……………………………………. 368 Fig. 40 – Fontes de financiamento das MFIs……………………………………………………………………………………………… 370 Fig. 41 -Relação entre a missão e o estatuto de propriedade das MFI segundo Lapenu Pierret………………… 373 Fig. 42 - Relação entre forma institutional e governação segundo Lapenu e Pierret………………………………….. 374 Fig. 43 – Rácios de Desempenho das MFIs em 2013…………………………………………………………………………………. 389 Fig. 44 – Princípios e indicadores de Proteção do Cliente da Smart Campaign…………………………………………. 398 Fig. 45 - Social Performance Management ………………………………………………………………………………………………. 400 Fig. 46 - Disparidade entre objetivos declarados e registados pelas MFIs…………………………………………………..404 Fig. 47 – Abordagem ampla do sobre-endividamento de Morvant-Roux et al. (2014)………………………………. 419 Fig. 48 - Síntese dos estudos empíricos apresentada por Schicks e Rosenberg (2011)………………………………. 422

  • xviii

    Fig. 49 - The economic Iceberg (de Ken Byrne)………………………………………………………………………………………….. 427 Fig.50 - A «diverse economy framework» de Gibson-Graham…………………………………………………………………… 427 Fig. 51 - «A Diverse Economy» segundo Gibson-Graham…………………………………………………………………….….. 428 Fig. 52 – Esquema de análise da diversidade da realidade económica segundo Newbury………………………… 434 Fig. 53 – Distribuição mundial da origem de novos empréstimos formais, em 2014……………………………….… 440 Fig. 54 – Quadro síntese de resultados da análise estatística (testes de diferenças)…………………......…….…. 529

  • xix

    ÍNDICE DE GRÁFICOS

    Gráfico 1 – Mutuários por Tipo de Instituição (MFI)……………………………………………………………..………………… 511

    Gráfico 2 – % mutuários do sexo feminino por Tipo de Instituição (MFI)……………………………………..…………. 511

    Gráfico 3 – Empréstimos pendentes por Tipo de Instituição (MFI)………………………………………………………..… 512

    Gráfico 4 – Portfólio de empréstimos por Tipo de Instituição (MFI)………………………………………………………. 513

    Gráfico 5 – Relação portfólio de empréstimos/empréstimos pendentes por Tipo de Instituição (MFI)…… 514

    Gráfico 6 – Saldo médio de empréstimo e custo por mutuário segundo o tipo de Instituição (MFI).......... 514

    Gráfico 7 – Número de depositantes, depósitos e saldo médio por tipo de Instituição (MFI)………………… 515

    Gráfico 8 – Número de dependências, funcionários e empréstimos por tipo de Instituição (MFI)…………… 516

    Gráfico 9 – Rendibilidade por tipo de Instituição (MFI).……………………………………………………………………..….. 516

    Gráfico 10 – Custo por mutuário e mutuários por funcionários segundo o tipo de Instituição (MFI)……... 517

    Gráfico 11 – Portfólio de crédito em risco por tipo de Instituição (MFI)…………………………………………………. 518

    Gráfico 12 – Portfólio e cobertura de risco por tipo de Instituição (MFI)…………………………………………………. 518

    Gráfico 13 – Evolução do estatuto das Instituições de Microfinança…………………………………………..…………. 520

    Gráfico 14 – Evolução da Taxa de Retenção de Clientes…………………………………………………………………………. 521

    Gráfico 15 – Evolução do alcance (outreach) pelas MFIs………………………………………………………………………… 522

    Gráfico 16 – Evolução da sustentabilidade das MFIs..……………………………………………………………………………. 523

    Gráfico 17 – Sustentabilidade Operacional por Estatuto institucional……………………………………………………. 524

    Gráfico 18 – Alcance por Estatuto institucional………………………………………………………………………….………….. 525

  • 1

    Capítulo 1

    O microcrédito como fenómeno social

    1. Introdução

    O objeto de estudo do presente trabalho é o microcrédito nas diferentes formas que assume e nos

    resultados que lhes estão associados. O problema de investigação que aqui se coloca é saber em que medida

    o agente institucional que gere o microcrédito é, pelos seus distintos princípios e práticas, essencial para

    explicar os resultados alcançados e a posição em que ficam os mutuários. Consideramos que a compreensão

    do microcrédito conduz necessariamente à análise do papel de entidades do setor público, privado e terceiro

    setor que são analisadas na parte empírica desta investigação. Procurará chegar-se a uma conclusão sobre o

    significado das modalidades de microcrédito que garantem uma relação forte com os contextos de vida dos

    mutuários e que privilegiam a dimensão institucional desse relacionamento, distinguindo-se assim das que

    têm uma atitude puramente mercantil. A hipótese de partida é que o microcrédito assente nestas condições

    é mais robusto. Esta comparação inspira-se na distinção proposta por Polanyi (1944) entre redistribuição,

    troca mercantil e reciprocidade, que se opõe a uma análise de fenómenos económicos centrada apenas no

    mecanismo do mercado, do indivíduo como maximizador racional, egoísta e calculista e às categorias da

    Economia clássica em geral. A análise dos aspetos relacionais, normativos ou culturais do microcrédito é,

    igualmente, necessária para a sua compreensão

    No presente capítulo descreve-se o que é o microcrédito, as suas modalidades, a sua relevância, as suas

    potencialidades e os seus problemas.

    Microcrédito é a designação para um conjunto de práticas diversas que têm em comum facultar o acesso

    a pequenos montantes de crédito a indivíduos com baixos rendimentos, sem possibilidade de apresentar

    garantias e, consequentemente, sem acesso a serviços financeiros convencionais, com o propósito original

    de financiar uma iniciativa empresarial suscetível de melhorar as suas condições de vida. Levadas a cabo hoje

    por um conjunto de diversas entidades dos sectores público, privado e do terceiro sector, em diversos

    contextos um pouco por todo o mundo, tais práticas, na sua versão formal,1 têm a sua origem nos anos 70

    no Bangladesh, onde surgiram com o propósito de responder às necessidades das populações mais pobres.

    Estas populações, sujeitas a privações múltiplas como a falta de acesso a um emprego e a um rendimento

    regular, a serviços de financeiros não exploradores ou a apoios sociais do Estado para responder às

    necessidades económicas, de saúde, habitação ou educação dos agregados familiares, teriam no acesso a

    crédito a possibilidade de investir numa atividade económica e uma oportunidade de sair de uma situação

    de pobreza. As instituições de microcrédito são também diversas nos seus objetivos, designadamente missão

    social ou propósito lucrativo, sendo financiadas tanto por doações, como por subsídios e programas de

    governos nacionais e instituições políticas internacionais e por investidores privados.

    O propósito original do microcrédito formal era essencialmente social. Pretendia-se, através do acesso

    ao crédito, oferecer uma oportunidade de inclusão às populações em situações de pobreza e exclusão pelo

    que, como refere Yunus (2002), reconhecido como seu fundador, o microcrédito tem menos a ver com capital

    1 Na sua versão informal, como os grupos de crédito de aldeias, o microcrédito é muito mais antigo.

  • 2

    financeiro de que com capital humano. Relativamente a outras estratégias de desenvolvimento

    socioeconómico, o microcrédito representa uma abordagem bottom-up que reconhece as capacidades

    empreendedoras dos mais desfavorecidos e procura combater a pobreza removendo as barreiras à sua

    iniciativa económica.

    2. Relevância, finalidade e desenvolvimento do Microcrédito

    O microcrédito é originário de países menos desenvolvidos, inicialmente na Ásia e depois na África e na

    América Latina. Corresponde a situações em que é difícil ou impossível aceder a serviços financeiros de

    qualidade, que não sejam usurários ou sujeitem o mutuário a grande pressão social. Na sua versão formal

    estendeu-se, depois, com maior ou menor intensidade, ao resto do mundo, mantendo como propósito

    político o combate à exclusão financeira e, deste modo, o apoio à iniciativa económica, à promoção do

    emprego e à redução da pobreza no mundo. No entanto, o microcrédito informal tem vários séculos de

    história designadamente nos países menos desenvolvidos. A ideia de oferecer crédito barato aos mais pobres

    está já presente na proibição de juros pelo Islão e na instituição das lojas de penhores, assim como na

    tentativa da Igreja Católica de combater a usura, considerada um pecado. Pode considerar-se que no

    ocidente a origem do microcrédito remonta ao século XV. Contudo, é apenas no século XIX que surgem na

    Europa as instituições formais de crédito, sendo que o microcrédito tem ainda raízes no crédito agrícola e,

    em particular, no movimento das cooperativas financeiras especialmente vocacionadas para os pobres, que

    da Europa se espalhou para vários países (Helms, 2006; Banerjee, 2013).

    Calcula-se que atualmente o microcrédito esteja presente em cerca de 150 países e, segundo a

    Microcredit Summit de 2015, que existam no mundo mais de 3000 instituições de microfinança (ou Micro

    Finance Institutions - MFIs - na designação mais habitual2) que em 2013 reportaram ter atingido um número

    record de mais de 200 milhões de clientes (State of the Campaign Report, 2015). Na sua maioria, estes

    clientes são indivíduos que se podem considerar como os mais pobres do planeta, estimando-se que o

    microcrédito concedido ultrapasse os 60 000 milhões de dólares e tenha possibilitado aumentar o bem-estar

    de aproximadamente 500 milhões de pessoas (Microcredit Summit; MIX Market). A Mixmarket oferece uma

    ideia da evolução do microcrédito no mundo: se em 2004 a plataforma registou um total de 30 milhões de

    beneficiários de empréstimos no mundo servidos por 675 instituições, passada uma década registou dados

    de 1064 instituições que forneceram crédito a mais de 112 milhões de clientes. A relevância deste fenómeno

    não se prende apenas com os montantes de crédito concedido ou o número de micronegócios financiados,

    mas com as consequências que estes podem ter em populações em situação de maior vulnerabilidade

    económica, nomeadamente, sem capacidade de obter um crédito em condições normais que lhes permita

    criar o seu próprio negócio e posto de trabalho. Esta relevância torna-se ainda mais evidente atendendo ao

    facto de persistir no planeta um grande número de pessoas sem possibilidade de recorrer a serviços

    financeiros de qualidade que, apesar da disparidade dos dados sugeridos pelas diferentes instituições, deverá

    2 A sigla MFI designa usualmente Microfinance Intitutions, mas por vezes também Microfinance Intermediaries, entendedidos como as entidades que fazem a ponte entre as instituições financeiras ou investidores privados e os mutuários do microcrédito, no terreno.

  • 3

    rondar os dois mil milhões e meio de pessoas (Chaia et al., 2009; Demirguc-Kunt et al./WB 2015, Global

    Findex, 2014).

    Reconhecendo-se, hoje, as virtudes e os problemas da microfinança, o debate centra-se sobretudo na

    questão de como ultrapassar as barreiras que impedem que uma importante parte da população mundial -

    cerca de 50% - tenha acesso a serviços bancários como crédito, que é simultaneamente a população mais

    desfavorecida e com mais dificuldades em aceder a outras fontes de rendimento (Chaia et al., 2009). Com o

    microcrédito formal procura-se que esse acesso seja possível em condições socialmente justas e que

    favoreçam uma melhoria da sua situação económica de forma sustentável. No entanto, no momento

    presente o microcrédito e outros serviços financeiros ainda estão longe de garantir acesso a todos ou de

    conseguir a satisfação das necessidades específicas de cada grupo de clientes.

    Fig. 1 - Percentagens de agregados com acesso a serviços bancários, aferido pela posse de uma conta de depósitos numa instituição financeira formal, em 2009:

    (Fonte: CGAP, 2010)

    O propósito de aumentar a cobertura, eficiência e escala das suas operações, bem como a diversificação

    de serviços que respondam àquelas necessidades estão na base das críticas atuais às instituições de

    microfinança. Tais críticas estão respeitam à crescente privatização da microfinança como solução para o

    crescimento do sector. A busca de investidores privados encontra-se associada a uma deriva relativamente

    aos propósitos e práticas que caracterizaram o microcrédito original, ou seja, substituir a melhoria da

    situação económica dos mutuários pelo aumento da rendibilidade dos investimentos privados.

    No que respeita especificamente à necessidade de obter crédito, existem muitas diferenças entre os

    países mais ricos e os países mais pobres na possibilidade de aceder a instituições financeiras formais, como

    se pode observar na figura que seguidamente se apresenta.

  • 4

    Fig. 2 - Distribuição geográfica de contas bancárias em 2014:

    (Fonte: WB/ Global Findex, 2014)

    Fig. 3 – Fontes de novos empréstimos formais e informais por regiões geográficas:

    (Fonte: Demirguc-Kunt et al., 2015)

  • 5

    No momento atual, embora muito mais presente na Ásia e também na África e América Latina onde se

    concentra a grande maioria dos indivíduos que não utilizam serviços financeiros formais e representam quase

    50% da população adulta mundial (Chaia et al., 2009), o microcrédito chegou aos países ditos desenvolvidos

    (que representam menos de 1% dos beneficiários no Mundo). De acordo com a Microcredit Summit

    Campaign, em 2011, os países da América do Norte e de toda a Europa ocidental não ultrapassavam 0,01%

    do número de empréstimos e nestes países quase 90% da população tem acesso a bons serviços financeiros,

    destinando-se, portanto, aos pequenos segmentos mais vulneráveis dessa população (WB/Global Findex

    2014): 

    Fig. 4 – Distribuição geográfica do acesso a crédito formal em 2014:

    (Fonte: Global Findex/Banco Mundial http://datatopics.worldbank.org/financialnclusion)

    Desenvolvido a partir da Ásia desde os anos 70 do século XX, o microcrédito formal foi popularizado pelo

    sucesso do Projeto Banco Grameen fundado em 1976 por Muhammad Yunus, pioneiro do microcrédito que

    viria a receber o prémio Nobel da Paz em 2006. A fundação do Grameeen Bank resultou do entendimento de

    Yunus que era viável conceder crédito às populações mais pobres do planeta e o Grameen Bank surgiu com

    o propósito de transformar as suas capacidades em atividades económicas sustentáveis (M. Yunus, 2002).

    Na sequência do sucesso do Grameen Bank e de outras experiências de microcrédito, assiste-se nos anos

    80 a um rápido crescimento do número de instituições de microfinança, muitas delas ONG (Organizações

    não-Governamentais) financiadas por doações privadas e fundos públicos. A sua atividade veio demonstrar

    que o microcrédito pode ser viável porque os pobres investem esse crédito maioritariamente na criação do

    seu emprego (Morduch, 1999) e conseguem pagar as suas dívidas, ou seja, cumprir os reembolsos dos

    empréstimos nos prazos previstos (Brau e Woller, 2004; MicroWorld.org, 2016).

    Os anos 90 são caracterizados por uma grande expectativa das instituições internacionais de apoio

    desenvolvimento relativamente ao microcrédito enquanto instrumento de combate à pobreza.

    Por parte dos partidários de uma ideologia mais liberal, há hoje uma contestação da prática de taxas de

    juro inferiores às que a banca convencional cobraria junto dos clientes mais pobres visados pelo microcrédito,

    bem como o início de uma crítica dos seus reais impactos (Bateman e Chang, 2012). De acordo com a

    http://datatopics.worldbank.org/financialnclusion

  • 6

    MixMarket - plataforma da organização Microfinance Information Exchange (MIX), que recolhe e

    disponibiliza informação relativa à maioria das MFIs e a outros fornecedores de serviços financeiros (financial

    service providers - FSPs) que dirigem a sua atividade às populações de baixos rendimentos - no momento

    presente, a cobertura das principais regiões do mundo por fornecedores de serviços financeiros (FSPs) é a

    que se indica na figura seguinte:

    Fig. 5 – Cobertura geográfica por fornecedores de serviços financeiros:

    (Fonte: Mixmarket http://www.themix.org/mixmarket)

    Relativamente ao acesso a microfinança pelas famílias que vivem abaixo da linha de pobreza, a

    cobertura dessas famílias pelas MFIs por região geográfica é a que seguidamente se apresenta.

    Fig. 6 - Cobertura pelas MFI:

    (Fonte: Daley-Harris, 2009 in Guntz, 2011: 12)

  • 7

    A evolução do microcrédito é representada pela sua transição dos países da Ásia para a África e América

    Latina, sobretudo para os menos desenvolvidos, com objetivo servir populações que não tinham outra

    possibilidade de acesso a serviços financeiros ou outra fonte de rendimento, mas posteriormente também

    para os países desenvolvidos do Ocidente onde se insere num conjunto de outras medidas dirigidas aos

    segmentos da população em situação económica precária e com dificuldades de acesso a crédito dos bancos

    comerciais. O microcrédito foi sofrendo alterações na sua forma de funcionamento, designadamente,

    passando dos empréstimos de grupo para empréstimos individuais e registando a entrada de novos

    intervenientes, com destaque para os do sector privado, para os quais o microcrédito se tem tornado cada

    vez mais atrativo dado o sucesso das iniciativas em termos do cumprimento dos reembolsos e taxa de

    sobrevivência dos micronegócios financiados.

    O microcrédito tem na sua origem uma vocação social, pretendendo constituir um instrumento de

    combate à pobreza e não substituir a banca convencional ou a economia capitalista. Porém, caracteriza-se

    por uma lógica solidária e de equidade, visando contribuir para a inclusão de indivíduos que de outra forma

    o mercado se encarregaria de excluir, procurando combater alguns dos limites desse mercado e fatores de

    desigualdade e marginalização característicos das sociedades contemporâneas. Nem todos os indivíduos

    estão, de facto, mesmo nos países mais ricos, em condições de aceder aos serviços da banca tradicional. Para

    a banca comercial em geral, os clientes mais pobres apresentam grandes riscos pois não oferecem garantias,

    têm dificuldades em poupar e em apresentar um negócio viável. Por outro lado, os custos de transação com

    a análise, monitorização e aprovação de empréstimos a este tipo de clientes são demasiado elevados se se

    tiver em conta os pequenos montantes em causa. A microfinança veio, assim, responder às necessidades de

    serviços financeiros das populações de baixos rendimentos em várias regiões do mundo e cresceu face ao

    sucesso demonstrado pelo microcrédito em termos das capacidades de cumprimento dos reembolsos pelos

    clientes pobres e a sustentabilidade das iniciativas económicas financiadas.

    O desenvolvimento do microcrédito no início do séc. XXI coloca, de acordo com a generalidade dos

    estudos mais recentes, três grandes questões que cremos interligadas: i) a viabilidade ou sustentabilidade

    das instituições de microfinança que, para continuarem a crescer, devem deixar de depender de doações ou

    subsídios dos Estados, tornando-se eficientes em termos de custos e proveitos, ii) a atração do sector privado,

    i.e., de instituições financeiras/bancárias comerciais como investidores e atores neste mercado (uma vez que

    as doações públicas ou privadas são limitadas)de forma a aumentar a cobertura e iii) a prática de taxas de

    juro que permitam cobrir os custos e o risco associados à concessão de crédito a clientes que não apresentam

    garantias ou histórico bancário, sem que tal faça perder de vista os propósitos de oferecer serviços

    financeiros acessíveis aos mais pobres.

    3. O Microcrédito, a microfinança e os problemas que suscitam

    Hoje, o microcrédito associa-se a outros mecanismos, financeiros e não só (como os programas de

    graduação que se centram em resolver problemas de habitação ou saúde, apoiar o aumento dos níveis de

    consumo ou conceder formação em áreas relevantes para a gestão de um negócio), de apoio ao

    empreendedorismo e ao desenvolvimento social. Segundo a EAPN (European Anti Poverty Network), os

    serviços financeiros designados microfinança incluem, para além do crédito, o acesso a seguros, poupanças,

  • 8

    literacia financeira, assistência financeira no desenvolvimento de negócios, tendo um papel fundamental na

    inclusão social: a “Microfinança é amplamente considerada como [promotora] da melhoria de condições de

    vida, reduzindo a vulnerabilidade e fomentando o empowerment social assim como económico”

    (http://www.eapn.eu). Entre as áreas mais críticas e também de maior inovação da microfinança estão a

    acessibilidade dos serviços financeiros, favorecida pelo acesso à internet e o desenvolvimento de serviços

    bancários através das comunicações móveis, assim como a adaptação dos produtos financeiros às

    necessidades de indivíduos e a contextos específicos, o que se tem traduzido no desenvolvimento de

    diferentes modalidades de microcrédito que se afastam do conceito original do Grameen Bank de Yunus.

    A concessão de empréstimos de pequenos montantes a populações sem condições de obter crédito

    bancário convencional insere-se num conjunto de instrumentos designado por microfinança, que nos últimos

    anos têm suscitado grande atenção a nível mundial pelo seu potencial como ferramenta de combate à

    pobreza e à exclusão (CGAP/World Bank; ONU; Microcredit Summit). A microfinança compreende o conjunto

    de serviços dirigidos às populações excluídas do acesso a instituições financeiras formais convencionais,

    sendo o microcrédito o mais relevante desses mecanismos que incluem ainda os microseguros, as

    microtransferências e a micropoupança (associados às necessidades pessoais dos beneficiários do crédito e

    às necessidades do micronegócio).

    A vulnerabilidade, simultaneamente causa e consequência da dificuldade em aceder a crédito, é, por

    sua vez, antecedida pela dificuldade em poupar dada a falta de instituições financeiras adequadas que

    caracteriza sobretudo os países mais pobres. A poupança relaciona-se não só com as necessidades dos

    clientes, mas com o financiamento das próprias instituições de microfinança e, consequentemente, com a

    sua independência e sustentabilidade. As transferências e seguros, por seu turno, pretendem assegurar um

    acesso a serviços financeiros com equidade, segurança e rapidez em contextos em que a infraestrutura,

    regulação, supervisão e mecanismos de proteção social são escassos. Estes serviços de microfinança

    pretendem afetar positivamente a gestão dos micronegócios e as condições de vida dos indivíduos

    abrangidos. Talvez por esta razão em países desenvolvidos como os da Europa Ocidental ainda não se tenha

    verificado a transição do microcrédito para a microfinança. Os outros mecanismos de microfinança são, pois,

    complementares ao microcrédito, sofrendo dos mesmos problemas desafios, e traduzem uma visão recente

    da microfinança, já não apenas como financiadora de iniciativas empresariais, mas como promotora da

    inclusão financeira (Mader e Sabrow, 2015).

    Existe hoje, por todo o mundo, uma grande variedade de instituições de microfinança, entendidas como

    as entidades oriundas do sector privado, público ou terceiro sector que oferecem serviços financeiros a

    populações de baixos rendimentos. Se as Organizações não-governamentais têm tido um papel de destaque

    ao operarem em regiões onde não existe acesso a serviços financeiros, têm surgido recentemente cada vez

    mais Instituições de Microfinança (MFIs na designação mais corrente) com fins lucrativos, designadas como

    Non-Banking Financial Companies ou Non Banking Financial Institutions (NBFIs) assistindo-se hoje, segundo

    muitos autores, a uma tendência de comercialização da microfinança, ou seja, de mudança do estatuto das

    organizações de não-lucrativo para lucrativo. Esta mudança de estatuto pode ter efeitos positivos, como a

    atração de investimento privado e a submissão da sua atividade a supervisão por parte de uma autoridade

    financeira formal, como um banco central, mas coloca o risco de o propósito do microcrédito ser substituído

    pelos interesses dos investidores/acionistas a quem passam a ter que prestar contas (Guérin, 2015; Bateman

    e Chang, 2012; Ledgerwood et al.2013).

    http://www.eapn.eu/

  • 9

    A ANDC (Associação Nacional de Direito ao Crédito), que foi a organização mais importante no

    microcrédito em Portugal, sustenta que “Embora se trate de quantias pequenas, representam o suficiente

    para alterar o rumo das vidas de quem recorre ao microcrédito. Por isso, enquanto instrumento de promoção

    da iniciativa e empreendedorismo, (…) o Microcrédito revela-se um instrumento de política

    macroeconómica, cujos efeitos multiplicativos são muito poderosos” (ANDC, 2016). Mais do que um

    instrumento ou produto financeiro relativamente novo, o microcrédito pode consistir numa alternativa a

    outras políticas públicas de inclusão, fomento do emprego e combate à pobreza, assim como um instrumento

    para as ONG que promovem o desenvolvimento, com maiores possibilidades de atingir a

    autossustentabilidade, ou seja, um mecanismo que pretende o combate às causas da pobreza e exclusão e

    não apenas alívio dessas através de subsídios ou doações.

    O microcrédito tem tido resultados materiais e sociais positivos, tanto nas populações dos países mais

    pobres, quanto nos segmentos mais vulneráveis dos países mais desenvolvidos: do apoio em situações de

    emergência social na satisfação das necessidades de consumo prementes das populações mais

    desfavorecidas, à capacitação de iniciativas suscetíveis de favorecer o autoemprego, a criação de um

    rendimento estável e, em consequência, a melhoria das condições de vida dos cidadãos em situação de

    vulnerabilidade social.

    O microcrédito está, todavia, também associado a impactos sociais negativos e a atenção que tem

    recebido a nível internacional nas últimas décadas tem também suscitado dúvidas e críticas: ao representar

    para as ONG e estados nacionais uma possível solução atrativa para a o problema da pobreza, cria-se uma

    pressão política e social para a concessão de grandes montantes de crédito e, simultaneamente, para o sector

    privado, para a assunção de maiores riscos e custos. Deste modo, o microcrédito pode traduzir-se numa

    tendência para conceder demasiado crédito demasiado rápido às populações mais desfavorecidas, por um

    lado, e na prática de taxas de juro elevadas, para cobrir um crescente risco, por outro. É neste sentido que o

    microcrédito pode resultar em sobre-endividamento, dificuldades de reembolso e incumprimento, o que

    representa consequências negativas, tanto para as instituições que concedem o crédito, quanto para os

    beneficiários dos empréstimos.

    Assim, o microcrédito enfrenta hoje um duplo desafio: atingir a sustentabilidade das suas instituições

    (através de uma maior eficiência e atração de investimento privado) e tornar-se verdadeiramente inclusivo

    para permanecer fiel aos princípios que estiverem na sua origem.

    Se ainda há uma grande proporção de ONGs presentes no microcrédito, certo é que este, assim como a

    microfinança em geral, captaram a atenção de governos e do sector privado, sendo hoje possível afirmar que

    o microcrédito pode aliviar a situação de pobreza e marginalização das populações mais desfavorecidas do

    Mundo e fazê-lo gerando lucros (Helms, 2006; CGAP, 2014). E, independentemente de toda a controvérsia

    que tem suscitado, o microcrédito conseguiu pôr de parte o mito, de que Yunus discordou, de que não se

    pode emprestar com sucesso aos pobres porque estes não são capazes de pagar. Apesar de não o ser para

    todos (Chowdhury, 2009; Banerjee, 2013), o microcrédito pode ser para muitos dos indivíduos mais pobres

    do planeta uma saída (senão a única) de situações de grande carência e marginalização social, oferecendo a

    oportunidade de, através das atividades financiadas, aumentar o rendimento dos beneficiários e a sua

    independência em relação a situações de precaridade e exploração que caracterizam as alternativas não-

    formais a que os mais pobres habitualmente podem recorrer para fazer face às suas necessidades.

  • 10

    Em qualquer dos casos, pelas suas consequências económicas, sociais, familiares ou políticas, pela rede

    de indivíduos e entidades envolvidos, pela variedade de fatores que o promovem, condicionam ou explicam

    a diversidade de formas que assume, o microcrédito é um fenómeno social total no sentido que M. Mauss

    (in Esteves e Fleming, 1980) lhe atribuiu. É possível perceber a emergência de uma variedade de experiências

    de microcrédito nas últimas três décadas pelos diferentes contextos sociais locais em que se desenvolveram

    e, simultaneamente, perceber a sua importância pelas consequências que produz nas sociedades em causa.

    No contexto de enquadramento social e cultural dos fenómenos económicos pode discutir-se o

    microcrédito enquanto forma de inclusão de indivíduos que, numa ótica de mercado de maximização da

    rendibilidade e minimização do risco, não interessariam à banca tradicional, dados os reduzidos montantes,

    o elevado grau de risco associado à ausência de garantias e os elevados custos de transação que os mico

    empréstimos representam, aliados a uma baixa rendibilidade oferecida pelo financiamento de iniciativas

    empresariais de muito reduzida dimensão (micronegócios). Porém, foi o sucesso das iniciativas de

    microcrédito de cariz social que, progressivamente, atraiu os estados a incluí-lo nas políticas públicas de

    combate à pobreza e exclusão - com é o caso das instituições da União Europeia a que nos referimos

    posteriormente – e o setor privado a considerar os mais pobres como um segmento de mercado

    potencialmente rentável. Com o seu desenvolvimento, o microcrédito traduziu-se numa diversidade de

    experiências levadas a cabo por atores de diversa natureza. Consideramos que a controvérsia que envolve a

    microfinança se prende essencialmente com a falta de prudência na concessão de crédito, quando se

    abandonam as práticas que estiveram por trás do sucesso do microcrédito de missão social e se assumem

    crescentes riscos na tentativa de aumentar a escala e rendibilidade , designadamente, pelas entidades do

    setor lucrativo, e o problema de falta de acesso a crédito é substituído pelo do sobre-endividamento.

    Durante o século XX, houve iniciativas de facultar crédito e outros serviços financeiros aos pobres das

    zonas rurais com o objetivo de os libertar de situações de dependência, aumentar o investimento e os seus

    rendimentos. Até aos anos 70, o crédito aos pobres rurais subsidiado pelos governos revelou-se um fracasso,

    que seria posteriormente atribuído por muitos à prática de taxas de juro baixas que, aliadas a uma elevada

    taxa de incumprimento, não permitiram que as instituições financeiras cobrissem os seus custos (Adams e

    Von Pishke, 1991; Bateman e Chang, 2012).

    É consensual que nos anos 70 nasce oficialmente, no Bangladesh, o microcrédito associado ao projeto

    piloto de M. Yunus e ao Grameen Bank, considerado o primeiro banco de microcrédito no mundo, criado

    com objetivo de combater a pobreza com a prática inovadora de oferecer crédito aos mais pobres dos pobres

    sem a exigência de colateral (Yunus, 2002; Grameen Bank, 2011)3.

    A partir dos anos 80, assiste-se a um grande desenvolvimento do microcrédito, sendo que o crédito

    visando a redução da pobreza que tinha sido orientado para os pequenos agricultores passou a dirigir-se a

    populações urbanas mais vulneráveis, sobretudo a mulheres que pretendam criar um micronegócio. As

    elevadas taxas de reembolso e a prática de taxas de juro bastante inferiores às que caracterizam o crédito

    informal, mas que permitiam cobrir os custos com os empréstimos (Cull et al., 2015; Rosenberg et al.2009;

    3 Ainda que em 1973 já tivesse havido pelo menos uma experiência piloto de microcrédito da Accíon

    International no Brasil e que, em 1974, o BRAC (então Bangladesh Rehabilitation Assistance Committee, posterior Bangladesh Rural Advancement Committee e actual Building Resources Across Communities) tivesse começado a providenciar microcrédito aos mais pobres.

  • 11

    Brau e Woller, 2004), que verificariam nessa década em várias experiências de microcrédito, contribuíram

    para a sua boa reputação.

    Nos anos, 90 o fenómeno ganhou grande visibilidade a nível internacional associando-se a instituições

    e políticas de combate à pobreza no Mundo, atenção que começou também a suscitar análises e críticas do

    fenómeno. É por esta altura que o microcrédito começou a ser englobado no termo microfinança traduzindo

    o propósito de oferecer outros serviços financeiros adequados às necessidades dos mais pobres (Helms,

    2006; Banerjee, 2013).

    Com o início do séc. XXI, assiste-se a uma multiplicação dos atores envolvidos na microfinança,

    designadamente do sector lucrativo e, paralelamente, a uma crescente atenção às questões da inclusão

    financeira - e consequentemente à necessidade da microfinança alargar a sua ação aos muitos milhões de

    indivíduos pobres ainda sem acesso a serviços financeiros de qualidade – e da sustentabilidade das suas

    instituições.

    Em 2006, o CGAP (Consultative Group to Assist the Poor) que reúne mais de trinta instituições de

    desenvolvimento, públicas e privadas, com o objetivo comum de aumentar a inclusão financeira dos mais

    pobres, definiu um conjunto de princípios de microfinança que foi apoiado pelos líderes dos G8, permite

    perceber as tendências no entendimento atual a respeito da missão e das potencialidades da microfinança

    (CGAP, 2006):

    “1. Poor people need a variety of financial services, not just loans. In addition to credit, they want savings,

    insurance, and money transfer services.

    2. Microfinance is a powerful tool to fight poverty. Poor households use financial services to raise income,

    build their assets, and cushion themselves against external shocks.

    3. Microfinance means building financial systems that serve the poor. Microfinance will reach its full

    potential only if it is integrated into a country’s mainstream financial system.

    4. Microfinance can pay for itself, and must do so if it is to reach very large numbers of poor people.

    Unless microfinance providers charge enough to cover their costs, they will always be limited by the scarce

    and uncertain supply of subsidies from governments and donors.

    5. Microfinance is about building permanent local financial institutions that can attract domestic

    deposits, recycle them into loans, and provide other financial services.

    6. Microcredit is not always the answer. Other kinds of support may work better for people who are so

    destitute that they are without income or means of repayment.

    7. Interest rate ceilings hurt poor people by making it harder for them to get credit. Making many small

    loans costs more than making a few large ones. Interest rate ceilings prevent microfinance institutions from

    covering their costs, and thereby choke off the supply of credit for poor people.

    8. The job of government is to enable financial services, not to provide them directly. Governments can

    almost never do a good job of lending, but they can set a supporting policy environment.

    9. Donor funds should complement private capital, not compete with it. Donor subsides should be

    temporary start-up support designed to get an institution to the point where it can tap private funding

    sources, such as deposits.

    10. The key bottleneck is the shortage of strong institutions and managers. Donors should focus their

    support on building capacity.

  • 12

    11. Microfinance works best when it measures—and discloses—its performance. Reporting not only

    helps stakeholders judge costs and benefits, but it also improves performance. MFIs need to produce accurate

    and comparable reporting on financial performance (e.g., loan repayment and cost recovery) as well as social

    performance (e.g., number and poverty level of clients being served)”.

    Nesta conceção, o microcrédito segue uma visão semelhante à de Yunus segundo a qual, com o acesso

    a serviços financeiros, os pobres, através das suas iniciativas empresariais, poderão ultrapassar uma situação

    de marginalização e integrar-se na economia de mercado.

    De forma análoga, a Microcredit Summit Campaign, que desde 1997 reúne instituições financeiras, de

    ensino, agências de ajuda ao desenvolvimento, ONGs e profissionais envolvidos na microfinança dos cinco

    continentes procurando promover as melhores práticas e a troca de conhecimentos com vista à inclusão

    financeira e combate à pobreza, foi sucessivamente redefinindo os seus objetivos, à medida que o fenómeno

    da microfinança foi sendo melhor entendido, designadamente no que respeita ao impacto dos programas de

    microcrédito. Assim, em 1997, a Microcredit Summit Campaign definiu como objetivos fornecer crédito e

    outros serviços financeiros para autoemprego a 100 milhões das famílias em pobreza extrema.

    Em 2006, redefiniu estes objetivos estabelecendo “a qualidade, ênfase e intenção dos stakeholders da

    microfinança para fazer do fim da pobreza um objetivo de toda essa indústria”, reconhecendo então a

    necessidade i) da sustentabilidade financeira dos programas de microcrédito através de uma melhor

    eficiência: mudando taxas de juro e comissões para poder cobrir custos operacionais e financeiros e

    encorajando a autossuficiência dos programas de microcrédito e ii) da avaliação do impacto do microcrédito

    na melhoria das condições de vida dos mais pobres, e não apenas em indicadores relativos às MFIs tais como

    números de clientes ou taxas de reembolso - “a campanha está comprometida com o facto de os programas

    terem um impacto positivo, mensurável nas vidas dos muito pobres (…) promovendo o uso e a recolha de

    dados [provenientes] de ferramentas de medição da pobreza para permitir às MFIs gerar produtos e serviços

    que ajudam da melhor forma os seus clientes a sair da pobreza” (www.microcreditsummit.org).

    Em 2016, no 18th Microcredit Summit, os líderes mundiais reuniram-se para discutir a inclusão social e

    financeira e, tendo em vista o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável de acabar com a pobreza extrema

    até 2030 (ONU), a Microcredit Summit Campaign, até então um projeto isolado, foi englobada no RESULTS

    Educational Fund, pretendendo dar continuidade ao trabalho em prol da inclusão financeira. Foram definidas

    quatro áreas prioritárias para conseguir o maior impacto possível no combate à pobreza extrema:

    “programas de proteção social transformativos e de graduação; estratégias de desenvolvimento rural; gestão

    do risco pelos pobres; finanças desenvolvidas pela comunidade” (Idem). Estas iniciativas constituem uma

    visão mais abrangente da pobreza e da forma de a combater nas suas diferentes dimensões que, co se

    discutirá, está associada ao maior sucesso aquando da concessão de microcrédito.

    Se no discurso atual a respeito da microfinança é patente uma perspetiva pró-mercado que se centra

    no desempenho financeiro e independência das suas instituições, também a análise do seu desempenho

    social é tema de grande debate. Na filosofia do Grameen Bank, o microcrédito assume o propósito de servir

    as populações mais desfavorecidas, especialmente em países em que as condições institucionais não

    permitem o acesso a serviços financeiros, não existem mecanismos de proteção social para os mais pobres e

    nos quais o recurso ao crédito informal coloca essas populações numa posição de grande vulnerabilidade.

    http://www.microcreditsummit.org/

  • 13

    O facto de uma grande proporção da população mundial não utilizar serviços financeiros formais não

    significa necessariamente que não tenha acesso, sendo que nas populações mais pobres que se recorre mais

    frequentemente a mecanismos informais. No entanto, se estes oferecem maior flexibilidade que os

    instrumentos formais, como Chaia et al. (2009) sintetizam, aos “serviços financeiros informais faltam a

    fiabilidade (por exemplo, qualidade e disponibilidade consistentes), segurança” (p.3), taxas de juro que os

    mutuários consigam pagar e possibilidade de aumento da escala dos serviços oferecidos.

    Compreende-se a importância do acesso a serviços financeiros submetidos a regulação e supervisão,

    sobretudo no momento atual em que, para além de uma grande desigualdade de rendimentos (segundo a

    Oxfam/Credit Suisse, a riqueza acumulada pelo 1% mais rico da população mundial equivale pela primeira

    vez em 2015 à riqueza dos restantes 99%) existe uma grande discrepância entre as regiões ou países mais

    ricos e mais pobres no acesso a serviços financeiros formais e, segundo o Banco Mundial, a população

    mundial em situação de pobreza extrema atinge perto de mil milhões de indivíduos (IFC/WB, 2014). Neste

    contexto, os serviços de microfinança (crédito, poupança, seguros e transferências) podem representar para

    as populações mais pobres uma oportunidade de desenvolver uma atividade económica rentável, gerir a

    incerteza, preparar-se para situações de emergência, investir no futuro, melhorar as suas possibilidades de

    consumo e satisfazer necessidades de saúde, habitação, alimentação ou educação.

    Se hoje está provado que é possível servir financeiramente os mais pobres de forma lucrativa, também

    é certo que a microfinança está longe de ter atingido o seu potencial bem como o propósito de ser

    verdadeiramente inclusiva (Brau e Woller 2004; Helms, 2006; Chaia et al. 2009).

    No geral, a microfinança tem aumentado a escala e o alcance da sua intervenção e atraído cada vez mais

    o sector privado, não ocupando hoje uma posição marginal no sistema financeiro mundial, tendo em

    consideração o enorme mercado potencial representado pelos países pobres, próximo dos 3 mil milhões de

    pessoas. Christen et al. (2004) consideram o conjunto de instituições que prestam serviços financeiros aos

    mais pobres como tendo uma “double bottom line”: conciliar o desempenho financeiro com a finalidade

    social de servir as populações sem acesso a empresas financeiras ou bancos convencionais. Designando-as

    de instituições financeiras alternativas (AFIs), os autores incluem nesse conjunto as MFIs e também os bancos

    públicos e de desenvolvimento e as associações de crédito e poupanças, argumentando que, se “Quando

    vistas da perspetiva convencional dos ativos totais do sistema financeiro, as AFIs não são jogadores

    significativos na maioria dos países (…) a imagem é muito diferente quando se conta cidadãos em vez de

    dinheiro. [As] AFIs provavelmente representam uma parcela significativa – por vezes a maioria – de clientes

    do sistema financeiro em países em desenvolvimento e transição” (Christen et al., 2004: 2).

    No entanto, se as várias entidades intervenientes na microfinança procuram servir as populações mais

    pobres cobrindo os seus custos, a microfinança ainda está muito aquém do seu potencial, não só em termos

    de acessibilidade, como na qualidade dos seus serviços (Helms e CGAP, 2006). Mais ainda, como referem, a

    acessibilidade “não é apenas (…) ter uma conta bancária. É também a conveniência e segurança da conta e

    se estes serviços têm preços justos, satisfazem as necessidades dos clientes, e são oferecidos por uma

    instituição sólida que estará [por perto a longo prazo] para ajudar os seus clientes a gerir as suas vidas

    financeiras (Idem: 6)”.

  • 14

    4. Acesso e impactos do Microcrédito

    Diferentes tipos de instituição de microfinança distribuem-se desigualmente por diferentes zonas

    geográficas, têm diferentes formas de atuação, produtos e mercados-alvo. Se as instituições financeiras não-

    bancárias e as ONG procuram atingir os mais pobres dos pobres, os bancos privados, compreensivelmente,

    centram-se nos clientes mais comercialmente viáveis (Ledgerwood, 2013; Cull e Molineus, 2015), sendo que

    estes últimos registam um maior valor do montante global de empréstimos e um número mais reduzido de

    mutuários comparativamente ao outro tipo de instituição (MIX, 2016).

    A microfinança está ainda concentrada na região Ásia/Pacífico e num reduzido n�