Recordar, Repetir, Elaborar e Construir

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Artigo sobre o texto de Freud.

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  • RevistaBrasileiradePsicanliseVolume44,n.4,155-1642010 155

    Recordar, repetir, elaborar e construir: a busca do objeto materno na anlise de uma menina adotada

    GinaKhafifLevinzon1

    Resumo:Estetrabalhoexaminaorecordar, repetir e elaborar naanlise,eenfatizaadimensodocons-truircondiesnecessriasparaodesenvolvimentoprimitivodepessoasqueapresentamfalhasiniciaisbsicas.relatadoocasoclnicodeumameninaadotivaqueapresentava,natransferncia,materialbastanteregressivo,pr-verbal,ebuscavaintrojetarumobjetomaternoconsistente.Aadooeasan-gstiasdospaisadotivosaparecemcomopanodefundonaevoluodoprocessoanalticoesotam-bmcomentadas.Palavras-chave:recordar,repetireelaborar;construo;adoo;regresso;objetomaterno;anlisedecrianas.

    1. Recordar, repetir e elaborar

    EmseuprimorosotrabalhoRecordar,repetireelaborar,noqualdescreve fen-menosqueestonabasedopensamentopsicanaltico,Freud(1914/1980)observaqueopacienterepetenorelacionamentocomoanalistacomportamentoseatitudescaracters-ticosde experincias iniciais. Ele assinala que opacienteno recorda coisa algumadoque esqueceuou reprimiu,mas expressa-opela atuaoouatua-o. Ele o reproduznocomolembrana,mascomoao;repete-o,sem,naturalmentesaberoqueestrepetindo(p.196).Aanlisepermitecomquefantasiasepensamentosquenuncaforamconscientestambmpossamserrememorados,ouseja,criacondiespararepresentaessimblicasecompreensesdeseussignificados.

    naanlise,opacientedeslocaparaafiguradoanalistasentimentos,pensamentosecomportamentosoriginalmenteexperenciadosemrelaoapessoassignificativasdesuainfncia.Atransferncia,comopalcoprivilegiadoondesoencenadasasrepeties,pro-moveumpontodeencontropermanenteentreopassadodoindivduoeopresente,comsuassemelhanasediferenas.

    Cadavezmaistemseevidenciadoaimportnciadosprimeirostemposdevidadapessoanaformaodeseupsiquismo.nestafasesoerigidososprincipaispilaresdeseumundopsquicoeafetivo.Aexperinciaclnicamostraqueexpressesdeumafasepr-verbaldavidaocorremnarelaoanaltica,especialmenteempessoasquepassarampordificuldadesimportantesnestafase.Muitasvezesestoassociadasamomentosimportan-tesderegressonaanliseedependemdeumobservadorsensvelaelasparaquesemani-festemesejamcompreendidas.

    Emalgumaspessoas,temosaimpressodequepontosessenciaisnoforamcons-trudos,ehouveumesforodesobrevivnciaquepodesercomparadoconstruodeumacasadispostaporcimadegrandesvcuos.nessescasos,aanlisepareceterafuno

    1 MembroefetivodaSociedadeBrasileiradePsicanlisedeSoPaulo.DoutoraemPsicologiaClnica.ProfessoradoCursodeEspecializaoemPsicoterapiaPsicanalticaUSP.

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    deajudaropacienteaconstruiralgoquedeveriaestarl,masestdramaticamenteausente.Poderamosdizerqueemtaispessoashtambmalgoqueserepeteeatuadonasituaoanaltica?Oqueaindanofoiconstrudopodeserrememorado?

    Pretendo,nestetrabalho,refletirsobreestasquestesquemeparecemessenciais,apartirdadiscussodomaterialclnicoobtidonaanlisedeRaquel,umameninaadotada.Abordareitambmpontosqueestorelacionadosaouniversodaadooequemuitasve-zesestonabasedasdificuldadesapresentadasporpaisefilhosadotivos.

    2. Raquel

    OspaisdeRaquelmeprocuraram,numestadodedesespero,quandoelaestavacom12anosdeidade.Relataramqueafilhaestavaapresentandoumasriedecomportamentosantissociais,comoroubos,mentirasefalsificaes.Outraqueixadospaiseraofatodeserbastantegorda.Raquelcomiacomextremavoracidade,especialmentedocesealimentosqueengordavam.

    nasnossasconversasiniciais,ospaisdapacientepareciamestardecididosacoloc-lanumcolgiointerno.Achavamqueelanotinhamaisjeito.Apesardisso,procuraramaminhaajuda,oquemostravaqueaindahaviaumaesperanadereencontrocomafilha,emboratnue.ArelaodeRaquelcomameeraespecialmentedifcil.Estaltimafalavadafilhacommuitaanimosidade.Parecianosuport-la.Opaieramaisafetuosoeprxi-modafilha,mastambmpareciaperdidocomoestadodascoisas.

    Creioquehaviaumpontobastanteimportantecomopanodefundoinconscientedetamanhodesencontro:Raqueleramulataescura,enquantoqueseuspaiseirmmenoreram loiros.Adiferena fsicagritantepareciapotencializarasdiferenasentreelaeosintegrantesdafamlia.Ospaisprocuravamreprimir,semsucesso,adecepoporteremumafilhacomumacordepeleassociadaintimamenteaumasituaodesprivilegiadaepejorativa.AmedeRaquelqueixou-secomraivadequeafilhavivianoquartodaem-pregada,oqueevidenciavaaligaoassociativaqueerafeitacomacordepeledamenina.Inconscientemente,amesentiaqueRaquelmaispareciafilhadaempregadadoquesuaprpriafilha.

    O estudo da dinmica psicolgica de famlias adotivas aponta evidncias de quegrandepartedospaisefilhosadotivosquerseparecerfisicamente.Destaforma,podemmanterailusodequenohumhiatobiolgicoentreeles(Levinzon,1999;2004).Dopontodevistadospais,humanseiodeseperpetuarpormeiodesuadescendnciabio-lgica,comoformadeelaborarapercepodatransitoriedadedavida.Muitasvezeshdificuldadesinconscientesemrelaoesterilidadedocasaloudeumdeseusintegrantes,ediferenas fsicasgritantes funcionamcomoum lembreteconstantedequehouveumfracassonafunoreprodutiva.Dopontodevistadacriana,adisparidadenaaparnciafsica intensificasuasdvidasquanto solidezdoelocomospaisadotivos.comose,nosendoparecidacomeles,nohouvessegarantiasdequeelesaamariamparasempre.Almdisso,adiferenafsicatambmfuncionaparaacrianaadotadacomoumamarcainexorveldequehouveumaoutrameeumoutropai,perdidosnopassado,eenvoltosemummistrioassustadorsobresuaorigem.nestescasos,pode-sefalaremintensificaodeumaferida narcsicatantonoquedizrespeitoaospaisquantocrianaadotiva.

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    OspaisdeRaqueldecidiramadotarumacrianadepoisde tentarempormuitosanosterumfilhobiolgico.Parecia-mehaver,especialmenteporpartedame,umasitua-odeumamelaboraodaimpossibilidadedegerarfilhos,emdecorrnciadacondiodeesterilidadedomarido.Raquelfoiadotadacom1msdevida.Atentofoicuidadaporpessoasintermedirias.Eraumbebsaudvel,quenodavatrabalho.Recebeumuitaatenodospais,atqueadotaramoutrameninadoisanosdepois,queficoumuitodoentenoprimeiroanodevida.EsteeventoparecequefoiumdivisordeguasparaRaquel,quepassouaficarcommuitoscimesdairm,loirinhacomoospais.

    Raquelsoubedesdepequenaqueeraadotada.Seuspaislhedisseramquesuamebiolgicahaviamorridonoseuparto.Acreditavamquedessaformaestavamprotegendosuafilhadesofrimento,defantasiasdeserabandonada.Almdisso,evitavamcomqueelaquisesseprocurarafamliabiolgicaquandocrescesse.Eraumaformadecolocarumapedrasobreestahistria.narealidade,haviaummedoinconscientedeperd-la,comosealigaoentrepaisefilhanotivesseconsistncia,pornoapresentarumeloconsangu-neo.

    EncontramosnahistriadeRaquel fatorespotencialmentepatognicosnoquesereferescondiesboasdedesenvolvimentodeumacriana.Apacientesofreuumtraumaprecoceaoserseparadadesuamebiolgicaporvoltadeseunascimento.Sabemosque,jnoventredame,acrianatemumregistrosensorialdocheiro,doandar,darespiraodagenitora,easeparaoprecoceinstauraumhiatoafetivonomomentoemqueacrian-anotemumaparelhopsquicocapazdecompreendereprocessaroquesepassou.Emseguida,nestafasetocrucialdevida,abebesteveentregueapessoasintermedirias,elementosannimosepassageiros,quandoprecisavadeumcuidadoespecialeprofundodopontodevistaafetivo.Felizmente,encontrouumlaradotivo,epaisqueseocuparamdela,apesardasdecepesrelacionadascomaesterilidadeeasdiferenasfsicas.Aosdoisanosdeidade,aperdadaatenodospaisemfunodasriadoenadairmfuncionoucomooutrotrauma,quepoderiasercomparadoaoqueKhan(1977)denominoutraumacumulativo.Esteautorenfatizaa funodamecomoescudoprotetor,queconstituioambientenormaladequadosnecessidadesprimitivasdobeb.

    PensoqueadificuldadequeospaisdeRaquel,eespecialmenteame,passaramaternaformadelidarcomeladiantedoscomportamentosmaisimpetuososeturbulentosquepassouaapresentar,continuouasucessodefalhasambientaisaqueestavasujeita.Raqueldemonstrava,noentanto,pormeiodoscomportamentosantissociais,aesperanadeencontrarcondiesambientaisadequadasssuasnecessidades.ComoafirmaWinni-cott(1956/1988b),aprivaodenecessidadesessenciaisdacrianapodesemanifestarporcomportamentos antissociais como roubo edestrutividade.Comseus sintomas,Raquelamolavaospaisforando-osaseencarregardeseumanejo.Havianassuasreaesaex-pressodegrandecarnciaafetiva,mastambmmuitaforaprpria,pornoseconformarcomumasituaodevidaquelheeratoinsatisfatria.

    O encontro analtico: coraes em sintonia e ligaes de pele

    QuandoconheciRaquel,mesurpreendiaomedepararcomumamenina, jcomtraosdepuberdade,expansiva, inteligente,echeiadevida.Suaaparncia fsicade fatodestoavamuitodaaparnciadospais,eerabastantegorda.Reclamoudospaisdizendo

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    queelesprivilegiavamsuairm,elogoanunciouqueestavadecidida:iriaparaumcolgiointerno.Achavaquedestaformanoiriamaisbrigarcomame.Pareciaquetinhaafanta-siadequeeramuitodestrutivanassuasrelaes,equeocolgiointernoseriaumaformadeconteno.Osdesencontrosconstantescomospaisadotivoseainformaoincorretasobreamortedamebiolgicanoseupartocontribuamparacorroborarestafantasia.

    Raquellanavamodeumprocessodefensivo:saa,antesdesermandadaembora,comoimaginavaqueocorreria.Omedodeserabandonadanovamenteestavasemprepai-randonoar,eelaapresentavaumtemordeseligardeformamaisprximaaoutraspessoasesofrernovamenteosentimentodedesamparoprpriodesuacondioinicialdevida.

    OcomeodonossoprocessoanalticofoipautadopelotemordeRaqueldeseligaramimesedecepcionarnovamente.Insistiaemirparaumcolgiointerno,oqueimpediriaquepudssemoscontinuarnosencontrando.Aomesmotempo,aospoucosseaproximava,emboracomcautela.

    Quandoeu falava sobreadoocomRaquel, ela semostravamuito irritada.noqueriatocarnoassunto.noentanto,emboraesteassuntofosseproibidodesermencionadoverbalmente,logopercebioquantopassouaservividopornsnopalcoqueconstrudopelarelaoanaltica.

    Raquel invariavelmente chegava s sessesqueixando-sede fome, emuitas vezestraziasacosdedocesparaassesses,quecompravanapadariaemfrenteaomeuconsultrio.Dizia:Deveserbomterumapadariaadolado.Comeouapedirparaguardarseusdocescomigo,nasuacaixaldicaounaminhageladeira.Raquelpareciaumbebesfomeadoquevinhamamarnasnossassesses.Eusabiaqueoquedefatolhefaziafaltaeraumtipodecontatosintnico,quepudesselheproporcionarumasensaodesaciedadepoucasvezesalcanadaemsuavida.Apadariaquelhefaziafaltaprecisariaserencontradananossacapacidadedenutri-lasimbolicamente.Comeceianotaroquantoosdocesdequetantogostavatinhamnomesdesentimentosafetuosos:beijinhos,bombocados,suspiros,sonhos

    Apsumperodoemquemepareceuque fui suficientemente testadaquantominhaconfiabilidade,Raquelmepediuquelhefizessedesenhoscommeusdedosemsuascostas.Oprimeirodesenhoporelasolicitadofoiumcorao.Eutinhaquefazerdiversosdesenhosnassuascostas,eelatentavaadivinharoqueera.Eutocavasuascostasdevriasmaneiras:maisforte,maisfraco,emcrculos,emdeterminadospontos,eassimpordiante.Raquelficavaextremamenteatenta,epareciaficarextasiada.Eutomavacuidadoparaqueestestoquesnotivessemumaconotaoerotizada,poismepareciaquenessecasoestara-mossaindodelimitesqueprecisavamficarclaros.Abrincadeiradetoquespassouafazerparterotineiradenossassesses.svezesmeeraimpactanteobservaraquelameninaquepareciaquerertercertezadequepoderamosestarjuntas,semarefernciavisual,masporumcontatodepele.Umadasmaioresangstiasdapaciente,queestavasemprepresentenas sesses,erao temordeperderquemelaamava.Sentirmeus toquesemsuascostaspareciadar-lheumadimensoconcretadequeeuestavade fatoalicomela,quenossovnculoerareal,eera issoqueeu lhe falavaenquantoestvamosnabrincadeira.numasessoemqueguardouomaterialqueestavautilizandodezminutosantesdofimdonossohorrio,angustiadacomaseparaoqueiriaocorrer,pediu-meparafazerabrincadeiradostoques.nessediatinhachegadocomumacestadequindins.Aotocarsuascostascomosmeusdedos,euialhedizendoqueoqueelaqueriamesmoerapreencherocoraoquehaviadentrodela,comooqueeuestavadesenhando,dequindins-amor,quindins-afeto,

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    doces-intimidade, equeela sentiauma fomemuitograndede tudo isto.Raquel,muitoatenta,completavaasminhasfrases,pareciasorverminhaspalavras,eespecialmenteostoques.Instalou-seentrensumclimademuitaemoo

    Eupensavanasuaseparaoemrelaomebiolgica,enoquantolhefaltoupo-derterumcontatodepelecomela,dandocontinuidadesuavivnciaintrauterina.Ima-ginavaqueapacientepoderiaestarprocurandoestabeleceressecontatoatravsdatrans-ferncia,comosedestaformapudesserecuperarumobjetoperdido,ouentoconstruiralgoquenosedeu.Ojogodeadivinhaopareciasereferiraumtipodecomunicaono-verbalquepoderiaseestabelecerentrens,prpriadobebpequenocomame,nosseusprimeirostemposdevida.Ocoraodesenhadopoderiaestarfalandodeamor,eestarassociadoideiadereencontrocomamebiolgicaperdida.Poderiatambmindicaraadooqueelaesperavaquefossefeitapormim.Afinal,nousualsechamarofilhoado-tivodefilho do corao?

    nummomentoposteriordoprocessopsicanaltico,quandoRaquel jestavabas-tanteligadaamim,tivemosumasessoquemepareceuestarassociadaacontedosbas-tanteregressivos.numcertomomentodasessoelapediuparairaobanheiro,queficaao ladodaminha salade atendimento.Aps algum tempo,paraminha surpresa, ouvi:tum,tum,tum.Pareciaalgumbatendonaparededobanheiroquecontguaminhaparede.Aguardeiumpouco,enovamente:tum,tum,osomserepetia.CompreendiqueRaquelqueriamecomunicaralgo,eresolvientrarnabrincadeira.Batinaminhaparede,nomesmoritmo:tum,tum.Tiveaimpressodequeaminhainterlocutoraficoufeliz,poislogobateu:tum,tum,tum,tum.Respondi:tum,tum,tum,tum.Elacontinuou:tumtumtum...Devolvi:tumtumtum...Assim,porcercade15minutos,ficamosbatendonaparede,cadaumadeumlado,emdiversosritmos,eusempreacompanhandooritmoqueelainiciava.Eunopodiav-la,masparecia-meummomentodebelezam-gica,umexercciodesintonia.Assemelhava-seaumaformadesecomunicardistncia,deverificarsepodamosexistirumaparaaoutrasemqueestivssemosfisicamentejuntas.Vinhatambmminhamenteaassociaocomasbatidasdedoiscoraes,separadosporumabolsaamniticasimblica,aparedequeestavaentrens.Assimcomonabrincadeiradostoques,Raquelpareciaestarbuscandoamebiolgicaperdida,dequemtalveztivesseretido,comoumalembranasensorial,obarulhodasbatidasdocorao.Haviaaindanestebaterconcatenadooutropontoimportante:eumeadaptavasbatidasdela.Eraelaquemimprimiaoritmoea intensidadedasbatidas,eeuaacompanhava. Instaurava-seentrensapresenadamequecriadapelobeb,conformedescreveutobemWin-nicott(1971/1975).nestasesso,aovoltarparaaminhasala,Raquelmeperguntou:vocouviu?.Indicavacomissoqueaindalheeramuitodifcilassimilaremanteraideiadequeeraeuapessoacomquemsecomunicavanumnveltoprimitivo.Parecia-lhemaisumsonhocomameperdidaouidealizada,doqualacordavaaomeverconcretamente.

    Apartirdessasesso,frequentementeRaquelrepetiaasbatidasnaparede.Erammo-mentosdetamanhabeleza,quepoderiamcorresponderaoqueBollas(1992)denominoumomento esttico:ummomentode comunicao subjetivaprofunda comumobjeto.Segundoesseautor,momentoscomoesses so sentidoscomo familiares, sagrados, e sesobressaemcoernciacognitiva.Soregistradosmaisnoserdoquenamente,porqueexpressamexperinciasdecomunicaoprimordialcomooutro,numnvelpr-verbal.

    Compartilhvamos,Raquel e eu, o sentimento de que estvamos experienciandoalgoimponente,especial.Euhaviasidoproibidaporeladefalarexplicitamentesobreo

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    temadaadoo,masquandoRaquelvoltavaparaasala,eucomentavacoisascomo:puxa,nsestamosnoscomunicandoporumaoutra lngua,adasbatidascomosepuds-semosestartojuntas,quasegrudadas,mastambmseparadasporessanossaparedesabemosqueumacontinuaexistindoparaaoutra,mesmoquenonosvejamospareceatumamecomseubeb,quandoeleestnasuabarriga.Otemadarelaome-filha,daseparaoefalhasprecocespodiasertratadobaseadonaobservaodanossarelao,semquenessemomentotivssemosquecitardiretamentesuahistriadevida.Seupassadoestaval,presentenonossocontato,vivo,emodificadopeloqueaduplaanalticapeculiarestavaexperimentando

    OprocessoanalticodeRaquelpossibilitou-lheumamelhorasubstancialnosseussintomas.Seurendimentoescolarmelhorou,conseguiufazerumadietaeemagreceuvriosquilos,asbrigascomospaisdiminuramsensivelmenteassimcomoomedodedormirsozinha.nas sesses, tornou-semais competitiva emenos boazinha.Comeava a ex-perimentaraminhapossibilidadedesobreviveraseusimpulsosmaisinstintivos.Acadapasso,noentanto,surgiaotemordequeeunoasuportasseoudequealgoacontecesseeresultassenumaseparaotraumtica.nestesmomentos,Raquelrecorriasbrincadeirasdostoquesedasbatidas,comoformadesecertificardequecontinuvamosjuntas.

    Aanlisefoiposteriormente interrompidadeformaabruptapelospais,queenal-teceramasvisveismelhorasdafilha,masalegaramdificuldadesfinanceiras.Sentiam-seextremamenteenciumadoseameaadospela ligaoqueestaltimaestabeleceucomaanalista,comoseRaqueltivessereencontradoamebiolgicaqueviriaretomarafilha.Asfantasiasderouboencontraramterrenofrtilparasedesenvolver.

    Raqueleeupudemosnosencontrarmaisumavez.Aconteceuafinaloqueelatantotemia:umprocessodeseparaotraumtico,precoce.Repetia-seentrensahistriadesuavida,parecidaaoqueviveucomaseparaodamebiolgica.Essavivnciatambmdespertavaemmimsentimentos,comoseahouvessemarrancadodemim,comoumamequeperdesubitamenteoseubeb,nummomentoemqueestenecessitaprimordialmentedela.

    Raquelescreveu-meumbilhete,aoencerrarmosnossotrabalho:Fico chateada por sair,mas no vou esquecer de voc e nem voc demim, eu

    espero.Apesardetermosvividoaamputaodeumarelaoquevinhatrazendomuitos

    frutos,obilhetedeRaquelmostravaqueo trabalho feitohaviadeixadoresultadoscon-sistentes,queelalevavaconsigo.Elapdereconhecerqueestavachateadacomofimdaanlise,noprecisandorecorrertomaciamenteadefesasmanacascomoocorriaante-riormente.Almdisso,expressavaaesperanadequeapesardeestarmosseparadas,algoimportantesemantinha,enoseriaesquecido.Aparedequenosseparavatinhasetornadomuitomaisgrossa,maselaesperavaqueasnossasbatidasficassemgravadascomoobjetosbonssolidamenteinternalizados

    4. Recordar, repetir, elaborar e construir

    EncontramosnoprocessoanalticorealizadocomRaquelasobservaesfeitasporFreud(1914/1980),sobreatendnciaarepetirnaanliseossentimentos,afetosefantasias,referentessexperinciasiniciaisquenoforambemintegradas.Apacientepdeutilizaro

  • Recordar,repetir,elaborareconstruirGinaKhafifLevinzon 161

    espaoeapresenadaanalistaparatrazertonaaspectoscruciaisdeseupsiquismo,comoagrandecarnciadeumobjetomaternoconsistente,suafixaooral,amagnitudedesuasangstiasdeperdaeseparaodaspessoasaquemestavaligada.

    Emcertosmomentosdassesses,pormeiodatransfernciaestabelecida,aanalistarepresentavaparaapacienteamebiolgicaperdida,dequemouviaasbatidasconcate-nadasdocorao,ousentiaotoquedapele.Emoutrasocasies,aanalistafaziaopapeldeumameadotivaquepoderiareceb-lacomtodaasuacontinnciaecarinho.Porvezes,Raquelprojetavaaindaafiguradeumameidealizada,donadeumagrandepadariasim-blica,fonteinesgotveldeleiteesatisfao.Haviaaindaumfantasmaqueserepetiaeeraidentificadocomaanalista,especialmenteaoseaproximarofimdassesses:apessoaqueaabandonariaeafariasofrermuito.Maisainda,quandojhavamoscaminhadobastantenaanlise,surgiaocasionalmentenatransfernciaopersonagemdeumamulhercomquemsecomparavaecompetia.

    Podemosobservarqueosdiversospontostratadosprovinhamdediversosextratosdamente,desdeosmaisprimitivos,atosmaisevoludosemtermosdedesenvolvimentomental,comoaquelesquetinhamcomotemaacompetio.Todoseles,comoummosaico,representavamalgoqueserepetia,embuscadeelaborao.nosebaseavamapenasemfatosvividosousentimentosreprimidos.Haviaasexperinciastraumticas,comooaban-donodamebiolgica,easdificuldadescomameadotiva.Aoladodelas,seencontravamasfantasiasesentimentosdeRaquel,entrelaadoscomseusimpulsosedesejospeculiares.

    Asbrincadeirasdetoquesedasbatidasnaparedepodiamserconsideradasrememo-raesdeexperinciaspassadas,abortadasnasuacontinuidade,etraumticas.Pareciamsereferiracomunicaesdeumapocaemqueaspalavraseospensamentosaindanoexis-tiam.Estavamsendorepetidasnasituaoanaltica,indicandoqueprovavelmentehouveumregistromnmicoemalgumnvelsensorial.Osettinganalticopermitiuquepudessemserrecuperadasepassassematerumsignificadocompartilhado.

    AanlisedeRaquelincluiumomentosdemuitaregresso,queiamaoencontrodasobservaesdeWinnicott(1954-1955/1988a)queafirmaqueoindivduodefendeseuselfcontraofracassoambientalespecficopormeiodeumcongelamento da situao de fra-casso.Humaconvicoinconsciente,quepodesetornarumaesperanaconsciente,dequeemalgummomentosurgiraoportunidadedeumaexperinciaquedescongelar asi-tuaodefracasso.Oindivduo,pormeiodaregresso,reexperimentaressaexperincia,masagoraemummeioambientequefaraadaptaoadequada.nestecaso,aregressofazpartedoprocessodecura.

    PodemospensarqueRaquelconduziaaanalistaapontosdecongelamentodefracas-soambiental,aoevocarexperinciasintrauterinasoudecontatoprimitivodepele.Espera-vapoderrecuperarumachavequefoiperdida,adaexistnciadeumamecomcheiro,cor,som,coraofamiliares.Mas havia algo que ia alm da rememorao. Ela esperava que algo acontecesse, algo que lhe faltava, que era essencial, mas no sabia o que era Algo precisava ser construdo, e dependia do outro para isto.

    Quandobrincvamoscomostoquesnaparede,haviaumdetalheimportante:era Raquel quem imprimia o ritmo e a intensidade deles.Destaforma,elacriava aanalista.Eraalimentadaailuso,primordialnaconstruodopsiquismodobeb,dequeelaeraares-ponsvelpeloaparecimentoedesaparecimentodoobjeto,dequeaexistnciaeaodeledependiam dela.destaformaqueoindivduosaudvelseapropriadomundonumafaseprimitivadavidaesesentevivoecriativo.Raquelnecessitavadeumespaoquelhepermi-

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    tissecadavezmais,pelotemponecessrio,viveraexperinciadeencontrarumobjetoquepudesseseadaptaraela,acompanhando-ano seu ritmo,ena sua intensidade.Algoquenohaviaacontecidodeformasatisfatriaprecisavaacontecer.O quese repetia neste caso era a sensao de quefaltava algo primordial a ser construdo

    Orecordar naanlise,descritoporFreud(1914/1980),parece,ameuver,apoiar-senaconcepodequealgojpresentenoindivduosertrazidotona,algoqueelejca-pazderepresentarinconscientemente.numacontribuiointeressante,Roussillon(1999)ressaltaqueaatividaderepresentativainconscienteresultadeumprocessopsquico:umaproduoque socorre se algumascondies intrnsecas e extrnsecas so reunidas.Apsique,mesmonosseusaspectosinconscientes,dependedecondiesambientais.Elaseformaapartirdainteraocomoobjetoexterno,comonabrincadeiraadois.

    ParaWinnicott (1962/1983), odesenvolvimento emocional ocorrena criana se-guindoumatendnciainataparaoamadurecimento,maselesseddefatoquandoseprovaelacondiesambientaissuficientementeboas.Sdessaformaobebdesenvolveumsentimentodeintegraoedeexistnciaprpria.Esseumlongocaminho,queper-mitecrianaaconstruo gradativa do seuself,easensaodeser real.ComoafirmaDias(2003),mesmoquandoasestruturasbiolgicasecerebraisestointactas,oternascido,simplesmente,nogarantequesejamalcanadososentimentodeestarvivo,desentir-serealedepoderfazerexperinciassentidascomoreais(p.97).ainteraoprimitivaade-quadaentreoindivduoeoambientecuidadorquepermiteaconstruopaulatinadeumsi-mesmointegrado.

    nasituaoanalticacriadoumespaopotencialquepermiteaosujeitosedesen-volvercriativamenteourestabelecerumareadebrincadeiracomprometidapeloimpac-todeumazonatraumtica.Oanalistaofereceaoanalisandooambientesuficientemente bom, quepermiteaesseltimoretomarocursocrescentedeseudesenvolvimentoemo-cional. Aoladodarecordaodoquefoireprimido,abre-seespaoparaaconstruo dosaspectosdesimesmoqueficaramcomoquecongelados,esperadeumentornoadequadoparaesteprocessovital.

    AbrincadeiradostoquesnacostasdeRaquel,porexemplo,podiaterosentidodepermitirqueelaconstrusse,comoauxliodaanalista,umaestruturapsquicacapazdeconterdeformamaisintegradaaspartesdoseuself.AutorescomoEstherBick(1968)eAnzieu(1985)apresentamimportantesmetforasdaconstruodasprimeirasformasdediferenciaodoeu,comparando-asdelimitaodadapelapeleaoscontedosinternosdocorpo.noestadono-integradoprimitivo,acriananecessitaencontrarumobjetocon-tinentequeaospoucosintrojetado,epermitedesenvolverumapelepsquica.Aosentirostoquesdemeusdedosemsuapele,pelecompele,Raquelpareciaestarembuscadesteobjeto,destadelimitaodesimesmaapartirdocontatocomooutro.

    Orecordar,repetir,elaborareconstruirexpressadeformamagistralariquezadaclnicapsicanaltica.Elapermitecomqueopassado,presentee futuropossamterumamaiorintegrao,aoabrirespaoparaarestauraodoquejfoivividomasficoudani-ficado,eparaaconstruo inesgotveldoselementosqueformamumserhumanomaispleno.

  • Recordar,repetir,elaborareconstruirGinaKhafifLevinzon 163

    Recordar, repetir, elaborar y construir: la bsqueda del objeto materno en el anlisis de una nia adoptiva

    Resumen: Este trabajo examina el acto de recordar, repetir y elaborar, y destaca la dimensin de cons-truir condiciones necesarias para el desarrollo primitivo de personas que presentan fallas iniciales bsicas. Es relatado el caso clnico de una nia adoptiva que presentaba un comportamiento bastante regresivo, preverbal, y buscaba insertar un objeto materno consistente. La adopcin y las angustias de los padres adoptivos aparecen como teln de fondo en la evolucin del proceso analtico.Palabras clave: recordar; repetir y elaborar; construccin; adopcin; regresin; objeto materno; anlisis de los nios.

    Remembering, repeating, working-through and constructing: The search for the maternal object in the analysis of an adopted girl

    Abstract: This paper examines remembering, repeating, and working-through in analysis, emphasizing the importance of the construction of necessary conditions for the early development of people who pres-ent initial basic faults. A clinical case is described in which an adopted girl presented through transference a very regressive and pre-verbal content and sought the introjection of a consistent maternal object. The adoption and the adoptive parents anxieties appeared as a backdrop in the development of the analytic process, and are also analyzed.Keywords: remembering; repeating and working-through; construction; adoption; regression; maternal object; children analysis.

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  • 164 RevistaBrasileiradePsicanliseVolume44,n.42010

    [Recebidoem23.2.2010,aceitoem21.8.2010]

    GinaKhafifLevinzon

    [SociedadeBrasileiradePsicanlisedeSoPauloSBPSP]

    RuaArthurdeAzevedo,243|CerqueiraCsar

    05404-010SoPaulo,SP

    [email protected]