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WOOD, Ellen M. Democracia contra o Capitalismo: a renovação do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo, 2010. Introdução Caráter fragmentário do capitalismo avançado - caracterizado pela cultura do Pós modernismo e pela economia política do Pós fordismo. Num mundo fragmentado, composto de sujeitos descentrados, no qual conhecimentos totalizadores são impossíveis e indesejáveis, que outro tipo de política poderia existir, senão uma espécie de radicalização descentralizada e intelectualizada do pluralismo liberal? O núcleo do materialismo histórico foi a insistência na historicidade e especificidade do capitalismo, e a negação de que suas leis fossem as leis universais da história. Capitalismo como um momento não eterno, com origens históricas, dotado de uma ima lógica sistêmica específica. Se existe hoje um tema unificador entre as várias oposições fragmentadas ao capitalismo, esse tema é a democracia. Vê-se então a democracia como um desafio ao capitalismo. Se o caráter definidor do capitalismo como terreno política é a “separação formal entre o econômico e o político”, ou a transferência de certos poderes políticos para a “economia” e para a “sociedade civil”, quais as consequências para a natureza e o alcance do Estado e da cidadania ? A SEPARAÇÃO ENTRE O “ECONÔMICO” E O “POLÍTICO” NO CAPITALISMO A intenção original do materialismo histórico era oferecer fundamentação teórica para se interpretar o mundo a fim de mudá- lo, capaz de esclarecer os pontos no quais a ação política poderia intervir com mais eficácia. Depois de Marx, houve uma tendência a perpetuar a rígida separação conceitual entre o “econômico” e o “político”, principalmente desde que os economistas clássicos descobriram a “economia” na teoria e começaram a esvaziar o capitalismo de conteúdo político e social.

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WOOD, Ellen M. Democracia contra o Capitalismo: a renovação do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo, 2010.

Introdução

Caráter fragmentário do capitalismo avançado - caracterizado pela cultura do Pós modernismo e pela economia política do Pós fordismo.

Num mundo fragmentado, composto de sujeitos descentrados, no qual conhecimentos totalizadores são impossíveis e indesejáveis, que outro tipo de política poderia existir, senão uma espécie de radicalização descentralizada e intelectualizada do pluralismo liberal?

O núcleo do materialismo histórico foi a insistência na historicidade e especificidade do capitalismo, e a negação de que suas leis fossem as leis universais da história.Capitalismo como um momento não eterno, com origens históricas, dotado de uma ima lógica sistêmica específica.

Se existe hoje um tema unificador entre as várias oposições fragmentadas ao capitalismo, esse tema é a democracia. Vê-se então a democracia como um desafio ao capitalismo.

Se o caráter definidor do capitalismo como terreno política é a “separação formal entre o econômico e o político”, ou a transferência de certos poderes políticos para a “economia” e para a “sociedade civil”, quais as consequências para a natureza e o alcance do Estado e da cidadania?

A SEPARAÇÃO ENTRE O “ECONÔMICO” E O “POLÍTICO” NO CAPITALISMO

A intenção original do materialismo histórico era oferecer fundamentação teórica para se interpretar o mundo a fim de mudá-lo, capaz de esclarecer os pontos no quais a ação política poderia intervir com mais eficácia.

Depois de Marx, houve uma tendência a perpetuar a rígida separação conceitual entre o “econômico” e o “político”, principalmente desde que os economistas clássicos descobriram a “economia” na teoria e começaram a esvaziar o capitalismo de conteúdo político e social.

É preciso, então, realizar um reexame das condições históricas que tornaram possíveis essas concepções, para entender o que aparece como uma diferenciação de “esferas”, principalmente a “econômica” e a “política”.

A questão é explicar como e em que sentido questões essencialmente políticas, como a disposição do poder de controlar a produção e a apropriação, ou a alocação do trabalho e dos recursos sociais, foram afastadas da arena política e deslocadas para uma outra esfera.

“FATORES” ECONÔMICOS E POLÍTICOS

Marx mostrou o mundo no seu aspecto político não apenas nas suas obras explicitamente políticas, mas até mesmo nos seus textos econômicos mais técnicos. O segredo fundamental da produção capitalista revelado por Marx refere-se às relações sociais e à disposição do poder

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que se estabelecem entre os operários e o capitalista para quem vendem sua força de trabalho. Esse segredo tem um corolário: a disposição de poder entre o capitalista e o trabalhador tem como condição a configuração política do conjunto da sociedade – o equilíbrio de forças de classe e os poderes do Estado que tornam possível a expropriação do produtor direto, a manutenção da propriedade privada absoluta para o capitalista, e seu controle sobre a produção e a apropriação.

A própria estrutura do argumento sugere que, para Marx, o segredo último da produção capitalista é político. O que radicalmente distingue sua análise da economia política clássica é que ela não cria descontinuidades nítidas entre as esferas econômica e política; e ele é capaz de identificar as continuidades porque trata a própria economia não como uma rede de forças incorpóreas, mas, assim como a esfera política, como um conjunto de relações sociais.

EM BUSCA DE UMA ALTERNATIVA TEÓRICA: RECONSIDERAÇÃO DE “BASE” E “SUPERESTRUTURA”

O capital é uma relação social de produção, com categorias econômicas que expressam certas relações sociais determinadas.

A base produtiva existe na forma de processos e relações sociais específicos e de formas jurídicas e políticas particulares.

A premissa aqui é que o modo de produção não existe em oposição aos “fatores sociais”, e que a inovação radical de Marx em relação à economia política burguesa foi precisamente a definição do modo de produção e das próprias leis econômicas em termos de “fatores sociais”.

Existem então pelo menos dois sentidos em que a “esfera” jurídico-política se confunde com a “base” produtiva. Primeiro, um sistema de produção sempre existe na forma de determinações sociais específicas, os modos particulares de organização e dominação e as formas de propriedade em que se incorporam as relações de produção – que podem ser chamadas de “básicos” para distingui-los dos atributos jurídico-políticos “superestruturais” do sistema produtivo. Segundo, do ponto de vista histórico, até mesmo as instituições políticas como a aldeia e o Estado entram diretamente na constituição das relações de produção e são de certa forma anteriores a elas (mesmo quando essas instituições não significam instrumentos diretos de apropriação de mais-valia), porque as relações de produção são historicamente constituídas pela configuração de poder que determina o resultado do conflito de classes.

O “ECONÔMICO” E O “POLÍTICO” NO CAPITALISMO

O que significa então dizer que o capitalismo é marcado por uma diferenciação única da esfera “econômica”? Significa, acima de tudo, que a apropriação do excedente de trabalho ocorre na esfera “econômica” por meios “econômicos”. Em outras palavras, obtém-se a apropriação da mais-valia por meios determinados pela separação completa do produtor das condições de trabalho e pela propriedade privada absoluta dos meios de produção pelo apropriador. Em

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princípio, não há necessidade de pressão “extra-econômica” ou de coação explícita para forçar o operário expropriado a abrir mão de sua mais-valia. Embora a força de coerção da esfera política seja necessária para manter a propriedade privada e o poder de apropriação, a necessidade econômica oferece a compulsão imediata que força o trabalhador a transferir sua mais-valia par ao capitalista a fim de ter acesso aos meios de produção.

A diferenciação da esfera econômica no capitalismo pode, portanto, ser assim resumida: as funções sociais de produção e distribuição, extração e apropriação de excedentes, e a alocação do trabalho social são, de certa forma, privatizadas e obtidas por meios não autoritários e não políticos. Em outras palavras, a alocação social de recursos e de trabalho não ocorre por comando político, por determinação comunitária, por hereditariedade, costumes nem por obrigação religiosa, mas pelos mecanismos do intercâmbio de mercadorias. Os poderes de apropriação de mais-valia e de exploração não se baseiam diretamente nas relações de dependência jurídica ou política, mas sim numa relação contratual entre produtores “livres” – juridicamente livres e livres dos meios de produção – e um apropriador que tem a propriedade privada absoluta dos meios de produção.

Em todos os sentidos, apesar de sua diferenciação, a esfera econômica se apoia firmemente na política. O que ocorre é que a esfera política no capitalismo tem um caráter especial porque o poder de coação que apoia a exploração capitalista não é acionado diretamente pelo apropriador nem se baseia na subordinação política ou jurídica do produtor a um senhor apropriador. Mas são essenciais um poder e uma estrutura de dominação, mesmo que a liberdade ostensiva e a igualdade de intercâmbio entre capital e trabalho signifiquem a separação entre o “momento” da coação e o “momento” da apropriação. Propriedade absoluta, relações contratuais e o aparelho jurídico que as sustenta são condições jurídicas das relações de produção capitalista; e constituem a base de uma nova relação de autoridade, dominação e subjugação entre apropriador e produtor.

O correlato dessas formas econômicas e jurídico-políticas privadas é uma esfera política pública especializada. A autonomia do Estado capitalista está inseparavelmente ligada à uma nova forma de autoridade sobre os produtores. É esse o significado da divisão do trabalho em que dois momentos de exploração capitalista – apropriação e coação – são alocados separadamente à classe apropriadora privada e a uma instituição coercitiva pública, o Estado: de um lado, o Estado “relativamente autônomo” tem o monopólio da força coercitiva; do outro, essa força sustenta o poder econômico” privado que investe a propriedade capitalista da autoridade de organizar a produção - uma autoridade provavelmente sem precedentes no grau de controle sobre a atividade produtiva e os seres humanos nela engajados.

Em certo sentido, então, a diferenciação entre o econômico e o político no capitalismo é mais precisamente a diferenciação das funções políticas e sua alocação separada para a esfera econômica privada e para a esfera pública do Estado. Essa alocação separa as funções políticas imediatamente interessadas na extração e apropriação de mais-valia daquelas que têm um propósito mais geral ou comunitário. Essa formulação, que sugere ser a diferenciação do econômico na verdade uma diferenciação dentro da esfera política, é sob certos aspectos mais adequada para explicar o processo único de desenvolvimento ocidental e o caráter especial do capitalismo.

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FEUDALISMO E PROPRIEDADE PRIVADA

A organização capitalista de produção pode ser considerada o resultado de um longo processo em que certos poderes políticos se transformaram gradualmente em poderes econômicos e foram transferidos para uma esfera independente. A organização da produção sob a autoridade do capital pressupõe a organização da produção e a reunião de uma forma de trabalho sob a autoridade de formas anteriores de propriedade privada. O processo pelo qual essa autoridade da propriedade privada se afirmou pela reunião nas mãos do proprietário privado, e para seu próprio benefício, do poder de apropriação e da autoridade para organizar a produção, pode ser visto como a privatização do poder político. A supremacia da propriedade privada absoluta parece ter se estabelecido em grande parte por meio da devolução política, a apropriação pelos proprietários privados de funções originalmente investidas na autoridade pública ou comunitária.

A característica essencial do feudalismo foi, portanto, a privatização do poder político que significou uma integração crescente da apropriação privada com a organização autoritária da produção. O desenvolvimento do capitalismo a partir do sistema feudal aperfeiçoou essa privatização e essa integração – pela expropriação completa do produtor direto e pelo estabelecimento da pripriedade privada absoluta. Ao mesmo tempo, esses desenvolvimentos tiveram como condição necessária uma forma nova e mais forte de poder público centralizado. O Estado tomou das classes apropriadoras o poder político direto e os deveres não imediatamente associados à produção e à apropriação, deixando-as com poderes privados de exploração depurados de funções públicas e sociais.

FIM