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Recuperando a memória historiográfica dos moradores: escola e comunidade trabalham juntos na construção da cidadania Adriano de Souza Viana* Izabella Costa Santiago** 1 Resumo O presente trabalho, fruto de uma pesquisa que está em construção, pretende expor a experiência pedagógica desenvolvida em uma escola municipal de ensino fundamental situada em um bairro do município de Vitória, ES. Tal experiência busca levar os estudantes a fazer uma leitura histórica dos espaços que compõem o bairro, como escadarias, becos, vielas, etc. propiciando um sentimento de pertença ao local onde residem e uma conscientização crítica sobre a realidade socioambiental onde estão inseridos. Trata-se de relatar um estudo de caso de uma ação educacional, que a partir da perspectiva da Pedagogia Histórico-Crítica de Demerval Saviani, também conhecida como pedagogia dialética, que permitirá articular o trabalho pedagógico com as relações sociais. Esse pensador será um dos referenciais teóricos da pesquisa em questão. Busca sistematizar a historicidade das narrativas de estudantes que são moradores do bairro e posteriormente subsidiar uma reflexão mais aprofundada sobre os elementos que compõem a vida social e os impactos ambientais que a relação do ser humano com a natureza causa nos espaços da cidade. Os estudantes produzirão relatos para recuperar memórias sobre os ambientes que formam o bairro. Ouvirão o relato dos moradores mais antigos do bairro registrando-os e transformando-os em textos que serão produzidos a partir de oficinas que serão vivenciadas na escola. Tais produções serão devolvidas à comunidade através de exposição e relatos, permitindo que os moradores e estudantes envolvidos se apropriem positivamente de suas histórias, cultura, e ambiente. Os dados construídos serão analisados a partir do método dialético hermenêutico. A investigação é importante na medida em que a amplia do grau de pertencimento e a noção de cidadania dos estudantes envolvidos no projeto. Com isso, pretende-se que uma compreensão de cidadania emancipatória seja desenvolvida, criticando a lógica cultural que dissemina uma “cidadania” alienada e consumista na relação com os ambientes onde se vive. Palavras-chave: Historiografia, Cidadania, pertencimento, pedagogia histórico-crítica INTRODUÇÃO Esse presente artigo nasceu dentro das pesquisas em desenvolvimento junto a uma unidade escolar municipal da cidade de Vitória, ES. Exporemos, num primeiro momento, o referencial teórico metodológico que alicerça nossa análise da atividade pedagógica realizada. Partiremos da descrição do que se compreende por Pedagogia Histórico-Crítica. Em um segundo tópico, descreveremos o processo de ação educativa utilizado para produzir 1 * Mestrando do Programa de Pós Graduação em Ensino de Humanidades do IFES, Campos Vitória, ES. ** Mestranda do Programa de Pós Graduação em Ensino de Humanidades do IFES, Campos Vitória, ES.

Recuperando a memória historiográfica dos moradores: escola e … · 2016. 11. 18. · Portanto, a origem e consolidação da PHC estão associadas ao trabalho coletivo de vários

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  • Recuperando a memória historiográfica dos moradores: escola e comunidade trabalham juntos na construção da cidadania

    Adriano de Souza Viana*

    Izabella Costa Santiago**1 Resumo O presente trabalho, fruto de uma pesquisa que está em construção, pretende expor a experiência

    pedagógica desenvolvida em uma escola municipal de ensino fundamental situada em um bairro do

    município de Vitória, ES. Tal experiência busca levar os estudantes a fazer uma leitura histórica dos

    espaços que compõem o bairro, como escadarias, becos, vielas, etc. propiciando um sentimento de

    pertença ao local onde residem e uma conscientização crítica sobre a realidade socioambiental onde

    estão inseridos. Trata-se de relatar um estudo de caso de uma ação educacional, que a partir da

    perspectiva da Pedagogia Histórico-Crítica de Demerval Saviani, também conhecida como pedagogia

    dialética, que permitirá articular o trabalho pedagógico com as relações sociais. Esse pensador será um

    dos referenciais teóricos da pesquisa em questão. Busca sistematizar a historicidade das narrativas de

    estudantes que são moradores do bairro e posteriormente subsidiar uma reflexão mais aprofundada

    sobre os elementos que compõem a vida social e os impactos ambientais que a relação do ser humano

    com a natureza causa nos espaços da cidade. Os estudantes produzirão relatos para recuperar

    memórias sobre os ambientes que formam o bairro. Ouvirão o relato dos moradores mais antigos do

    bairro registrando-os e transformando-os em textos que serão produzidos a partir de oficinas que serão

    vivenciadas na escola. Tais produções serão devolvidas à comunidade através de exposição e relatos,

    permitindo que os moradores e estudantes envolvidos se apropriem positivamente de suas histórias,

    cultura, e ambiente. Os dados construídos serão analisados a partir do método dialético hermenêutico.

    A investigação é importante na medida em que a amplia do grau de pertencimento e a noção de

    cidadania dos estudantes envolvidos no projeto. Com isso, pretende-se que uma compreensão de

    cidadania emancipatória seja desenvolvida, criticando a lógica cultural que dissemina uma “cidadania”

    alienada e consumista na relação com os ambientes onde se vive. Palavras-chave: Historiografia, Cidadania, pertencimento, pedagogia histórico-crítica

    INTRODUÇÃO

    Esse presente artigo nasceu dentro das pesquisas em desenvolvimento junto a uma

    unidade escolar municipal da cidade de Vitória, ES. Exporemos, num primeiro momento, o

    referencial teórico metodológico que alicerça nossa análise da atividade pedagógica realizada.

    Partiremos da descrição do que se compreende por Pedagogia Histórico-Crítica. Em um

    segundo tópico, descreveremos o processo de ação educativa utilizado para produzir

    1* Mestrando do Programa de Pós Graduação em Ensino de Humanidades do IFES, Campos Vitória, ES. ** Mestranda do Programa de Pós Graduação em Ensino de Humanidades do IFES, Campos Vitória, ES.

  • memórias nos estudantes, e a forma como se trabalhou na produção de textos literários. E por

    fim, apresentaremos uma análise dialética do conteúdo dos textos redigidos pelos estudantes.

    1 A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA

    O referencial teórico e metodológico para a prática de ensino utilizado na análise das

    atividades realizadas na recuperação da memória historiográfica dos estudantes foi a reflexão

    de Demerval Saviani e seus colaboradores. Neste tópico será apresentada a origem da

    Pedagogia Histórico-Crítica (PHC) e a dialética proposta nos cinco momentos para a

    dinâmica do trabalho educativo.

    1.1 Origem da Pedagogia Histórico-crítica

    O nascimento da proposta educativa da PHC está diretamente ligado ao trabalho do

    professor Demerval Saviani. No entanto, é importante fazer uma consideração destacada por

    Costa e Loureiro (2015), quando falam sobre tal surgimento. Escrevendo sobre a contribuição

    de Saviani eles afiançam que “sua Pedagogia Histórico-Crítica não é uma proposta educativa

    formulado somente por ele, mas por um conjunto de pesquisadores que, desde fins da década

    70 e começo da década de 80, dialogam acerca da realidade brasileira” (COSTA; LOUREIRO,

    2015, p. 185). Portanto, a origem e consolidação da PHC estão associadas ao trabalho coletivo

    de vários pesquisadores e pesquisadoras no campo da educação e ensino.

    A obra que marca o início da reflexão sistematizada é o livro Escola e Democracia

    (1987) de Saviani. Na terceira parte do livro, intitulada “Escola e Democracia II: para além da

    teoria da curvatura da vara”, o autor descreve os cinco momentos que caracterizam a dinâmica

    dialética da proposta educativa (SAVIANI, 1987, p. 79-81). Ele apresenta os cinco momentos

    como uma proposta de superação dos métodos da Pedagogia Tradicional e da Pedagogia Nova.

    Costa e Loureiro(2015) ao dissertarem sobre a obra Escola e Democracia afirmam que

    o autor se coloca a favor de uma teoria crítica que, compreendida em seu caráter histórico,

    oferece respostas à questão que ele considera central: “é possível encarar a escola como uma

  • realidade histórica, isto é, suscetível de ser transformada intencionalmente pela ação humana?

    [...]”(COSTA; LOUREIRO, 2015, p. 185).

    Na obra “Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações” (1991), Saviani

    continua desenvolvendo a base epistemológica de sua proposta educativa. Ele descreve de

    maneira precisa a contribuição da tradição marxiana para seu trabalho. Ele testemunha da

    seguinte maneira.

    [...] o ponto que tenho trabalhado se reporta ao texto de Marx, “Método da economia política”, que está no livro Contribuição à crítica da economia política (MARX, 1973, p. 228-237). Nele explicita-se o movimento do conhecimento como a passagem do empírico ao concreto, pela mediação do abstrato. Ou a passagem da síncrise à síntese, pela mediação da análise. Procurei, de algum modo, compreender o método pedagógico com base nesses pressupostos (SAVIANI, 2011, p.120).

    Dessa forma, pode-se afirmar que essa segunda obra, referente à PHC, aprofunda os

    argumentos filosóficos e pedagógicos que a caracterizam. A obra amadurece a compreensão

    dos processos educativos dentro da lógica dialética. Saviani cita uma definição de educação

    extraída de outro livro seu intitulado Ensino público e algumas falas sobre universidade. Para

    ele “o trabalho educativo é ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo

    singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens”

    (SAVIANI, 2011, p.120). Vê-se claramente que a intencionalidade do ato de ensinar deve ser

    movida pelo desejo de transformação dos sujeitos humanos, para que esses atinjam a

    plenitude de seu potencial existencial, sejam emancipados, livres, autônomos, de fato pessoas

    humanas.

    E por fim, para fechar este subtópico é necessário dizer que a produção coletiva mais

    recente sobre essa proposta pedagógica é o livro “Pedagogia Histórico-Crítica 30 anos”,

    editado após o seminário que levava o mesmo nome da obra. Esse seminário realizou-se em

    2009, organizado pelo grupo de pesquisa “Estudos Marxistas em Educação”. O livro é uma

    síntese do percurso teórico que PHC tem trilhado.

    1.2 A dialética dos cinco momentos

  • A proposta da PHC, também identificada por alguns pesquisadores como “pedagogia

    dialética” (NASCIMENTO, 2015, p. 30), tem seu núcleo de prática de ensino organizada no

    movimento espiralado e crescente de cinco momentos. De forma sucinta, pode-se afirmar que

    seus fundamentos estão fincados no arcabouço teórico filosófico do marxismo, visto que a

    articulação entre os cinco momentos (prática social, problematização, instrumentalização,

    catarse e prática social) ocorre de forma dialética, buscando “compreender as determinações

    que se ocultam sob as aparências dos fenômenos que se manifestam empiricamente à nossa

    percepção” (SAVIANI, 2015, p.36). Apresenta-se a seguir, com base em Gasparin (2012),

    uma breve explanação dos cinco momentos da PHC.

    O primeiro momento é a Prática social inicial. Nesta etapa, ocorre a identificação de

    problemáticas sociais comuns a aluno e professor, ou seja, uma preocupação coletiva.

    Também podemos entender essa etapa como uma contextualização do conteúdo. Nessa fase, o

    estudante expõe o que sabe em relação àquela problemática escolhida, não sendo necessária a

    vinculação com conhecimentos científicos que se relacionam.

    O segundo momento é a Problematização. Etapa na qual se dá começo da

    transformação do conhecimento popular em conhecimento erudito. Neste momento o aluno

    identifica as questões que necessitam ser resolvidas, buscando nas disciplinas e conteúdos

    escolares elementos que auxiliem no entendimento do problema. O processo de investigação

    para solucionar as questões em estudo, é o caminho que predispõe o espírito do educando para

    a aprendizagem significativa, uma vez que são levantadas situações-problema que estimulam

    o raciocínio (GASPARIN, 2012, p. 33).

    A terceira fase é a Instrumentalização. Nela, o educando é posto diante dos

    conhecimentos teórico-científicos relacionados à problemática inicial com a intenção de

    resolvê-la. Nessa fase, a ação educativa intencional do professor apresenta ao aluno os novos

    conteúdos e conceitos de modo sistemático para promover a apropriação do conhecimento.

    Essa apropriação se dá na interação social entre os sujeitos e o objeto estudado. É nesse

    terceiro momento que os estudantes terão contato com o saber histórico e socialmente

  • produzido, o acervo cultural produzido pela humanidade, sendo capazes de, a partir dele,

    transformar sua realidade.

    O quarto momento da dinâmica dialética proposta na PHC é a Catarse. É a etapa da

    incorporação de uma nova forma de compreensão da prática social inicial que traz “elementos

    integrantes da própria vida dos alunos” (SAVIANI, 2007, p. 420). Nesse ponto, a

    compreensão sincrética, permeada de variados elementos e saberes, passa a uma síntese que

    visa resolver os problemas iniciais problematizados e instrumentalizados. Gasparin (2012)

    afirma que a catarse é a síntese do cotidiano e do científico, do teórico e do prático, marcando

    um novo posicionamento do educando em relação ao conteúdo estudado e à forma de sua

    construção social na história.

    Por fim, o quinto momento é o retorno à prática social, entendida como ponto de

    chegada da prática educativa. Inicia-se na prática social e para ela retorna. O estudante

    instrumentalizado, com a posse dos conhecimentos científicos elaborados, pode compreender

    de maneira crítica a prática social, propondo transformações que solucionem o problema

    inicial. Para Gasparin (2012) a aplicação do saber na realidade concreta é a expressão mais

    forte da prática social final, que embora assim denominada, não significa que o processo

    tenha acabado, ele continua em movimento dialético na história.

    2 A PRODUÇÃO DAS MEMÓRIAS

    Exposto o referencial da PHC, descreveremos o processo que mobilizou a produção

    das memórias junto aos estudantes envolvidos na pesquisa. A abordagem metodológica que

    será utilizada se enquadra dentro da pesquisa qualitativa tipo estudo de caso. Optamos por

    essa metodologia, pois, para André (2008, p. 33) o estudo de caso permite uma visão profunda,

    ampla e integrada de uma unidade social complexa, composta de múltiplas variáveis. Ela

    possibilita retratar situações da vida real e iluminam a compreensão do leitor sobre o objeto

    estudado. Iniciaremos relatando como se deu a participação de uma escola de ensino

    fundamental do município de Vitória/ES, na 5ª edição da Olimpíada de Língua Portuguesa em

  • 2016. E descreveremos o processo de oficinas que produziram os textos destacando os

    momentos da PHC.

    A escola tomou conhecimento deste concurso pelos meios de comunicação. O

    interesse neste evento surgiu em função do tema proposto, e também na experiência de

    produção de textos que possibilita nos estudantes a ampliação de suas competências na

    linguagem oral, na leitura e na escrita, além de aprofundar o olhar sobre o lugar em que

    vivem, aproximando a comunidade da escola. O tema “O lugar onde vivo” veio fortalecer um

    trabalho que a escola vem realizando ao longo dos últimos anos, com o objetivo de aproximar

    mais a escola e a comunidade de seus estudantes e familiares.

    Inicialmente a pedagoga conversou com as professoras de língua portuguesa sobre a

    participação na olimpíada. A equipe de língua portuguesa da escola se manifestou

    positivamente em participar do evento. Sendo assim, foram envolvidos neste processo os

    estudantes do 6º ano na categoria poema, do 8º ano na categoria memórias literárias e do 9º

    ano na categoria crônica.

    Para realizar este trabalho a organização da 5ª edição da Olimpíada de Língua

    Portuguesa disponibilizou no site “www.escrevendoofuturo.org.br” um material de apoio para

    ser utilizado em cada uma das oficinas (nas categorias: poema, memória literária, crônica) e

    também diversas orientações e propostas para auxiliarem as professoras e professores durante

    a caminhada. No site foram sugeridas algumas opções de trabalho bem interativas, oferecendo

    autonomia para os profissionais escolherem o caminho de construção.

    A participação da escola na Olimpíada da Língua Portuguesa baseou-se no princípio

    básico da formação de novos leitores, e também na oportunidade de falar sobre o lugar onde

    vivem. Para isso, cada um dos gêneros escolhidos (poemas, memórias literárias e crônicas)

    foram explorados por meio da leitura de diversos textos com diferentes abordagens, dentro de

    cada um dos gêneros. Cada oficina contava com duas horas de duração. Algumas adaptações

    aconteceram durante as oficinas propostas pela organização das Olimpíadas, sem prejuízo

    para o desenvolvimento dos trabalhos.

  • Para dar início ao processo as professoras conversavam com os estudantes sobre a

    proposta de trabalho em oficinas, e que ao final do processo eles produziriam poemas,

    memórias ou crônicas que deveriam contar sobre o lugar onde vivem. Em outras palavras, as

    professoras partiram da Prática Social inicial, nesse caso, a visão que cada estudante tem de

    seu bairro. Ao término das oficinas foi escolhido um texto de cada gênero literário da escola

    que participou da etapa municipal. Os escolhidos seguem para a etapa estadual e finalmente

    para a etapa federal. Cada uma das etapas são classificatórias. Os 500 estudantes

    semifinalistas e seus professores serão premiados com medalha, livros e participação em

    oficinas culturais e de formação, seguindo para a grande final.

    As professoras envolvidas no processo relataram que não foi fácil esta caminhada.

    Mas por outro lado, os estudantes se surpreenderam com as situações que passaram a ser

    relatadas em cada uma das oficinas/gêneros.

    O grupo que trabalhou com produção das memórias viabilizou o contato dos

    estudantes com as pessoas mais antigas do bairro para realizar a produção dos textos.

    Conversar com seus familiares ou com o vizinho mais antigo levou os estudantes a ampliarem

    seu conhecimento sobre as suas histórias pessoais e do lugar onde eles vivem.

    Nas oficinas de crônica os estudantes passaram a trazer situações que passavam

    desapercebidas no seu dia a dia. Perceberam que o local onde vivem está cheio de vida. Vidas

    que criam muitas histórias e fatos que podem ser transcritos em textos literários.

    As oficinas de poesia foram realizadas com os estudantes do 6º ano, os mais novos do

    grupo. Foram orientados a conversarem com seus familiares e seus vizinhos, e também a

    perceberem o que chamava a atenção no lugar onde vivem. Percebe-se em seus textos

    poéticos os relatos do dia a dia que vivenciam no lugar onde vivem. Eis um exemplo:

    Onde estou?

    Estou em um morro, lugar de todos. Gosto de nadar, na praia da Castanheira, lá só tem brincadeira. Pulamos de beira em beira. Na quadra fazemos zueira. Na minha rua,

  • só tem fofoqueira! A noite é só brincadeira. (K, 13 anos).

    Foi no processo de realização das oficinas que as professoras vivenciaram os

    momentos da Problematização e Instrumentalização. Dando aos estudantes os recursos

    técnico-linguísticos, e os conhecimentos necessários para a produção dos textos nos gêneros

    literários escolhidos. Nota-se que dentro da dinâmica dialética, a Cartase aconteceu em

    variados momentos da prática educativa. Ora nas entrevistas com os familiares e vizinhos, ora

    nas oficinas orientadas pelas educadoras e na produção dos próprios textos.

    Para além da participação no evento em âmbito nacional, a Escola produzirá um livro

    com os textos dos estudantes, fruto das oficinas. Foi um movimento que proporcionou ações

    que foram para além do proposto nas Olimpíadas da Língua Portuguesa, ações estas que

    ampliaram o olhar dos estudantes e da Escola para “O LUGAR ONDE VIVO”. Esse livro que

    será produzido é uma parte da Prática Social final. Uma resposta dos professores e estudantes

    para transformar a realidade onde vivem pela conscientização nos processos educativos.

    O material produzido foi analisado também para responder as interrogações da

    pesquisa de mestrado que se pretende desenvolver junto à escola. Investigação que visa fazer

    um resgate histórico do bairro e alimentar uma educação cidadã numa perspectiva crítica.

    3 ANÁLISE DIALÉTICO HERMENÊUTICA

    Ao direcionarmos um olhar interpretativo, a partir da análise dialética, percebemos

    alguns elementos dos textos produzidos pelos estudantes que merecem ser destacados.

    Focaremos nas contradições que nos ajudam a problematizar a realidade social do bairro. As

    observações não pretendem atribuir juízo de valor sobre a realidade socioambiental da

    localidade investigada, apenas se pretende mostrar as oposições presentes em uma mesma

    realidade.

    De uma forma geral, percebem-se no conteúdo dos textos (poesias, memórias e

    crônicas) alguns elementos das contradições inerentes à realidade humana. Neles está descrito

    o lado positivo do bairro onde vivem, mas, em contrapartida, também retratam os problemas

  • presentes naquele ambiente. Os poemas falam das belezas naturais e culturais do bairro. Sua

    “vista para mar”, sua “gente alegre”, suas “ruas calmas”, seu comércio, sua “praia de água

    azul”. No entanto, também aparecem elementos contraditórios a esses supracitados. Fala-se de

    “poluição”, “pilhas de lixo”, “doidos que gostam de matar”, “entrar no crime”, “crianças se

    revoltando”.

    Desta forma, nota-se que há pontos de vista diferente sobre o bairro onde se vive. Ora se

    apresenta uma visão mais positiva, porém idealizada, ora se mostra uma realidade com

    problemas socioambientais, que tocam no tema da poluição, da criminalidade ligada à

    desigualdade social. Mesmo assim, diante destas contradições percebe-se nos textos o

    sentimento de pertencimento e a visão de quem está dentro da realidade em questão.

    O texto de memórias que foi selecionado para participar da etapa municipal da

    olimpíada também destaca um elemento interessante para se pensar a relação dos moradores

    com o lugar onde se vive. Ao apresentar o relato de um morador idoso sobre seu bairro

    percebe-se que há um movimento de conscientização de classe e de autoafirmação da

    identidade local. O morador faz questão de deixar claro que prefere chamar o lugar onde mora

    de bairro, e não “morro”. Ele afirma que a visão negativa que essa palavra provoca o

    incomoda. Ou seja, temos presente nesse detalhe o fato da contradição social presente na

    cidade. O bairro está numa região que é marginalizada e recebe o estereótipo de favela. Seus

    próprios moradores resistem a essa classificação e buscam recontar e recriar o valor de seu

    ambiente de vida.

    A seguir transcreveremos um pequeno trecho da crônica que foi escolhida para

    representar a escola na etapa municipal e que, em tempo, seguiu para a etapa estadual

    representando assim, o município de Vitória nesta categoria, no estado do Espírito Santo.

    […] Neste simples momento eu pude perceber o valor de cada pessoa daquele

    lugar. O afeto ultrapassa fronteiras, mesmo sem poder, a família conseguiu um jeito

    de cuidar do cão, que só estava a defender a família. Ali estão representados toda a

    família daquela favela, mostrando simplicidade e humildade, coisas que nos

    diferenciam e nos tornam únicas em uma sociedade. Não temos riqueza material,

    mas posso dizer que o coração está cheio de amor para dar. […] (RF, 14 anos).

  • Percebe-se nestas palavras o potencial intelectual e reflexivo que está presente nos

    “adolescentes” que participaram da produção dos textos. Potencial este que através de

    movimentos simples e intencionais, no ambiente escolar, levam o outro a mostrar sua força

    crítica e literária a partir da valorização do seu espaço vivido que refletirá na construção da

    identidade individual e coletiva do lugar onde vive.

    Outro trecho da crônica apresenta a contradição social entre a realidade simples do

    bairro situado em uma região de relevo elevado as margens da baia de Vitória, e os iates de

    luxo que cruzam o mar diante dos olhos dos moradores. Esse detalhe do texto da crônica

    demostra novamente a tensão dialética que há na consciência social dos estudantes. Eles

    percebem as variantes da desigualdade social que marcam a identidade de seu bairro. Esses

    detalhes da redação foram explorados para problematizar e instrumentalizar os educandos

    envolvidos na atividade pedagógica relatada nessa pesquisa preliminar.

    CONCLUSÃO

    Ao final desse trabalho fica evidente que a metodologia da Pedagogia Histórico-

    Crítica possui um grande potencial para atividades que se objetivam trabalhar o contexto

    social e histórico com estudantes. O resgate da memória dos moradores, vinculado com a

    atividade pedagógica da área de linguagens, provocou nos estudantes novas formas de

    perceber, sentir e olhar seu próprio bairro. Estes estudantes resgatam e trazem para dentro da

    escola relatos e impressões sobre sua cultura e seus costumes, misturando o conhecimento

    sistematizado oficial com o conhecimento popular produzido pela sua comunidade. Este

    diálogo amplia a capacidade de olhar com critério investigativo e possibilita o resgate da

    historicidade do vínculo com a cidade onde vive.

    Com uma de análise hermenêutica, com base no materialismo histórico dialético, foi

    possível problematizar as contradições da realidade e dar instrumentos de criticidade aos

    estudantes envolvidos na ação pedagógica. É importante frisar que essa atividade pretende ser

    aprimorada na pesquisa de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ensino de

    Humanidades (PPGEH) do IFES, Campos Vitória, ES. O que se percebe é que o processo

  • educativo para a construção de uma cidadania crítica passa necessariamente pela

    conscientização social e sobre a valorização da história de cada grupo ou povo.

    REFERÊNCIAS

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    GASPARIN, João Luís. Uma didática para a Pedagogia Histórico-Crítica. 5. ed. Campinas: Autores Associados, 2012.

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    NASCIMENTO, Flávia Nessrala. Aulas de campo: uma proposta para o ensino de ciências que tenha como eixo integrador a educação ambiental crítica. 2015. 155 f. Dissertação (mestrado). Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e Matemática, Instituto Federal do Espírito Santo, Vitória/ES, 2015. Disponível em: Acesso em 23 de jun. 2016.

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    __________. História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2007. (Coleção memória e educação).

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  • __________. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 11.ed. rev. Campinas: Autores Associados, 2011. (Coleção educação contemporânea).