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REDENÇÃO DE CÃ: UMA HISTÓRIA DE APROPRIAÇÃO (SÉCULOS XIX E
XX)
Elaine Cristina Ventura Ferreira1.
1Doutoranda em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ. Mestre em
Museologia e Patrimônio pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Pós-
Graduada em História do Brasil pela Universidade Cândido Mendes – UCAM. Bacharel e Licenciada em
História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Email: [email protected]
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Rio de Janeiro – 2018.
I.I- INTRODUÇÃO
O objetivo da presente comunicação é traçarmos uma reflexão sobre o trabalho
iconográfico “Redenção de Cã” de autoria do pintor espanhol Modesto Brocos y Gómez
e saber como o autor leu o pensamento social que o circundava, do qual, se apropriou e,
criou sua obra “Redenção de Cã”. Não se trata de um estudo biográfico, mas de uma
reflexão sobre formas de apropriações para entender como o pensamento social de uma
época foi reproduzido na obra aqui analisada. Entendemos que esta obra está ligada a
vários processos sociais, o pensamento de uma época, a construção da imagem do país e
ao debate sobre a identidade nacional, sendo este, o nosso objeto de discussão. Com
base no conceito de apropriação, pretendemos saber como o artista Modesto Brocos se
apropriou do pensamento de seu tempo e o reproduziu em sua obra.
Modesto Brocos y Gómez nasceu em 09 de fevereiro de 1852 em Santiago de
Compostela (Espanha) era filho de pintor estudou pintura na École Nationale et
Spéciale de Beaux Artes. Em 1890 foi convidado por seu colega e amigo Rodolfo de
Bernardelli, para retornar ao Rio de Janeiro e no ano seguinte foi nomeado professor de
desenho da Escola Nacional de Belas Artes. Assumiu o cargo de professor de desenho
em 1891, logo alcançou posição destacada no Corpo Didático a que veio prestar
colaboração imediata e eficiente para indispensável atualização. Atuou em prol das
reformas que impôs novas aberturas ao Ensino das Belas Artes e exerceu influência
predominante em todo o Brasil, no momento em que os jovens artistas brasileiros
careciam de um necessário contato com a paisagem natural, do que recorreria
seguramente um interesse pela vida humana circundante, diálogo esse, predominante no
trabalho de Modesto Brocos.
Modesto Brocos aponta para trabalhos fora dos ateliers, como que para liberar os
estudantes às limitações convencionais do trabalho acadêmico e abrir-lhes um novo
caminho, o de intérpretes de temas da vida corrente. No Museu Nacional de Belas Artes
podem ser admiradas duas joias da obra de Modesto Brocos, que são as telas “Engenho
de Mandioca” e “Redenção de Cã”. A primeira sem dúvida uma das obras primas da
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pintura brasileira no gênero, surpreendente encontro do pintor com a palpitante
realidade da vida popular e sua atmosfera particular, no segundo, com certa contribuição
de humor, a fusão das raças no Brasil, na sequencia de quatro personagens
admiravelmente impostados na composição. Ambos nos critérios sociais que
estimulavam os sentimentos do artista2.
O Museu Nacional de Belas Artes possui quatro telas suas: “Redenção de Cã” de
(1895), bom trabalho que lhe valeu a pequena medalha de ouro que foi adquirido para
Pinacoteca da Escola; “Engenho de Mandioca” (1892), comprada, em (92); “Paisagem”,
em (1927) e “Retrato de Azeredo Coutinho”, (1909), doação de Ubirajara Coutinho e
irmãos. O Museu possui ainda treze gravuras, uma composição e doze retratos. Reis
Júnior dele escreveu: “é talvez o primeiro pintor do Brasil a abordar seriamente assuntos
brasileiros com o sentido realista, com um sentido de terra e de gente”. Em 1900
retornou ao Rio de Janeiro e reassumiu o cargo na Escola Nacional de Belas Artes.
Realizou mostra individual e expôs assiduamente no Salão Nacional de Belas Artes.
Naturalizou-se brasileiro, participou do Conselho Nacional de Belas Artes exerceu
atividade de professor por mais de trinta anos na Escola Nacional de Belas Artes no
início da década de 20 e faleceu em 28 de novembro de 1936 no Rio de Janeiro3.
A Exposição Retrospectiva, Modesto Brocos realizada no Museu Nacional de
Belas Artes em homenagem ao artista, teve por objetivo comemorar a memória de um
artista estrangeiro radicado no país. Nos jornais de Buenos Aires comentou-se sobre o
seu livro a “Retórica dos Pintores” em que foi notada que a pátria de um artista é aquela
em que ele trabalha, luta e vence. Suas obras são influenciadas pelo meio, pelos
costumes, pela raça e pela natureza em que vive. Apreciava o estudo das raças e dos
costumes. Não se limitava a técnica da pintura e da água forte, aprofundando-se na
história da arte de cada escola em cada país; frequentou com assiduidade museus
estrangeiro (conforme podemos constatar de seus escritos em jornais, livros e cartas
especialmente em artigo publicado em jornal da capital em resposta à Araújo Viana
2CAMPOFIORITO, Quirino. Bôlsa de Arte do Rio de Janeiro. Modesto Brocos, 15 de agosto a 10 de
setembro. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. 3GULLAR, Ferreira. MELLO, Júnior Donato. RIBEIRO, Noemi. FARIA Rogério. Modesto Brocos. In:
150 anos de pintura no Brasil. Rio de Janeiro: Colorama, 1989, pp. 148-149. Biblioteca Nacional, Rio de
Janeiro.
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referente à arte brasileira em que Brocos muito judiciosamente dizia que era preciso
“distinguir o artista brasileiro que existe, da arte nacional que não existe e que precisa
de tempo de tradição secular para se constituir e se fixar, com os característicos que os
diferenciem de outras nacionalidades”). Abordava temas raciais difíceis como
“Redenção de Cã” e as evoluções das idades como nas “Estações”, sendo mais feliz no
primeiro, obra do patrimônio do Museu. O ambiente brasileiro, as paisagens, os tipos
raciais tomam conta do artista e ele os reproduz com interesse e fidelidade. São retratos
da família que aparecem nessa ocasião como os de “Adriano” e “D. Henriqueta” ou
paisagens do “Soberbo” em Teresópolis, os negros e os seus problemas de libertação4.
Levando em consideração o conceito de apropriação nota-se que a obra aqui analisada
consistiu de fato como um trabalho de alcance social como relatado por Reis Júnior
autor do trabalho “Retrospectiva Modesto Brocos”, publicado no catálogo do Museu
Nacional de Belas Artes em que se pode aferir: “Redenção de Cã é muito anedotária,
explora a faceirice, embora traia a atenção do autor preocupado com o tema de alcance
social” 5.
Os estudos culturais tem dado amostra de grandes reflexões sobre o conceito de
cultura. Com a crise dos modelos estruturalistas e os paradigmas explicativos a cultura
ocupou um lugar de destaque nas pesquisas históricas, e a compreensão das dimensões
simbólicas se tornou objeto central de investigação. Os historiadores culturais ao
tomarem o campo da cultura por objeto para construção do conhecimento querem
perceber como, em um sistema social instituído os indivíduos se apropriam da cultura
constroem novos sentidos para ressignificar suas identidades. A cultura neste sentido é
entendida como algo associado a vários processos, o social, o político e o simbólico. Em
Raízes de um Paradigma Indiciário do historiador italiano Carlo Ginzburg - nota-se que
ao refletir sobre as fronteiras interdisciplinares da história, o autor identificou que a
leitura de um objeto artístico está ligada a diferentes processos sociais, permitindo a
compreensão de uma realidade, e a atuação de um indivíduo sobre ela. E neste processo,
4LEAL, Regina M. Exposição retrospectiva, Modesto Brocos. In: Anuário do Museu Nacional de Belas
Artes, número 11, 1951-1952, Rio de Janeiro, Brasil, pp. 20-31. Biblioteca do Museu Nacional de Belas
Artes, Rio de Janeiro. 5JÚNIOR, Reis. Modesto Brocos Y Gomes. In: Exposição Modesto Brocos (Retrospectiva). Rio de
Janeiro, Fevereiro de 1952, número: 08, p. 03. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.
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é possível perceber que a construção de um objeto artístico reflete como um indivíduo
se apropriou do pensamento de seu próprio tempo, e o reproduziu em sua obra6.
I.II – FORMAS DE APROPROPRIAÇÃO
Refletir sobre a forma de apropriação em torno da obra “Redenção de Cã” de
Modesto Brocos requer situar historicamente o conceito de raça, tentando entender seus
desdobramentos e como esse pensamento chegou ao Brasil. O século XIX deu
legitimidade à escravidão moderna responsável por escravizar o negro africano. Este
sistema se embasou na ideia de inferioridade racial, tendo em vista a crença de que
havia raças superiores e inferiores. Segundo Santos, foram os iluministas que cunharam
as primeiras doutrinas racialistas, ou seja, as primeiras doutrinas para o estudo das
diferentes raças humanas, dando origem no século XVIII a outra hipótese racial, a
poligenista, que defendia a existência de diversas raças humanas. A autora distingue o
racialismo, a crença em raças humanas, do racismo, o preconceito contra raças
consideradas inferiores. E no século XVIII o racialismo não era ainda racismo, pois as
diferenças biológicas ainda não eram consideradas definitivas para evolução humana. A
autora destacou que foi em meados do século XIX que o conceito de raça migrou para
as ciências humanas momento em que o racialismo foi reinterpretado lastreado as
teorias evolucionistas que apontava a superioridade de umas raças sobre as outras7.
Joaquim Nabuco intelectual e liderança abolicionista inaugurou o conceito histórico de
raça, porque o associou com a história da escravidão no Brasil. Nabuco se fundamentou
no pensamento cientificista, no qual, foi possível identificar que para ele, o negro
carregava uma maldição de cor8. Este conceito foi fundamentado nas doutrinas
científicas para inferiorizar o negro e justificar a escravidão.
O contato do Ocidente com a África causou nos europeus um “espanto” que
resultou no choque entre culturas. Foi no imaginário medieval que se propagou a
inferioridade da cor negra que foi associada ao pecado, a morte e a tristeza, isto porque,
se acreditava que os africanos eram filhos de Cã, herdeiros da maldição de um pai para 6GINZBURG, Carlo. Raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, Emblemas, Sinais. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011, pp. 143-180. 7SANTOS, Gislene Aparecida dos. A invenção do ser negro: um percurso das ideias que naturalizaram a
inferioridade dos negros. São Paulo/ Rio de Janeiro: Edusc/ Fapesp/ Pallas, 2002. 8NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Brasília: Edições do Senado Federal, 2003. Capítulo XVII, p. 28.
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com o seu filho. Para o historiador David Brion Davis, na passagem do medievo para
modernidade, o discurso da inferioridade teológica passou a ser o da inferioridade
antropológica segundo o autor: “á medida que o iluminismo separou a antropologia e a
anatomia comparativa das hipóteses teológicas, abriu caminho para as teorias da
inferioridade racial” 9.
Nos estudos sobre História da África nota-se que, Noé era pai de Sem, Cã e Jafé
cujos descendentes foram responsáveis pelo povoamento do mundo. Na narrativa
bíblica vê-se que Noé um dia se embriagou e ficou nu em sua barraca, os seus filhos
Sem e Jafé cobriram a sua nudez, olhando para o lado, enquanto Cã o mais moço, riu
dessa nudez. Ao acordar, Noé soube do que havia feito seu filho mais moço e o
amaldiçoou, dizendo que este seria escravo e, escravo de seus irmãos. Os descendentes
de Cã, segundo esta narrativa foram para as seguintes terras: Cuche, Egito, Líbia e
Canaã. Os descendentes do Egito foram os povos da Lídia, Anam, Lwabe, Naftu,
Patrus, Caslu e de Creta de quem os filisteus descenderam. Os descendentes de Cã
foram habitar nos territórios africanos e suas proximidades e, a maldição de Noé,
tornaria a descendência de seu filho, escrava. Assim, se fundamentou a narrativa que
justificou a escravidão dos africanos na sociedade ocidental. E para o historiador Luís
Albuquerque, a modernidade reforçou o olhar negativo referente à cor negra que já
existia desde o pensamento medieval, para o autor, a concepção de África e de africanos
foi construída sobre o paradigma europeu responsável por consolidar uma concepção
sobre este continente e os seus habitantes10.
Em Retrato e Branco e negro Jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no
final do século XIX a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, refletiu sobre o perfil
conservador dos jornais na província de São Paulo no fim do século XIX para discutir
como a imprensa construiu tanto sobre os escravos quanto sobre os segmentos libertos
uma imagem representativa. Na análise desses jornais a autora buscou entender não a
condição negra, mas como este era retratado pelos brancos. Para a autora, as teorias
9DAVIS, Brion David. O problema da escravidão na cultura ocidental. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001, p. 495. 10ALBUQUERQUE, Luís. O confronto no olhar: o encontro dos povos na época das navegações
portuguesas. Lisboa: Caminho, 1991, p. 44.
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evolucionistas apropriadas pela intelectualidade do oitocentos serviram como matriz
explicativa para inferiorizar as raças e isso acabou por preservar relações assimétricas11.
A autora Lilia Schwarcz, traçou uma discussão dos debates das teorias raciais no
interior das instituições científicas para refletir sobre a questão racial no Brasil do
século XIX, observando como estas, contribuíram para a formação do pensamento
social brasileiro no que compete a composição ideológica em torno da questão racial.
Para a autora, a ideia de um país mestiço no pensamento dos homens de ciência do
oitocentos, revelava o fracasso da biologia brasileira. A interpretação negativa quanto a
formação étnica do país também inviabilizava o projeto de construção da identidade
nacional. Mais do que se preocupar em traçar o perfil e o papel das instituições neste
momento, a autora se propôs a discutir como se construiu no espaço e no tempo, a
história da ciência no país, tentando entender como as ideias advindas da Europa foram
apropriadas no pensamento social brasileiro12. As ideias vindas da Europa ao serem
reinterpretadas de acordo com a realidade social brasileira, dificultava a integração
social, dos segmentos negros, mas também, índios e mestiços. Alguns integrantes desta
intelectualidade merecem destaque, pois em seus projetos em torno da nação, o caminho
para o progresso do país seria o branqueamento.
O médico Raimundo Nina Rodrigues traçou um caminho pioneiro e debruçou-se
sobre os estudos das religiões de matrizes africanas. Fundamentado no pensamento da
ciência de seu tempo, e na metodologia comparativa, estudou os negros e as populações
mestiças no Brasil, acreditando em sua evolução a partir do intercruzamento com os
brancos. O caminho para evolução do país em seu pensamento seria dado pelo viés da
brancura. O negro no pensamento deste autor, era visto sobre uma abordagem negativa
e as raças cruzadas, os mestiços foram vistos como degenerados e incapazes13.
Manoel Bonfim também médico retomou os estudos sobre a formação brasileira.
Seu trabalho foi escrito com o intuito de negar a homogeneidade que o conceito de
11SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato e Branco e negro Jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no
final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras,1987. 12SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças cientistas, instituições e questão racial no Brasil
1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 13RODRIGUES, Nina. As raças Humanas e a responsabilidade penal no Brasil. 3º edição. São Paulo:
Cia. Ed. Nacional, 1938. (Capítulos IV, pp. 89 – 110; e VI pp. 131-168).
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América Latina apresentava e ao mesmo tempo procurar o lugar da nação nas
singularidades encontradas. Bonfim mencionou que o cruzamento do índio com o
branco contribuiu para o avanço do projeto colonial português e proporcionou o
processo de adaptação das raças. Para o autor, na medida em que o país se aproximava
dos brancos pela mestiçagem, seria possível o desenvolvimento da nação14.
O advogado Alberto Torres nos debates da viabilidade do projeto de nação
analisou que o problema nacional brasileiro era ocasionado pela questão racial.
Apresentou o homem brasileiro como um Tipo Ideal, caracterizado por sua nobreza,
generosidade e hospitalidade. Segundo o autor, a mestiçagem impediu que se formasse
um povo consciente de sua nacionalidade. O autor observou que a mestiçagem, nos
impediu de desenvolver os sentimentos patrióticos e ressaltou que o contato com as
raças brancas puras seria o caminho para o progresso e o futuro da nação. O projeto de
nação almejado para o autor seria branco15.
O ensaísta, médico e antropólogo Roquete Pinto em Ensaios de Antropologia
Brasiliana tratou de temas relacionados à antropologia física e à eugenia. A discussão
antropológica sobre raça e populações foi seu tema central. Para refletir sobre essas
questões, o autor buscou conhecer as origens e as características biológicas do país, os
efeitos da miscigenação racial e a questão da identidade nacional, possibilitando projetar
a viabilidade de uma nação. O autor criticou o problema racial no Brasil e defendeu o
projeto da eugenia por acreditar na necessidade de melhoramento da raça e, percebeu
que a eugenia era o melhor caminho16.
A composição racial do país seria a principal ameaça ao seu progresso segundo
esses estudiosos, sendo também, um impasse para construção da identidade nacional.
Considerando que a obra “Redenção de Cã” foi construída em meio a esses debates
nota-se como o artista Modesto Brocos, se apropriou do pensamento de seu tempo e o
14BONFIM, Manoel. O Brasil na América. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. Capítulo V, p. 203.
15TORRES, Alberto. O problema nacional brasileiro: Introdução a um programa de organização
nacional. Rio de Janeiro: Cia. Edição Nacional, 2002, Capítulo 2, p.68.
16PINTO, Roquete Edgar. Ensaios de antropologia brasiliana. São Paulo: Cia Edição Nacional, Brasília,
1933, Ensaios III, pp. 25-35; Ensaios IX, pp. 117-172.
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reproduziu em seu trabalho. O objeto iconográfico nos permite entender não a maneira
de sentir ou de pensar de um artista, mas a realidade intelectual que o circundava e sua
ação sobre ela, da qual resultou, em sua obra, reflexo desta época.
Na imagem abaixo, a paisagem rural, de uma moradia simples é composta por
quatro personagens de tons de pele e faixa etárias distintas, convivendo em um ambiente
familiar. A personagem mais velha com as mãos erguidas para o céu “parece está
agradecendo por uma graça recebida”; enquanto a jovem mulher com a criança no colo
aponta em direção à idosa, parecendo concordar com o gesto; o homem ao lado da
jovem apresenta um olhar e um sorriso de alegria e entre eles, não há conflitos, mas um
convívio harmonioso. Neste quadro familiar ocorre uma “evolução em termos raciais”,
ou seja, do negro, ao mulato, do mulato ao branco, refletindo as teorias raciais do século
XIX. Essa é a leitura que a obra nos propõe como se pode identificar:
10
Figura I: “A Redenção de Cã”. Acervo do Museu Nacional de Belas Artes Rio de Janeiro
(Fotografia retirada em 24 de janeiro de 2018 por Elaine Ventura no Museu Nacional de Belas
Artes Rio de Janeiro).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo desta comunicação foi traçarmos uma análise reflexiva sobre as
dimensões do fazer artístico, considerando a produção de uma obra iconográfica como
reflexo das ideias de um determinado tempo. Ao tomarmos por objeto de análise o
quadro “Redenção de Cã” nos aproximamos cada vez mais do perfil interdisciplinar da
História, levando em consideração que um objeto iconográfico pode nos fazer entender
uma realidade social que está ligada a vários processos sociais. Verificamos que a obra
aqui analisada revelou o quanto o trabalho de Modesto Brocos foi resultado dos debates
intelectuais de seu tempo, caracterizando uma história de apropriação.
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REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, Luís. O confronto no olhar: o encontro dos povos na época das
navegações portuguesas. Lisboa: Caminho, 1991, p. 44.
BONFIM, Manoel. O Brasil na América. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. Capítulo V,
p. 203.
DAVIS, Brion David. O problema da escravidão na cultura ocidental. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001, p. 495.
GINZBURG, Carlo. Raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, Emblemas, Sinais.
São Paulo: Companhia das Letras, 2011, pp. 143-180.
NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Brasília: Edições do Senado Federal, 2003.
Capítulo XVII, p. 28.
PINTO, Roquete Edgar. Ensaios de antropologia brasiliana. São Paulo: Cia Edição
Nacional, Brasília, 1933, Ensaios III, pp. 25-35; Ensaios IX, pp. 117-172.
RODRIGUES, Nina. As raças Humanas e a responsabilidade penal no Brasil. 3º
edição. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1938. (Capítulos IV, pp. 89 – 110; e VI pp. 131-
168).
SANTOS, Gislene Aparecida dos. A invenção do ser negro: um percurso das ideias que
naturalizaram a inferioridade dos negros. São Paulo/ Rio de Janeiro: Edusc/ Fapesp/
Pallas, 2002.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato e Branco e negro Jornais, escravos e cidadãos em
São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras,1987.
____________. O espetáculo das raças cientistas, instituições e questão racial no
Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
TORRES, Alberto. O problema nacional brasileiro: Introdução a um programa de
organização nacional. Rio de Janeiro: Cia. Edição Nacional, 2002, Capítulo 2, p.68.
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