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REDES E REGIONALIZAO EM SADE NO BRASIL E NA ITLIALIES APRENDIDAS E CONTRIBUIES PARA O DEBATENavegador SUS

Organizao Pan-Americana da Sade / Organizao Mundial da Sade Ministrio da Sade Conselho Nacional de Secretrios de Sade Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Sade

REDES E REGIONALIZAO EM SADE NO BRASIL E NA ITLIALies aprendidas e contribuies para o debate Coordenador: Renato Tasca

NAVEGADORSUS. Srie tcnica para os gestores do SUS sobre redes integradas de ateno sade baseadas na APS, n. 4. Braslia-DF 2011

2011 Organizao Pan-Americana da Sade Representao Brasil Todos os direitos reservados. permitida a reproduo parcial ou total dessa obra, desde que citada a fonte e que no seja para venda ou qualquer fim comercial. Os ttulos que integram a srie NAVEGADORSUS esto disponveis para download em new.paho.org/bra/apsredes. Tiragem: 1. edio 2011 2000 exemplares

Elaborao, distribuio e informaes: ORGANIZAO PAN-AMERICANA DA SADE REPRESENTAO BRASIL Gerncia de Sistemas de Sade / Unidade Tcnica de Servios de Sade Setor de Embaixadas Norte, Lote 19 CEP: 70800-400 Braslia/DF Brasil http://www.paho.org/braCoordenao: Renato Tasca Elaborao: Renato Tasca Newton Lemos Elisandra Sguario Kemper Apoio tcnico: Alessandro Moraes Adriana Trevizan Capa e Projeto Grfico: All Type Assessoria editorial Ltda. Impresso no Brasil / Printed in Brazil As idias, conceitos e comentrios contidos nesta obra so fruto do livre exerccio de pensamento e expresso de seus autores, podendo no representar, no todo ou em parte, a posio institucional da Organizao Pan-Americana da Sade/ Organizao Mundial da Sade (OPAS/OMS) e/ou de seus parceiros nesta compilao.

Ficha Catalogrfica Organizao Pan-Americana da Sade Redes e regionalizao em sade no Brasil e na Itlia : lies aprendidas e contribuies para o debate. / Organizao Pan-Americana da Sade. Braslia : Organizao Pan-Americana da Sade, 2011. 126 p.: il. (NAVEGADORSUS, 4). ISBN: 978-85-7967-072-5 1. Gesto em sade 2. Ateno sade 3. Redes 4. Sistema nico de Sade 5. Ateno Primria I. Organizao Pan-Americana da Sade. II. Ttulo. NLM: W 84TC 43 Unidade Tcnica de Gesto do Conhecimento e Comunicao da OPAS/OMS Representao do Brasil

SuMRIOGlossrio de siglas ...................................................................................................... 5 Apresentao.............................................................................................................. 7 Agradecimentos.......................................................................................................... 9 Prefcio .................................................................................................................... 11 A descentralizao da gesto: uma abordagem introdutria aos principais desafios postos no mbito do Sistema nico de Sade SUS.................................. 13 Captulo 1 Descentralizao e regionalizao do SUS na dcada de 1990 ................................ 29 Captulo 2 Dilemas da ao coletiva e capital social: para melhor compreender e promover a cooperao solidria no SUS ................................................................. 43 Captulo 3 Redes de Ateno Sade x Sistemas Fragmentados: definies, dilemas e perspectivas .............................................................................................. 57 Captulo 4 Regionalizao e Redes de ateno sade em Minas Gerais: um estudo de caso.................................................................................................... 69

Investigando as estratgias para a regionalizao na perspectiva do governo estadual: o caso de Minas Gerais ............................................................... 71 Captulo 5 Regionalizao e Redes na Itlia Lies aprendidas aps 30 anos de experincia ......................................................................................................... 97 Regionalizao do sistema nacional de sade: a experincia italiana ...................... 99 Captulo 6 Concluses e Recomendaes ............................................................................... 117 Recomendaes referentes ao processo da regionalizao da sade ..................... 119

GLOSSRIO DE SIGLASapS Ateno Primria Sade CGR Colegiado de Gesto Regional CIB Comisso Intergestores Bipartite CIt Comisso Intergestores Tripartite Conass Conselho Nacional de Secretrios de Sade Conasems Conselho Nacional de Secretrios Municipais de Sade DaB Departamento de Ateno Bsica FESp Funes Essenciais de Sade Pblica NoaS Norma Operacional de Assistncia Sade NoB Norma Operacional Bsica opaS Organizao Pan-Americana da Sade oMS Organizao Mundial da Sade pDI Plano Diretor de Investimentos pDR Plano Diretor de Regionalizao pMDI Plano Mineiro de Desenvolvimento Integrado ppI Programao Pactuada e Integrada SaS Secretaria de Ateno Sade SES Secretaria Estadual de Sade SuS Sistema nico de Sade

ApRESENTAOEssa obra fruto de um esforo coletivo para adicionar elementos de reflexo ao processo de descentralizao e regionalizao das aes e servios de sade no Brasil. Um pas de dimenses continentais, com grande diversidade geogrfica e um vasto fosso social ainda por ser coberto no pode cuidar de pessoas de forma centralizada e concentrada. Trata-se de uma federao cujos integrantes possuem competncias concorrentes e exclusivas. Por isso, a soma dos esforos sempre ser melhor que atitudes isoladas, para se evitar o retrabalho e direcionar o uso dos escassos recursos da sade para se obter o mximo de efetividade e melhoria da qualidade de vida das pessoas. A situao de sade das comunidades est visceralmente ligada ao territrio, ao espao fsico com o qual interagem. Quanto mais prxima a gesto estiver desses territrios, e quanto mais se puder regionalizar e descentralizar servios nessa direo (respeitados os princpios de escala, necessidade e qualidade), tanto melhor poder-se- produzir sade, em sua definio mais abrangente e longitudinal. Convidamos a todos para analisarem esse trabalho e o utilizarem como ferramenta cotidiana para a reorganizao de suas redes de ateno sade.Os autores

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AGRADECIMENTOSGiovanni Fattore, economista italiano e professor associado da Universit Bocconi de Milo, Itlia. Atuou como orientador da mdica Iracema Benevides em seu mestrado, contribuindo muito comseu conhecimento e experincia sobre o processo de regionalizao da sade na Itlia. Francesco Ripa di Meana, Diretor Geral da ASL de Bolonha. Mdico graduado pela Universit Cattolica em 1975 e especializado em gesto de sade pela Universit Bocconi de Milo. Trabalhou, de 1986 a 1992, como diretor de projeto da Cooperao Italiana no Brasil, onde coordenou projetos locais de ateno sade. Secretaria de Ateno Sade do Ministrio da Sade do Brasil, importante contribuidor na construo dessa obra. Gestores da SES/MG, que abriram suas portas e contriburam com seu tempo, conhecimento e informaes para o embasamento torico-prtico dessa obra. Eugnio Vilaa, odontlogo e investigador em sade, grande mestre e autor da atualidade nos temas de Redes de Ateno e APS, cuja obra representa grande influncia indutora positiva no processo de regionalizao do estado de Minas Gerais e de outros locais do Brasil. Flvia Davide Lelot, cuja boa vontade e cooperao ajudaram no processo de construo da parte grfica dessa obra.

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pREfCIOA construo de Redes de Ateno Sade coordenadas pela Ateno Primria (ou pela Ateno Bsica, como alguns preferem chamar) considerada uma estratgia fundamental para consolidar o SUS e dar sustentabilidade s suas aes, almejando atingir os Objetivos de Desenvolvimento do Milnio - ODM e os outros desafios trazidos pelos novos e complexos cenrios globais. Nesse sentido, o processo de regionalizao absolutamente fundamental para construir as condies territoriais requeridas para o funcionamento integrado das redes de ateno sade no nvel loco-regional. A regionalizao o tema central desta nova publicao da srie tcnica Navegador SUS, que colocamos disposio dos gestores e de todos os atores envolvidos no processo de desenvolvimento do SUS. Esse trabalho, que foi realizado com a parceria do Ministrio da Sade, Conass e Conasems, pretende trazer algumas reflexes sobre o processo de regionalizao em sade, a partir das lies aprendidas no Brasil e na Itlia. Este texto, escrito a vrias mos, traz o ponto de vista original de pessoas com diferentes formaes, papis institucionais, experincias e vivncias, sendo, portanto, o veculo de uma viso ampla e diversificada sobre os avanos e as oportunidades do processo de regionalizao em sade. As contribuies aqui registradas so relevantes no apenas no mbito do Sistema nico de Sade do Brasil, mas tambm contemplam os desafios enfrentados por outros pases com sistemas de sade de cobertura universal, centrado nas pessoas e baseados na descentralizao e equidade. Convido todos a desfrutarem ao mximo esta importante fonte de conhecimento aplicada prtica. Diego Victoria Mejia Representante da OPAS/OMS no Brasil11

A DESCENTRALIZAO DA GESTO: uMA ABORDAGEM INTRODuTRIA AOS pRINCIpAIS DESAfIOS pOSTOS NO MBITO DO SISTEMA NICO DE SADE SuSlcia Queiroz

As concepes relativas aos temas da descentralizao e da regionalizao trazidas pelo conjunto de formuladores e equipes tcnicas que assumiram, em 2003, a conduo poltico-institucional do Ministrio da Sade, induziram inovaes relevantes nos formatos normativos at ento adotados pelo Sistema nico de Sade SUS (BRASIL, 2003). Essas concepes, ao serem pautadas pelo gestor federal nos fruns de pactuao intergestores setoriais e, aps serem submetidas s etapas de negociao com as entidades representativas dos gestores estaduais e municipais, vieram a se traduzir, posteriormente, em portarias ministeriais (BRASIL, 2006a; BRASIL, 2006b), que se somaram ao aparato legal do Sistema nico de Sade (BRASIL, 1988; BRASIL, 1990) e esto, desde ento, norteando os rumos e as diretrizes da gesto descentralizada do sistema. Assim, aps quase uma dcada desse momento de inflexo na orientao normativa da descentralizao da gesto do sistema, oportuno que as avaliaes que sejam feitas desse movimento de mudana contemplem no apenas os acertos que delas decorreram, mas tambm abordem os desafios remanescentes, no que tange construo de um sistema de sade descentralizado e regionalizado. E nisso consiste a proposta desse captulo introdutrio ao tema da descentralizao da gesto do Sistema nico de Sade: trazer elementos de anlise sobre trs grandes desafios que persistem para o avano e consolidao da regionalizao e da gesto descentralizada do sistema.

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O Primeiro desafio: o de assegurar a revalorizao das funes e das responsabilidades de planejamento na conduo da gesto do Sistema nico de SadeA premissa que orientou a escolha desse desafio a de que a sustentabilidade de capacidades gestoras descentralizadas fortemente condicionada pela implantao e consolidao de culturas institucionais voltadas para boas prticas de planejamento pblico. De fato, como amplamente reconhecido pelos formuladores e analistas de polticas pblicas e se constitui como prtica estabelecida em sociedades que atingiram patamares elevados de responsabilizao institucional dos agentes pblicos, a boa gesto do Estado e o planejamento pblico so elementos indissociveis (ABRUCIO, 2002). O mesmo reconhecimento sobre o valor do planejamento existe nos sistemas nacionais ou pblicos de sade que inspiraram (e continuam inspirando) a implantao do Sistema nico de Sade no Brasil. Nesse sentido, a estruturao descentralizada do Sistema nico de Sade pressupe que a atuao gestora setorial, nas trs esferas do Estado brasileiro, seja precedida de anlises consistentes dos problemas sanitrios, fundamentadas em informaes obtidas a partir de bancos de dados confiveis, que possam orientar o desenho das aes a serem implantadas, vinculando-as aos recursos que devero ser mobilizados e permitindo sua avaliao, mediante a elaborao posterior de relatrios de gesto e de prestao de contas por resultados. Esses movimentos, com algumas variaes, compem as etapas que constituem o ciclo clssico de planejamento na grande maioria dos pases cujas economias e sociedades tm implantado prticas de accountability mais avanadas do que a nossa no mbito poltico-institucional. Contudo, apesar de haver amplo consenso em torno do tema e parecer implcita a relevncia do planejamento para a implantao de um sistema com as caractersticas e a complexidade do Sistema nico de Sade, essa associao entre as prticas e os instrumentos de planejamento e os de gesto no tem

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se constitudo, at o presente, como um dos produtos das mudanas que vm norteando, nos anos recentes, a descentralizao do sistema. Apesar da inflexo verificada nos instrumentos e prticas que tem balizado a conduo da descentralizao nos ltimos anos, o exerccio da funo gestora pblica do Sistema nico de Sade ainda se caracteriza pelo predomnio da dissociao entre a conduo dos processos de planejamento e dos processos de gesto e esse fato pde ser observado, de modo concreto, nos movimentos inicialmente feitos para formalizao das adeses municipais e estaduais ao pacto. Assim, em significativa parcela dos casos acompanhados pelas equipes que exercem a cooperao tcnica do Ministrio da Sade junto aos estados e municpios, a elaborao dos denominados Termos de Compromisso de Gesto Estaduais e Municipais (BRASIL, 2006b) no explicitava suas conexes com os contedos dos Planos Estaduais e Municipais de Sade dissociao essa que tambm, importante assinalar, ocorreu no mbito federal. Dessa situao dicotmica decorreram inmeras dificuldades para a compreenso existente acerca do que poderia representar, no espao loco-regional, as mudanas propostas no novo marco normativo para a qualificao da gesto descentralizada do Sistema nico de Sade. E, em vrias situaes, o paralelismo entre os dois processos se manteve, transcendendo o momento da adeso e permanecendo durante os demais momentos de pactuao e de planejamento, conduzidos no mbito das instituies gestoras dos trs nveis do Sistema nico de Sade. Tal constatao motivou a organizao de iniciativas visando sua superao, destacadamente no mbito da cooperao tcnica prestada pelo Ministrio da Sade junto s Secretarias Estaduais e Municipais. Essa cooperao teve como foco a qualificao dos processos de adeso conduzidos pelos estados e municpios e, posteriormente, encaminhados Comisso Intergestores Tripartite, enfatizando que fossem observadas, na construo das metas e na definio das responsabilidades gestoras, o devido alinhamento com os instrumentos de planejamento vigentes.

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Esses esforos no obtiveram os resultados esperados em todos os estados. As melhores condues ocorreram naqueles estados que, por contarem com experincias anteriores de planejamento mais consolidadas, puderam se reorganizar mais facilmente, logrando a aproximao entre as reas e prticas da gesto e do planejamento. O fato de que nem todas as unidades da Federao tenham vinculado as prticas de planejamento e as de gesto no mbito do Sistema nico de Sade, mantendo a fragmentao que se esperava superar, provocou a Comisso Intergestores Tripartite no sentido de formular e aprovar a Portaria GM/MS 2.751/2009 (BRASIL, 2009b). Essa Portaria Dispe sobre a integrao dos prazos e processos de formulao dos instrumentos do Sistema de Planejamento do Sistema nico de Sade (SUS) e do Pacto pela Sade e tem como objetivo principal o de atingir uma situao na qual as instituies gestoras das trs esferas do Sistema nico de Sade conduzam a negociao da pactuao unificada de prioridades, objetivos e metas, bem como a elaborao e reviso dos Termos de Compromisso de Gesto, formalizados por ocasio das adeses estaduais e municipais ao pacto, em estreita vinculao com os contedos explicitados nos instrumentos de planejamento do Sistema nico de Sade: os Planos de Sade, a Programao Anual de Sade e os Relatrios Anuais de Gesto (BRASIL, 2006c; BRASIL, 2006d). Cabe registrar ainda que o foco dessa Portaria volta-se para a organizao desses dois processos, com o objetivo de alterar uma cultura institucional de paralelismo entre reas de planejamento e as reas de gesto da sade, que necessita ser rompida, de modo que a integrao entre essas duas reas possa ser assimilada pelos dirigentes do Sistema nico de Sade e suas equipes gestoras. Contudo, como essa abordagem se refere aos desafios que remanescem, cabe finalizar acrescentando que, embora a Portaria GM/MS 2.751/2009 tenha significado uma iniciativa importante para o resgate das funes gestoras e apesar da fora do argumento que fundamentou seu movimento de elaborao, no h meios infalveis que assegurem sua integral implantao no mdio e longo prazo. Como ocorre com qualquer instrumento normativo, sua implantao per-

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manece como um desafio que, no momento presente, depende dos movimentos que sero feitos pelas equipes gestoras e tcnicas do Sistema nico de Sade.

O segundo desafio para a consolidao da regionalizao o de definir qual o papel que poder vir a ser exercido pelos Colegiados de Gesto Regional os CGR como fruns permanentes de pactuao intergestoresOs Colegiados de Gesto Regional CGR integram o conjunto de propostas recentes para a consolidao da descentralizao e tem representado uma oportunidade concreta de implantao de espaos capazes de oferecer modalidades inovadoras de integrao entre os gestores do Sistema nico de Sade no mbito regional (BRASIL, 2009). Os CGR foram formulados com o objetivo de ampliar o acesso dos gestores a novos espaos de pactuao e de negociao e podem vir a se constituir, pela capilaridade que agregam ao processo decisrio atual, como espaos fundamentais para fortalecer a colaborao entre os gestores. H, desse modo, a expectativa de que possam contribuir para que haja a substituio de prticas de gesto setorial isoladas e fragmentadas, resultantes, muitas vezes, de racionalidades que expressam o interesse pessoal de alguns atores, por mecanismos que valorizem a organizao dos agentes pblicos e legitimem a ao coletiva no mbito do Sistema nico de Sade. Conforme a orientao adotada pelo conjunto dos gestores do SUS (BRASIL, 2009), os Colegiados de Gesto Regional devem ser implantados a partir dos desenhos regionais propostos nos Planos Diretores de Regionalizao PDR de cada estado (BRASIL, 2002; BRASIL, 2006). Esse fato, assim como o aprendizado previamente existente no que tange ao funcionamento das Comisses Intergestores Bipartites, tem influenciado as diferentes condies de implantao desses espaos de governana regional, produzindo experincias de carter diverso, segundo o estgio em que se encontram a coordenao e a conduo da descentralizao em cada um dos estados da Federao.

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Desse modo, em alguns estados, os Planos Diretores de Regionalizao, que haviam sido inicialmente propostos pela Norma Operacional da Assistncia Sade NOAS (BRASIL, 2002), foram mantidos como parte da documentao normativa que norteia a adeso ao pacto, sem que tenham, contudo, sido assimiladas, por algumas equipes gestoras, as mudanas necessrias ao redimensionamento desse instrumento de planejamento, sob a gide do pacto. H, de fato, situaes nas quais os Planos Diretores de Regionalizao, elaborados e aprovados aps o advento das Portarias do pacto, mantiveram conceitos que haviam sido trazidos pela norma anterior, a exemplo de Planos Diretores de Regionalizao que citam denominaes como mdulos assistenciais, municpios satlites, Elenco dos Procedimentos da Mdia Complexidade EPM-1, dentre outros (BRASIL, 2002). H ainda casos nos quais a Comisso Intergestores Tripartite foi informada sobre a relao das regies identificadas no estado, devidamente aprovadas na Comisso Intergestores Bipartite, sem que essa definio tenha sido precedida pela necessria reviso e atualizao do Plano Diretor de Regionalizao estadual, nem de anlises, de carter intergestor, sobre os impactos do desenho regional, que at ento era adotado, para a gesto descentralizada do Sistema nico de Sade nesses estados. Tambm, nesses casos, verifica-se que a implantao dos Colegiados de Gesto Regional apresenta grandes possibilidades de ocorrer de modo oposto situao que se esperava com a sua instituio, pois implica que houve o desencadeamento do funcionamento dos Colegiados de Gesto Regional sem uma atualizao do recorte regional do estado e sem a devida conduo de anlises capazes de embasar o planejamento e a gesto regional, como seria esperado. Nesse contexto, mesmo que esses Colegiados de Gesto Regional tenham sido definidos sob o aspecto documental e tenham sido formalizados junto Comisso Intergestores Tripartite, para cumprirem a etapa prevista para a captao dos recursos de custeio, previstos a ttulo de cooperao financeira do ente federal (BRASIL, 2007), no esto se configurando como espaos de governana regional,

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dado que no preenchem um requisito mnimo para isso: no correspondem aos arranjos regionais reconhecidos pelo conjunto dos gestores do Sistema nico de Sade nesses estados, pelo fato de que no foram objeto de debate prvio e de assimilao entre eles. Assim, h a premncia de que se corrijam os equvocos ocorridos, no sentido de que seja assegurado o alinhamento necessrio entre as propostas contidas nos Planos Diretores de Regionalizao e os contedos dos demais instrumentos de planejamento do Sistema nico de Sade, como os Planos Estaduais e Municipais de Sade. Sem dvida, um dos atuais desafios para a consolidao do processo de regionalizao consiste em integrar, de fato, as reas, prticas e instrumentos de planejamento gesto e ao funcionamento dos Colegiados de Gesto Regional. Essa associao fundamental para que se configurem as condies necessrias aos CGR, de modo que se constituam como o lcus inovador da gesto descentralizada, cujo papel consistir em ser o frum permanente de negociao e pactuao gestora no mbito regional. H, ainda, outras situaes, que desafiam o potencial inovador dos Colegiados de Gesto Regional. De fato, outro desafio relativo ao funcionamento dos Colegiados de Gesto Regional vem sendo observado naqueles estados cujas Comisses Intergestores Bipartites CIBs, at o presente momento, no se consolidaram como o espao privilegiado para a tomada de decises entre os gestores. Nesses estados, as CIBs no chegaram a contribuir para o exerccio do poder que lhes conferido pelos princpios da descentralizao e da autonomia dos entes federados, previstos na Constituio Federal (BRASIL, 1988), resultando que no atingiram o patamar de aprendizado institucional obtido pela maioria. Assim, decorridos mais de 15 anos de implantao das primeiras Comisses Intergestores Bipartites, h um conjunto de estados que, de modo recorrente, interrompem a estabilidade de suas atividades so interrupes que ocorrem, majoritariamente, por impasses gerados nas negociaes ou so causadas por manobras protelatrias, que impem retardos ao agendamento de debates de

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propostas, por contrariarem os interesses imediatos de alguma das partes, provocando o encaminhamento para a Comisso Intergestores Tripartite de decises cujas condies para pactuao e negociao se encontram presentes no mbito estadual. Embora esses estados se constituam como um grupo residual, cabe registrar e conferir visibilidade ao problema, de modo que seu enfrentamento possa ser assumido pelo conjunto dos gestores, visto que essas situaes costumam ter repercusses que culminam por desafiar o funcionamento de todo o sistema. Em contraponto, cabe registrar que alvissareiro o registro de que, em grande parte, os estados atualizaram seus recortes regionais e revisaram o Plano Diretor de Regionalizao a partir das experincias anteriormente acumuladas, num contexto de valorizao das aes de planejamento. Nesses estados, a implantao dos Colegiados de Gesto Regional tem encontrado, como resultante, condies bem mais favorveis de implantao e de funcionamento, por serem mais adequadas e compatveis com o exerccio do papel que lhes cabe no planejamento e na pactuao regionais. Nesses casos, a observao tem demonstrado que, aps a tomada das decises prvias necessrias sobre a composio desses fruns regionais e os assuntos regimentais, bem como naquelas relativas s definies da agenda, vrios Colegiados de Gesto Regional j esto assumindo funes de pactuao e de negociao complementares s que foram desempenhadas pelas Comisses Intergestores Bipartites no decorrer da ltima dcada, valorizando a governana colegiada do sistema. Alm disso, por ampliar a participao dos gestores municipais nos espaos de negociao e pactuao, os Colegiados de Gesto Regional vm demonstrando o potencial de se constiturem como uma oportunidade preciosa de aprofundamento das questes debatidas entre as representaes gestoras nas Comisses Intergestores Bipartites, elevando as possibilidades de acerto das polticas setoriais no que tange s especificidades loco-regionais e s suas implicaes na tomada de deciso pelos gestores.

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Desse modo, nas situaes consideradas mais prximas do que seria o modelo ideal, o desafio atual consiste em assegurar que a implantao dos Colegiados de Gesto Regional contribua, de modo complementar, para a qualificao dos espaos de pactuao e de negociao j existentes no mbito do SUS, como as Comisses Intergestores Bipartites e a Comisso Intergestores Tripartite. Trata-se de uma oportunidade valiosa para a busca de superao de dificuldades que possam existir no exerccio do poder de negociao e deciso no espao regional e de que sejam evitadas disputas entre as decises tomadas por essas duas modalidades de fruns gestores.

O terceiro desafio para a consolidao da descentralizao e da regionalizao do Sistema nico de Sade o de assegurar as competncias gestoras necessrias, nas trs esferas, para a conduo dos processos de avaliao de resultados sanitrios e de gesto.A necessidade de organizao de pactuaes unificadas de prioridades, objetivos, indicadores e metas foi introduzida na agenda setorial, em 2003 (BRASIL, 2003), a partir das experincias acumuladas nos governos anteriores e das propostas trazidas pelo governo que se iniciava, objetivando a renovao das prticas de pactuao e de avaliao do sistema de sade, num contexto de mudanas de conduo da descentralizao no Sistema nico de Sade. Decorridos quatro anos de sua instituio, a pactuao unificada tem demonstrado que pode se configurar como uma oportunidade de, concretamente, agregar as representaes da sociedade civil, das instituies gestoras e dos rgos de controle interno e externo, no debate sobre os resultados que o Sistema nico de Sade tem alcanado para a manuteno da sade e da qualidade de vida da populao. Iniciada a partir de 2007, a operacionalizao desse processo de pactuao foi alterada, desde a publicao da Portaria GM/MS 2.751/2009 (BRASIL 2009b), com o objetivo de que ocorra em articulao, direta e estreita, com os instrumentos que compem o ciclo de planejamento do Sistema nico de Sade o

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Plano de Sade, a Programao Anual de Sade e o Relatrio Anual de Gesto sendo sua negociao e pactuao efetuadas nas instncias colegiadas do sistema os Colegiados de Gesto Regional, a Comisso Intergestores Bipartite e os Conselhos de Sade. Desde ento, sob o aspecto normativo, as prioridades, os objetivos e as metas pactuados em cada esfera de gesto do SUS passaram a se constituir como objeto de monitoramento e avaliao do planejamento. A avaliao unificada do pacto tem sido anual, ocorrendo em dois momentos e consistindo numa avaliao de carter tcnico, orientada a partir da anlise dos dados obtidos no monitoramento das prioridades, objetivos e metas, e uma outra avaliao, de carter poltico, que tem acontecido em reunies plenrias da Comisso Intergestores Tripartite, com a participao das representaes dos gestores das trs esferas. Para esse monitoramento, so utilizados os indicadores definidos em pactuao tripartite e, no binio 2010/2011, as prioridades, objetivos e metas para os Pactos pela Vida e de Gesto foram mensuradas por 40 indicadores, cujo monitoramento e avaliao foi definido pela Portaria GM/ MS 2.669/2009 (BRASIL, 2009a). Assim, a avaliao de resultados no mbito setorial tem se apresentado como uma possibilidade plausvel de se constituir como um momento voltado para a reorientao e para a tomada de decises importantes para a consolidao do Sistema nico de Sade, pelo potencial que tem na redefinio da atuao gestora e na renovao de instrumentos e prticas, tanto para a esfera federal quanto para a estadual e municipal. Sua implantao, entretanto, tem enfrentado desafios de carter tcnico e poltico-institucional. Os desafios de carter tcnico abrangem tanto as dificuldades de elaborao adequada dos indicadores e metas quanto os problemas para a realizao do seu monitoramento, conforme previsto no modelo de avaliao sistmica em vigor. Embora, nos ltimos quatro anos, tenha havido avanos na formulao dos indicadores adotados por parte das reas envolvidas nesse processo, esses ainda so insuficientes para refletirem a complexidade do

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sistema e remanescem vrios indicadores que apresentam problemas por no se correlacionarem com as prioridades e objetivos propostos ou por no disporem de fontes estveis e acessveis, apenas para citar as inadequaes mais comuns. Os desafios de carter poltico-institucional esto relacionados ao distanciamento que persiste, no mbito institucional, entre as reas de planejamento das instituies gestoras do SUS e aquelas denominadas de gesto ou gerncia dos programas. De fato, desde que os primeiros movimentos voltados para a pactuao de metas foram propostos, ainda na dcada de noventa, salvo honrosas excees, as reas de planejamento setorial, que costumam valorizar seu engajamento em atividades relativas oramentao e ao financiamento institucional, no tm se envolvido com a elaborao de indicadores e o acompanhamento do comportamento das metas propostas na pactuao. Desse modo, o distanciamento entre as atividades de planejamento e a pactuao unificada tem representado um bice importante para a sua legitimidade enquanto instrumento de gesto, dado que sua relevncia far sentido medida que for realmente assegurada sua interface com o ciclo de planejamento do Sistema nico de Sade, devendo esse enfrentamento demandar esforos combinados e permanentes das equipes gestoras que conduzem o sistema nos trs nveis.

Comentrios finais guisa de finalizao desse ensaio, vale ressaltar que a superao dos desafios que esto postos para a qualificao da gesto descentralizada tarefa que dever, sempre, ser assumida pelos dirigentes das trs esferas gestoras, igualmente, e de modo negociado e articulado. Cabe aos trs entes procurar assegurar as inovaes necessrias ao exerccio de suas atribuies de coordenao e de gesto setorial, reinventando suas prticas e adotando novas modalidades de atuao no mbito do setor sade. Essa atuao, de modo articulado, o que possibilitar que sejam implantadas as prticas gestoras necessrias superao dos muitos desafios que persistem

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para a consolidao da regionalizao e da descentralizao que o Sistema nico de Sade preconiza.

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12. BRASIL. Portaria GM/MS n. 204 de 29 de janeiro de 2007. Regulamenta o financiamento e a transferncia dos recursos federais para as aes e os servios de sade, na forma de blocos de financiamento, com o respectivo monitoramento e controle. Dirio Oficial da Unio 2007, 31 jan. Braslia: Ministrio da Sade, 2007. 13. BRASIL. Portaria GM/MS n. 2.669, de 3 de novembro de 2009. Estabelece as prioridades, objetivos, metas e indicadores de monitoramento e avaliao do Pacto pela Sade, nos componentes pela Vida e de Gesto, e as orientaes, prazos e diretrizes do seu processo de pactuao para o binio 2010 2011. Dirio Oficial da Unio 2009, 06 nov. Braslia: Ministrio da Sade, 2009a. 14. BRASIL. Portaria GM/MS n. 2.751 de 11 de novembro de 2009. Dispe sobre a integrao dos prazos e processos de formulao dos instrumentos do Sistema de Planejamento do Sistema nico de Sade (SUS) e do Pacto pela Sade. Dirio Oficial da Unio 2009, 12 nov. Braslia: Ministrio da Sade, 2009b.

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Captulo 1

DESCENTRALIZAO E REGIONALIZAO DO SuS NA DCADA DE 1990Flvio Goulart

A descentralizao das polticas pblicas e das funes estatais em geral tem longa histria no Brasil, passando por perodos de maior ou menor intensidade e avano. De maneira geral, aps a Constituio Federal de 1988, uma tendncia descentralizadora passou a fazer parte da maioria das polticas pblicas sociais no Brasil, com reflexos palpveis na distribuio dos recursos federais aos demais membros da Federao. A nfase na descentralizao do texto constitucional de 1988 bastante expressiva, traduzindo-se no s por ao legislativa concorrente entre os nveis de governo, como por delegaes de competncias e atribuies aos estados e municpios. Inmeras aes desses nveis de governo so ampliadas em relao aos textos constitucionais anteriores, com maiores responsabilidades e prerrogativas atribudas aos mesmos. Assim, no perodo ps-constitucional, aumenta o poder legiferante dos estados e dos municpios em aspectos to variados como sade, educao, preservao da natureza, patrimnio artstico e cultural. Novas competncias so estabelecidas em assuntos de interesse local tambm na tributao, na aplicao de receitas, na organizao do territrio. Na rea social as mudanas so altamente expressivas, estabelecendo novas responsabilidades e tambm prerrogativas diversas em relao sade, educao, ao meio ambiente, assistncia social. Sem dvida, so desideratos ambiciosos, retratos de uma era de reconquista democrtica e tambm de fortes expectativas, legitimadas pelas transformaes polticas, econmicas e culturais da poca. Porm, devem ser registradas as mudanas de ndole epidemiolgica, demogrfica, tecnolgica, alm daquelas culturais, ligadas prpria percepo de direitos por parte dos cidados, que29

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constituem um panorama fluido, no s no Brasil como no mundo e que muito se transformou desde o ano em que a CF foi promulgada. A histria das polticas de sade no Brasil bem conhecida e, em linhas gerais, como j foi dito, segue um padro de alternncia entre centralismo (predominante at os anos 90) e descentralizao, instaurada formalmente com a Constituio de 1988 e as Leis Orgnicas da Sade (Leis 8.080/90 e 8.142/90) (BRASIL, 1990) que vieram em sua esteira. No caso especfico da sade, surgem como marcos peculiares a emisso das chamadas NOB Normas Operacionais Bsicas, em 1992, 1993 e 1996, seguidas da NOAS Norma Operacional de Assistncia Sade, de 2001-02 (BRASIL, 2002). O esprito dessas normas, emitidas mediante portarias do Ministrio da Sade, foi o de conduzir a implantao do arcabouo desenhado no texto constitucional e nas j referidas Leis Orgnicas da Sade, j que tais documentos no chegavam a ter carter autoaplicativo, carecendo de detalhamentos operacionais. Seus focos principais eram a descentralizao das aes e servios, o financiamento, a organizao de servios e o relacionamento geral entre as esferas de gesto.

Descentralizao na dcada de 1990A descentralizao nos sistemas de sade, bom lembrar, representa um fenmeno presente na maior parte dos pases, embora com compreenses e prticas distintas, e pode ser considerada como fenmeno tpico da dcada de 1990 (GUIMARES E GIOVANELLA, 2004). No Brasil, a descentralizao teve como objetivo melhorar as respostas dos sistemas de sade e um processo ainda em curso. Sua complexidade deriva de que, no SUS, ocorre transferncia expressiva de poderes e recursos da Unio para os outros nveis de governo. No seriam poucos os avanos obtidos com tal processo, em que pese a distncia que ainda resta em relao ao objeto longnquo que um sistema de sade federativo, no qual a cooperao seja o elemento fundamental das relaes intergovernamentais, combinando autonomia, iniciativas locais e solidariedade entre nveis de governo.

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O modelo de descentralizao da sade no Brasil entre 1990 (ano em que efetivamente foram dados os primeiros passos da implementao dos dispositivos constitucionais) e 2002, mediante as normas operacionais referidas, pode ter representado uma real prioridade em termos polticos, um processo poltico-administrativo sem precedentes na sade e mesmo em outras reas, embora sob forte regulao federal. As polticas correspondentes teriam resultado da confluncia de duas grandes agendas, a da reforma sanitria propriamente dita e a da reforma do Estado, nem sempre congruentes entre si. Na primeira vertente, os traos marcantes so: descentralizao associada noo de sistema e de novas relaes entre entes de governo, servios e instituies em geral, alm do valor agregado de democratizao. Na agenda da reforma de Estado a descentralizao tomada tambm como valor, mas com conotaes diferentes, do tipo transferncia de encargos e racionalizao de custos, sem focalizar necessariamente o processo democrtico1, conforme a abordagem de Machado (2007). Parece ocorrer, sem dvida, uma linha de continuidade entre as diversas polticas implementadas desde os anos 80 (AIS e SUDS), nas quais a descentralizao de um modo ou de outro esteve implicada. Nesses movimentos iniciais e nos que ocorreram aps 1990 ocorre, de fato, uma progressiva transferncia de aes e servios estatais da esfera central para as mais perifricas, mantendo-se, entretanto, o controle da esfera central. A principal mudana dos anos 90 consistiria em uma descentralizao restrita ao plano administrativo, portanto parcial e incompleta, configurando uma essencialidade conservadora, no dizer de Elias (2001), dado o controle poltico e financeiro exercido pelo poder central2. Da decorreriam as formas de financiamento vigentes, caractersticas das polticas de sade tradicionais, como o pagamento por procedimento e produtividade, que a descentralizao em curso no Brasil no interrompeu, e em alguns casos at reforou. Mas no se pode negar que houve tambm mudanas notrias e inegveis no sistema de sade, tais como melhoria da racionalidade administrativa e financeira, ampliao da extenso e da cobertura dos servios, maior integrao entre os servios pblicos de sade, socializao da temtica da sade, bem como pela ampliao da participao social.

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Desafios da descentralizao do SUS na dcada de 1990A descentralizao da sade brasileira sem dvida levanta tenses e contradies derivadas dos diferentes interesses dos municpios, dos estados e da Unio. Entre os fatores restritivos esto: 1. o descompasso entre atribuies e recursos; 2. o aumento da competio entre estados e municpios por recursos cada vez mais escassos; 3. as dificuldades histricas do modelo centrado nas prticas curativas e de alto custo, com baixo foco na promoo da sade; 4. perfil dos municpios brasileiros caracterizado por disperso, baixa populao, qualificao precria, baixo dinamismo econmico; 5. insuficiente articulao com outras polticas pblicas de desenvolvimento econmico e social. Isso faz com que a ideia do SUS na Constituio de 1988 constitua, na viso de alguns autores, entre eles Silva (2001), ainda uma imagem-objetivo a ser perseguida, no que diz respeito principalmente reduo das desigualdades no acesso e na qualidade da ateno.

As normas operacionais do SUSAs Normas Operacionais da Sade (NOB), ainda presentes no imaginrio dos gestores de sade no Brasil, nasceram sob o signo da transitoriedade, ganhando certa colorao ideolgica correspondente ao perodo em que vieram luz. Assim, as NOB de 91 e 92 foram associadas ao governo Collor e a um momento centralizador da poltica de sade, ainda capitaneado pelo antigo Inamps. A NOB de 1993, principalmente na viso de seus formuladores, veio com a marca de um renascimento na sade, com o recm-empossado governo de Itamar Franco tentando recuperar a credibilidade e a tica nas prticas administrativas pblicas; seu lema, muito adequadamente foi a ousadia de cumprir a lei. A defesa do documento de 1996, feita por seus autores, procura mostrar marcas de avano conceitual, sob a gide de um novo governo que procurava se impor sob signos de modernizao administrativa e reforma do Estado. Na sua sequncia, veio a

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NOAS de 2001-02, com pretensas marcas de continuidade e aprofundamento desejveis na NOB anterior. O novo governo entronizado em 2003 encontrou a NOAS pronta, mas apenas semiaplicada. No criou nova norma operacional, mas tambm no deu seguimento ao aprofundamento, reviso e ao detalhamento que a NOAS ainda exigia. Ao invs disso, o Governo Lula optou pelo lanamento de uma nova poltica, o Pacto pela Sade (BRASIL, 2006). Assim como afirma Viana (2001), cada norma criou uma srie de contradies que passaram a ser resolvidas por aquela que lhe sucedeu, mediante tentativas de ajust-las a uma racionalidade sistmica, que incluiria financiamento dentro dos princpios federativos e de acordo com determinados modelos de sade e de assistncia regionalizados. Entre os aspectos positivos da era das NOB, aponta-se como fato marcante a transio dos modelos de descentralizao, de uma forma tutelada e convenial at a descentralizao com regionalizao, na interpretao de Machado (2006), com resgate do papel dos estados e partilha definida das funes dos entes federativos, sem abrir mo da forte regulao federal. As NOB podem no ter expressado apenas estratgias indutivas ou constrangedoras da descentralizao, mas que abriram tambm espaos de negociao e de pactuao de interesses na rea da sade, originando novos ordenamentos, alm da emergncia e do fortalecimento de novos atores e centros de poder na arena poltica, conforme analisa Viana (2001). Conclui-se que a descentralizao da sade sob a gide das NOB foi caracterizada por forte induo federal, com adeso dos municpios baseada em critrios nacionais, mas que sem dvida serviu como estmulo para o fortalecimento institucional dos municpios envolvidos. Ao analisar-se a implantao inicial da NOAS, destaca-se na mesma a caracterstica de ser um instrumento de induo do planejamento estadual, favorecendo o papel coordenador de tal instncia federativa. Considera-se ainda que um pr-requisito importante para o sucesso da norma teria sido a existncia de regies

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de sade efetivamente qualificadas, o que implicaria em municpios igualmente qualificados para se habilitarem, o que no teria ocorrido de forma completa na interpretao de Oliveira (2003). A NOAS seria ento um instrumento adequado para a descentralizao, embora necessitando de aperfeioamento mediante uso. O fato que entre os avanos permitidos pelo modelo de descentralizao adotado nos anos 90 est, sem dvida, a ampliao da municipalizao da gesto, bem como da explicitao das funes estaduais. O nvel federal, por sua vez, ampliou seu poder indutor e regulador ao introduzir novos mecanismos de transferncia vinculados s aes e programas assistenciais, dentro do contexto de um modelo federativo peculiar e com um sistema tributrio relativamente centralizado. Alm disso, a ampliao dos mecanismos de transferncia fundo a fundo, a criao do PAB e a introduo de incentivos financeiros aumentaram a autonomia do gasto para a maioria dos municpios e estados, conforme analisam Levcovitz, Lima & Machado (2001). Outros possveis saldos positivos do processo de implantao da NOAS foram o fortalecimento das aes de regulao, controle e avaliao na pauta dos gestores do SUS e a ampliao do emprego da Programao Pactuada Integrada (PPI). Solla (2006), autor que tambm coordenou o processo de descentralizao no MS entre 2003 e 2004, lembra, entretanto, do descompasso existente entre a descentralizao da assistncia e das vigilncias em sade.

Anlise crtica do processo de descentralizao nos anos 1990Entre as vises no exatamente otimistas, Carvalho (2001), que foi diretor de descentralizao e depois secretrio da SAS no perodo 1993-1995, aponta, por exemplo, que as NOB no se ativeram a realizar a mera operacionalizao do que vinha expresso nas leis; antes, desobedeceram-nas explicitamente e acabaram por retardar o cumprimento das mesmas. Faz exceo NOB 93, de cuja elaborao, alis, participou, considerando-a como instrumento que tentou resgatar o cumprimento da lei, de forma gradual, at se chegar ao cumprimento pleno da mesma. J a NOB de 1996 teria tentado avanar, mas correu riscos conceituais e prticos e nem chegou a acontecer de fato, sendo na prtica substituda por

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uma norma oculta, que ele denomina de NOB 98, no existente de direito, mas de fato, dados os acrscimos que se fez NOB 96, perpetrando o que esse autor denomina mais uma flagrante desobedincia s leis. A NOAS, segundo ele, apenas coroou o processo burocrtico recentralizador, com hegemonia agora absoluta do Ministrio da Sade, embora tenha havido apenas uma discreta diviso do poder com os estados, que at ento se julgavam margem do SUS. Igualmente crtica ao processo, mas partindo de um autor ligado pesquisa em sade coletiva, a posio de Cohn (2001). Para ela, o pacto federativo que vigora no pas, repousa no bero nada esplndido de um modelo econmico que sufoca o equilbrio oramentrio das esferas de governo, particularmente das estaduais e municipais, dificultando que assumam mais responsabilidades e tarefas na proviso das aes de ateno sade. Em tal contexto, a minuciosa regulamentao normativa federal, associada participao no devidamente equilibrada dos outros gestores, fizeram com que os repasses de recursos se dessem de forma estrangulada, provocando um crescente fracionamento setorial e intrassetorial e enfraquecendo as polticas. Em tal contexto, aspecto destacado criticamente tem sido o da verdadeira pletora de instrumentos de regulao e induo emanados pelo governo federal ao longo de todo o processo de implementao do SUS, o que denominado de portarizao, termo cunhado por Machado (2007). Nesse percurso, h quem chame a ateno para algumas ambiguidades, conflitos e contradies relativos no papel do Estado brasileiro a partir dos anos 90. Cordeiro (2001), por exemplo, aponta a perda de sua capacidade de formular e implementar polticas nacionais de desenvolvimento, antes focalizando o ajuste fiscal, permeado pelas presses da globalizao do capital. Alguns outros conflitos potenciais e reais do processo de descentralizao brasileiro devem ser registrados, por exemplo, a nfase municipalista evidente das NOB iniciais, que se chocava com uma racionalidade de base regional; o excesso e a complexidade das regras, por um lado, e as lacunas normativas, de outro; a ausncia de uma poltica consequente de investimentos no setor; a desconside-

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rao da diversidade macro e meso-regional e das especificidades das regies metropolitanas na formulao da poltica; a insuficiente articulao com outras polticas pblicas de desenvolvimento econmico e social (MACHADO, 2007). Analisando tambm o processo de implementao do SUS em termos globais, Fleury (2007) destaca a combinao de instrumentos de gesto descentralizada com mecanismos polticos de participao, o que seria, segundo a autora, essencial para a construo de um sistema democrtico, embora ainda no suficientemente radicalizada de forma a ser levada at o interior dos servios e mesmo at o conjunto do Estado. Para se avanar nisso seria necessrio, mais que uma gesto eficiente, a reconstruo de alianas entre as foras democrticas para alm dos limites estreitos dos SUS. A necessidade de um acompanhamento mais intenso e mais qualificado do SUS, mediante estabelecimento de etapas e metas passveis de serem cumpridas, mesmo levando-se em conta o denso e complexo labirinto normativo vigente, alm da no superao da imposio de modelos baseados na oferta, em conflito permanente com as necessidades da populao, constitui aspecto extremamente problemtico no processo de descentralizao em curso no pas, como aponta Santos (2007). O prprio processo de descentralizao no escapa s contradies decorrentes da existncia de uma poltica implcita apenas nas entrelinhas versus a outra explcita, traduzida nas linhas constitucionais e da legislao complementar.

Descentralizao e cultura de gestoCosta (2003), tambm um observador externo aos rgos de gesto, aponta algumas ponderaes crticas sobre o processo de implantao do SUS como um todo e da descentralizao. Segundo ele, alguns entraves so notrios, como, por exemplo, a insuficincia de capacidade tcnica e poltica dos governos locais, o desvio de recursos transferidos para setores estranhos sade, a pulverizao de recursos, alm da relativa ausncia de uma cultura de gesto. Isso acarretaria diversas interrogaes e incertezas, entre elas, uma capacidade reduzida de

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controle pelos cidados (accountability), o formalismo, a baixa autonomia das organizaes pblicas; as condutas oportunistas dos dirigentes e polticos. No restam dvidas de que existem sintomas tanto de crescimento quanto de degradao no SUS, em particular na descentralizao. O SUS tambm percebido como uma reforma incompleta, de implantao heterognea e desigual, no qual mecanismos institucionais de responsabilizao, desde os entes federados at os servios e as equipes de sade, so incipientes. Essa a posio de Campos (2007) que defende a necessidade de uma autntica revoluo cultural na sade, com real mudana nos padres de gesto, pois no se poderia conceber autonomia dos entes federados sem responsabilidade definidas de forma correspondente.

Descentralizao no SUS e prestao de serviosParece claro que o processo normativo relativo descentralizao, nos anos 90 em diante, alterou de fato as relaes de poder na sade, incrementando a disputa poltica dentro do setor. Uma parte do problema que os gestores estaduais estariam muitas vezes mais preocupados com a assistncia s pessoas do que com as responsabilidades de coordenao e gesto, que lhes seriam tpicas. O fato que a oferta de servios ainda um forte eixo orientador do sistema e, nesse contexto, estados com tradio na prestao de servios teriam mais dificuldade de assumir suas tarefas de coordenao da descentralizao.

Subfinanciamento, foco na ateno e seus efeitos na descentralizaoO que se percebe, de maneira geral, que possveis avanos conquistados no SUS atravs das vrias normas operacionais, mesmo com os agentes polticos interessados na sua preservao, esto sob risco de serem tragados, a partir do mundo extra-setorial, pela contrao de investimentos pblicos e ciso irrecorrvel do sistema de sade conforme j advertiam, desde o incio da dcada presente, Noronha e Soares (2001). Da mesma forma, a sub-remunerao dos profissionais e a precariedade das relaes trabalhistas vigentes tm diminudo a adeso dos mesmos ao SUS.

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Observao comum a diversos dos autores aqui relacionados a excessiva concentrao do processo normativo da descentralizao em aspectos ligados assistncia mdica individual e curativa, deixando de lado outras prticas de cunho coletivo, preventivo e promocional em sade. Teixeira (2002), por exemplo, analisando a questo no mbito municipal e microrregional, ressalta a necessidade de ser envolver mais intensamente as autoridades locais em um movimento nacional de reorientao do modelo de ateno sade.

Propostas e tendncias para a descentralizao do SUS nos anos 2000Fica a dvida se no seria melhor conduzir a poltica de descentralizao de forma mais modesta e realista, mediante pactos ou at mesmo, em determinadas circunstncias, de declaraes de intenes mais pontuais, de forma a se instalar um processo de negociao que seja fundamentado, ao mesmo tempo, em normas (leves) e jurisprudncias firmadas, com as ltimas assumindo gradativamente maior importncia. Assim, o foco poderia estar em se concentrar e manter a ateno nos processos criativos fundamentados na negociao entre os gestores da mesma esfera, de esferas diferentes, entre setores diferentes, envolvendo Estado e sociedade. So desafios lanados por Goulart (2001) desde o incio da dcada de 2000, ao defender o que denomina de um jeito ps-NOB, criativo e dinmico, clamando, em sntese, por um sistema de sade fundado em pactos, em jurisprudncia descentralizada e em negociao entre gestores, com menos normatizao rgida burocrtica e complexa. Rejeita, assim, o que chama de um SUS esculpido a golpes de portaria. Atualizando a discusso, a partir de 2003 o Ministrio da Sade, diante das presses dos demais gestores, mas tambm, certamente, procurando introduzir no cenrio da sade a marca de um governo recm-iniciado, comea a discutir mais intensamente a ideia de pactuao, em anteposio ao processo normativo duro at ento vigente. Entre as mudanas que ocorreram, destaca-se o fim do processo cartorial de habilitao e sua substituio pela formalizao de termos de compromisso de gesto que passariam a definir a responsabilidade sanitria e os compromissos de cada esfera de governo, com a criao de novos mecanismos de induo e incentivo para a adeso ao Pacto de Gesto, lanado em

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2006 (MINISTRIO DA SADE, 2006). Alm disso, com o objetivo de reduzir a pletora de rubricas diferentes para repasses de recursos federais estados e municpios foram criados cinco blocos de financiamento: ateno bsica; ateno de mdia e alta complexidade; vigilncia em sade; assistncia farmacutica e gesto do SUS.

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14. MINISTRIO DA SADE. Portaria N 399/GM DE 22 de fevereiro de 2006. Divulga o Pacto pela Sade 2006 e aprova as Diretrizes Operacionais do Referido Pacto. 15. NORONHA, JC; SOARES LT: A poltica de sade no Brasil nos anos 90. Cinc. sade coletiva.v.6,n.2,2001 16. OLIVEIRA, MHB Pactos de gesto: diviso de responsabilidades entre estados e municpios na descentralizao. In PIERANTONI, CR; VIANNA, CMM (org). Gesto de Sistemas de Sade. Rio de Janeiro: Ed. IMS/UERJ, 2003. 17. SANTOS, NR Desenvolvimento do SUS, rumos estratgicos e estratgias para visualizao dos rumos. Cinc. sade coletiva. v.12,n.2, 2007. 18. SILVA, LMV. Organizao do Sistema nico de Sade: problemas e desafios. Cinc. sade coletiva.v.6,n.2, 2001. 19. SOLLA, JJP. Avanos e limites da descentralizao no SUS e o Pacto de Gesto. Revista Baiana de Sade Pblica. v.30, n.2, 2006. 20. TEIXEIRA, CF. Promoo e vigilncia da sade no contexto da regionalizao da assistncia sade no SUS. Cad. Sade Pblica.v.18,supl, 2002. 21. VIANA, ALD. Descentralizao: uma poltica (ainda) em debate. Cinc. sade coletiva.v.6,n.2,2001

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CApTuLO 2

DILEMAS DA AO COLETIvA E CApITAL SOCIAL: pARA MELhOR COMpREENDER E pROMOvER A COOpERAO SOLIDRIA NO SuSIracema Benevides

Cooperao e solidariedade como princpios subjacentes ao SUSOs processos de descentralizao, regionalizao e construo de redes no SUS devem ser analisados luz do modelo federativo do governo brasileiro, constituindo-se um caso com muitas particularidades. O federalismo suscita questes que so especficas sua dinmica interna de funcionamento. A principal caracterstica desse modelo a existncia de uma dupla condio de autonomia e interdependncia entre o governo federal e as unidades que compem a Federao. Assim como o Brasil, os Estados Unidos, Austrlia, Alemanha e Canad todos pases de grandes dimenses geogrficas possuem um modelo federalista, embora cada um com suas caractersticas particulares. Um aspecto fundamental a ser considerado que o federalismo prope dois tipos principais de relao e de diviso de competncias entre os governos internos: o modelo cooperativo e o modelo competitivo. O federalismo brasileiro classificado como o tipo cooperativo e intragovernamental, significando que a Constituio pressupe a cooperao e a partilha solidria do poder entre as esferas de governo para o seu melhor funcionamento (BRASIL, 2006). Entretanto, no campo das polticas, princpios e conceitos filosficos no so aplicados prtica simplesmente a partir da redao de documentos, por mais inspirados, unnimes e esclarecedores que eles sejam. Igualmente no podem ser aplicados como decorrncia natural da publicao de normas, portarias e decretos. necessrio considerar ainda que conceitos como solidariedade e

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cooperao podem ter diferentes interpretaes dependendo das inclinaes ideolgicas dos envolvidos e muitos so os caminhos para o alcance desses ideais. Outro aspecto a ser ressaltado que a poltica de sade uma arena complexa em que os princpios ideolgicos so um capital valioso, mas facilmente esquecidos frente necessidade de gerar resultados palpveis sobre as condies de vida da populao. Portanto, embora a Constituio defina a solidariedade e a cooperao como princpios fundamentais do SUS, com base no federalismo brasileiro, sua incorporao ao cotidiano dos gestores enquanto norteadores das prticas de gesto est ainda em construo, consistindo em um jogo social cujo resultado depende de muitas variveis. Nesse sentido, vlido aprofundar o debate sobre alguns temas do campo da sociologia, da cincia poltica e da economia, como o caso dos dilemas da Ao Coletiva e do Capital Social, com vistas a oferecer subsdios para uma maior compreenso sobre os fatores facilitadores e inibidores para o alcance de relaes cooperativas mais estveis e favorveis entre gestores, organizaes e instituies que constituem o SUS.

Da Constituio ao Pacto pela Sade: duas dcadas de debates e embatesAps a Constituio Federal de 1988 os municpios passaram a ser membros da Federao, tendo sido iniciada a transferncia de poder, autonomia, financiamento e atribuies para esse mbito nas mais diversas polticas. Entre as novas responsabilidades, os municpios passaram a responder pela organizao e prestao de servios de sade para sua populao. Iniciou-se ento um longo perodo de luta poltica e institucional entre os gestores para definio das atribuies, limites, recursos e competncias de cada esfera de governo sobre a sade do territrio compartilhado. Conforme plenamente discutido e argumentado no Captulo 1 dessa publicao, a descentralizao foi inicialmente mediada pela publicao de portarias e normativas restritivas, parciais e verticalizadas, sendo amplamente criticada por intelectuais, sanitaristas e gestores como inconstitucional, burocrtica, centralizadora e indutora de fragmentao. Expresses tais como municipalizao

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autrquica e federalismo predatrio designam alguns efeitos do perodo inicial de descentralizao do SUS. (LEVCOVITZ, 2001; MENDES, 2001; GOULART, 1996 e 2001; ARRETCHE, 2003; PESTANA e MENDES, 2004 entre outros). A prtica da pactuao e negociao entre gestores fortaleceu-se medida que esses e seus colegiados (Conass e Conasems) adquiriram maior experincia e poder. Mas foi somente duas dcadas aps a Constituinte que a compreenso sobre o sistema de sade brasileiro como um pacto federativo chegou agenda poltica nacional e foi textualmente colocada na ordem do dia. Com a publicao da Portaria GM 399, de 22 de fevereiro de 2006, que apresenta o Pacto pela Sade, a descentralizao abordada na perspectiva da construo de consensos em relao aos objetivos e metas da poltica de sade entre os gestores das trs esferas de governo, considerando a cooperao e a solidariedade como princpios operacionais do SUS:

princpios operacionais na descentralizaoPara preservar o equilbrio e a interdependncia entre as trs esferas de gesto, fundamentais integrao nacional e reduo das desigualdades territoriais, atribuiu-se a elas responsabilidades comuns e o compartilhamento dos recursos pblicos destinados execuo descentralizada das aes governamentais. Essa concepo federativa inovadora precisa, entretanto, ser estruturada e aperfeioada por mecanismos e instrumentos de coordenao e cooperao, fundamentais s aes intergovernamentais, que permanecem dependentes de iniciativas setoriais. O setor Sade tem o mrito do pioneirismo na adoo de uma srie de estratgias voltadas organizao de uma rede pblica integrada e resolutiva, conformada no Sistema nico de Sade (SUS), que se baseia em um modelo de gesto compartilhada entre as trs esferas de governo (BRASIL, 2009).

O lanamento do Pacto da Sade foi considerado por Viana (2008) como o incio de um novo ciclo de descentralizao e de regionalizao no SUS. Entre outras inovaes, o Pacto criou os Colegiados de Gesto Regional (CGR), entidades com o objetivo de reforar a descentralizao e a regionalizao, alm de garantir uma abordagem participativa na negociao sobre as questes regionais. Os CGR funcionam como uma mesa de negociao permanente entre gestores

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municipais e do Estado, com a atribuio de organizar a cooperao para a prestao de sade no territrio, respeitando a diversidade e necessidades locais. No seu contexto atual, o SUS pode ser compreendido como uma grande mesa de interlocuo, negociao e pactuao, que acontece em espaos como a Comisso Intergestores Tripartite (CIT), Comisso Intergestores Bipartite (CIB), os Colegiados de Gesto Regional (CGR) e os diferentes Grupos de Trabalho do Ministrio da Sade, constitudos em conjunto com o Conass e o Conasems. Esses so os espaos cotidianos de proposio, amadurecimento e consolidao da poltica de sade brasileira.

Teorias sobre a construo de relaes cooperativasQuais so os fatores e as situaes que favorecem a cooperao entre os indivduos, as instituies e, por extenso, entre as esferas de governo? Que aspectos das polticas pblicas podem induzir escolhas em prol da comunidade, acima do autointeresse e oportunismo? Que medidas favorecem a cooperao e a solidariedade para alcance de um bem comum? Como propiciar a cooperao entre os indivduos e instituies? Determinadas regras favorecem ou inibem a cooperao? Qual o papel da confiana nas relaes de cooperativas entre indivduos, gestores e instituies? As dificuldades existentes nas relaes de cooperao entre os indivduos para alcance de um bem comum vm instigando estudiosos h muito tempo. No sculo XVIII o filsofo David Hume analisou o tema, conforme descrito por Putnan (1993), por meio da parbola sobre os dois agricultores vizinhos que esto com os campos repletos de milho maduro e que acabam por ter um grande prejuzo por no conseguirem associar-se e otimizar a colheita. Como no existe confiana mtua, eles permanecem isolados e perdem a possibilidade de obter um benefcio maior. Um sculo antes, Thomas Hobbes havia proposto que a nica soluo possvel para a superao do impasse e alcance da cooperao para o bem comum seria a existncia de um governo forte (o Leviat), capaz de atuar na mediao da relao entre os atores e, se necessrio, alcanar resultados pela coero. Bastos (2009) destaca que reflexes sobre os aspectos cooperativos na

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sociedade ocuparam espao significativo nas obras de Durkheim, Marx, Torqueville e Simmel. (PUTNAN, 1993; BASTOS, 2009). Essas questes tm sido debatidas por filsofos, economistas, socilogos, cientistas polticos e diversos outros tericos em busca de respostas que possam elucidar sobre os aspectos que reforam a cooperao entre atores sociais com vistas ao fortalecimento da economia, dos bens pblicos e do sucesso na implementao de programas e polticas pblicas. Algumas correntes de pensamento so mais pragmticas, como o caso das teorias baseadas no conceito de Escolha Racional, enquanto outras so mais otimistas, como o caso das abordagens sobre o Capital Social. Estudos empricos foram desenvolvidos em ambas as direes, permitindo compreender os fatores que propiciam o aprimoramento das relaes de cooperao e da prpria gesto do SUS.

Escolha racional e teoria dos jogosSegundo o referencial de escolha racional (rational choice), os indivduos tendem a fazer escolhas que maximizem seus ganhos individuais. Nesse sentido, a atitude de cooperao e a escolha pelos bens comuns podem ser estratgias interessantes e atraentes quando implicam benefcios maiores e mais duradouros. Entre os instrumentais que possibilitam o aprofundamento do debate sobre o tema da escolha racional est a teoria dos jogos, que prope situaes hipotticas ou reais (jogos) nas quais os atores sociais so colocados frente a desafios envolvendo escolhas individuais e coletivas. Surgida inicialmente como um ramo da matemtica aplicada, nas ltimas dcadas a teoria dos jogos foi utilizada, debatida e remodelada por diversos outros ramos do conhecimento, predominantemente pela economia e pelas cincias sociais, para interpretar as relaes polticas e sociais (FIANI, 2004). Um exemplo muito conhecido desses jogos e que introduz o debate sobre o escopo da ao coletiva o dilema dos prisioneiros no qual dois cmplices que cometeram um delito foram capturados e mantidos isolados. A ambos foram oferecidas as seguintes possibilidades: delatar o companheiro e ganhar a liberdade completa ou ficar em silncio. Caso ambos confessem, cada um paga

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apenas 5 anos de priso. Se delatado pelo amigo, o prisioneiro pagar 10 anos de priso. A situao caracterizada como um dilema porque apesar de o benefcio da delao (ou desero) ser maior, ele implica um risco muito alto e configura um equilbrio instvel na relao entre os cmplices. Uma das solues possveis para um equilbrio estvel que ambos os prisioneiros confessem e paguem uma pena no to alta, mas que levaria a um equilbrio estvel entre eles. Desse tema surgiram derivaes como o Equilbrio de Nash (do matemtico John Nash, cuja vida foi registrada no filme uma mente brilhante) e Eficincia de Pareto, do economista Vilfredo Pareto (FIANI, 2004).

O dilema da ao coletivaTranspondo o dilema dos prisioneiros para o contexto das modernas e complexas relaes sociais, surge o dilema da ao coletiva, que estuda as estratgias, limites e obstculos que os grupos enfrentam no sentido de garantirem o provimento de bens que beneficiem toda a comunidade. Mancur Olson foi o responsvel pela renovao do debate sobre esse tema na dcada de 1960. Alguns estudiosos consideram a posio de Olson bastante pessimista, pois ele identifica que as situaes favorveis superao do dilema da ao coletiva so muito restritas. Elas dependeriam, por exemplo, do tamanho da comunidade comunidades menores tendem a cooperar mais facilmente ao passo que a ao coletiva dificilmente seria alcanada em comunidades muito grandes; e da existncia de regras claras de punio e desestmulo ao caroneiro, isso , aquele indivduo que no contribui para o bem comum, mas usufrui igualmente dos seus benefcios. Ainda segundo Olson, a possibilidade de interao repetida entre os mesmos indivduos pode aumentar a probabilidade de uma cooperao sustentada no tempo, como forma de equilbrio social (BANDIERA, 2005). Mais recentemente, nos anos 1990 e 2000, Elinor Ostrom preocupou-se em compreender os motivos pelos quais certas instituies obtiveram xito na ao coletiva e outras no. Seus estudos apontaram uma srie de fatores que afetam favoravelmente a escolha individual em favor do coletivo tais como a clara definio dos limites da instituio, a participao das partes interessadas

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na definio das regras, a adoo de sanes gradativas para os transgressores e a existncia de mecanismos pouco onerosos para a soluo de conflitos. Outros aspectos relacionados superao da lgica egostica seriam a autonomia dos grupos envolvidos, nveis mais elevados de informao, conscincia a respeito dos bens pblicos, a possibilidade de comunicao entre os atores sociais antes das decises e a perspectiva de longo prazo das relaes. Para Ostrom (2004) e alguns outros autores, a necessidade de punio representa uma falha nos mecanismos de cooperao.

As contribuies do capital social para os dilemas da ao coletivaO conceito de Capital Social foi proposto e debatido por vrios cientistas sociais e recebeu especial destaque nos ltimos anos da dcada de 1990, ganhando espao no ambiente acadmico dominante. Conforme descrito por Robert Putnan (1996, apud MONASTERIO, 2000) o capital social constitudo pelas caractersticas da organizao social como confiana, normas e sistemas, que contribuam para aumentar a eficincia da sociedade, facilitando as aes coordenadas. De acordo com Putnan, um dos principais sistematizadores do conceito de capital social, sociedades que valorizam prticas de confiana interpessoal so capazes de alcanar mais facilmente bens comuns e tendem prosperidade. Por outro lado, a cooperao voluntria, baseada na confiana s possvel nas sociedades que possuem capital social. Em outras palavras, o capital social refora e promove a cooperao espontnea, gerando um crculo virtuoso. O trabalho de Putnan o resultado de 20 anos de uma pesquisa multidisciplinar sobre a descentralizao, ocorrida nos anos 1970, na Itlia, utilizando uma grande quantidade de mtodos e tcnicas no acompanhamento minucioso de alguns parmetros, associado busca por argumentos explicativos para os resultados encontrados. O principal objetivo do estudo foi analisar o impacto da descentralizao na reduo das desigualdades sociais e econmicas entre as regies. A Itlia foi um dos primeiros pases europeus a implementar um amplo processo de descentralizao e inovao na administrao pblica. Os princpios

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norteadores para o processo foram a crena de que um Estado descentralizado mais eficiente, responsvel, transparente e capaz de maximizar os investimentos. No entanto, essa escolha no resultou em um saldo positivo quanto ao alcance da equidade e reduo das desigualdades entre as regies. Pelo contrrio, as diferenas econmicas e sociais entre a parte norte do pas rico e prspero e a parte sul pobre e subdesenvolvida aumentou com a descentralizao. Putnan observou que o norte da Itlia, uma regio mais prspera e economicamente mais desenvolvida, foi capaz de se beneficiar mais com a descentralizao que a regio sul, que menos desenvolvida. Nas regies mais pobres do pas foi constatada a tendncia manuteno de algumas caractersticas do antigo governo centralizado tais como corrupo, clientelismo, ineficincia e falta de qualificao dos trabalhadores do setor pblico, o que teria gerado reduo dos benefcios da descentralizao. Pesquisas sobre possveis causas explicativas focalizaram aspectos da cultura e do ambiente social, tais como a cultura cvica, a cultura poltica, as tradies e outros aspectos. A partir dessa investigao, concluiu-se que o contexto cvico influencia o desempenho das instituies, significando que sociedades mais fortes produzem instituies mais fortes:Os estoques de capital social, como confiana, normas e sistemas de participao, tendem a ser cumulativos e a reforar-se mutuamente. Os crculos virtuosos redundam em equilbrios sociais com elevados nveis de cooperao, confiana reciprocidade, civismo e bem-estar coletivo. (...) Por outro lado, a inexistncia dessas caractersticas na comunidade tambm algo que tende a reforar-se. A desero, a desconfiana, a omisso, a explorao, o isolamento, a desordem e a estagnao intensificam-se reciprocamente num miasma sufocante de crculos viciosos (PUTNAN, 1993).

Numa abordagem mais centrada nos indivduos, James Coleman investiga o capital social nas redes sociais e resgata estudos de outros cientistas polticos para os quais os atores sociais esto imersos em redes de relaes e que suas escolhas so condicionadas por todas essas conexes. Assim, para Coleman, todas as relaes e interaes sociais potencialmente contribuem para o aumento da confiana e consequentemente, do capital social (MONASTERIO, 2000).

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Em sntese, uma das principais constataes de Putnan que o capital social favorece a cooperao espontnea e que a confiana o seu componente central. A confiana seria um produto das tradies cvicas e das relaes de reciprocidade na vida social. As diversas oportunidades de interao entre os atores sociais possibilitariam meios para aumentar a confiana e possibilitar colaboraes futuras, oferecendo mecanismos para a superao da lgica da ao coletiva baseada no interesse pessoal. Como sintetizado por Bastos (2009), os nveis de solidariedade e confiana interpessoais e a existncia de organizaes sociais so elementos colaborativos para o desempenho das instituies polticas, mas necessrio compreender que o Estado pode ser um fomentador do capital social, especialmente quando intervm sobre a qualidade das suas instituies ou sobre a reduo das desigualdades sociais.

SUS, Pacto pela Sade, regionalizao e redes de ateno sade na tica da ao coletiva e do capital socialAinda so poucos os estudos e as anlises das relaes entre gestores do SUS sob a tica dos referenciais da ao coletiva e do capital social. Machado (2008), analisando especificamente a elaborao da Programao Pactuada Integrada (PPI) pelos municpios de Minas Gerais, questionou as reais possibilidades de cooperao e solidariedade propostas pelo Pacto pela Sade. Em seu ensaio, enfatizou como os agentes podem perder o interesse na ao coletiva quando percebem a falta de credibilidade nos compromissos polticos, a existncia de assimetria informacional e ausncia de regras claras para a auto-restrio. Menicucci et al. (2008) desenvolveram um estudo emprico amplo e muito inovador acerca das relaes cooperativas no SUS, analisando a implementao de alguns instrumentos de gesto tais como a PPI, o Plano Diretor de Regionalizao (PDR) e o prprio Pacto pela Sade em regionais de sade de Minas Gerais. Os resultados obtidos permitem afirmar que as normativas estabelecidas para a gesto do SUS e o desenho institucional proposto para a regionalizao so capazes de resolver os dilemas da ao coletiva, especialmente porque propiciam a co-existncia de autonomia, interdependncia e relaes horizontais

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(no hierarquizada) entre os municpios, tendo o importante papel de mediao e coordenao sendo desenvolvido pelo Estado (e tambm pela Unio). Em seu estudo inovador sobre capital social e SUS em duas cidades do RS, Bastos (2009) postula que, a partir do processo de redemocratizao e, em especial com a criao do SUS no contexto da Constituio de 1988, o Estado passou a ser uma importante esfera de promoo da cidadania, oportunizando o acmulo de capital social. Um dos mecanismos indutores e promotores das relaes de solidariedade e confiana seriam os conselhos de sade, que proporcionariam espaos privilegiados de reflexo e trocas de experincias (BASTOS, 2009). Considerando seu potencial na oferta de importantes subsdios na orientao das melhores estratgias para o alcance de resultados que sejam equilibrados e mtuos, todos esses conceitos necessitam ser mais bem traduzidos e apropriados pelo campo da sade coletiva, da gesto pblica em geral e das relaes entre gestores federativos no SUS. Em nossa opinio, os resultados empricos e as reflexes trazidas pelos estudos sobre os dilemas da ao coletiva e capital social poderiam ser facilmente transpostos para as diversas esferas das relaes intergestores do SUS, em especial da realidade dos Colegiados de Gesto Regional (CGR).

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REfERnciAS1. ARRETCHE, M. Financiamento federal e gesto local de polticas sociais: o difcil equilbrio entre regulao, responsabilidade e autonomia. Cinc. sade coletiva, vol.8, n.2, 2003 2. ARRETCHE, M.; MARQUES, E. Condicionantes Locais da Descentralizao das Polticas de Sade. In: Polticas Pblicas no Brasil. Org. Hochman, G. Arretche, M. Marques, E. Fundao Oswaldo Cruz, 2007. 3. BANDIERA, O.; BARANKAY, I.; RASUL, I. Cooperation in Collective Action, 2005. The Economic Learning and Social Evolution (ELSE). Acessvel em: http://else.econ.ucl.ac.uk/ papers/uploaded/207.pdf 4. BASTOS, F A; SANTOS, E; TOVO, M F. Capital Social e Sistema nico de Sade (SUS) no Brasil. Saude soc., v. 18, n. 2, p. 177-188, 2009. 5. BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE SECRETRIOS DE SADE. SUS: avanos e desafios. Conselho Nacional de Sade. Braslia: Conass, 2006. 6. BRASIL. MINISTRIO DA SADE. Srie PACTOS PELA SADE. Coletnea 2006. Volume 3. Regionalizao Solidria e Cooperativa: Orientaes para sua implementao no SUS. Editora Ministrio da Sade. Braslia, 2009. 7. FIANI, R. Teoria dos Jogos. Editora Campus, So Paulo, 2004 8. GOULART, F.A.A. Municipalizao: Veredas Caminhos do Movimento Municipalista de Sade no Brasil. 1996. Ed. Abrasco-Conasems. Rio-Braslia, 1996. 9. GOULART, F.A.A. Esculpindo o SUS a golpes de portaria: consideraes sobre o processo de formulao das NOB. Cinc. sade coletiva v.6 n.2 Rio de Janeiro, 2001 10. Levcovitz, E.; Lima, L. D.; Machado, C. V. Poltica de sade nos anos 90: relaes intergovernamentais e o papel das Normas Operacionais Bsicas. Cinc. sade coletiva, vol 6, n 2, p. 269-291, 2001 11. MACHADO, J.A. Pacto de Gesto na Sade: at onde esperar uma regionalizao solidria e cooperativa? Paper do 32 Encontro Anual da ANPOCS, 2008. 12. MENDES, E. V. Os grandes dilemas do SUS. Volumes 1 e 2 Salvador: Casa da Qualidade Editora, 2001. 13. MENICUCCI, T. Et al. Regionalizao da ateno sade em contexto federativo e suas implicaes para a equidade de acesso e a integralidade da ateno: relatrio final. Belo Horizonte, Fundao Joo Pinheiro, 2008 14. MONASTERIO, L. Capital Social e Economia: antecedentes e perspectivas. V Encontro de Economia Poltica em Fortaleza, 2000 sep.org.br; congresso da Sociedade Brasileira de Economia e Poltica. Acessvel em (http://lmonasterio.blogspot.com/)

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15. OSTROM, E. Collective Action and property rights for sustainable development: understanding collective action. In: Foccus 11, February, 2004. Acessvel em: www.ifpri.org 16. PESTANA, M.; MENDES, E.V. Pacto de Gesto: da Municipalizao Autrquica Regionalizao Cooperativa. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Sade de Minas Gerais, 2004. 17. PUTNAN, R. D. Making democracy work: civic traditions in modern Italy. Princeton University Press, 1993 18. VIANA, A. L.; IBAEZ, N.; ELIAS, P. E. M.; LIMA, L. D. de; IOZZI, F. L.; ALBUQUERQUE, M. V. Novas perspectivas para a regionalizao da sade. So Paulo em Perspectiva, v. 22, p. 92106, 2008.

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Captulo 3

REDES DE ATENO SADE x SISTEMAS fRAGMENTADOS: DEfINIES, DILEMAS E pERSpECTIvASIracema Benevides

A fragmentao dos sistemas de sadeApesar da multiplicidade de formas, modelos e arranjos que um sistema de sade possa apresentar, ele deve ser capaz de promover, restaurar e manter a sade das pessoas. Esse o seu objetivo principal, sua raison dtre. (WHO, 2000). Vrios outros objetivos mais especficos surgem desse, dependendo do contexto, do estgio de amadurecimento e do modelo de atuao preponderante. Quanto s funes de um sistema de sade, a Organizao Mundial da Sade define trs grandes blocos: 1) gesto; 2) financiamento; 3) ateno sade. Considerada uma funo transversal a essas, a capacidade de responder s necessidades das pessoas a que serve (responsiveness) considerada um objetivo social extremamente importante. Significa que deve ser prestada assistncia adequada e oportuna, nas melhores condies e localizao, alm de ser garantida a proteo das pessoas quanto aos riscos para a sade e evitada a possibilidade de runa financeira devido a doenas (OPS, 2010). Embora os conceitos sobre organizao, funes e funcionamento desejveis para os sistemas de sade tenham evoludo muito, observa-se que muitos aspectos no esto ainda incorporados realidade e novos desafios surgem a cada momento, somando-se aos antigos. Os usurios tm, na atualidade, maior participao na discusso e proposio de questes relacionadas poltica de sade e demandam por servios que venham a atender de maneira mais personalizada s suas preferncias individuais e de grupo. Por outro lado, observa-se um crescente aumento na procura por cuidados de sade devido ao envelhe-

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cimento da populao, ao aumento das doenas crnicas e degenerativas e a problemas decorrentes do contexto social, como a violncia ou os acidentes de trnsito. Observa-se tambm um contnuo aumento da demanda pela assimilao de novas tecnologias e tratamentos, desafiando a capacidade dos gestores de garantirem boas respostas para todos. Dessa forma, a baixa capacidade de resposta e o fraco desempenho dos sistemas de sade um tema permanente na agenda de todos os pases e a fragmentao apontada como a principal razo para isso. De acordo com a OPS (2010), a fragmentao pode ser entendida como: servios que no oferecem toda a gama de possibilidades que deveriam: promoo, preveno, diagnstico e tratamento, reabilitao e servios de cuidados paliativos; servios dos diferentes nveis de cuidados que no esto coordenados entre si; servios que no garantem a continuidade do cuidado; servios que no atendem s necessidades das pessoas.

Em um sistema de sade fragmentado no existe coordenao entre os diferentes nveis e locais de atendimento podendo ser observados problemas tais como duplicao de servios e infraestrutura, capacidade produtiva no utilizada e cuidados prestados em locais no apropriados, como frequentemente acontece com os hospitais. Segundo a OPAS (2010), as principais causas da fragmentao dos servios de sade na reviso de literatura e nas consultas aos pases-membros esto sumarizadas no quadro a seguir:

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Segmentao institucional do sistema de sade. Descentralizao dos servios de sade que gere fragmentao dos nveis de ateno sade. Predominncia de programas focalizando doenas, riscos e populaes especficas (programas verticais) que no esto integrados ao sistema de sade. A separao extrema de servios de sade pblica e dos servios de ateno s pessoas. Modelo de ateno centrado na doena, no cuidado com episdios agudos e na ateno hospitalar. Fragilidades na capacidade de gesto e liderana e do sistema de sade. Problemas com a quantidade, qualidade e distribuio dos recursos. Fragilidades na definio dos papis, dos nveis de competncia, dos mecanismos de contratao e disparidades nos salrios dos trabalhadores de sade. A multiplicidade de instituies e mecanismos de pagamento de servios. Comportamentos da populao e dos prestadores de servios que so contrrios integrao.; Obstculos jurdicos e administrativos. Prticas de financiamento de algumas agncias de cooperao internacionais ou doadores que promovem programas verticais.

Redes de Ateno SadeO vocbulo rede possui muitos significados, especialmente na lngua portuguesa, abrangendo aplicaes na vida domstica, laboral e na esfera acadmica: rede de pesca, rede de proteo, rede de salvamento, rede eltrica, rede para descanso, rede de amigos, rede social, rede de computadores, rede profissional. Redes, redes e mais redes. Uma expresso com muitas facetas, mas todas baseadas em uma imagem comum: a de pontos interligados. No mundo ps-moderno e globalizado tudo parece acontecer em rede, ou seja, em conexo. Especialmente no campo do conhecimento acadmico o termo tem recebido novos significados e definies, considerando sua crescente utilizao em reas

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como a informtica, a psicologia social, sociologia, administrao pblica e privada e, finalmente, tambm na rea das polticas pblicas (FLEURY e OUVERNEY, 2007). Alguns autores apontam vantagens para a organizao de redes1: Capacidade de aprendizagem. As redes englobam vrias fontes de conhecimento e promovem a difuso de informaes que permitem maior intercmbio entre os participantes, tornam-se igualmente lcus da inovao. Legitimidade e status. As redes possibilitam o desenvolvimento de conexes entre pessoas e organizaes, reduzindo a incerteza; associao em rede permite que os participantes compartilhem status. Benefcios econmicos. As relaes de intercmbio em redes permitem a obteno de economias de escala, reduo de custos e melhoria na prestao de bens e servios.

O conceito de redes aplicado rea da sade recente e foi proposto como uma soluo para os problemas decorrentes da fragmentao de servios isolados. Segundo Mendes (2009), a expresso comeou a ser aplicada nos Estados Unidos na primeira metade da dcada de 1990, sendo mais tarde introduzida na Europa e no Canad, alcanando posteriormente alguns pases em desenvolvimento. No campo da sade rede e sistema so conceitos prximos, mas possuem significados diversos. Um sistema de sade pode ou no estar organizado em rede. A palavra sistema tem origem no termo grego synstanai que significa reunio de partes diferentes ou um conjunto de elementos interconectados, formando um todo. Quando aplicado rea da sade, o conceito ganha maior amplitude e significado. De acordo com o clssico relatrio da Organizao Mundial da Sade do ano 2000:

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Poldony e Page, 2000 (Apud Fleury e Ouverney, 2007)

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Sistemas de sade consistem de todas as pessoas e aes cujo propsito fundamental seja melhorar a sade (de um determinado grupo ou populao2). Eles