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1 EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR PRESIDENTE DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA BAHIA O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA, por seu Órgão de Execução infrafirmado, vem, na forma do art. 245 do RI-TJ/BA, INTERPOR CORREIÇÃO PARCIAL contra a decisão que EXTINGUIU MEDIDAS PROTETIVAS SUPLEMENTARES DA LEI MARIA DA PENHA, requerendo seja o presente recebido e processado na forma regimental. Nestes Termos, Pede deferimento. Santo Amaro-BA, 07 de outubro de 2014, 12h59 Belª. Cleide Ramos Reis Promotora de Justiça Titular Ref. MP 0001581-79.2013.805.0228 SIMP 724.0._______________/2014 Intimação em 03/10/14 (6ª feira), Interposição em 07/10/14 (3ª feira)

Ref. MP 0001581-79.2013.805.0228 SIMP 724.0. /2014 ... · 2egrÉgio tribunal de justiÇa da bahia razÕes de correiÇÃo parcial . tema: medidas protetivas lei maria da penha . recorrente:

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EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR PRESIDENTE DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA BAHIA

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA, por seu Órgão de Execução infrafirmado,

vem, na forma do art. 245 do RI-TJ/BA, INTERPOR CORREIÇÃO PARCIAL contra a decisão que

EXTINGUIU MEDIDAS PROTETIVAS SUPLEMENTARES DA LEI MARIA DA PENHA, requerendo seja

o presente recebido e processado na forma regimental.

Nestes Termos, Pede deferimento.

Santo Amaro-BA, 07 de outubro de 2014, 12h59

Belª. Cleide Ramos Reis Promotora de Justiça Titular

Ref. MP 0001581-79.2013.805.0228

SIMP 724.0._______________/2014

Intimação em 03/10/14 (6ª feira), Interposição em 07/10/14 (3ª feira)

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RAZÕES DE CORREIÇÃO PARCIAL

TEMA: MEDIDAS PROTETIVAS LEI MARIA DA PENHA

RECORRENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO EM DEFESA DE EDNALVA DE ASSIS DOS SANTOS

EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA BAHIA

COLENDO CONSELHO DA MAGISTRATURA

ÍNCLITOS JULGADORES,

I- TEMPESTIVIDADE E CABIMENTO DE RECURSO

O presente recurso é cabível contra decisão que tumultua e subverte rito processual,

consoante previsto no art. 245 do RI/TJ/BA.

A intimação da decisão vergastada foi realizada pessoalmente em 03-10-14, cf. se infere

do carimbo de recebimento na promotoria às fls. 16,v, pelo servidor Rickson Oitaven, SEM

APOSIÇÃO DE CARIMBO DE VISTAS pelo cartório. Assim, o presente recurso é absolutamente

tempestivo, já que apresentado em 07-10-14, dentro do prazo de 05 dias, nos termos do CPP 798.

II – OBJETO E CABIMENTO DO RECURSO

Trata-se de decisão que extinguiu por litispendência medidas protetivas suplementares

da Lei Maria da Penha (LMP) requeridas pelo Ministério Público na forma do art. 19, § 3° da Lei

11.340/2006, em pedido autônomo do requerimento incidental formulado pela autoridade

policial.

A questão perpassa pelo não reconhecimento da legitimidade concorrente do Ministério

Público e do não reconhecimento das causas de pedir distintas nas medidas protetivas requeridas

pelo MP, distintas das medidas eleitas pela autoridade policial, que tornam inaplicável a

litispendência em relação ao processo de iniciativa do MP.

Ademais, trata-se também da indefinição quanto ao rito das medidas protetivas,

considerando o Manual de Rotinas para instalação dos Juizados de Violência Doméstica elaborado

pelo CNJ em 2010, que admite tanto o rito atípico incidental do CPP quanto o rito cautelar.

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A escolha do rito é relevante, na medida em que determinadas questões dependem

disso. Assim, se o MP não tem conhecimento das medidas cautelares requeridas pela autoridade

policial, uma vez que o inquérito policial não estava e não está sendo apensado ao pedido

incidental de protetivas formulado pela autoridade policial, abrindo-se vistas desses autos ao MP

em datas distintas, contrariando inclusive a orientação do CNJ, isso rende margem a que o MP

formule pedidos concorrentes em procedimento próprio. Por outro lado, ainda que o órgão

ministerial tivesse vistas do pedido policial antes da remessa do IP, nada impede que após a

remessa do IP, que contém maiores elementos de prova, entenda cabível a formulação de novas

protetivas, sem que isso possa ser considerado litispendência, uma vez que se trata de partes

legitimadas distintas com pedidos distintos.

Vejamos a situação nos presentes autos, ESCLARECENDO QUE ESTES NÃO ESTÃO

APENSADOS À AÇÃO PENAL 1618-09.2013 E À MEDIDA PROTETIVA INCIDENTAL INICIADA PELA

AUTORIDADE POLICIAL, TOMBADA SOB N. 1467-43.2013, E O MP DESCONHECE A TRAMITAÇÃO

DESTA MEDIDA, UMA VEZ QUE EXISTEM ATUALMENTE CERCA DE 651 MEDIDAS PROTETIVAS EM

CURSO NA VARA CRIMINAL, E SOMENTE COM O ACESSO AOS AUTOS PODE O MP MANIFESTAR-SE

SOBRE A SUA FASE DE TRAMITAÇÃO, POIS A CONSULTA AO SAIPRO NÃO ESPECIFICA

ADEQUADAMENTE O ESTADO DO PROCESSO.

Ademais, para que a magistrada decidisse pela litispendência deveria ao menos juntar

nos presentes autos cópia da sua decisão na medida incidental, já que os autos não estão

apensados, mas nem isso foi feito, dificultando sobremaneira a atuação ministerial no presente

feito.

DO MESMO MODO, NÃO TENDO SIDO APENSADAS AS DUAS MEDIDAS PROTETIVAS À

AÇÃO PENAL CORRESPONDENTE, A TRAMITAÇÃO DA AÇÃO PRINCIPAL É IGNORADA.

Cabe registrar que, ao contrário da eficiência da máquina judiciária defendido tão

exaustivamente pela douta magistrada, a recusa em referenciar a vítima e/ou o agressor para a

rede de atendimento, indeferindo os requerimentos formulados pelo MP, acarretam sério

prejuizo para a estatística dos casos de violência doméstica, visto que, sem a informação prestada

pelo Judiciário, os casos de demanda espontânea que ingressam na rede socioassistencial são

infinitamente menores. Isso reflete diretamente tanto na oferta dos serviços, que deixam de ser

prestados com base na sub-demanda, quanto na captação de recursos de fontes das demais

esferas estadual e federal, que geralmente são condicionadas à comprovação de demanda

prévia.

A elaboração de um sistema de informações sobre a LMP e o mapa da violência são

fundamentais para o desenvolvimento das políticas públicas, e a falta de integração entre a

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polícia e o Judiciário com os órgãos governamentais de atendimento sem dúvida refletem

negativamente na acuidade desses dados. Como se vê, não se pode opor a "eficiência do

Judiciário", que na verdade não passa de uma ambição pessoal de prolação de sentenças rápidas,

ao desiderato maior que resulta da principiologia da LMP, que é o uso de ferramentas que

revelem o verdadeiro índice de violência e possam com isso suscitar as políticas públicas

necessárias para debelar esse nefasto fenômeno cultural.

III- RELATÓRIO DA MP 1581-79.2013 PROPOSTA PELO MP

O Ministério Público ingressou com o pedido de medidas protetivas suplementares em

13 de maio de 2013, juntamente com a denúncia, como sói ocorrer em todos os casos.

Os autos da presente restaram paralisados por um ano e um mês, até que em 10 de

junho de 2014 a douta magistrada exarou despacho determinando que o MP informasse se os

órgãos socioassistenciais vinham se recusando a cumprir os requerimentos ministeriais, com a

clara intenção de indeferir os pedidos de protetivas suplementares de referenciamento na rede

de atendimento, por sufragar o entendimento de que o MP possui "poderes requisitórios" e está

obrigado a formular anteriormente tais requerimentos na via administrativa, e somente em caso

de recusa injustificada das autoridades municipais em cada caso, recorrer ao Judiciário.

Trata-se de um preocupante retorno à exigência prévia de esgotamento da via

administrativa, que há anos luz atrás serviu de fundamentação para o Judiciário justificar a inércia

judicial e extinguir diversos processos que abarrotavam suas prateleiras sem maiores esforços.

Diz ainda a sintética decisão extintiva que existe decisão de mérito em outro processo, e

que não há razão para duas ações "com as mesmas partes".

Ocorre que na maioria das vezes o MP somente tem acesso aos autos dos pedidos

formulados pela autoridade policial meses depois do oferecimento da denúncia com o

ajuizamento da medida suplementar de iniciativa própria, ou ao revés, recebe a protetiva

proposta pela autoridade policial e verifica que não foi remetido o IP correspondente,

reservando-se a formular novos pedidos de protetivas após a remessa do IP. Em qualquer caso, a

LMP não determina que o MP tenha conhecimento dos pedidos formulados pela autoridade

policial antes da decisão judicial liminar, acarretando assim o desconhecimento pelo MP do teor

dos pedidos formulados pela autoridade policial e das medidas deferidas pela autoridade judicial

nesses autos incidentais, por longos meses.

Ademais, não há nenhum impedimento para que o MP possa formular pedidos diversos

daqueles constantes do pedido formulado pela autoridade policial e deferidos pelo juizo; ao

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contrário, a LMP prevê a atuação do MP seja como custos legis, no processo de iniciativa da

autoridade policial, seja como acionante autônomo.

Quanto a homenagear a eficiência judiciária, a magistrada indeferiu vários

requerimentos formulados pelo MP como custos legis em processos incidentais iniciados pela

autoridade policial (dos quais cita o de n. 2639-20.2013) registrando em algumas dessas decisões

que os pedidos do Ministério Público não eram fundamentados. Em razão desse entendimento -

um claro subterfúgio para não ocupar o Judiciário com o referenciamento obrigatório das vítimas

de violência doméstica para a rede de atendimento, sob o entendimento de que a expedição de

vários ofícios para os órgãos da rede acarretariam sobrecarga do cartório e inviabilizariam o

funcionamento do Judiciário - o MP passou a requerer medidas cautelares com fundamentação

rigorosa sobre os institutos e a natureza da LMP e das medidas protetivas de encaminhamento à

rede de atendimento.

O que se observa não apenas neste processo como em outros análogos é que A

MAGISTRADA A QUO INDEFERE TODOS OS REQUERIMENTOS FORMULADOS PELO MP, NA

MAIORIA DAS VEZES SEM QUALQUER FUNDAMENTAÇÃO, conforme modelos que junta ao

presente, e em outras oportunidades recorrendo ao alentado princípio da eficiência judiciária, em

oposição ao direito de acesso à justiça. Ainda, a situação se estende capciosamente para as ações

penais de violência doméstica (e outras), onde a magistrada determina que o MP localize vítimas,

agressor e testemunhas, sob pena de arquivamento ou preclusão, gerando assim uma situação

insustentável para o funcionamento da 1a Promotoria de Justiça de Santo Amaro, que conta

apenas com um órgão ministerial e um assistente técnico que atualmente serve 02 promotorias,

gerando uma sobrecarga fenomenal para todos, dada a necessidade constante de

desmantelamento desses processos, escaneamento e remessa para o NIC ou para o serviço de

busca ativa municipal, em tentativas vãs de localização de partes e testemunhas que mudaram de

endereço porque esses processos ficaram paralisados anos a fio no Judiciário local.

A situação é tão marcante, que até mesmo os recursos de apelação interpostos contra

as decisões de indeferimentos ministeriais nas medidas protetivas tiveram seu curso negado pela

magistrada, obrigando este órgão a ingressar com recursos em sentido estrito, existindo

atualmente diversos recursos dessa natureza pendentes de julgamento no Tribunal. Em razão das

dificuldades operacionais do órgão local do MP em interpor 02 recursos em cada medida

protetiva, passamos a interpor um unico recurso de correição parcial a fim de que o TJ-BA firme o

seu entendimento sobre o recurso cabível, já que os tribunais ainda divergem sobre os recursos

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cabíveis, embora exista precedente do TJ-BA entendendo que o indeferimento de medidas

protetivas desafia a apelação supletiva1.

O assunto foi pautado inclusive em reunião do Escritório Regional do Ministério Público,

para levantamento de quais comarcas estariam enfrentando os mesmos problemas, resultando

que apenas os juizes de Santo Amaro e São Francisco do Conde adotam essa postura de

indeferimento sistemático de requerimentos do Ministério Público nos processos em tramitação

na vara criminal, sejam ou não da LMP.

Lamentavelmente, em busca de uma suposta eficiência - que na verdade não passa de

uma busca de laureamento mediante julgamento rápido de processos, pouco importando se a

finalidade desses instrumentos de justiça social foi ou não alcançada - os direitos de pessoas em

situação de alta vulnerabilidade social, como crianças, adolescentes e mulheres em situação de

violência doméstica, estão sendo negligenciados.

A cautelar ministerial inclui os seguintes pedidos:

1) reeducação do agressor, através de sua inclusão em oficinas educativas realizadas

pela rede socioassistencial;

2) o referenciamento da vítima e sua família para a rede de atendimento à mulher

através de sua inclusão no PAEFI - programa de proteção social especial, a fim de que o CREAS,

órgão executor desse programa, informe se persiste a situação de violência doméstica2

3.2. DECISÕES USUALMENTE PROFERIDAS NAS MEDIDAS PROTETIVAS SUSCITADAS PELA

AUTORIDADE POLICIAL

1 Processual penal. Agravo de instrumento em matéria criminal. Lei Maria da Penha. Deferimento e posterior revogação de medida protetiva de urgência. Matéria de natureza criminal. Impugnação da decisão que revogou medida protetiva mediante recurso de agravo de instrumento. Inadequação da via recursal eleita. Em matéria criminal, a interposição de agravo de instrumento somente tem lugar nos casos de inadmissão de recurso especial ou extraordinário, contra decisões do juízo de execuções penais e nas hipóteses de agravo regimental. No presente caso, tendo em vista que os agravados foram alvejados por decisão de natureza criminal, que uma vez revogada, expôs-se a apelação criminal, ante a não previsão de recurso legal próprio. Inteligência do art. 593, II, do Código de Processo Penal. Fungibilidade recursal. Inaproveitamento. Recurso impróprio protocolado fora do prazo assinalado para o adequado. Não conhecimento, nos termos do parecer da procuradoria de justiça. (TJBA, AgIn em Resp 860332009 BA 0008603-3/2009, 1ª C. Crim., j. 05.10.2010), rel. Dês. Abelardo Virginio de Carvalho). 2 Normalmente o requerimento de referenciamento é feito para o PAEFI, que é o programa de proteção social especial adequado para os casos de violência doméstica, mas nas sitiuaçõea em que se verifica largo decurso de tempo desde o fato, face a dúvida sobre a cessação ou não da violência, o MP costuma requerer o referenciamento para a proteção social básica porque este órgão tem entre suas atribuições o referenciamento para o CREAS quando verifica situação de violação de direitos.

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Consoante exposto acima, não há nos presentes autos cópia da decisão protetiva

proferida nos autos 1467-43.2013, os quais não foram apensados.

Entrementes, atualmente, a decisão padrão exarada nas medidas protetivas suscitadas

pela autoridade policial compreende as seguintes medidas:

1) afastamento do agressor do lar;

2) proibição de contato;

3) proibição de alienar ou vender bens comuns;

4) obrigação de continuar a prestar alimentos e

5) recondução da ofendida após afastamento do agressor do lar

Cotejando-se tais medidas com aqueloutras requeridas pelo MP observa-se que OS

PEDIDOS FORMULADOS PELO MP CONTEMPLAM REFERENCIAMENTO PARA OS PROGRAMAS DE

ATENDIMENTO, QUE NÃO CONSTAM NAS DECISÕES COLETIVAS ADOTADAS PELA DOUTA

MAGISTRADA ATÉ ENTÃO. Logo, não há de se falar em identidade de causas de pedir, e isso faz

cair por terra a fundamentação de litispendência.

IV- DA SUBVERSÃO DOS RITOS PROCESSUAIS E INEXISTÊNCIA DE LITISPENDÊNCIA

Vejamos o que diz o Manual de Rotinas do CNJ sobre a legitimidade do Ministério

Público para requerer medidas protetivas:

Em seguida, o CNJ apresenta o fluxograma do procedimento:

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O Manual do CNJ refere expressamente que não há um rito específico pacificado na

jurisprudência sobre o rito a ser adotado nas medidas protetivas, mencionando que são

admissíveis tanto a pedido incidental, quanto a cautelar, desde que sejam autuados em processo

próprio, cf. se vê abaixo:

O CNJ admite que, caso o magistrado adote o entendimento de que se trata de

incidente criminal, após a intimação das partes sobre o teor da decisão liminar, os autos ficam

conclusos aguardando o resultado da ação principal.

Assim, vê-se que não há uma imperatividade para que o magistrado opte pelo rito

incidental nos moldes do CPP, mas também não há vedação do rito cautelar. A questão que se

coloca é: no presente caso, existem duas medidas de natureza distintas, uma com rito incidental,

proposta pela autoridade policial, e outra cautelar proposta pelo MP.

Se não há obrigatoriedade de adoção do formato incidental e o MP é legitimado

concorrente, porque extinguir justamente a ação cautelar proposta pelo MP usando o

argumento da litispendência? Considerando que os pedidos formulados pelo MP são mais

amplos, não seria o caso de extinguir o pedido incidental da autoridade policial e processar a

cautelar proposta pelo MP, ou mesmo indeferir justificadamente os pedidos do MP, no mérito

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preliminar, em lugar de exarar decisão extintiva sem julgamento de mérito sob o pífio argumento

de litispendência?

A arguição de litispendência torna-se inadequada uma vez que não há identidade de

partes e pedidos nas medidas propostas pelo MP ou pela autoridade policial, consoante

jurisprudência e doutrina sobre a matéria, podendo citar:

PROCESSUAL - LITISPENDÊNCIA - CPC, ART. 301, §§ 1º, 2º E 3º -

EXTINÇÃO DO FEITO SEM ANÁLISE DE MÉRITO - CPC, ART. 267, V "

A existência de ação idêntica isto é, quando a ação proposta apresenta

identidade de partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido,

caracteriza a litispendência, impondo -se como medida necessária a

extinção do processo sem julgamento do mérito, ex vi do art. 267, V, do

CPC" (AC n. 2002.007861-7, Des. Sérgio Roberto Baasch Luz). (TJ-SC - AC:

20120627810 SC 2012.062781-0 (Acórdão), Relator: Luiz Cézar

Medeiros, Data de Julgamento: 19/08/2013, Terceira Câmara de Direito

Público Julgado)

AÇÃO RESCISÓRIA. PRELIMINAR DE INCOMPETÊNCIA DO STJ. ART. 105, I, E, DA

CONSTITUIÇÃO FEDERAL. REJEIÇÃO. PRELIMINAR DE IMPROPRIEDADE DA

DECISÃO INTERLOCUTÓRIA SUBMETER-SE A PEDIDO RESCISÓRIO. FIXAÇÃO DE

INDEXADOR MONETÁRIO. RESCINDIBILIDADE FACTÍVEL. REJEIÇÃO. PRELIMINAR

DE LITISPENDÊNCIA. AÇÃO RESCISÓRIA EM CURSO NO E. TRF/2ª REGIÃO. ART.

301, §§ 2º E 3º, DO CPC. CAUSAS DE PEDIR E PEDIDOS DISTINTOS.

SUPERAÇÃO. AÇÃO DE REPARAÇÃO. SUSPENSÃO DOS REPASSES DAS PARCELAS

DE FINANCIAMENTO PARA A CONSTRUÇÃO DE PRÉDIO DE APARTAMENTOS.

NECESSIDADE DE A CONSTRUTORA UTILIZAR-SE DE RECURSOS PRÓPRIOS.

RESSARCIMENTO DESSES VALORES. LUCROS CESSANTES. UTILIZAÇÃO DE ÍNDICE

DE CAPITAL DE GIRO COMO CRITÉRIO DE ARBITRAMENTO E ATUALIZADOR DOS

LUCROS CESSANTES. VIOLAÇÃO A LITERAL DISPOSIÇÃO DE LEI. ART. 485, V, DO

CPC. OFENSA À COISA JULGADA. CRISTALIZAÇÃO DO ÍNDICE COMO CRITÉRIO DE

ARBITRAMENTO, MAS NÃO DE INDEXAÇÃO. 1. Compete ao STJ julgar as ações

rescisórias de seus próprios julgados, desde que tenha havido análise do mérito.

Art. 105, I, e, da Constituição Federal. 2. Inocorrência de litispendência

quando, mesmo sendo idênticas as partes, não o forem as causas de pedir e

os pedidos (art. 301, §§ 2º e 3º, do CPC). 3. A violação a literal disposição de lei

(art. 485, IV, do CPC) pressupõe a afronta literal e direta ao texto normativo. 4.

10

Acórdão do E. TRF da 2ª Região que reconhece transitada em julgado decisão

liquidatória que utiliza índice de capital de giro como critério de liquidação e de

atualização dos lucros cessantes, levando a dívida, consoante argumenta a

devedora, a cifra bilionária. 5. Irrazoabilidade do reconhecimento da

imutabilidade do índice de capital de giro como índice de atualização

monetária. 6. Coisa julgada a incidir apenas sobre o critério de arbitramento dos

lucros cessantes. 7. PRELIMINARES REJEITADAS E AÇÃO RESCISÓRIA JULGADA

PROCEDENTE. (STJ - AR: 4774 RJ 2011/0215529-1, Relator: Ministro PAULO DE

TARSO SANSEVERINO, Data de Julgamento: 25/09/2013, S2 - SEGUNDA SEÇÃO,

Data de Publicação: DJe 28/10/2013)

APELAÇAO CÍVEL - AÇÃO DE COBRANÇA - ADICIONAL DE INSALUBRIDADE -

EXTINÇAO DO PROCESSO SEM RESOLUÇAO DO MÉRITO, COM FUNDAMENTO

NO ART. 267, INCISO V, DO CPC - IMPROCEDÊNCIA - LITISPENDÊNCIA NAO

CONFIGURADA - NECESSIDADE DE IDENTIDADE DE AÇÕES - DIFERENÇA NAS

CAUSAS DE PEDIR - INTELIGÊNCIA DO ART. 301, INCISO V, §§ 1º A 3º, DO CPC -

SENTENÇA DESCONSTITUÍDA - RETORNO DOS AUTOS À ORIGEM PARA O

REGULAR PROCESSAMENTO DO FEITO - RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

UNÁNIME. - Tratando-se de causas de pedir diversas, ainda que sejam

demandas sucessivas, não há que se falar em identidade de ações a configurar

a litispendência. Recurso conhecido e provido para desconstituir a sentença

de 1º Grau. Unânime. (TJ-SE - AC: 2011219161 SE , Relator: DESA. SUZANA

MARIA CARVALHO OLIVEIRA, Data de Julgamento: 22/05/2012, 1ª.CÂMARA

CÍVEL)

A persistir tal entendimento de litispendência, todo o trabalho deste órgão em quase 03

anos de atuação está fadado à inutilidade. Isso porque nesses 03 anos os processos da LMP

ficaram paralisados, somente tendo iniciado a movimentação na maioria deles a partir de

dezembro de 2013, com a juntada de uma decisão coletiva em alguns desses processos, enquanto

outros continuaram sem movimentação até meados de 2014, quando fora juntada decisão

padrão. Ou seja, em 03 anos o Judiciário não se manifestou sobre a escolha do rito, e

repentinamente, começa a extinguir e anular todos os esforços do Ministério Público nos últimos

03 anos apenas para se livrar do excesso de trabalho (embora nesse ponto seja compreensível, o

volume de trabalho na vara criminal é assustador para todos, mas isso é um problema estrutural

que não pode ser invocado para elidir o direito de acesso à justiça, ou todos os juizos em todas as

comarcas desse país podem sair extinguindo todos os processos mais antigos sob tal argumento,

11

violando assim o direito fundamental de acesso à justiça. Note-se, inclusive, que o excesso de

demanda é herança não atribuída a esses dois órgãos, mas fruto da omissão de profissionais

antecessores)

A escolha do rito e o entendimento desse tribunal - caso confirme a decisão recorrida -

certamente não elidirá o trabalho do Judiciário ou do MP, pois este órgão tem o direito de

recorrer mesmo como custos legis nas medidas suscitadas pela autoridade policial, e nesse caso,

formulará novos requerimentos nos processos incidentais - os mesmos requeridos nas cautelares

que estão sendo extintas, e a partir da não apreciação dos requerimentos ou apreciação com

indeferimento também será interposto o recurso cabível. Isso porque os membros do Ministério

Público têm independência funcional, e não havendo error in procedendo em formular novos

requerimentos e apresentar recursos, visando contribuir para uma discussão mais ampla da LMP

nos tribunais e obter decisões mais favoráveis ao espírito afirmativo da LMP, por mais que o

trabalho decorrente desse posicionamento seja desumano, é preciso pagar esse preço.

A LMP ainda comporta muita discussão, e junto com ela, os operadores do Direito têm a

chance de desenvolver uma lente de gênero capaz de contribuir efetivamente para o controle e

gradativa eliminação desse grave flagelo que é a violência contra a mulher, dado o caráter

multidisciplinar da lei, que permite o acionamento da rede de políticas públicas, sem o que,

obviamente, as decisões isoladas de afastamento do agressor do lar e proibição de contato com a

vítima não podem ter o mesmo impacto que a atuação integrada dos órgãos do SGD.

Portanto, seria mais profícuo para todos que a magistrada passe a analisar os pedidos

do Ministério Público já formulados, em vez de gerar novos processos de recursos que cedo ou

tarde irão abarrotar o tribunal.

A LMP é muito recente, para que se possa sacramentar um modo de pensar e julgar que

contraria sua principiologia, o que ocorre quando a magistrada se limita a adotar um rito

incidental dependente da ação penal, com decisão padrão em todos os casos, ignorando as

especificidades de cada situação, sem acionamento da rede protetiva, completamente excluída

do rito incidental ora adotado em Santo Amaro.

Note-se que o CNJ incorre inclusive em contradição ao prever os dois ritos distintos, e

no final concluir que as protetivas são dependentes da ação penal. Se o entendimento fosse o de

que a protetiva é meramente incidental, compulsoriamente, então nesse caso se entenderia o

atrelamento à ação penal. No entanto, o próprio CNJ admite rito cautelar próprio do CPC, e nesse

caso já existe precedente do TJ-MG reconhecendo a natureza satisfativa das cautelares

12

protetivas, e portanto sua independência em relação à persecução criminal, conforme se vê

abaixo:

Voltamos à importância do rito escolhido, pois em Santo Amaro a abordagem

multidisciplinar da LMP está sendo repudiada integralmente por um mero imperativo de

"economia processual", a saber, o Judiciário se recusa a estabelecer contato com a rede, e após

conhecer e deferir apenas os pedidos de afastamento do lar e proibição de contato (mesmo nos

casos em que se trata de pessoas não conviventes, ou nos casos em que, apesar da violência, o

casal continua convivendo, sem interesse no afastamento do agressor), seguindo o raciocínio do

CNJ, permanece o processo de medida protetiva aguardando o desfecho da ação penal.

Esse raciocínio de atrelamento da protetiva a uma ação penal apresenta as seguintes

contradições:

1) em caso de ação penal paralisada seja por falta de cumprimento dos mandados

citatórios, seja por impossibilidade de localização do agressor por mudança de endereço e

necessidade de citação editalícia, a medida protetiva fica igualmente dormindo em berço

esplêndido, e com isso perde seu potencial transformador;

2) em caso de arquivamento do IP por alguma razão (decadência do direito de queixa,

por exemplo, já que o MP não tem legitimidade ativa e por não haver designação de advogado

pela assistência jurídica gratuita ou designação da DP, a vítima sequer tem a chance de buscar a

persecução criminal, embora esse direito fosse assegurado nos arts. 27 e 28 da LMP, não

aplicáveis em Santo Amaro, ou prescrição, ou outro motivo), a medida protetiva incidental tem

que ser arquivada também, e com isso a vítima perde a proteção nas duas esferas, contrariando a

natureza afirmativa da LMP.

13

Por outro lado, a prevalecer o entendimento de que o rito cautelar é possível, com

natureza satisfativa, a medida protetiva terá sobrevida suficiente para que haja uma resposta

estatal multidisciplinar, com impactos sociais e individuais, seja pela contribuição para que o

agressor se retraia e mude seu comportamento, na vida privada, seja pela redução nos índices da

violência na sociedade, garantindo-se assim o direito social a uma vida sem violência para as

mulheres.

Nesse sentido, o Enunciado n. 05 da COPEVID - Comissão Permanente de Promotores

da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, que integra o CNPG - Conselho Nacional de

Procuradores Gerais, estabelece que "Na hipótese em que a mulher não deseja representar

criminalmente, foi deliberado que a medida de proteção poderá ter duração de 06 meses". Ou

seja, este órgão reconhece que, mesmo nos casos de desinteresse da vítima na persecução

criminal, as medidas protetivas podem ter uma sobrevida, visando assegurar o desaparecimento

da situação de risco.

A recusa sistemática da magistrada a quo em referenciar a vítima e quando necessário o

agressor para a rede de atendimento repercute negativamente nas políticas públicas, conforme

exposto supra, pelo escamoteamento dos números da violência. É preciso uniformizar

minimamente os procedimentos adotados pelos magistrados do interior, para que seja seguido o

mesmo protocolo usada nas comarcas dotadas de equipe multidisciplinar, caso contrário, estará o

Judiciário justificando o uso de dois pesos e duas medidas, que ferem o princípio da igualdade -

em determinadas comarcas o atendimento é protocolar, em outras, de entrância inferior e

dotadas de menor estrutura, há apenas um arremedo, um simulacro de proteção

social,morrendo o processo e os dados da violência numa sentença de arquivamento sem que a

demanda da ofendida seja conhecida pela rede de atendimento.

V- JUDICIÁRIO E VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER – MUDANÇA DE PARADIGMAS

Pasinato e Santos acentuam o quanto o Judiciário brasileiro está sendo levado a

enfrentar questões relacionadas às novas formas de relações afetivas e novos modelos de família

e sexualidade, exemplificando com as ações propostas pelo MPF para garantia do direito de

cirurgia de mudança de sexo aos transexuais. Para as autoras, a evolução das lutas por direitos

humanos das mulheres influenciaram o Direito, a começar pela inclusão do princípio da igualdade

entre homens e mulheres na CF/88, espelhado na Convenção sobre a Eliminação de Todas as

Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), de 18 de dezembro de 1979, ratificada pelo

14

Brasil com reservas em 1984, com reservas retiradas em 1994, passando pelos aportes da

Conferência de Viena (1993), da Conferência sobre População e Desenvolvimento (Cairo, 1994), e

especialmente da IV Conferência Mundial sobre a Mulher (Pequim, 1995), e no sistema

interamericano de direitos humanos, pela importância da Convenção de Belém do Pará

(Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher), de 1994,

ratificada pelo Brasil em 27/11/1995, que definiu violência contra a mulher como “qualquer ato

ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico

à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”. Em 2002 foi aprovado na ONU o

Protocolo Facultativo à CEDAW, que estabelece a competência do Comitê de monitoramento da

CEDAW para receber petições individuais ou de grupos de indivíduos com queixas de violações de

direitos humanos de mulheres, ratificada pelo Brasil em 28/jun/2002 e internalizada pelo Dec.

4.316, de 30 de julho de 2002.

Mas foi no sistema interamericano de direitos humanos que o Brasil teve oportunidade

de dar um salto de qualidade em sua legislação interna, através da condenação pela Comissão

Interamericana de Direitos Humanos – CIDH no caso Maria da Penha, determinando, dentre

outras medidas, que o Brasil adotasse uma legislação interna adequada para o enfrentamento da

violência contra a mulher.

A Lei Maria da Penha, assim denominada para indicar que o Brasil estava cumprindo o

comando da CIDH, permitiu que a temática da violência de gênero possa ser conduzida na esfera

do Judiciário fora do padrão de perpetuação e produção de hierarquia de gênero que alimenta a

violência. A partir dessa nova visão, não mais se espera que o Judiciário reproduza o mesmo

sistema de valores que naturalizava a violência de gênero e a desigualdade social, e que permitiu

a absolvição de muitos agressores3.

3 Alessandra Rinaldi cita vários trabalhos acadêmicos importantes sobre justiça e violência, destacando-se: primeiro, a tese de mestrado da antropóloga Mariza Corrêa, denominado “Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais”, publicado em 1983, que analisou processos judiciais de crimes passionais praticados em Campinas nas décadas de 1950 e 1960; em segundo lugar, o livro de Jaqueline Hermann e Leila Linhares Barsted, denominado “O judiciário e a violência contra a mulher: a ordem legal e a (des)ordem familiar”, publicado em 1995, concluiu como a cultura jurídica brasileira era sexista nos processos de violência doméstica e como as mulheres consideradas fora do padrão patriarcal eram julgadas em lugar de seus agressores. No livro “Justiça e violência contra a mulher: o papel do Judiciário na solução dos conflitos de gênero”, publicado em 1998, Wânia Pasinato Izumino preocupou-se em demonstrar a contradição entre o princípio constitucional da igualdade e as desigualdades de gênero presentes na sociedade brasileira, e ao analisar 83 processos judiciais que tramitaram na vara criminal e do Tribunal de Juri de Santo Amaro (SP), demonstrou que muitas mulheres recorriam à justiça não com intenção de punir os agressores, mas com intenção de fazer cessar a violência, e que a penalização jurídica não podia ser a única forma de resolução de conflitos dessa natureza. Ver: Alessandra de Andrade Rinaldi, “Violência e gênero – a construção da mulher como vítima e seus reflexos no Poder Judiciário: a Lei Maria da Penha como um caso exemplar”. Disponível em: HTTP://www.estacio.br/publicacoes/direitovivo/pdf/artigo_Menezes.pdf. Acesso em 23-12-13.

15

Piovesan aponta as 07 inovações introduzidas pela Lei Maria da Penha:

1) Mudança de paradigma no enfrentamento da violência contra a mulher, que passa a

ser considerada violação de direitos humanos, e não mero delito de menor potencial

ofensivo;

2) Incorporação da perspectiva de gênero, que determinou a criação de juizados

especiais e delegacias especializadas;

3) Incorporação da ótica preventiva, integrada e multidisciplinar, ao prever ações

articuladas entre os entes públicos e sociedade civil para prevenir e combater a

violência, e o atendimento multidisciplinar envolvendo órgãos do sistema de

garantia de direitos (Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Secretaria de

Segurança Pública e órgãos governamentais de políticas setoriais);

4) Fortalecimento da ótica repressiva, ao coibir a aplicação dos institutos

despenalizadores da lei 9099/95;

5) Harmonização com a Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a

violência contra a mulher, ampliando o conceito de violência para abranger suas

diversas formas (física, moral, sexual, psicológica, patrimonial), perpetradas na

esfera doméstica, no âmbito das relações familiares ou relações afetivas íntimas;

6) Ampliação do conceito de família e aceitação da livre orientação sexual – abandona

o conceito nuclear de família para incluir as relações homoafetivas;

7) Estímulo à criação de bancos de dados e estatísticas abrangendo as causas,

conseqüências e freqüência da violência contra a mulher.

Para Piovesan,

“A Lei Maria da Penha simboliza o fruto de uma exitosa articulação do

movimento de mulheres brasileiras ao identificar um caso emblemático

de violência contra a mulher, ao decidir submetê-lo à arena

internacional por meio de uma litigância e do ativismo transnacional, ao

sustentar e desenvolver o caso, por meio de estratégias legais, políticas

e de comunicação; ao extrair as potencialidades do caso, pleiteando

reformas legais e transformações no processo de elaboração da lei

16

relativamente à violência contra a mulher; ao defender e lutar pela

efetiva implementação da nova lei”4

VI- PEDAGOGIA E ESPIRAL DA VIOLÊNCIA NO BRASIL – A IMPORTÂNCIA DA PREVENÇÃO E

PUNIÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

“A realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como

produto da ação dos homens, também não se transforma por acaso. Se

os homens são os produtores desta realidade e se esta, na “invasão da

praxis”, se volta sobre eles e os condiciona, transformar a realidade

opressora é tarefa histórica, é tarefa dos homens”5.

A ideologia de gênero é insuficiente para garantir a obediência das vítimas potenciais

aos ditames do patriarca, tendo este necessidade de fazer uso da violência (SAFFIOTI, 2001: 115).

Segundo o Mapa da Violência contra a Mulher divulgado em 20126, apesar dos avanços

na legislação, em uma lista com 84 países, o Brasil está em 7º lugar nas taxas de homicídio

feminino (4,4 em 100 mil mulheres) e perde apenas para El Salvador (10,3), Trinidad e Tobago

(7,9), Guatemala (7,9), Rússia (7,1), Colômbia (6,2) e Belize (4,6).

Estas mulheres continuam sendo vitimadas em sua residência (41%) e o principal

instrumento utilizado são armas de fogo. Eles também são mortas com meios que exigem contato

direto, como a utilização de objetos cortantes, penetrantes, contundentes e sufocação, deixando

clara maior incidência de violência passional.

Os pais são identificados como agressores quase exclusivamente até os 9 anos das

meninas e na faixa dos 10 aos 14, como principais responsáveis pelas agressões. A partir dos 10

anos, se sobressai a figura paterna como responsável pela agressão. Já com o passar dos anos,

este papel vai sendo substituído pelo parceiro, namorado ou os respectivos ex, que predominam

a partir dos 20 anos da mulher até os 59. A partir dos 60, os filhos são os responsáveis pela

violência contra a mulher.

4 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo, 4. Ed, Saraiva, 2010, p. 293. 5 Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido. 6 Veja o Mapa da Violência na íntegra: http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_web.pdf

17

No dia 07 de janeiro próximo passado Salvador inteira ficou comovida com mais uma

história fatal de violência doméstica. Segundo a notícia da Tribuna da Bahia, a vendedora de

calçados Jéssica Ramos Santos, de 20 anos, foi esfaqueada 15 vezes na parte superior do corpo,

pelo ex-marido de nome Jean, com quem manteve um relacionamento de dois anos. O assassino

havia ficado preso 09 dias cerca de um mês antes do crime, devido a uma queixa prestada pela

vítima7. E as medidas protetivas da Lei Maria da Penha, será que se os serviços multidisciplinares

a que se refere a Lei Maria da Penha tivessem sido ofertados regularmente, a vítima não estaria

viva? Tivesse sido o assassino submetido desde o início a acompanhamento psicológico, será

que o Estado não poderia ter evitado a consumação delitiva?

A relação entre violência e raça no país é também marcante: o Mapa da Violência 2012

já observava que a tendência geral desde 2002 é: queda no número absoluto de homicídios na

população branca e de aumento nos números da população negra. Em 2010, diz o relatório,

observou-se um novo patamar preocupante: morrem proporcionalmente 139% mais negros que

brancos, isto é, bem acima do dobro! Em femicídios, a Bahia ocupa a 8ª posição, com 5,6

femicídios por cada 100 mil habitantes.

A violência doméstica se insere no contexto da violência estrutural, assim definida por

Minayo8:

Entende-se como aquela que oferece um marco à violência do comportamento

e se aplica tanto às estruturas organizadas e institucionalizadas da família como

aos sistemas econômicos, culturais e políticos que conduzem à opressão de

grupos, classes, nações e indivíduos, aos quais são negadas conquistas da

sociedade, tornando-os mais vulneráveis que outros ao sofrimento e à morte.

Conforme assinala Boulding (l981), essas estruturas influenciam profundamente

as práticas de socialização, levando os indivíduos a aceitar ou a infligir

sofrimentos, segundo o papel que lhes corresponda, de forma “naturalizada”.

Sendo uma expressão da violência estrutural ou simbólica, que é reproduzida na

sociedade através de padrões de comportamento, torna-se imprescindível o papel do Estado na

sua desconstrução, mediante políticas públicas adequadas.

7 Disponível em: http://www.tribunadabahia.com.br/2014/01/07/mulher-morta-facadas-em-passarela Acesso em 10-jan-14. 8 MINAYO, Maria Cecília. A Violência Social sob a Perspectiva da Saúde Pública. Cadernos de Saúde Pública (10) 1. Escola Nacional de Saúde Pública. Fundação Oswaldo Cruz, 1994, p. 8

18

Isso inclui o papel do Estado-Juiz, que é chamado a operar tanto mecanismos de

prevenção quanto de repressão. No aspecto preventivo, a Lei Maria da Penha exemplifica com

algumas medidas protetivas que não são numerus clausus, devendo o Estado-Juiz, em cada caso,

perscrutar todas as medidas possíveis capazes de prevenir novas ocorrências de violência. Assim,

por exemplo, se evidenciado que a violência estava relacionada ao consumo de álcool ou drogas,

torna-se imperativo assegurar que o agressor seja submetido a tratamento, pois eliminando ou

controlando a dependência química elimina-se também a violência de gênero.

A Lei Maria da Penha, contudo, não se contenta apenas com medidas protetivas

isoladas e circunstanciais, prevendo a necessária articulação entre o sistema de justiça e os

setores de políticas públicas para assegurar que a vítima tenha acesso a determinado catálogo

de direitos, sem o que continuará exposta a focos de violência.

Nessa seara se insere o acompanhamento pela rede socioassistencial9 de proteção

social especial, que detém dentre suas atribuições a incumbência de manter constante

articulação com outras políticas públicas para o empoderamento da usuária do serviço10. Assim,

a mulher dependente economicamente do companheiro ou marido, por exemplo, necessita ser

incluída em programa de inclusão produtiva, a fim de que possa ser gradativamente desligada de

programas de transferência de renda (inclusive benefícios eventuais), alcançando autonomia

financeira mediante inserção no mercado de trabalho e oferta de outras políticas públicas que lhe

permitam conciliar a atividade remunerada com as atividades não remuneradas do lar, por

exemplo, creche para que a criança menor seja cuidada no horário em que a genitora trabalha.

Segundo o Caderno SUAS,

O caráter de política de proteção social abre à assistência social conexões com

as demais políticas do campo social, voltadas à garantia de melhoria de

9 Para a NOB-SUAS (2005:94) a “rede socioassistencial é um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, que ofertam e operam benefícios, serviços, programas e projetos, o que supõe a articulação entre todas estas unidades de provisão de proteção social, sob a hierarquia de básica e especial e ainda por níveis de complexidade”. 10 Segundo o Manual CREAS: A PSE, por meio de programas, projetos e serviços especializados de caráter continuado, promove a potencialização de recursos para a superação e prevenção do agravamento de situações de risco pessoal e social, por violação de direitos, tais como: violência física, psicológica, negligência, abandono, violência sexual (abuso e exploração), situação de rua, trabalho infantil, práticas de ato infracional, fragilização ou rompimento de vínculos, afastamento do convívio familiar, dentre outras. Alguns grupos são particularmente vulneráveis à vivência destas situações, tais como crianças, adolescentes, idosos, pessoas com deficiência, populações LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais), mulheres e suas famílias. In: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Orientações Técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social. Brasília-DF, Gráfica e Editora Brasil LTDA, 2011, p. 18

19

condições de vida às populações empobrecidas, e com os órgãos de Justiça,

responsáveis pelo sistema de garantia de direitos básicos.

Essa necessária conexão no âmbito da proteção social e defesa de direitos

possibilita à assistência social mobilizar um rol de serviços, ações e atenções de

diferentes órgãos públicos e setores técnico-administrativos, de áreas como

educação, cultura, habitação, trabalho, esporte e justiça, em uma relação de

complementaridade e/ou desenvolvimento de ações que conjuguem esforços e

recursos.11

Assim, a Lei Maria da Penha determina necessariamente a inclusão da mulher em

programas assistenciais, conforme se observa:

Art. 9o A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso.

§ 1o O juiz determinará, por prazo certo, a inclusão da mulher em situação de violência doméstica e familiar no cadastro de programas assistenciais do governo federal, estadual e municipal.

Logo, é imprescindível em cada caso seja determinado o seu referenciamento no

PAEFI12, executado pela equipe do CREAS, órgão este que deve realizar as demais articulações

setoriais.

Toda situação de violência doméstica deve ser acompanhada e monitorada por políticas

públicas intersetoriais, cabendo em especial à equipe técnica do CREAS desenvolver as atividades

essenciais ao serviços descritas na Res. CNAS 109/09, que tem por finalidade prevenir novas

situações de risco, a preservação e o fortalecimento de vínculos familiares, comunitários e sociais

11Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Instituto de Estudos Especiais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Caderno do Suas, Desafios da Gestão do Suas, V. II, 1 ed. – Brasília: MDS, 2008, p. 40

12 Art. 24-B. Fica instituído o Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (Paefi), que integra a proteção social especial e consiste no apoio, orientação e acompanhamento a famílias e indivíduos em situação de ameaça ou violação de direitos, articulando os serviços socioassistenciais com as diversas políticas públicas e com órgãos do sistema de garantia de direitos. (Lei 8742, de 07/12/1993, com alteração da lei nº 12.435, de 2011)

20

e para o fortalecimento da função protetiva das famílias diante do conjunto de condições que as

vulnerabilizam e/ou as submetem a situações de risco pessoal e social13

O cuidado com os filhos, em especial, é uma preocupação candente na nova legislação,

pois a violência doméstica afeta drasticamente a qualidade de vida das crianças, sendo necessário

prever medidas que levem em conta o superior interesse das crianças, a exemplo de fixação de

pensão alimentícia, afastamento do agressor do lar, suspensão temporária de direito de visitas,

acompanhamento temporário pelo Conselho Tutelar para monitorar o grau de proteção ou a

situação de risco remanescente etc.

A mulher criada no sistema patriarcal acaba reproduzindo não intencionalmente o

dicionário da dominação masculina transmitindo para os filhos os valores cultural e socialmente

herdados sobre os papéis do homem e da mulher: para a mulher oprimida, lugar de mulher é em

casa, fazendo trabalhos domésticos, reproduzindo e criando os filhos; para a sociedade omissa e

desigual, “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”, e o homem tem o direito de dar

a última palavra em casa. Nada pode ser mais representativo do quão distante estamos de uma

sociedade verdadeiramente igualitária

Faz parte da pedagogia da violência a aprendizagem através das experiências individuais

e práticas sociais; assim, quanto mais se exercita a violência, mais se reproduz o seu capital

simbólico multiplicador. A criança que vê o pai batendo, maltratando e espezinhando a mãe,

tende a desenvolver a mesma conduta nas suas relações sociais: vai bater no coleguinha na

escola, mais tarde vai bater na namorada, e mais tarde ainda, num acesso de ira, pode matar a

mulher.

A Convenção Interamericana para a eliminação de todas as formas de violência contra a

mulher (também chamada de Convenção de Belém do Pará)14, em seu artigo segundo, assim

classifica a violência contra a mulher:

13 Cf. descrição do serviço na Res. CNAS 109/09. São objetivos do PAEFI, o Programa de Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos: 1) Contribuir para o fortalecimento da família no desempenho de sua função protetiva; 2) Processar a inclusão das famílias no sistema de proteção social e nos serviços públicos, conforme necessidades; 3) Contribuir para restaurar e preservar a integridade e as condições de autonomia dos usuários; 4) Contribuir para romper com padrões violadores de direitos no interior da família; 5) Contribuir para a reparação de danos e da incidência de violação de direitos; 6) Prevenir a reincidência de violações de direitos. Como se vê, não se pode prescindir da atuação da proteção social especial em tema de violência doméstica.

21

Artigo 2 Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica: a. ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras formas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual; b. ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, seqüestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local; e c. perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.

A Lei Maria da Penha, resultante de condenação do Estado brasileiro no sistema

interamericano de direitos humanos, aborda apenas a violência ocorrida na esfera das relações

intrafamiliares, que pode ser de ordem física, psicológica, moral, sexual e patrimonial.

A violência física se caracteriza pelo uso da força para causar injúria, ferida, dor ou

incapacidade;

A violência psicológica se caracteriza por atos de difamação (atribuição de fato ofensivo

à dignidade da pessoa), injúria (ofensa à honra e ao bom conceito moral que a pessoa goza na

comunidade), calúnia (atribuição de ato criminoso à pessoa, falsamente), ameaça,

constrangimento ou humilhação, mediante agressões verbais ou gestuais, bem como atos de

manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem,

ridicularização, exploração, limitação do direito de ir e vir (cárcere privado ou outra forma de

restrição da liberdade da pessoa) ou qualquer outro meio que acarrete dano emocional,

14 Os tratados de direitos humanos têm status de normas constitucionais de efeito material, segundo o entendimento dos constitucionalistas internacionalistas, por força do art. 5°, § 2° da CF, mas para o STF esses tratados anteriores à EC 45 que não foram aprovados com quorum qualificadíssimo de emenda constitucional têm status supra legal, isto é, embora hierarquicamente superiores às normas federais, estão abaixo das normas constitucionais. No campo do controle da convencionalidade, ainda que uma norma internacional esteja em conflito com norma interna, constitucional ou não, o Estado Parte não pode invocar disposição do direito interno para contrariar normativa internacional, submetendo-se às conseqüências do inadimplemento, caso insista em conferir prioridade às normas internas conflitantes. Em tema de violência contra a mulher, a Lei Maria da Penha adotou quase integralmente os conceitos da convenção interamericana, exceto em relação à conceituação da violência institucional, que não foi abordada pela Lei Maria da Penha, esta restrita à violência ocorrida na esfera das relações interpessoais. O descumprimento da Convenção, gerando grave prejuízo à vítima, pode ser objeto de petição individual perante a CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos, como ocorreu no caso Maria da Penha. Dado o estado dos direitos humanos no país e a flagrante omissão de políticas de gênero, o Brasil não está livre de responder a qualquer momento por violação de direitos humanos da mulher.

22

diminuição da auto-estima e auto-determinação ou restrição da liberdade, impedindo o convívio

social e prejudicando o pleno desenvolvimento da pessoa.

A violência sexual se manifesta quando a vítima é obrigada a presenciar, manter ou

participar de conúbio sexual ou ato libidinoso mediante aliciamento, intimidação, ameaça, coação

ou uso da força, ou quando é induzida a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua

sexualidade, ou é impedida de usar qualquer método contraceptivo, ou, ainda, forçada ao

matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou

manipulação; ou qualquer outro ato que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e

reprodutivos;

A violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação

ou injúria, provoca danos à imagem social da pessoa.

A violência por negligência se verifica quando não são providos os cuidados devidos pela

família ou instituição, sendo muito comum em relação a mulheres idosas ou com deficiência.

A violência patrimonial é definida como qualquer conduta que configure retenção,

subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos

pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer

suas necessidades.

Na tipologia da violência, 44,6% dos casos registrados são de agressão psicológica;

18,2% são de agressão física e 5% são de agressão sexual. Em regra, essas formas de violência

não se manifestam isoladamente, mas conjugadas: junto com a agressão física geralmente vem a

agressão psicológica ou moral, e estas muitas vezes são precedidas de violência patrimonial.

A Organização Mundial de Saúde já classificou a violência contra a mulher como um

problema de saúde pública.

O relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito – CPMI criada pelo Congresso

Nacional em 2012 para tratar da violência contra a mulher no país apresenta dados preocupantes

de uma sociedade que insiste em gozar os benefícios do capitalismo e da classe ignorando a

submissão feminina e a dominação masculina que ditam as desigualdades e legitimam as mais

23

variadas formas de violência contra a mulher, seja na esfera intrafamiliar, seja na esfera

institucional15.

Os números e os casos narrados assustam. Vejamos alguns exemplos.

O Brasil ocupa a sétima posição no mundo em número de assassinatos de mulheres

entre 84 países. Nos últimos 30 anos, cerca de 91 mil mulheres foram mortas em decorrência da

violência doméstica, mais da metade nos últimos 10 anos, o que ilustra a pedagogia da violência.

Em 2010 ocupávamos a 10ª posição; em apenas 03 anos, regredimos para a sétima posição das

nações mais violentas do mundo contra suas mulheres. Vide a tabela abaixo:

Obviamente, os números acima representam violência de gênero, não necessariamente

dentro de casa, mas a proporção de mulheres mortas dentro de casa é de 41%, contra 14,3% de

“incidentes” com os homens. Portanto, enquanto os homens são mortos na rua, em regra, as

mulheres são mortas quase majoritariamente dentro de casa, isto é, na esfera das relações

domésticas.

Aspecto perverso da violência contra a mulher diz respeito ao seu efeito extensivo aos

filhos, pessoas idosas ou outras pessoas em situação de vulnerabilidade e dependência

econômica do agressor que convivam com a vítima e o agressor.

15 O texto final, de mil páginas, apresentado em agosto de 2013, é resultado de um ano e meio de trabalho, que envolveu 24 audiências públicas em 18 estados e analisou mais de 30 mil laudas de documentos.

24

Nas crianças e adolescentes, as conseqüências são mais ou menos graves: ansiedade

constante que pode resultar em efeitos físicos causados por tensão (dores de cabeça, úlceras,

problemas de fala, pode ficar amedrontada, quieta, isolada, agressiva); sentimento de culpa, por

não poder parar com as agressões, ou por amar o agressor; medo de ir a escola ou separar-se da

mãe; baixa-estima, medo, depressão e, às vezes, suicídio; comportamento delinqüente, inclusive

agressão, uso de drogas e fuga de casa; maior probabilidade de agredir suas companheiras,

quando adultos, do que meninos criados em lares

sem violência16.

São riscos a que crianças e adolescentes

ficam expostos17: podem ser vítimas de violência

doméstica (física ou sexual); podem ser

negligenciados pelos agressores, ou pelas próprias

mães, em razão de proibição por parte do

agressor; podem sofrer danos físicos ou morrer

por ferimentos acidentais.

Outro impacto negativo da violência doméstica é a restrição da participação social

feminina. Já foi um processo histórico lento a mulher conquistar o direito de voto e um certo nível

de emancipação; a violência doméstica contribui seriamente para cercear o direito da mulher

participar dos instrumentos democráticos, como eleições representativas, conselhos de direitos,

audiências públicas e atividades associativas, dentre outras. Isso repercute no desenvolvimento

social, já que fragiliza o capital humano.

Em palestra proferida no IV Encontro Nacional do Ministério Público, sob o tema

“Violência de Gênero, Boas Práticas e Experiências Internacionais”, realizado em São Paulo no

período de 27 a 29 de novembro de 2013, Marlene Neves Stray ressaltou a imprescindibilidade

da capacitação de todos os atores sociais para o fim da pedagogia da violência.

O relatório da CPMI ilustra alguns casos emblemáticos, dos quais destacamos, por

ilustrar melhor a falta de capacitação em gênero e a reprodução da discriminação contra a mulher

por meio da violência institucional, o seguinte caso:

16 Bahia, Ministério Público. Grupo de Atuação Especial em Defesa da Mulher. Violência doméstica: compreender para combater. Lei Maria da Penha. Lei nº. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Salvador, 2010, p. 11-12. 17 Bahia, Ministério Público. Grupo de Atuação Especial em Defesa da Mulher. Violência doméstica: compreender para combater. Lei Maria da Penha. Lei nº. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Salvador, 2010, p.12

25

Sra. RCMAA A depoente foi casada por vinte anos, tem dois filhos de quinze e vinte anos, respectivamente. Vivia em Porto Seguro e depois Ilhéus, está sofrendo violência psicológica, moral, patrimonial efísica. A Depoente diz que chegou a escutar que se registrasse queixa à polícia ele a mataria. A depoente reclama que ao sofrer violência e procurar a autoridade policial não tem suas queixas completamente acatadas, pois nas delegacias há o padrão de só se aterem aos fatos presentes, desconsiderando o histórico de violência, quer dizer apenas a agressão que a levou à delegacia importa para o registro da ocorrência. O primeiro registro refere-se ao crime de ameaça, na qual as testemunhas foram os próprios filhos. Na delegacia a depoente precisou pedir para não depor junto com o agressor, pediu para antecipar a audiência para não precisar ficar de frente com ele. Diz que o agressor apresentou vinte e duas declarações de vizinhos de que nunca viram nenhuma ameaça ou agressão. A depoente reclama que a audiência criminal só se tratou dos aspectos cíveis. A queixa foi feita em 2009, foi concedida uma medida protetiva de afastamento, descumprida inúmeras vezes entre 2009 e 2010. O agressor conseguiu um agravo de instrumento em 2009, com caráter de habeas corpus para visitar os filhos e, assim, se aproximar da mesma. Foi obrigada a sair de casa, abandonar o lar para fugir das agressões. O pai começou a submeter os filhos à situação de alienação parental que fez com que o filho mais velho a violentasse psicologicamente. Já foi ameaçada de morte varias vezes. Hoje é usuária de medicação controlada. Reporta, ainda, que não conseguiu auxílio para garantir o cumprimento da medida protetiva. Relata que ofício entregue foi perdido e que na segunda tentativa somente foi concedida parte da medida protetiva. O agressor descumpriu a MPU em Ilhéus e a depoente foi à delegacia, mas não registrou, voltou para casa. Foi à Vara especializada em Salvador, onde não recebeu atendimento adequado, a juíza reclamou de ela retornar à Vara e não ter ficado em casa (Ilhéus), sendo ultrajada na frente do psicólogo. Então a depoente ponderou com a juíza que a DEAM de Ilhéus não tinha estrutura e não pode ser atendida, sendo contraditada pela juíza que afirmou ter feito a parte dela e que não é problema dela a DEAM não ter atendido. Mesmo informando à juíza que a medida protetiva havia sido descumprida, nada foi feito. A depoente acredita que seu processo na Vara passou a tramitar de forma peculiar. Toda audiência que era marcada ele não era intimado e nem a carta precatória era enviada. A juíza não deixou juntar nada ao processo, durante a audiência não havia a presença do Ministério Público, não foi autorizada pela magistrada a presença do psicossocial na audiência. A juíza determinou que o agressor poderia suspender o plano de saúde e que as dívidas contraídas fossem repartidas entre os dois, ainda que após a separação e tendo havido o pedido de bloqueio de bens por parte da ofendida; revogou os alimentos e a juíza determinou a guarda compartilhada e a divisão de bens, mesmo não havendo acordo por parte ofendida. A depoente sentiu-se totalmente negligenciada pela juíza durante a audiência. Mesmo não concordando com a pronúncia da juíza, a

26

depoente assinou o acordo e a separação consensual para encerrar aquela audiência com tamanha humilhação que estava sofrendo. A juíza queria encerrar a ação penal com a pronúncia da sentença cível, como a depoente não aceitou o processo passou a tramitar com problemas, sumindo processo inúmeras vezes, não constando todas as petições. O MP está tentando anular a sentença. Foram marcadas cinco audiências, sem que nenhuma diligência fosse realizada e as testemunhas intimadas, bem como o próprio acusado. Foi solicitada a rescisória pela ausência do Ministério Público na audiência.

O grande risco da impunidade nos casos de violência de gênero é a perpetuação da

pedagogia da violência: uma vez que as condutas são aprendidas através da observação, isto é, da

relação entre as pessoas, do seu contexto histórico-social, a notícia da impunidade reproduz a

idéia do poder masculino.

Nesse contexto, o Município de Santo Amaro ocupa a 24ª posição no ranking dos

municípios mais violentos do Estado da Bahia, conforme se observa na tabela anexa:

Note-se que essa posição foi aferida levando em conta tão somente os processos de

femicídios. Ou seja, se fossem tomados os demais tipos penais, o índice de violência doméstica no

município de Santo Amaro é bem mais marcante.

Segundo informado em certidão do cartório criminal expedida em 14 de julho de 2014,

não é possível explicitar o quantitativo de ações penais da LMP em razão da não individualização

dessas ações no SAIPRO, mas em relação às medidas protetivas foram contabilizadas 651. O

cartório criminal de Santo Amaro na época contava com 7.307 processos.

27

Numa análise comparativa, a comarca de Candeias, com dois promotores criminais e da

infância, possui 4 mil processos, ou seja, um município de população maior possui menor número

de processos no total, fazendo crer que o índice de processos da LMP também é muito menor.

Isso reforça o entendimento de que a violência contra a mulher em Santo Amaro tem

características endêmicas, o que exige uma integração entre o sistema de justiça e a rede de

atendimento.

Na práxis adotada pela magistrada, não há na maioria dos casos qualquer integração,

seja com o MP, seja com os demais órgãos da rede de atendimento, pois a magistrada se limita a

despachar as medidas protetivas requeridas pela autoridade policial, que nunca incluem pedido

de referenciamento para a rede de atendimento, e após a intimação ou não da ofendida ou do

agressor tais medidas ficam paralisadas aguardando definição da ação penal.

O escritor José Saramago nos alertou: a justiça não deverá esquecer que é acima de

tudo restituição de direitos, começando pelo direito de uma vida digna sem violência.

E o não menos brilhante Eduardo Galeano nos acenou com a esperança de mudança:

“Embora estejamos malfeitos, ainda não estamos terminados; e é a aventura de mudar e de

mudarmos que faz com que valha a pena esta piscadela que somos na história do universo, este

fugaz calorzinho entre dois gelos”.

VII- NEGATIVA DE ACESSO À JUSTIÇA – JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS

Grande parte das medidas protetivas requeridas pelo MP a título de medidas

suplementares consistem em garantia de direitos sociais à assistência social, através dos

programas sociais cabíveis, e à saúde. O acompanhamento multidisciplinar garantido nos arts. 8°,

9°, 1° e 30 da lei é em si o reconhecimento de que as medidas de proteção à mulher constituem

políticas públicas, e portanto direitos sociais.

Assim, o tema também resvala para a questão da justiciabilidade dos direitos sociais,

que vem sendo debatido intensamente nos últimos anos nos tribunais superiores, com uma

tendência cada vez maior de se pacificar interpretação mais condizente com o princípio da

máxima efetividade dos direitos fundamentais.

28

A presente demanda trata a princípio do direito social de enfrentamento à violência

contra a mulher, cf. disposto no art. 226, § 8° da CF/88, verbis:

§ 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um

dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no

âmbito de suas relações.

Não há óbice a que os direitos sociais já eleitos pela LMP como medidas protetivas de

urgência sejam analisados pelo Judiciário, seja no rito incidental, seja no rito cautelar. Os tribunais

pátrios cada vez mais são instados a se pronunciar sobre a oferta irregular ou inexistência de

políticas públicas, nas mais diversas ações, individuais ou coletivas. A LMP inovou ao prever que

tais medidas possam ser deferidas em procedimentos mais simples, pois já as reconhece como

direitos sociais imprescindíveis para a eliminação da violência contra a mulher.

Exemplo notável de reconhecimento do dever jurisdicional de garantia de direitos

prestacionais emana da decisão do STF na ADPF 4518, cujo excerto de ementa reza:

EMENTA: ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A

QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA

INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE

POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE

GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO

ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS.

CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR.

CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA "RESERVA DO POSSÍVEL".

NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA

INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO

"MÍNIMO EXISTENCIAL". VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE

DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES

POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO).

Nessa ação constitucional, o brilhante relator Ministro Celso de Mello elucidou de forma

substancial a lacuna existente na jurisprudência brasileira sobre o alcance das normas

constitucionais garantidoras de direitos sociais e a responsabilidade do Poder Judiciário em sanar

18 ADPF 45 MC, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, julgado em 29/04/2004, publicado em DJ 04/05/2004 PP-00012 RTJ VOL-00200-01 PP-00191

29

a omissão dos Poderes Públicos. Vejamos, exemplificativamente, excertos esclarecedores desse

ilustrado voto:

(...) não posso deixar de reconhecer que a ação constitucional em referência,

considerado o contexto em exame, qualifica-se como instrumento idôneo e

apto a viabilizar a concretização de políticas públicas, quando, previstas no

texto da Carta Política, tal como sucede no caso (EC 29/2000), venham a ser

descumpridas, total ou parcialmente, pelas instâncias governamentais

destinatárias do comando inscrito na própria Constituição da República.

Essa eminente atribuição conferida ao Supremo Tribunal Federal põe em evidência, de

modo particularmente expressivo, a dimensão política da jurisdição constitucional conferida a

esta Corte, que não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos

econômicos, sociais e culturais - que se identificam, enquanto direitos de segunda geração, com

as liberdades positivas, reais ou concretas (RTJ 164/158-161, Rel. Min. CELSO DE MELLO) -, sob

pena de o Poder Público, por violação positiva ou negativa da Constituição, comprometer, de

modo inaceitável, a integridade da própria ordem constitucional:

"DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO - MODALIDADES DE COMPORTAMENTOS

INCONSTITUCIONAIS DO PODER PÚBLICO.

- O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto

mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode

derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas

em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os

preceitos e os princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal,

que importa em um facere (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por

ação.

- Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos

preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e

exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação

que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto

constitucional. Desse non facere ou non praestare, resultará a

inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a

30

providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo

Poder Público.

.......................................................

- A omissão do Estado - que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão,

a imposição ditada pelo texto constitucional - qualifica-se como

comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que,

mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também

ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de

medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios

da Lei Fundamental."(RTJ 185/794-796, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais

do Poder Judiciário - e nas desta Suprema Corte, em especial - a atribuição de

formular e de implementar políticas públicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE

ANDRADE, "Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976", p.

207, item n. 05, 1987, Almedina, Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo

reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo.

Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se

ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por

descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a

comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos

individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que

derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático.

Cabe assinalar, presente esse contexto - consoante já proclamou esta Suprema

Corte - que o caráter programático das regras inscritas no texto da Carta Política

"não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena

de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela

coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu

impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental

ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado" (RTJ 175/1212-1213,

Rel. Min. CELSO DE MELLO).

Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo

relevo ao tema pertinente à "reserva do possível" (STEPHEN HOLMES/CASS R.

SUNSTEIN, "The Cost of Rights", 1999, Norton, New York), notadamente em

31

sede de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda

geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo

Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas

concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas.

É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais - além de

caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização - depende,

em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às

possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada,

objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta

não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida,

a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.

Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese -

mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-

administrativa - criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e

censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento

e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais

mínimas de existência.

Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da "reserva do possível" -

ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser

invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de

suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta

governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação

de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial

fundamentalidade.

Daí a correta ponderação de ANA PAULA DE BARCELLOS ("A Eficácia Jurídica dos

Princípios Constitucionais", p. 245-246, 2002, Renovar):

"Em resumo: a limitação de recursos existe e é uma contingência que não se

pode ignorar. O intérprete deverá levá-la em conta ao afirmar que algum bem

pode ser exigido judicialmente, assim como o magistrado, ao determinar seu

fornecimento pelo Estado. Por outro lado, não se pode esquecer que a

finalidade do Estado ao obter recursos, para, em seguida, gastá-los sob a forma

de obras, prestação de serviços, ou qualquer outra política pública, é

exatamente realizar os objetivos fundamentais da Constituição.

32

A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular,

pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem,

cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade,

que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais

mínimas de existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade

(o mínimo existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos

prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá

discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se

deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao

estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver

produtivamente com a reserva do possível." (grifei)

Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos, pela cláusula da "reserva do

possível", ao processo de concretização dos direitos de segunda geração - de

implantação sempre onerosa -, traduzem-se em um binômio que compreende,

de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face

do Poder Público e, de outro, (2) a existência de disponibilidade financeira do

Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas.

Desnecessário acentuar-se, considerado o encargo governamental de tornar

efetiva a aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais, que os

elementos componentes do mencionado binômio (razoabilidade da pretensão +

disponibilidade financeira do Estado) devem configurar-se de modo afirmativo

e em situação de cumulativa ocorrência, pois, ausente qualquer desses

elementos, descaracterizar-se-á a possibilidade estatal de realização prática de

tais direitos.

Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de

opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam

investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela

absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de

atuação do Poder Executivo.

É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem

com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos

sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma

injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental,

aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de

33

condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria

sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já

enfatizado - e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico

- a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a

todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo

Estado.

Extremamente pertinentes, a tal propósito, as observações de ANDREAS

JOACHIM KRELL ("Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha",

p. 22-23, 2002, Fabris): "A constituição confere ao legislador uma margem

substancial de autonomia na definição da forma e medida em que o direito

social deve ser assegurado, o chamado 'livre espaço de conformação' (...). Num

sistema político pluralista, as normas constitucionais sobre direitos sociais

devem ser abertas para receber diversas concretizações consoante as

alternativas periodicamente escolhidas pelo eleitorado. A apreciação dos

fatores econômicos para uma tomada de decisão quanto às possibilidades e aos

meios de efetivação desses direitos cabe, principalmente, aos governos e

parlamentos.

Em princípio, o Poder Judiciário não deve intervir em esfera reservada a outro

Poder para substituí-lo em juízos de conveniência e oportunidade, querendo

controlar as opções legislativas de organização e prestação, a não ser,

excepcionalmente, quando haja uma violação evidente e arbitrária, pelo

legislador, da incumbência constitucional.

No entanto, parece-nos cada vez mais necessária a revisão do vetusto dogma

da Separação dos Poderes em relação ao controle dos gastos públicos e da

prestação dos serviços básicos no Estado Social, visto que os Poderes Legislativo

e Executivo no Brasil se mostraram incapazes de garantir um cumprimento

racional dos respectivos preceitos constitucionais.

A eficácia dos Direitos Fundamentais Sociais a prestações materiais depende,

naturalmente, dos recursos públicos disponíveis; normalmente, há uma

delegação constitucional para o legislador concretizar o conteúdo desses

direitos. Muitos autores entendem que seria ilegítima a conformação desse

conteúdo pelo Poder Judiciário, por atentar contra o princípio da Separação dos

Poderes (...).

34

Muitos autores e juízes não aceitam, até hoje, uma obrigação do Estado de

prover diretamente uma prestação a cada pessoa necessitada de alguma

atividade de atendimento médico, ensino, de moradia ou alimentação. Nem a

doutrina nem a jurisprudência têm percebido o alcance das normas

constitucionais programáticas sobre direitos sociais, nem lhes dado aplicação

adequada como princípios-condição da justiça social.

A negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida na base dos Direitos

Fundamentais Sociais tem como conseqüência a renúncia de reconhecê-los

como verdadeiros direitos. (...) Em geral, está crescendo o grupo daqueles que

consideram os princípios constitucionais e as normas sobre direitos sociais

como fonte de direitos e obrigações e admitem a intervenção do Judiciário em

caso de omissões inconstitucionais." (grifei)

Em sua obra sobre a judicialização dos direitos sociais prestacionais Maria do Socorro

Queiroz19 tece oportunas considerações sobre a discricionariedade administrativa, contrapondo à

tese de ampla discricionariedade do agente público na análise de conveniência e oportunidade

para realização de prestações sociais positivas a tese de vinculação de todos os poderes públicos

aos direitos fundamentais. Para essa autora, “a integração normativa discricionária só é legítima

se satisfaz o interesse público contido na finalidade da lei” (QUEIROZ, 2011: 133).

No Estado Social, que exige intensa atuação administração para realização de prestações

positivas, é mais comum a Administração pecar por falta de ação. Nesses casos, o Judiciário pode

(e deve) declarar a omissão administrativa e determinar a realização do ato discricionário

administrativo, entendido esta como poder-dever.

Para Queiroz, o gestor não tem discricionariedade para deixar de agir em busca dos fins

sociais. A reserva do possível não pode ser usada como argumento válido para impedir a

concretude dos direitos prestacionais, e não gera impedimento para a declaração da existência do

direito. Devem ser priorizados recursos para a proteção daqueles direitos que, na ponderação de

valores pelo princípio da razoabilidade, se mostram mais prementes.

Para o magistrado Canela Junior, o princípio da proibição de resistência instrumental

aos direitos fundamentais impede que qualquer medida de política pública oriunda de qualquer

19 QUEIROZ, Maria do Socorro Azevedo de. Judicialização dos direitos sociais prestacionais – a efetividade pela interdependência dos direitos fundamentais na constituição brasileira. Curitiba: Juruá Editora, 2011.

35

um dos Poderes constituídos possa ser usado, na forma comissiva ou omissiva, para impedir a

concretude de um direito fundamental.

Nessa temática, vale a pena citar textualmente parte do voto do brilhante Ministro

Celso de Melo, no agravo regimental em REX 639.337-SP, julgado em 23/08/2011 pela 2ª Turma

do STF, in verbis:

Ora, quem executa as políticas sociais é o Poder Público, e não o Ministério Público,

incumbido constitucionalmente de recorrer ao próprio Judiciário, se preciso for, para assegurar

a observância das normas definidoras de direitos fundamentais.

A publicação do relatório da CPI da violência doméstica em julho de 2012 revela

claramente que a posição de Santo Amaro no ranking de violência doméstica somente pode

indicar ineficiência ou completa omissão dos serviços específicos de prevenção e

enfrentamento à violência contra a mulher, sendo tal fato público e notório, portanto,

independe de prova documental.

Em Santo Amaro, há uma grande resistência do Poder Executivo em fornecer os serviços

adequados da rede de atendimento. Em diversos procedimentos administrativos de protetivas da

infância, por exemplo, os órgãos socioassistenciais enviaram ofício ao órgão ministerial alegando

36

que as equipes socioassistenciais não têm obrigação de suprir a deficiência de equipes

interprofissionais de outros atores da rede, citando o Poder Judiciário e o Ministério Público 20

Ora, o Ministério Público não foi compelido pela LMP, ECA ou Estatuto do Idoso a

formar equipes interprofissionais, e quanto à política de atendimento à mulher, a LMP

determinou em seu art. 32 que o Judiciário poderá prever recursos orçamentários para ser

dotado de tal equipe.

Em sua Recomendação N. 09, de 08 de março de 2007, o CNJ determina:

1. Criação e estruturação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, nas capitais e no interior, com a implementação de equipes multidisciplinares (art. 14 da Lei 11.340, de 09.08.2006);

Portanto, nada indica que os requerimentos de referenciamento na rede protetiva

formulados pelo MP sejam condicionados a prévio requerimento administrativo diretamente aos

órgãos municipais. O que a LMP exige é que nos casos de violência contra a mulher seja acionada

a rede de atendimento, com perfeita integração entre os órgãos do sistema de garantia de

direitos, o que de modo algum exclui a legitimidade do MP de requerer diretamente ao Judiciário

tais medidas, face a omissão sistemática do enfoque multidisciplinar nas decisões da magistrada a

quo.

Nessa esteira, confira-se abaixo decisão do STJ, corroborando o entendimento aqui

esposado, no sentido de que a possibilidade de formulação de requerimentos autônomos pelo

20 Em outras decisões a magistrada tem invocado a não realização de ”poderes requisitórios” do MP como

demonstração de falta de interesse de agir. Existem atualmente cerca de 210 procedimentos da infância

para aplicação de medidas protetivas em curso na 1ª promotoria, a grande maioria sem resposta dos

órgãos socioassistenciais, e somente mais recentemente começaram a responder apenas para informar que

não se sentem obrigadas a prestar os serviços requisitados. Isso demonstra que não há a menor condição

de que as medidas protetivas sejam instruídas administrativamente e fiscalizadas diretamente pelo MP – a

não ser que se busque em ação coletiva uma condenação do Município a essas prestações sociais, com

remessa de relatórios periódicos ao Ministério Público sobre todos os casos de violência doméstica, sejam

ou não vinculados a ações penais. Esse órgão está em vias de instaurar inquérito civil com esse objetivo,

mas enquanto essa questão não é submetida à apreciação judicial em ação coletiva, é preciso garantir que

nos processos individuais as vítimas receberão as medidas protetivas que necessitam.

37

MP não exclui a responsabilidade do Judiciário em conferir máxima proteção à criança e ao

adolescente. Mutatis mutandis, o mesmo raciocínio aplica-se à mulher vítima de violência

doméstica, que demanda a mesma proteção especial do Estado:

RECURSO ESPECIAL Nº 1.308.666 - MG (2011/0104802-2) RELATOR : MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS RECORRIDO : ESTADO DE MINAS GERAIS ADVOGADO : SEM REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS EMENTA DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. RECURSO ESPECIAL. PROMOTORIA DE JUSTIÇA QUE, EM QUE PESE O DISPOSTO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E NOS ARTIGOS 4º E 201 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, NÃO DISPÕE DE PROFISSIONAIS PARA A REALIZAÇÃO DE ESTUDO PSICOSSOCIAL ENVOLVENDO CRIANÇA QUE, SEGUNDO O CONSELHO TUTELAR, SOFRE MAUS TRATOS. REQUERIMENTO À VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE. POSSIBILIDADE. INTERESSE DE AGIR. EXISTÊNCIA. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO INTEGRAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. 1. A Constituição Federal acolhe a doutrina da proteção integral da criança e do adolescente, conferindo à família e ao Estado o dever legal de efetivar os direitos menoristas, consagrados em normas constitucional e infraconstitucionais interdependentes que impõem ao Ministério Público o papel de agente de transformação social e um comprometimento de "todos os agentes - Judiciário, Ministério Público, Executivo, técnicos, sociedade civil, família - em querer mudar e adequar o cotidiano infanto-juvenil a um sistema garantista". 2. Em vista do princípio da prioridade absoluta - que impõe ao Estado e, pois, ao Ministério Público o dever de tratar com prioridade a defesa dos direitos menoristas insculpido no artigo 227 da Constituição Federal e 4º e 100, parágrafo único, II, do Estatuto da Criança e do adolescente - é inconcebível que a Promotoria de Justiça que cuida da matéria não esteja dotada da mínima estrutura indispensável para o exercício de seu importante mister, isto é, que não conte com os serviços profissionais de assistente social e psicólogo. 3. Todavia, estando em jogo direitos indisponíveis, fica clara a existência do binômio necessidade-utilidade da medida e a consequente imprescindibilidade da prestação jurisdicional para propiciar a elaboração do estudo psicossocial para avaliação da medida mais adequada à tutela dos direitos da menor. 4. Ademais, o artigo 153 do Estatuto da Criança e do Adolescente permite ao juiz, até mesmo de ofício, ouvido o Ministério Público, adequar o procedimento às peculiaridades do caso, ordenando as providências necessárias para assegurar a proteção integral da criança e do adolescente, sendo descabida a extinção do procedimento, sem averiguação que infirme os graves fatos apontados pela autoridade tutelar. 5. O artigo 201, VI e VII, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que atribui ao Ministério Público instaurar procedimentos administrativos e sindicâncias, podendo expedir notificações para colher depoimentos ou esclarecimentos, requisitar informações, exames, perícias, dentre outros, tem o fito inequívoco de ampliar a proteção estatal à criança e ao adolescente, por isso não pode servir de fundamento para a recusa da prestação jurisdicional. 6. Recurso especial provido. (grifos nossos)

38

Note-se que existem juizos no interior, não dotados de equipe multidisciplinar, como é o

caso de Taperoá e Coribe, nas quais as decisões de protetivas já determinam o automático

referenciamento da ofendida na rede de atendimento. Em Feira de Santana, dotado de Juizado

Especializado, todas as decisões protetivas referenciam as vítimas para o Centro de Referência

Maria Quitéria.

O art. 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos traz uma norma de

interpretação de seus comandos, que pela sua natureza bem pode ser utilizada analogicamente

em sede de interpretação de normas domésticas de direitos humanos (direitos fundamentais

constitucionalizados), que assim reza:

Artigo 29. Normas de interpretação

Nenhuma disposição desta Convenção pode ser interpretada no sentido de:

a. permitir a qualquer dos Estados Partes, grupo ou pessoa, suprimir o gozo e exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista;

b. limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos Estados Partes ou de acordo com outra convenção em que seja parte um dos referidos Estados;

c. excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de governo; e

d. excluir ou limitar o efeito que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma natureza.

É disso exatamente que se trata – do alcance da interpretação do entendimento

esposado pela douta magistrada, que se espera seja revisto pelo TJ-BA. A persistir tal

entendimento, a justiça estará impedindo o gozo de direito fundamental – o direito à uma vida

sem violência, que os próprios tratados de direitos humanos definem como DISCRIMINAÇÃO21.

21 Assim define o Artigo 1º da Convenção da Mulher: Para os fins da presente Convenção, a expressão "discriminação contra a mulher" significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.

39

O art. 6° da Convenção de Belém do Pará diz: “ O direito de toda mulher a ser livre de

violência abrange, entre outros: a. o direito da mulher a ser livre de todas as formas de

discriminação”.

A recusa em garantir direitos sociais, através do referenciamento da ofendida para a

rede de atendimento existente, caracteriza inevitável resistência à garantia de direito

fundamental que tem por efeito restrição ou vedação de direitos fundamentais, caracterizando

assim uma forma de discriminação levada a cabo pelo próprio Estado. Não reconhecer a natureza

multidisciplinar da LMP constitui em si error in procedendo, com graves consequências tanto na

esfera individual quanto na esfera social.

A discriminação se revela, ainda, quando se constata que a LMP determinou a instalação

de equipes multidisciplinares nos Juizados, e passados cerca de 08 anos da entrada em vigor da

LMP, inclusive com a Recomendação n. 09/2007 do CNJ, na Bahia foram criados apenas 02

juizados, conforme o mapeamento feito pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do

Congresso Nacional22, cujo relatório foi publicado em julho de 2013, cf. tabela abaixo:

22 O texto final, de mil páginas, é resultado de um ano e meio de trabalho, que envolveu 24 audiências públicas em 18 estados e analisou mais de 30 mil laudas de documentos

40

Ora, a não instalação dos juizados com estrutura adequada no Estado da Bahia e na

comarca de Santo Amaro não significa que as mulheres vítimas de violência residentes nesse

Estado e nesta cidade têm menos direitos que outras residentes em locais providos com os

equipamentos necessários da rede de atendimento.

Não existindo a equipe multidisciplinar do Juizado, que automaticamente referencia a

ofendida para os programas municipais, estaduais e federais de que necessita, sem prejuizo do

acompanhamento próprio que realiza para subsidiar a atuação do Judiciário, cabe ao magistrado

local buscar suprir a deficiência estrutural ao menos referenciando a vítima diretamente para os

serviços existentes, conforme prevê o art. 9°, § 1° da LMP. Não o fazendo, insistimos, implica em

discriminar a mulher exatamente pelo fato da mesma não ter o privilégio de residir em local com

melhor estrutura.

O Parecer n° 14 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de 1999, fixou o

entendimento que “leis internas contrárias aos tratados de direitos humanos são violadoras dos

deveres assumidos pelo Estado-Parte, e suscitam responsabilização do Estado-Parte”. Ora, se leis

internas não podem violar o sistema universal de direitos humanos, que dizer de interpretações

de leis domésticas afinadas com os tratados de direitos humanos, tanto do sistema geral quanto

do sistema interamericano? Se nem mesmo o legislador doméstico pode contrariar direitos

assegurados internacionalmente, que dizer de aplicadores do direito?

O microssistema de proteção à mulher é em tudo similar ao microssistema de

proteção à criança e ao adolescente e à pessoa idosa, fruto do sistema internacional de direitos

humanos que passou por uma fase de especialização dos sujeitos de direitos23.

Nessa linha de intelecção, tem-se que acionar a rede de atendimento através do

serviço de proteção social constitui medida basilar para garantia da efetividade no atendimento

à vítima de violência doméstica.

Reconhecer o contrário será admitir que as medidas protetivas de urgência podem

seguir o anômalo rito de um procedimento autoritário em que toda a rede de proteção –

inclusive o MP – foi excluída, para se tornar um simples ato que serve para rechear relatório de

produtividade judicial nos cadastros do CNJ – um verdadeiro desserviço à função social do próprio

23 Bobbio aponta as 04 fases na construção do Estado Democrático de Direito: a positivação dos DH, a generalização, a internacionalização e a especificação.

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Judiciário, e um desrespeito à Constituição Federal, aos tratados de direitos humanos e à Lei

Maria da Penha.

Por falta da equipe interdisciplinar recomendada pelo CNJ, nas comarcas do interior se

adota o mau vezo de processar e julgar os pedidos de protetivas somente com atuação do órgão

judicial e do MP, sem respeitar, inclusive o contraditório.

No entanto, conforme exposto acima, à falta de equipe multidisciplinar do Juizado, não

se pode deixar de acionar a rede protetiva municipal que integra o SGD – Sistema de Garantia de

Direitos através de qualquer um de seus serviços setoriais, seja na área de proteção social (na

qual se insere o pedido de reeducação do agressor e o acompanhamento da ofendida pelo

programa de proteção social especial) seja em outra área setorial de políticas sociais.

O Manual de Rotinas do CNJ informa as medidas de competência das equipes

multidisciplinares do Juizado, e lá consta o referenciamento para os serviços e programas

disponíveis nas esferas governamentais, consoante determina o art. 9°, § 1° da LMP.

VIII- CONCLUSÃO

Existe farta jurisprudência pátria que admite o recurso atípico de correição em sede de

processo criminal, contra decisões/despachos de indeferimento de diligências requeridas pelo

Ministério Público em processos criminais, conforme excertos abaixo:

(TJ-SE - COR: 2010315306 SE, Relator: DES. LUIZ ANTÔNIO ARAÚJO MENDONÇA, Data de Julgamento: 22/03/2011, CÂMARA CRIMINAL)

Correição parcial. Pedido de diligencias. Requerimento do MP. Indeferimento. Cerceamento. Interlocutório tumultuário. Precedentes do TJSE. Provimento da correição. I - A teor de vários precedentes a respeito do tema, estando o feito criminal judicializado, o indeferimento de diligência pleiteada pelo Ministério Público configura interlocutória tumultuária com evidente cerceamento de defesa. Mesmo sendo uma faculdade do órgão Ministerial a realização de diligências que entender necessária, tal não exime o Magistrado do feito de buscar a verdade real, notadamente quando a diligência não representa ato protelatório ou desnecessário. II - Correição parcial provida.

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Ressentimo-nos porém dessa aproximação dos pedidos de protetivas como meras

diligências criminais, porque não se pode aplicar ao microssistema da Lei Maria da Penha a

mesma técnica de interpretação usada nos processos criminais tradicionais. É como querer aplicar

o código civil em relações de consumo, por exemplo, ignorando a principiologia própria do CDC. É

possível imaginar hoje um julgamento de relação de consumo sem reconhecer a hipossuficiência

do consumidor e sem a inversão do ônus da prova?

No entanto, em razão do sistemático não recebimento de recursos de apelação

supletiva aviados pelo MP, sob o entendimento de que se trata de indeferimento de meras

diligências requeridas pelo MP, passamos a fazer uso da correição parcial, sendo este o nono

recurso neste sentido.

O TJ-BA é desafiado a fazer história, a marcar um caminho para a melhor interpretação e

aplicação da Lei Maria da Penha no sistema de justiça brasileiro. Mas para isso precisa de uma

lente de gênero, e entender que o direito penal e processual penal, com suas normas de controle

social que em regra não acompanharam a evolução dos direitos humanos e o princípio da máxima

efetividade dos direitos fundamentais, necessita ser mitigado, e ceder espaço a um novo campo

de conhecimentos multidisciplinares. Será preciso sepultar o juiz como perito dos peritos” para

fazer nascer o juiz interdisciplinar, aberto aos novos campos de conhecimento e aos novos

desafios dessa nova era tão complexa.

O Comitê de monitoramento da Convenção da Mulher, ao examinar o primeiro,

segundo, terceiro, quarto e quinto relatórios periódicos do Brasil (CEDAW/V/BRA/1-5),

apresentados em um único documento, nas suas 610ª, 611ª e 616ª reuniões, celebradas em 1° e

07 de julho de 2003 (CEDAW/C/SR. 610, 611 e 616), já recomendava:

107. El Comité recomienda que el Estado parte ponga en práctica programas de capacitación y fomento de la concienciación para familiarizar a los magistrados, los fiscales y otros profesionales del derecho con la Convención y su Protocolo Facultativo. También recomienda que el Estado parte lleve a cabo actividades de sensibilización orientadas al público en general en relación con los derechos humanos de la mujer

O Comitê da Cedaw também recomendou, nessa mesma reunião:

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113. O Comitê insta o Estado-Parte a adotar todas as medidas necessárias para combater a violência contra a mulher, em conformidade com a Recomendação Geral N° 19 do Comitê, de prevenir a violência, punir os infratores e prestar serviços às vítimas. O Comitê recomenda ao Estado Parte adotar sem demora uma lei sobre violência doméstica e tomar medidas práticas para acompanhar de perto e supervisionar a aplicação dessa lei e avaliar sua eficácia. O Comitê solicita ao Estado Parte proporcionar informação geral e dados sobre a violência contra a mulher no seu próximo relatório.

É claro que o sistema geral da ONU, nesse aspecto, não inovou, pois o sistema

interamericano há muito reconhecia o flagelo da violência contra a mulher como grave violação

de direitos humanos, tanto que a Convenção de Belém do Pará foi aprovada em 09 de junho de

1994, quase uma década antes. Mas o que importa é que em sede de proteção dos direitos

humanos os dois sistemas, o geral da ONU e o interamericano, se complementam. O que coloca o

Brasil, apesar da Lei Maria da Penha, aprovada em 2006, ainda na rota infamante de país com

grave estatística de violência contra a mulher, exigindo portanto que todos os Poderes Públicos

atuem de maneira integrada para combater tais índices.

Na análise do 6° informe periódico do Brasil, em 2007, o comitê da Cedaw mais uma vez

insistiu na necessidade de capacitação do sistema de justiça:

16. O Comitê exorta o Estado Parte a zelar para que a Convenção e a legislação interna correlata integrem o ensino e a formação profissional dos funcionários do Poder Judiciário, incluindo juízes, advogados, promotores e defensores públicos, bem como os programas de estudos das universidades, para estabelecer no país bases firmes de uma cultura judiciária que respalde a igualdade de gênero e a não discriminação. Também exorta o Estado Parte a aumentar a conscientização das mulheres acerca de seus direitos, especialmente as mulheres das regiões remotas e dos grupos mais desfavorecidos, através de programas de capacitação jurídica básica e assistência jurídica que lhes permitam fazer valer seus direitos ancorados na Convenção. O Comitê encoraja o Estado Parte a prosseguir seu trabalho de difusão da Convenção e seu Protocolo Facultativo entre o público em geral, a fim de criar conscientização acerca dos direitos humanos da mulher. 22. O Comitê exorta o Estado Parte a continuar dando prioridade à eliminação de todas as formas de violência contra a mulher, incluindo a violência doméstica, e a adotar rapidamente medidas eficazes para a aplicação plena das novas leis, como a criação o mais breve possível dos juizados especializados em casos de violência doméstica em todo o país, e a participação plena de todos os atores competentes, incluindo as organizações não governamentais, os funcionários do Poder Judiciário e outros profissionais que se ocupam da eliminação da violência contra a mulher.

A Lei Maria da Penha também erige como política pública o acesso à informação, que

perpassa a capacitação de toda a rede do sistema de garantia de direitos. Sem essa lente própria

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de direitos humanos e gênero, não se pode interpretar e aplicar validamente a Lei Maria da Penha

e as normas internacionais internalizadas pelo Brasil (que para o STF têm status de normas supra-

legais, isto é, de hierarquia superior às leis ordinárias federais, embora inferiores à Constituição,

entendimento que é mitigado quando a própria Constituição já reconhece o direito humano

adotado nos tratados internacionais como direito fundamental, como é o caso do Brasil em

relação ao enfrentamento da violência contra a mulher)24.

Há de se ressaltar que a persistir a inobservância pelos tribunais do espírito

emancipador e garantidor da Lei Maria da Penha, que se adéqua completamente à normativa

internacional, o caso resvala também para o controle da convencionalidade dos tratados de

direitos humanos, e para o controle difuso da constitucionalidade, a desafiar a um só tempo os

recursos especial e extraordinário.

Nesse sentido, o MP prequestiona antecipadamente os arts. 5°, §§ 1° e 2° e 226, § 8° da

CF/88 e suscita o controle de convencionalidade em relação às disposições não cumpridas da

Convenção de Belém do Pará, especialmente os arts. 5° e 7° , e art. 1° da Convenção Americana

de Direitos Humanos.

Ante o exposto, o MP requer:

1) O conhecimento do presente recurso e seu provimento para: 1) reconhecer que há

subversão de rito procedimental nas medidas protetivas citadas e determinar a

nulidade da "decisão interlocutória" para que outra seja proferida, examinando

meritoriamente os pedidos formulados pelo MP;

2) caso seja o entendimento desse tribunal que o recurso cabível é a apelação

supletiva ou outro, seja o mesmo encaminhado para o colegiado para o regular

processamento pela fungibilidade recursal, dada a sua tempestividade para

qualquer que seja o recurso admissível.

Santo Amaro-BA, 07 de outubro de 2014, 14h20

Belª. Cleide Ramos Reis- Promotora de Justiça Titular

24Cf. art. 226 § 8º da CF/88.