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0 Reflexões políticas e as instruções de manutenção das conquistas ultramarinas: ensino da arquitetura militar (1700-1750) Luiza Nascimento de Oliveira da Silva As hierarquias e as trajetórias sociais que conferiam materialidade e governabilidade aos espaços ultramarinos do império português são na presente comunicação identificadas através da vida e da obra de engenheiros militares da primeira metade do século XVIII, dentre eles destacamos os seguintes autores de tratados de arquitetura militar. O engenheiro-mor do reino Manuel de Azevedo Fortes, “Tratado da Arquitetônica, ou Arquitetura Militar, ou Fortificação das Praças” (1740), com autoria atribuída a ele e o Padre Luiz Gonzaga, autor do “Exame Militar” (1703). A proposta é conferir na linguagem dos documentos uma matriz política na medida em que, a aplicação da ciência em questão era necessária para a manutenção do governo do Império ultramarino. A relação social de produção da representação de defesa (com o estudo da elaboração das plantas de fortificação e dos tratados) será explorada no desenvolvimento da ciência, através das estruturas de seu funcionamento, bem como de seu ensino. A circulação dos princípios da arquitetura militar demonstra os grupos, as hierarquias, as resistências e os conflitos que permearam a sua construção e prática. Exemplo disso foi a formação de redes de teóricos e seus temas, estes postos em discussão nos tratados estudados. A linguagem dos textos (dos tratados e das plantas de fortificação) era permeada por atributos políticos, tais como, o brasão real e a dedicação da planta de fortificação ao monarca D. João V, presentes nos desenhos. Além do ensino da ciência ser legitimado, e ao mesmo tempo, legitimar a manutenção do Estado como apreendemos do ensino dos tratados. Isso porque a defesa era parte da estratégia de governo, e o ambiente político estava, portanto, articulado ao ensino da ciência da arquitetura militar. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS/UFRJ). Bolsista do CNPq. [email protected]

Reflexões políticas e as instruções de manutenção das ... · 1No capítulo 1º do livro “Jogos de escalas: a experiência da microanálise” , Jacques Revel faz um balanço

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Reflexões políticas e as instruções de manutenção das conquistas ultramarinas:

ensino da arquitetura militar (1700-1750)

Luiza Nascimento de Oliveira da Silva

As hierarquias e as trajetórias sociais que conferiam materialidade e

governabilidade aos espaços ultramarinos do império português são na presente

comunicação identificadas através da vida e da obra de engenheiros militares da

primeira metade do século XVIII, dentre eles destacamos os seguintes autores de

tratados de arquitetura militar. O engenheiro-mor do reino Manuel de Azevedo Fortes,

“Tratado da Arquitetônica, ou Arquitetura Militar, ou Fortificação das Praças” (1740),

com autoria atribuída a ele e o Padre Luiz Gonzaga, autor do “Exame Militar” (1703). A

proposta é conferir na linguagem dos documentos uma matriz política na medida em

que, a aplicação da ciência em questão era necessária para a manutenção do governo do

Império ultramarino.

A relação social de produção da representação de defesa (com o estudo da

elaboração das plantas de fortificação e dos tratados) será explorada no

desenvolvimento da ciência, através das estruturas de seu funcionamento, bem como de

seu ensino. A circulação dos princípios da arquitetura militar demonstra os grupos, as

hierarquias, as resistências e os conflitos que permearam a sua construção e prática.

Exemplo disso foi a formação de redes de teóricos e seus temas, estes postos em

discussão nos tratados estudados.

A linguagem dos textos (dos tratados e das plantas de fortificação) era permeada

por atributos políticos, tais como, o brasão real e a dedicação da planta de fortificação

ao monarca D. João V, presentes nos desenhos. Além do ensino da ciência ser

legitimado, e ao mesmo tempo, legitimar a manutenção do Estado – como apreendemos

do ensino dos tratados. Isso porque a defesa era parte da estratégia de governo, e o

ambiente político estava, portanto, articulado ao ensino da ciência da arquitetura militar.

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de

Janeiro (PPGHIS/UFRJ). Bolsista do CNPq. [email protected]

1

A problematização de questões culturais, ou melhor, compreender as práticas

culturais por meio da observação de perto e em companhia do observado – os autores

dos manuscritos – nos auxilia no entendimento do sistema de ensino da ciência da

arquitetura militar, das instituições da ciência e do quadro mais vasto da cultura.

As linhas temáticas do “Tratado da Arquitetônica” e o projeto da micro-história

No capítulo 1º do livro “Jogos de escalas: a experiência da microanálise” 1,

Jacques Revel faz um balanço do campo de pesquisa, ou melhor, do projeto que é a

pesquisa histórica à luz das metodológicas da micro-história. Revel inicia a sua

exposição trabalhando com a heterogeneidade dessas pesquisas e os seus moldes de

concepção, passando para a questão da abordagem empírica, com a experiência de

pesquisa do próprio historiador.

Com a crise da história social, em meados dos anos 70, a micro-história se

constituiu como um sintoma e, ao mesmo tempo, promotora das críticas dessa crise.

Para reformular uma produção histórica, até então, calcada em leis e, por isso, na longa

duração, a proposta da pesquisa micro histórica é a diminuição da escala de observação,

com a atenção direcionada para o vivido, para a experiência do indivíduo e dos grupos

sociais. Para romper com a inércia dos trabalhos monográficos que se preocupavam

com a amostra, Revel destaca, como caminho micro histórico, a modificação da análise

para a forma e trama do objeto, bem como do tratamento do conteúdo (em

transformação), da representação e das escolhas possíveis. Em nosso estudo, essa busca

acontece em torno de respostas em relação ao que os engenheiros liam, e usavam como

conhecimento prático, pensando no porquê de tais escolhas e na sua relação com a

organização social vigente. Para tanto, é necessário problematizarmos os

comportamentos e as experiências sociais desse grupo.

Pois a escolha do individual não é vista aqui como contraditória à do social:

ela deve tornar possível uma abordagem diferente deste, ao acompanhar o

fio de um destino particular – de um homem, de um grupo de homens – e,

com ele, a multiplicidade dos espaços e dos tempos, a meada das relações

nas quais ele se inscreve (REVEL, 1998: p. 21).

1 REVEL, Jacques (Org.). “Jogos de escalas: a experiência da microanálise”. Rio de Janeiro: Editora

Fundação Getúlio Vargas, 1998.

2

Através dos fios dos destinos dos engenheiros, as relações sociais em diferentes

espaços e em tempos distintos serão compreendidas. Com isso, através da análise do

vivido, é possível caracterizar as condições de experiências 2. Um exemplo, para ficar

mais claro, é o fato de que na primeira metade do século XVIII, ensinar sobre os

princípios de defesa significava uma espécie de passaporte para a Corte, para cargos

importantes e, portanto, a função social estava sendo definida pelo capital imaterial

desses homens. Outra questão interessante perpassa as condições de escrita dos tratados

de arquitetura militar, pois as guerras e as necessidades constantes de manutenção dos

domínios dos Estados modernos garantiam a sobrevivência destes e a conveniência de

instruir ao rei sobre os modos de conservar os seus territórios, que por sua vez, era a

principal temática desses tratados.

A experiência social dos engenheiros foi caracterizada pelo ensino e pela prática

da defesa. Com lições muitas vezes mais simbólicas do que reais, é possível perceber a

configuração da realidade desses indivíduos. O que nos leva à pluralidade dos contextos

individuais, e às múltiplas possibilidades de estudos. A partir dos diferentes percursos

possíveis para cada sujeito (como o geográfico), a micro-história enriquece a análise

social na medida em que, as variáveis são mais complexas, numerosas e móveis. Um

exemplo disso são os mecanismos de formação, no caso, do quadro de engenheiros

através do conhecimento de seus teóricos – os AA. 3.

A pesquisa direcionada ao social em termos de processo perpassa a construção

de identidades, cuja compreensão está ligada à linguagem dos próprios atores. A

“construção de identidades sociais plurais e plásticas que se opera por uma rede cerrada

de relações (de concorrência, de solidariedade, de aliança etc.)” (REVEL, 1998: p. 25).

No caso dos engenheiros, essa dinâmica de formação identitária pode ser observada na

análise do conteúdo do ensino da arquitetura militar.

Através dos moldes comportamentais dos indivíduos, das escolhas precisas para

a sobrevivência, a micro-história leva em conta diversos destinos, escolhas pessoais –

como a opção por A ou B dos teóricos (AA.) – o que nos introduz na reconstituição do

espaço dos possíveis, ou seja, da racionalidade limitada para a formação das estratégias.

Para tanto, necessário é compreendermos o que vem a ser a nova noção de contexto, a

2 As leituras e os estudos realizados pelos engenheiros, por exemplo. 3 Trata-se do modo como o autor do texto se refere ao especialista ou à autoridade no assunto.

3

relação entre texto (os tratados, no caso) e contexto não sendo de causa e efeito ou com

unidade, porque as representações e experiências sociais são múltiplas. Não há,

portanto, um sistema configurado de modo pré-existente onde o engenheiro se

enquadraria, mas há a evidência de diferentes práticas socioculturais, e os

comportamentos estão associados aos diversos contextos. Esse procedimento de análise

do grupo social formado pelos engenheiros possibilita uma nova compreensão do todo.

Nesse sentido, um fato pode ser exemplar não por ter ocorrido diversas vezes,

mas porque um modelo pode emergir dele, com o aparecimento de “regularidades nos

comportamentos coletivos de um grupo social particular sem perder aquilo que cada um

tem de singular” (REVEL, 1998: p. 33). Essa caracterização da complexidade da

realidade e dos diferentes contextos enriquece a pesquisa histórica, e os “modelos

generativos” fazem parte dessa composição na medida em que, tratam das exceções, e

estas são encontradas nos diferentes contextos. Os caminhos, ou as rotas individuas, são

os locais de percepção dessas exceções.

É necessário, portanto, analisar o que era regular no ensino e no pensamento dos

engenheiros, isto é, o fato exemplar, para o entendimento de perspectivas sociais e

culturais. Estamos falando, por exemplo, das noções de experiência; de ordem; dos

teóricos; da bíblia como legitimadora, propostas presentes no ensino, na linguagem do

tratado. Por ora, vejamos a noção de experiência à luz do “Tratado da Arquitetônica”.

Em relação à experiência, a retórica do texto está a todo o momento retomando o

fato de que a teoria não pode subsistir sem a prática, ou seja, sem a experiência do

engenheiro para a escolha dos melhores sítios e dos melhores elementos para cada

ocasião. Na terceira parte cujo título é “Metódica”, a dimensão da experiência ganha

destaque, pois o trabalho correto do engenheiro dependia do seu conhecimento acerca

das doutrinas, e estas somadas às regras adquiridas com a sua experiência prática.

Parte 3ª Metódica. Nesta parte explicaremos o modo de desenhar a planta da

praça das obras exteriores conforme muitos AA assim antigos como

modernos, porque é útil saber-se a doutrina destas, a qual servirá para

maior clareza ao Engenheiro com a qual procederá regulado digo com a

qual poderá proceder regulado com as suas regras tiradas da experiência

que lhe se sucederão (FORTES, 1740: p. 403).

4

Outra comprovação de que o caráter da experiência norteia todo o texto é que

logo na página sete, o autor afirma que a experiência mostrou um equívoco na aplicação

da arquitetura militar até então, com a existência de diversos pontos cegos na defesa.

Equívoco esse solucionado pela criação do baluarte 4, a partir da chamada fortificação

moderna. Antes de o baluarte ser inserido no desenho, a experiência constatou, portanto,

a exposição sofrida pelos defensores, além da possibilidade do inimigo estar oculto. Por

meio da experiência, o autor também concluiu que uma determinada vitória foi

resultado da fragilidade da defesa, e não devido à potência do ataque – o que reforçava

ainda mais a importância da arquitetura militar, argumento tão marcadamente recorrente

no texto.

Pelas experiências diversas, em relação ao tiro de mosquete, a dimensão da sua

força possuía divergências entre as autoridades no assunto. A proposta para o fim dessa

dúvida é interessante na medida em que, o autor legitima a sua ideia com os “AA.”

identificados como os mais célebres, que seguiram as suas experiências como

fundamento para solucionar os impasses teóricos e práticos. “Para nos livrarmos destas

dúvidas proporemos as opiniões dos AA mais célebres, as quais seguiram fundadas nas

suas experiências” (FORTES, 1740: p. 42). Infelizmente apenas um dos dois célebres

citados foi identificado, trata-se de Medrano 5.

Em resumo, a relação apontada entre experiência, teoria e prática nos ajuda a

entender que as regras oriundas da experiência necessitavam dos preceitos e das

doutrinas dos métodos e vice-versa, não podendo ser independentes. O que nos leva

mais uma vez à clara afirmação da necessidade e importância dos métodos da

arquitetura militar, além da confirmação desta como ciência. Pois, para refutar o

argumento de outrem, denominado pelo autor de “político”, de que as praças poderiam

se defender sem a imensa quantidade de métodos que foram por ele ensinados, a

resposta estava calcada na experiência, com a comprovação de que as praças apenas

estariam bem defendidas com a aplicação de tais métodos. “Argumenta o político, as

praças podem-se defender e desenhar sem essa multidão de métodos: logo não ser

4 Vide Figura 1 em anexo. Face: as linhas acima das letras A e C; flanco primário as linhas AB e CD;

cortina: as linhas abaixo dos pontos B e D.

5 O espanhol Sebastián Fernández de Medrano (1646-1705). Sua obra, “El Architecto Perfecto en el Arte

Militar, dividido en cinco libros”, foi publicada em 1708.

5

necessário. Respondo que a experiência bem tem mostrado. Como se tem as praças

bem defendidas” (FORTES, 1740: p. 420 – grifo nosso).

Redes da arquitetura militar: escola espanhola

Para uma inicial apreciação das redes, optamos por trabalhar com as idéias do

autor definido no texto atribuído a Fortes como célebre. O espanhol Sebastián

Fernandés de Medrano publica, dentre outras, a obra escrita em língua espanhola 6 “O

engenheiro: primeira parte, da moderna arquitetura militar”, dividido em dois Tomos,

que contém cinco livros. O primeiro trata da Fortificação Regular, e Irregular, e do

parecer dos principais Autores que dela escreveram. O Segundo, da especulação de cada

uma das suas partes. O Terceiro, da fábrica das muralhas, e seus materiais. O Quarto, do

sítio, e defesa de uma praça. E o Quinto, que é o Segundo Tomo, da Geometria Prática,

Trigonometria, e uso da Regra de Proporção.

Medrano foi engenheiro, matemático e geógrafo espanhol nascido em Mora

(Toledo), em 1646. Foi mestre de campo e sargento general do exército espanhol. O seu

nome verdadeiro era Sebastián Fernandez de Mora. Assimilou o sobrenome de um

personagem influente na corte, que o levou sob sua proteção. Em 1675, sugeriu ao

governador dos Países Baixos, Carlos de Gurrea Aragon, a formação de uma academia

militar. Sob a liderança de Fernández de Medrano, que durou até a sua morte, a

Academia de Bruxelas tornou-se um prestigiado centro de treinamento militar. Ele

morreu em Bruxelas no ano de 1705.

Na tese “El conocimiento constructivo de los ingenieros militares del siglo

XVIII – un estudio sobre la formalización del saber técnico a través de los tratados de

arquitectura militar” 7, o arquiteto Jorge Alberto Galindo Díaz desenvolve o estudo da

dita ciência com o intuito de compreender a formação técnica desse saber a partir da

Antiguidade, passando pela Idade Média até a Idade Moderna, com a descrição dos

6 Disponível no site da Universidade Complutense de Madrid. Obra que será objeto de futuros trabalhos.

7 DÍAZ, Jorge Alberto Galindo. “El conocimiento constructivo de los ingenieros militares del siglo XVIII

– un estudio sobre la formalización del saber técnico a través de los tratados de arquitectura militar. Tese

de doutorado. Programa Âmbitos da Busca da Construção e do Poder na Arquitetura. Universidade

Politécnica da Catalunha, 1996.

6

trabalhos dos principais teóricos. Para o caso espanhol, Díaz aponta Medrano como o

expoente e o precursor desse processo.

Na referida tese, Medrano é identificado como um homem que não só copia,

resume e condensa as idéias da arquitetura militar, mas também propõe novas reflexões.

O diálogo de Fortes com Medrano começa com a identificação desse último como seu

contemporâneo, passagem que nos fez confirmar a hipótese de que não se trata de um

documento do ano de 1740, pois com a morte de Medrano em 1705, o manuscrito

“Tratado da Arquitetônica” não pode ser posterior a essa data: “Finalmente até o

presente tem saído Bombelle, Blondel, Medrano, Ozanam, Padre Finger, o Autor da

nova maneira de fortificar, o Anônimo com – o método de Vauban, Abbade de Fay,

Mauleon; até aqui os AA desta matéria; e novamente Manuel de Azevedo Fortes”

(FORTES, 1740: p. 9 – grifos nossos) 8.

Dos livros de Medrano, Fortes cita “Arquitetura militar, livro 1º e livro 2º”:

“Medrano na Arquitetura militar Lº. 2º diz que fazendo a experiência, achou, que a mais

de 2000 pés de distância uma bala de mosquete passou uma [?] grosso três dedos, e

assim quer, que o tiro forte do mosquete seja de 1000 pés geométricos, onde 800 de

Baluarte” (FORTES, 1740: p. 42). O debate da medida da planta de fortificação a partir

da distância que o tiro forte de mosquete podia atingir é posto pela via da experiência

(conceito debatido anteriormente) já que, as dimensões da fortificação não poderiam ser

inferiores a distância alcançada pelo tiro.

Em relação ao tamanho da face, a questão que o autor do tratado coloca é a de

não ser muito comprida para não facilitar o acesso inimigo, e nem causar a diminuição

do flanco primário, por ser a sua defesa imediata. Mas, também não poderia a face ser

curta demais, o que incapacitaria a boa defesa, devendo ficar no meio termo “Medrano

Livro 2° da Arquitetura militar julga por melhor aquela face do baluarte, que se chega à

300 pés” (FORTES, 1740: p. 51).

Para os flancos primários, a determinação de Medrano, segundo Fortes, é a

seguinte: “assim diz Medrano na Arquitetura militar livro 2°, que o seu comprimento

[do flanco primário] é de 100 a 180 pés porque sendo menor resultam as mais partes da

Praça desproporcionadas, e sendo maior poderá a fechante [linha de defesa] exceder o

8 O que também corrobora a nossa tese de que Manuel de Azevedo Fortes não foi o autor do texto, mas

possuidor da obra. Seu nome, escrito à caneta, costa na folha de rosto do manuscrito.

7

tiro forte de mosquete, e alargar-se-ão muito os fossos, o que é incômodo” (FORTES,

1740: p. 55).

“Medrano na Arquitetura militar livro 2° diz, que o comprimento da cortina será

de 450 até 550 pés, e nunca menor de 300 em praça real” (FORTES, 1740: p. 68). O

autor define praça real como aquela capaz de resistir, sendo a Praça de Campanha, a

edificação destinada ao ataque mais especificamente. As citações não param por aqui, a

formação pela via de Medrano é um marco no “Tratado da Arquitetônica” na medida

em que, podemos notar a grande apropriação das idéias desse notável “AA.” pelo autor

do texto.

Já em Luiz Gonzaga, Medrano é citado uma única vez, o que não quer dizer que

as suas idéias não estejam incorporadas, mesmo porque o tema em questão é de suma

importância, qual seja a eleição do sítio.

[...] pressuposto vindo ao ponto principal desta disputa sobre a eleição do

sítio, digo, que a três espécies reduziu Medrano os sítios capazes de

fortificação. Sítio alto, sítio pantanoso, e sítio planiseco. Não altera Vile o n°

destes sítios, se bem os da a conhecer por diversos nomes como são sítio

alto, sítio intermédio, e sítio baixo, fazendo outras três castas de sítios baixos

a saber sítio todo aqueo, sítio todo térreo, e sítio para semiterraqueo. Na

eleição e conhecimento de qual destes sítios seja melhor para se fortificar,

consiste toda a dúvida da presente disputa, cuja dificuldade para melhor se

vencer, se deve primeiro advertir. Como já bem notou Barba, qual seja o fim

do príncipe na fortificação que por em execução; porque de diverso modo se

há de haver o diligente engenheiro na eleição do sítio. Sendo na fronteira

para impedir o passo aos inimigos, do que sendo dentro no principado, para

seguro cofre do mais precioso dele, em que se possam conservar ainda

perdidas as chaves, que como tais se julgam, e devem guardar as praças

fronteiras aos inimigos. (GONZAGA, 1706: p. 18)

O argumento recai sobre as três espécies de sítios propostas por Medrano, alto,

pantanoso e planiseco, semelhantes a dos outros teóricos citados, Ville e Barba. O

primeiro, o cavaleiro Antoine De Ville (1596-1657) foi um engenheiro francês, e o

segundo, D. Diego de Medina Barba Gonzáles, espanhol autor da obra “Exame de

Fortificação”, de 1599. A conservação da praça e a defesa do Estado dependiam da

escolha do melhor sítio. Com uma extensa exposição dos argumentos dirigidos a cada

uma das opções de sítio, Gonzaga – do mesmo modo que Fortes – conclui o tópico

afirmando que o melhor sítio é o mais alto. No entanto, a escolha era sempre almejando

a melhor defesa possível.

8

Considerações finais

O que é ciência? Ao trabalharmos com a arquitetura militar, não podemos nos

eximir dessa questão. Pierre Bourdieu em “Os usos sociais da ciência” 9 desenvolve

esse conceito da seguinte forma. Ao entender ciência como um campo, um universo

intermediário entre o conteúdo textual e o contexto social, esse autor argumenta que

dotado de leis próprias o campo científico terá os agentes e as instituições lutando em

campos de forças. O texto (interior) e o contexto (exterior) da produção possuem, por

sua vez, configurações específicas.

A resposta, por exemplo, da arquitetura militar portuguesa do século XVIII

quanto à autonomia ou à assimilação da demanda externa, seja social ou mesmo estatal,

será ambígua. Por um lado, os autores dos tratados respondem ao vínculo com a Corte,

ao seu serviço, mas por outro lado, há a dimensão da formação de um grupo de

intelectuais que compõe a rede, devido aos seus próprios interesses e pela justificativa

de ser a produção necessária para a manutenção do Estado.

Os agentes, no caso os engenheiros, forjam o campo e a partir da sua posição no

mesmo, podem impor as suas demandas – nem que estas sejam mercês, cargos e

funções. Isso porque os pares (os “AA”) são os responsáveis por legitimarem

(atribuírem crédito) uns aos outros, mutuamente, o que determina a posse de capital

científico – incluído o capital simbólico – o que em última instância baliza as relações

objetivas, que nada mais são do que a estrutura do próprio campo da arquitetura militar.

A luta por poder e privilégios marca a formação e a consolidação da ciência, que

terá em seu campo a dualidade entre as leis externas e as internas. As formações das

redes de informações e de produções acontecem pela legitimação mutua mencionada, o

que delimita o espaço de atuação tanto do agente quanto da instituição. Tal paradigma

nos remete à dicotomia da invenção ou inovação. A primeira ligada ao sujeito, aos

interesses sociais, e a segunda às escolhas das instituições – por si e por investimento,

respectivamente.

9 BOURDIEU, Pierre. “Os usos sociais da ciência”. São Paulo, Editora UNESP, 2004.

9

As interpretações sobre o campo podem ser internas ou externas a ele, ou seja,

por meio do texto ou do contexto, pois a ciência não é engendrada fora do mundo

social. O que quer dizer que para a compreensão de uma produção cultural, tal qual, a

defesa proposta pela arquitetura militar Setecentista, as leis do campo serão analisadas à

luz das suas relações de força. As leis e a lógica do campo são compreendidas pela via

da sua produção, mas também em termos de capital científico: poder temporal ou

político (posições e meios de produção) e poder específico (prestígio pessoal). A

experiência como legitimadora do real está na base desse processo, uma vez que todos

concordam com as “conclusões” (“realidade objetiva”), estas se manifestam no campo

através das representações que os agentes realizam.

As questões de quais são os usos sociais da ciência, e se é possível fazer uma

ciência da ciência, uma ciência social da produção da ciência, capaz de descrever e de

orientar os usos sociais da ciência, começam a serem respondidas com a noção de

campo. A ciência em estudo esta sendo problematizada pela via da sua produção, uma

ciência social da produção da arquitetura militar, portanto.

Referências bibliográficas

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Anexo

Figura 1. Baluarte

Fonte: Luiz Gonzaga, 1706

Face: as linhas acima das letras A e C; flanco primário as linhas AB e CD; cortina: as

linhas abaixo dos pontos B e D.