15
Reflexões sobre a corporalidade e apropriação da escola na educação indígena: um estudo antropológico da domesticação da escola pelos Kiriri 1 Taíse de Jesus Chates (PPGA – UFBA / Bahia) Resumo: Os debates em torno da educação escolar indígena tem se ampliado cada vez mais a partir de abordagens distintas. Este artigo discute a relação entre a educação indígena e a educação escolar indígena, com foco na apropriação da escola pelo povo Kiriri, numa abordagem antropológica. Historicamente, a relação entre a escola e os povos indígenas teve um caráter colonizatório e bastante integracionista. Entretanto, uma das questões pontuadas com a luta dos povos indígenas é a constituição de uma escola indígena intercultural, diferenciada e bilíngüe, que seja gerida e determinada pelos interesses de cada povo. Assim, ao investigar as diversas concepções pedagógicas relacionadas à esta apropriação, a questão da corporalidade entre os processos de aprendizagem se coloca como um ponto fundamental, pois, a literatura etnológica tem mostrado que os processos de aprendizagem entre os povos indígenas têm a corporalidade como um elemento muito forte. Aqui, as noções de “domesticação” e de “corpo”, aplicadas às etnografias de povos indígenas, são discutidas à luz da análise de processos educativos. Desse modo, este trabalho dialoga diretamente tanto com a literatura antropológica sobre educação indígena quanto com outras áreas do conhecimento que se propõem a problematizar o tema. Palavras-chave: educação indígena; educação escolar indígena; Introdução Este texto tem como objetivo fazer uma breve discussão sobre a apropriação da escola no contexto indígena. Para tanto, exponho o motivo pelo qual uso o conceito de “domesticação” e a relação entre corpo e aprendizado fortemente levantada na literatura etnológica. Depois, faço uma brevíssima discussão entre as idéias de educação intercultural, bilíngüe e diferenciada, pois creio que, ao discutirmos a apropriação de uma escola que deve ser garantida pelo estado, faz-se necessário a problematização destes três conceitos, que estão presentes, ao menos em tese, na base da legislação que 1 Trabalho apresentado na 27ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de agosto de 2010, Belém, Pará, Brasil. 1

Reflexões sobre a corporalidade e apropriação da escola na ... · domesticação de práticas religiosas originariamente não indígenas e a possível domesticação da escola

Embed Size (px)

Citation preview

Reflexões sobre a corporalidade e apropriação da escola na educação indígena: um

estudo antropológico da domesticação da escola pelos Kiriri1

Taíse de Jesus Chates (PPGA – UFBA / Bahia)

Resumo:

Os debates em torno da educação escolar indígena tem se ampliado cada vez mais a

partir de abordagens distintas. Este artigo discute a relação entre a educação indígena e

a educação escolar indígena, com foco na apropriação da escola pelo povo Kiriri, numa

abordagem antropológica. Historicamente, a relação entre a escola e os povos indígenas

teve um caráter colonizatório e bastante integracionista. Entretanto, uma das questões

pontuadas com a luta dos povos indígenas é a constituição de uma escola indígena

intercultural, diferenciada e bilíngüe, que seja gerida e determinada pelos interesses de

cada povo. Assim, ao investigar as diversas concepções pedagógicas relacionadas à esta

apropriação, a questão da corporalidade entre os processos de aprendizagem se coloca

como um ponto fundamental, pois, a literatura etnológica tem mostrado que os

processos de aprendizagem entre os povos indígenas têm a corporalidade como um

elemento muito forte. Aqui, as noções de “domesticação” e de “corpo”, aplicadas às

etnografias de povos indígenas, são discutidas à luz da análise de processos educativos.

Desse modo, este trabalho dialoga diretamente tanto com a literatura antropológica

sobre educação indígena quanto com outras áreas do conhecimento que se propõem a

problematizar o tema.

Palavras-chave: educação indígena; educação escolar indígena;

Introdução

Este texto tem como objetivo fazer uma breve discussão sobre a apropriação da

escola no contexto indígena. Para tanto, exponho o motivo pelo qual uso o conceito de

“domesticação” e a relação entre corpo e aprendizado fortemente levantada na literatura

etnológica. Depois, faço uma brevíssima discussão entre as idéias de educação

intercultural, bilíngüe e diferenciada, pois creio que, ao discutirmos a apropriação de

uma escola que deve ser garantida pelo estado, faz-se necessário a problematização

destes três conceitos, que estão presentes, ao menos em tese, na base da legislação que

1 Trabalho apresentado na 27ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e

04 de agosto de 2010, Belém, Pará, Brasil.

1

rege a educação escolar indígena no Brasil. Como meus anseios aqui são de caráter

antropológico, as discussões pontuadas acima deverão se relacionar com o contexto da

educação e educação escolar indígena Kiriri, objeto de estudo do projeto de mestrado

desenvolvido hoje por mim no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da

Universidade Federal da Bahia, intitulado “A domesticação da escola na perspectiva

Kiriri: corporalizando aprendizados?”.

A domesticação da escola

A imagem de que os povos indígenas que mantinham relações mais intensas com

a sociedade nacional seriam “índios domesticados, civilizados, foi propagada durante

muito tempo, de certa maneira, ainda é. Busco, neste estudo a observação do processo

de domesticação de elementos não-indígenas por povos indígenas, ou seja, a ação de

tornar algo “externo” comum às demandas internas de um povo, neste caso, a

domesticação da escola pelo povo Kiriri. Tento, com isto, adotar uma postura teórico-

metodológica na qual o indígena, longe de ser visto como um “selvagem” a ser

domesticado, é entendido como um sujeito que se apropria de elementos não-indígenas,

como exemplo a escola, e os domestica.

Utilizo aqui como base para discussão a noção de domesticação colocada por

Catherine Howard, na qual defende que os Waiwai domesticam os elementos não-

indígenas ao utilizá-los a seu favor (Howard, 2000) 2. Assim, o indígena não é mais

tratado como o “selvagem”, bem como elementos não-indígenas são tidos como

domesticados por indígenas. Tal recorte é proposto dentro do bojo das discussões

elencadas por Alcida Ramos e Bruce Albert, nas quais a postura antropológica perante o

“objeto”, busca a “reversão do discurso indigenista” a partir do desafio de

desconstrução contínua da idéia de centralidade etnocêntrica que carrega diversos

elementos “ocidentalizados” (Albert e Ramos, 2002, pp. 14).

Para tratar devidamente a domesticação da escola em contexto indígena, ou seja,

da relação entre educação indígena e educação escolar indígena, faz-se necessário

destacar qual a concepção de educação aqui defendida. Sobre a educação em diversos

contextos, não somente se referindo aos povos indígenas, Carlos Rodrigues Brandão,

defende que esta acontece em locais variados e com modelos variados, ou seja, a escola

não é o único local no qual a educação ocorre, nem o professor é, o único profissional

2 Howard não define o conceito de domesticação precisamente, entretanto, a leitura do seu

artigo leva a esta interpretação.

2

praticante da educação (Brandão, 2007, pp. 09). Ao discutir as características da

educação indígena e da educação escolar indígena, Gersen Baniwa defende que: a educação indígena refere-se aos processos próprios de transmissão e produção do

conhecimento dos povos indígenas, enquanto a educação escolar indígena diz

respeito aos processos de transmissão e produção dos conhecimentos não-indígenas

e indígenas por meio da escola, que é uma instituição própria dos povos

colonizadores (Luciano, 2006).

Ao longo do processo de colonização brasileira, os povos indígenas foram

tratados como se tivessem que ser “domesticados”, ou seja, como se tivessem que ter

uma dita civilidade, baseada em valores eurocêntricos (Silva e Ferreira, 2001). Estes

sofreram tanto com a violência física quanto com a violência simbólica (Silva, 2001),

foram dizimados e submetidos a processos sociais totalmente extrínsecos à dinâmica

social adotada por cada povo (Dantas, Sampaio e Carvalho, 2001), tais como a

catequização e a relação com a escola. Esta violência se constituiu tanto de concepções

e práticas assimilacionistas quanto integracionistas.

A escola pode ser vista como uma ferramenta institucional para a assimilação.

Mesmo entre os teóricos que buscam se contrapor a processos opressores em relação

aos povos indígenas, é possível encontrar tanto posturas que defendam enfaticamente a

integração dos povos indígenas à sociedade nacional quanto as que consideram esta

integração um processo violento e opressor. Hernandéz, ao estudar o processo de

escolarização bilíngüe, baseado no método Paulo Freire3, com o povo Mapuche no

Chile, defende a necessidade da participação dos mesmos na sociedade nacional chilena

como forma de enriquecimento da cultura nacional em contraposição à conjuntura

colonizadora (Hernandéz, 1981: 36). Cláudio Félix defende que a integração de povos

indígenas a uma educação que tenha elementos tecnicistas é uma forma de opressão

(Félix, 2007: 30). Tanto Hernandéz quanto Félix expõem uma preocupação com o

fortalecimento da autonomia indígena. Porém, ao determinarem, de algum modo, como

deveria ou não se dar essa integração na sociedade nacional, acabam caindo na defesa

de respostas prontas, desconsiderando a especificidade e diversidade de estratégias

políticas próprias entre os diversos povos indígenas, pois, na prática, ao se recorrer a

soluções prontas, acaba-se descartando a ênfase na decisão dos povos indígenas sobre

3 O Método Paulo Freire é internacionalmente conhecido, principalmente, pela preocupação

em aliar as concepções e práticas pedagógicas do Método à realidade na qual este está

sendo aplicado. No caso citado, com o povo Mapuche, a experiência pioneira contou com a

alfabetização tanto em castelhano quanto em mapuche.

3

suas realidades. Dominique Gallois, ao narrar sua experiência antropológica junto aos

Waiãpi (Gallois, 2001: 39), defende a importância de que os povos indígenas tenham

acesso ao conhecimento especializado sobre das atividades produtivas não-indígenas,

bem como de instrumentos de mediação na sociedade nacional, a exemplo da

alfabetização e de informações sobre os trâmites jurídicos, pois, ao se apoderar de tais

instrumentos, uma maior autonomia em relação aos mesmos passa a ser possível.

Assim, Gallois ressalta que este acesso deve estar ligado às decisões do próprio povo.

A economia, a educação, a escola, a religião, bem como outros elementos,

podem ser observados à luz da noção de domesticação. No que tange ao que foi tratado

sobre a apropriação de elementos originariamente católicos pelos Kiriri por Bandeira

em sua etnografia (Bandeira, 1972), as seguintes questões podem ser levantadas: seria

possível relacionar o uso dos santos católicos dentro da religiosidade Kiriri com os usos

da escolarização pelos mesmos? Teriam os Kiriri “domesticado” a religião católica a

partir dos seus interesses? A autora defende que, mesmo incorporando Jesus Cristo e os

santos católicos em seu universo religioso, os Kiriri o fizeram a partir de uma dinâmica

própria (BANDEIRA, 1972). Desse modo, pode-se fazer uma associação entre a

domesticação de práticas religiosas originariamente não indígenas e a possível

domesticação da escola.

Corpo e escola

Na literatura etnológica, diversas autoras defendem que a linguagem corporal e a

experiência são centrais no que diz respeito aos processos de aprendizagem indígena

(McCallum, 1998; Silva, 2001). Silva ressalta que “Marcel Mauss (1973) anunciava a

corporalidade como processo de construção e linguagem expressiva da pessoa humana”

(Silva, 2001: 39).

Aracy Lopes da Silva mostra uma enorme desconexão entre a “escola” e as

práticas ritualísticas indígenas, colocando a corporalidade enquanto linguagem de

extrema importância (Silva, 2001). A autora aponta uma desconexão entre o “estar na

escola” e o “aprender com o corpo” para as crianças, através das observações de seu

trabalho com os Xerente e com os Xavante. A autora descreve várias situações nas quais

essa desconexão pode ser apontada. Pontua a afirmação do banho de rio no recreio

escolar, os ritos de iniciação, a relação com os antepassados através dos sonhos ou

4

processos de aprendizado extra-escolares, que mediam tanto habilidades tipicamente

indígenas, como o preparo de certos alimentos, quanto a fabricação de elementos

oriundos do mundo branco, como quando meninos esculpem aviões para brincar na

aldeia enquanto a escola se encontra fechada. Percebe-se então a necessidade de não

negligenciar a observação das relações corporais ao se estudar os processos de

aprendizagem com povos indígenas, seja em aprendizados escolares ou extra-escolares.

A antropóloga expôs a “domesticação corporal” observada, quando as crianças

indígenas atribuíam um valor de independência ao banho no córrego, durante os

recreios escolares. Para Silva, a afirmação deste período em espaço aberto também

significa a afirmação do modo próprio de aprender indígena, da “autonomia corporal

como condição importante para o aprendizado, mesmo que escolar” (Silva, 2001: 42).

Desse modo, a apropriação indígena da instituição escolar não acontece de modo

passivo perante a constante tentativa de “domesticação corporal”, ocorrida

sistematicamente na história do contato indígena com a escola.

A domesticação da escola e as relações com o governo

A questão da domesticação da escola é bastante definida na relação entre os

povos indígenas e o estado, que por lei é responsável pela garantia a efetivação dos

direitos indígenas em relação a uma educação escolar intercultural, diferenciada e

bilíngüe. Silva questiona a compatibilidade efetiva entre educação indígena e

escolarização através da seguinte questão: “será possível à escola o respeito real às

'formas de transmissão do conhecimento' próprias à socialização indígena, tal como

garantido expressamente nas leis?” (Silva, 2001: 59). Ou seja, é indispensável a

avaliação destes conceitos, tidos como basilares tanto pelas leis de educação escolar

indígena, quanto pelos profissionais que trabalham com educação escolar indígena e

pelos indígenas.

Ao se falar de relação intercultural, faz-se necessário expor a partir de qual

concepção de cultura se fala. Durante bastante tempo, a cultura foi considerada

hegemonicamente como um todo homogêneo, desconsiderando assim uma série de

especificidades bem mais complexas. Carlos Rodrigues Brandão, ao fazer uma releitura

em torno das relações entre a cultura e a educação popular, critica as categorizações

culturais em pares de opostos, tais como “erudito x popular”, “dominante x dominado”,

5

“urbano x rural”, bem como a imposição de uma “opacidade teórica e empírica” que

desconsidera o surgimento de diferentes modelos de cultura, que se comunicam,

interinfluenciam-se e se transformam (Brandão, 2006). Para Brandão (2006), “o

resultado mais visível disto era uma redução motivada da complexidade das culturas, da

diversidade das culturas e amplos domínios onde ela própria era obrigada a dissolver-

se”.

No que diz respeito à relação intercultural entre os povos indígenas e os povos

de origem não-indígena, são colocadas por Cláudio Félix, ao se referenciar em

Antonella Tassinari, três diferentes posturas político-metodológicas no que diz respeito

à Educação Escolar Indígena: a) a primeira concebe-na como espaço ocidental que ameaça a sobrevivência

indígena; b) a segunda a entende como espaço ressignificado de acordo com a

cultura indígena; c) a terceira abordagem compreende a escola indígena como espaço

de contato, onde as diferenças interétnicas emergem e adquirem novos contornos e

onde técnicas e conhecimentos provenientes de diferentes tradições podem ser

trocados e, assim, reinventados (a escola de fronteiras) (Félix, 2007: 46).

A partir disto, a educação ocupa um espaço privilegiado entre os “elementos de

fronteira”, ou seja, entre a cosmologia indígena e a doutrina “ocidental”, visto que tanto

pode se configurar enquanto tática de dominação, quanto instrumento de afirmação, ou

até mesmo as duas coisas ao mesmo tempo.

Segundo John Monteiro, a conversão das lideranças indígenas, a doutrinação dos

jovens e a eliminação dos pajés se colocavam como as três principais características da

educação jesuítica. A utilização das línguas indígenas para tentar realizar a dominação

dos indígenas foi bastante recorrente, tendo como instrumento a escola jesuítica (Félix,

2007: 29).

Se contrapor à idéia de que um povo indígena que não tenha mais uma relação

ampla com sua língua “original” teria o reconhecimento de sua identidade étnica

comprometida não pode significar a negação dos direitos lingüísticos de cada povo. Ao

se referir à discussão de questões identitárias relativas aos povos indígenas no nordeste

brasileiro, recorrentemente se fala de termos como “identidade residual”, “aculturação”,

etc. Quando esta perspectiva de observação e análise é posta no campo lingüístico, é de

costume que nos deparemos com um conceito de língua clássico que, enfoca as ditas

perdas lingüísticas e chega a colocar esta perda como algo irreversível, ao invés de

6

abordar mais fortemente os processos de reconstituição lingüística que muitos povos no

Nordeste vêm realizando. Um exemplo de reconstituição lingüística acontece em torno

do Patxohã, realizado pelo povo Pataxó, no sul da Bahia. Sobre a relação entre a escola

Pataxó e o trabalho realizado em torno do Patxohã, alunos, alunas, professores e

professoras de Coroa Vermelha defendem a seguinte posição: O mais gratificante é que temos tido ainda a grata cobrança de pessoas de outras

aldeias Pataxó pedindo para orientá-los a introduzir as atividades com a língua

indígena na comunidade. O que muito nos anima, pois sabemos que não basta só

trabalhar a língua na escola. É preciso que ela seja usada e valorizada no dia-a-dia da

comunidade. E para que a língua PATXOHÃ ganhe vida e significado novamente

em nossa sociedade, é preciso que todas as aldeias Pataxó participem e colaborem

neste processo. (Alunos, alunas, professores e professoras Pataxó, documento

manifesto sobre o Patxohã)

O documento citado acima defende ainda que o interesse dos Pataxó na

revitalização do Patxohã não se relaciona com uma vontade de comparação com outras

etnias.

Creio que tal afirmação também segue na direção de uma escola que, tanto seja

diferenciada, em prol dos interesses do povo Pataxó, quanto solidariamente à luta pela

afirmação lingüística e por uma educação escolar indígena adequada aos interesses de

cada povo. Isto significa que, além de se aliar com os modos próprios de aprendizagem,

é necessário que a escola busque se aproximar ao máximo da concepção de língua de

cada povo para que possa ser, de fato, diferenciada.

Gramsci (Nosella, 2004) já apontava a necessidade de se educar a partir da

realidade viva, tendo um ambiente educativo que incitasse a análise profunda da

realidade em seus diversos contextos, e não apenas uma absorção de valores a serem

reproduzidos sem a mínima reflexão. A idéia gramsciana defende então que, para

associar a escola ao trabalho, por exemplo, não seria suficiente apenas implantar uma

horta nos fundos da escola, mas que seria necessária toda uma reconstrução dos valores

hegemônicos escolares na direção da associação entre o trabalho material e o

intelectual. A educação deve se conectar verdadeiramente com a realidade viva e não

com doutrinas frias e enciclopédicas. Para se conectar à realidade do educando, Paulo

Freire defende que a educação bancária, na qual “em lugar de comunicar-se, o educador

faz 'comunicados' e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem

pacientemente, memorizam e repetem [...], a única margem de ação que se oferece aos

7

educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los” (Freire, 2005: 66),

deve ser combatida. Gramsci e Freire fazem crítica ao formato da escola dita ocidental.

Quando tratamos de educação escolar indígena, é preciso que se leve em conta as

posturas reflexivas acerca da educação não-indígena, para que o que processo de

mediação de construção deste espaço educativo interétnico – a escola, transponha

meramente os valores hegemônicos sobre estruturas educacionais.

Para que a educação bancária ou a enciclopédica, às quais Paulo Freire e

Gramsci se contrapuseram respectivamente, sejam superadas, é necessário que a escola

indígena ou não-indígena, sejam concebidas de maneira diferenciada, partindo da

realidade do educando e não de idéias impostas. Entretanto, para associar essa discussão

à realidade dos povos indígenas, é necessário que se tenha como fundamento a auto-

gestão dos povos indígenas do processo educativo escolhido por eles, a partir das

decisões de cada povo, mesmo que se decida pela recusa do modelo escolar ocidental.

Isso significaria a impossibilidade de se falar em uma educação escolar indígena

genérica, pois, do mesmo jeito que cada povo tem especificidades étnicas e modos

próprios de educar, cada povo constrói um contexto de interesses diretamente

relacionados ao objetivos e às expectativas em torno da educação escolar indígena. No

caso do povo Kiriri, a escolha tem sido de utilização da escola institucionalizada com a

perspectiva de torná-la diferenciada e adequada aos objetivos do povo Kiriri.

O povo Kiriri, sua educação e sua escola

Segundo a história contada pelos indígenas mais velhos, o nome Kiriri está

ligado a uma árvore chamada Kiri4. Já Brasileiro, coloca que o termo Kiriri é um termo

guarani que significa povo “calado”, “taciturno” e que essa denominação teria sido

atribuída pelos Tupi da costa ao “povo do sertão”5.

O povo Kiriri é composto por cerca de 2000 pessoas que vivem na Terra

Indígena Kiriri, com cerca de 12.300 hectares, no município de Banzaê, ao lado da

cidade de Ribeira do Pombal, na Bahia. Tal território se divide nos seguintes núcleos:

Baixa da Cangalha, Baixa do Juá, Araçá, Canta Galo, Lagoa Grande, Cajazeira,

Segredo, Pau Ferro, Marcação, Baixa Nova, Mirandela e Gado Velhaco (Macêdo,

4 Tal explicação é encontrada no livro “Educação diferenciada na visão do povo Kiriri” (Livro

do Aluno) e no site da Rede Índios Online.5 Explicação encontrada no site do ISA – Instituto Socioambiental.

8

2009).

A foto abaixo foi tirada em campo e é de uma criança Kiriri, estava pregada num

mural na parede da escola Índio Feliz, que fica no núcleo de Cajazeira. Ela dá uma

dimensão da disposição dos núcleos na Terra Indígena e do seu tamanho. Como é

visível, o formato da Terra Indígena é octogonal. Os Kiriri tem uma forte memória sobre

os processos relacionados à Terra Kiriri e se referem ao seu formato como “chapéu de

sol”, tendo uma série de marcos naturais para a marcação (Macêdo, 2009: 35).

Foto 1 – Núcleo Cajazeira, abril de 2010

O contato entre os Kiriri e brancos aconteceu, no mínimo, desde o século XVII,

junto com a colonização e os trabalhos catequéticos, que se iniciaram com a fundação

da aldeia de Saco dos Morcegos, posteriormente chamada de Mirandela, local onde hoje

está situado o núcleo central da Terra Indígena Kiriri e no qual se concentraram os

conflitos com os não-índios no período de retomada da Terra Kiriri.

A educação escolar foi utilizada pelos jesuítas como instrumento de difusão da

língua portuguesa, indispensável, na concepção jesuítica, para a conversão dos índios à

civilização cristã, durando, entre os Kiriri, pouco mais de um século, até o afastamento

9

dos jesuítas dos sertões brasileiros (Côrtes, 1996: 79). A primeira escola na aldeia Kiriri

foi construída junto com o primeiro posto indígena do Serviço de Proteção ao Índio –

SPI, em 1949. A escola foi intitulada “Escola Pe. Renato Galvão”, o nome é do padre

que ficou conhecido pelo seu trabalho junto aos Kiriri, e o Posto intitulado “Posto

Indígena de Tratamento Governador Góes Calmon”.

As lutas pela terra e pela escola são de extrema importância para o povo Kiriri.

Bandeira elenca como documentos de atribuição de posse da terra Kiriri: o Alvará Régio

de 23 de novembro de 1700, que abarcava uma légua em quadra, tendo a igreja como

pião, sendo ratificado pela Lei de 04 de junho de 1703, pelo Decreto Lei de número

8.072 de 20 de junho de 1910, além do Art. 186 da Constituição Federal (Bandeira,

1972: 21) de 1891. A desintrusão de não indígenas da Terra Indígena Kiriri somente se

efetivou na última década do século passado, como aborda Brasileiro (1996). Para

Macêdo (2009), a terra se constitui enquanto loci fundamental de diversos processos de

aprendizagem Kiriri.

Macêdo (2009), ressalta que, ao perguntar para os Kiriri sobre qual o maior

aprendizado de sua vida, nenhuma das respostas se relacionava à escola, mesmo quando

era feita a um jovem alfabetizado. Assim, a autora defende que as referências centrais de

aprendizagem Kiriri estão em outros espaços diferentes da escola, ressaltando onde se

ensina a lidar com a terra e a se relacionar com os encantos, defende o Toré enquanto

espaço central na aprendizagem Kiriri. As práticas Kiriri não são diferentes do que é

encontrado em outros povos indígenas no que diz respeito à relação entre religiosidade e

educação indígenas. Tanto o campo xamanístico quanto a escola se configuram

enquanto espaços de liminaridade, o que é ilustrado no trabalho de Silva:A escola, como instituição originária desse “mundo dos brancos”, ocupa então,

simbolicamente, lugar de destaque como meio de obtenção de conhecimentos

“externos” a serem incorporados e socializados internamente. A escola, assim como

o sonho, possibilita uma viagem cujo resultado pode ser a apreensão de itens de um

acervo externo que, seletiva e autonomamente, deve ser objeto de treinamento,

aprendizagem, memorização, apropriação. (Silva, 2001: 46)

Aqui o sonho representa o diálogo com os antepassados, que é mediado pelo

universo religioso e concretizado muitas vezes através dos sonhos. Assim, tanto a

religião quanto a escola se configuram enquanto espaços fronteiriços. No caso dos

Kiriri, podemos dizer que a religião se coloca ainda mais numa fronteira, por conta da

apropriação de elementos religiosos inicialmente não-indígenas.

10

Macedo (2009), conta que o Toré é visto pela comunidade Kiriri como um

momento formativo, no qual todos aprendem sobre o complexo religioso, conduta e

medicina tradicional, buscando os conselhos dos mais velhos, pajés, caciques, das

mestras e, especialmente, dos encantos. O Toré é colocado como uma aula. As práticas

xamanísticas Kiriri estão diretamente relacionadas ao seu sistema sócio-cultural e à

relação do povo com o ambiente:Os Kiriri almejam a recuperação das suas matas, que depois da retomada, estão,

gradativamente, se recompondo. A sua relação com os animais e as plantas constitui

uma espécie de plano simbólico elementar para suas práticas xamanísticas, pois a

mata é a morada dos seus encantados, condicionadores e orientadores do seu

cotidiano e de todas as suas práticas sócio-culturais (Macêdo, 2009: 47).

Belaunde (2010), ao levantar as críticas de diversos intelectuais indígenas sobre

o formato de escolarização “ocidental”, expõe que estes defendem que a escolarização

prioriza a leitura e escrita sobre determinados saberes e não a experiência, assim

impossibilitando uma apropriação real. Como exemplo, os intelectuais indígenas citados

pela autora colocam que, enquanto o uso de plantas no processo educativo permite que

se aprenda a usá-las efetivamente, na escola apenas se aprende a escrever sobre as

plantas, impossibilitando um aprendizado efetivo. As questões elencadas por Belaunde

foram apontadas a partir de sua experiência numa oficina com representantes da

Federação Shipibo-Konibo do rio Pisqui. Quando o conceito de “priorização de

desejos” foi apresentado de modo verbal, um dos líderes indígenas tomou a palavra e

exemplificou o conceito através de uma situação real. Desse modo, o uso de plantas no

processo de aprendizado é defendido como alternativa para quebra da contradição

existente no processo de aprendizado que descarta a experiência.

A discussão realizada por Belaunde me pareceu ainda mais pertinente após uma

experiência em campo. Ao ir com uma senhora Kiriri que mora em Mirandela, e sua

filha, professora indígena, para a roça da família, fui apresentada a uma série de plantas

diferentes na volta. Num certo momento, aproximei uma folha do nariz para sentir o

cheiro e buscar uma ampliação de elementos que me fizessem lembrar depois da planta:

o cheiro. Daí, a professora falou: “você não vai sentir o cheiro assim, é preciso

amassar”. Naquele momento percebi que não adiantava todo o esforço mental para

catalogar de uma só vez aquela imensa quantidade de plantas, somente uma experiência

contínua possibilitariam uma memorização efetiva sobre a identificação e função

daquelas plantas.

11

Até agora, a sensação de que a escola e a vida na comunidade não são duas

coisas opostas é muito forte, o que pode ser ilustrado neste trecho da nota de campo:As professoras me mostraram fotos de atividades nas escolas, desenhos dos alunos

(fotografados pelas professoras) e da roça no ano passado, quando plantaram

bastante feijão e girassol e perderam mais da metade por conta das chuvas, além de

fotos de uma apresentação do Toré filmada em Paulo Afonso por Edilene, professora

Kiriri. Percebi que quase todos, senão todos os desenhos, eram de mato, de roça, de

índios com roupas Kiriri, coisas do modo de viver indígena Kiriri. O momento de

interação estava instaurado na sala em torno de fotos de atividades escolares e do

cotidiano, as falas não esboçavam qualquer tom de momentos “melhores” ou

“piores”. Fiquei inquieta com a beleza dos desenhos e com o conteúdo deles, feitos

por meninos e meninas entre 10 e 14 anos, segundo elas. Alguns desenhos tinham

textos, outros não... a maioria não. Tive a impressão de que a vida cotidiana estava

dentro da escola. (Mirandela, 04 de fevereiro de 2010)

Utilizo o trecho acima para, além de indicar a relação íntima entre os

acontecimentos de “dentro” e de “fora” da escola, afirmar a diversidade de linguagens

percebida. Mesmo que eu quisesse detalhar exaustivamente os desenhos que me foram

mostrados, penso que a tentativa seria insuficiente. A imagem abaixo é uma fotografia

de uma pintura de Edivânia Kiriri, professora de artes que pinta inúmeros quadros em

tela, hoje residente em Mirandela. Quero, com esta pintura, dar uma ínfima mostra das

características que vi nos desenhos descritos na nota de campo posta acima.

Foto 2 – pintura Kiriri

12

A professora América Kiriri define da seguinte maneira a educação Kiriri: “A

educação é como o vento. Está presente em todos os lugares a cada momento. Quando o

vento passa, rega as sementes e faz com que dê origem a nova planta” (Professores

indígenas, 2005 b: 81), bem como expõe alguns objetivos relacionados à educação

indígena: “Ter um bom relacionamento entre aluno, professor e comunidade. Assegurar

nossa cultura para que ela possa continuar viva e respeitar a cultura de outros povos”

(Professores indígenas, 2005 b: 81).

Segundo os professores indígenas, a luta pela escola do povo Kiriri tem sido

longa e ainda não está resolvida. O atendimento escolar é insuficiente e os responsáveis

legais pela oferta do serviço escolar não estão cumprindo o seu papel. Daí, eles colocam

a necessidade de ampliação das escolas existentes, a construção de novas escolas e

maior distribuição do material didático, defendem também que uma escola diferente

acontece quando os indígenas trabalham para garantir a aprendizagem das crianças do

jeito deles (Professores indígenas, 2005 a: 68).

(In)conclusões

O texto aqui apresentado busca, mais do que qualquer coisa, lançar dúvidas e

problematizações em torno de questões relacionadas à relação entre educação indígena e

educação escolar indígena. Defendo que a escola hoje esteja sendo domesticada pelo

povo Kiriri por acreditar que isto seja tanto uma postura político-metodológica, quanto

por perceber que esta apropriação acontece de fato. Afirmar um processo de

domesticação da escola não significa romantizar possíveis relações de poder e opressão

existentes entre os povos indígenas e o estado, mas sim afirmar o processo histórico de

resistência. Assim, apresentei neste texto as idéias que norteiam a pesquisa em

andamento, que certamente objetiva contribuir bastante para a contínua construção de

uma educação escolar indígena efetivamente adequada aos interesses de cada povo, bem

como para a solidificação dos aprendizados em torno da educação escolar indígena que

possam contribuir para escolas não-indígenas mais coerentes e menos desconectadas

com os contextos nos quais estão inseridas.

Referências bibliográficas

ALBERT, Bruce; RAMOS, Alcida. Pacificando o Branco. Cosmologias do contato no

13

norte amazônico. São Paulo: Editora UNESP, 2002.

BANDEIRA, Ma. de Lourdes. Os Kariris de Mirandela: Um grupo indígena integrado.

Estudos Baianos No.6. Salvador: UFBA/Séc de Educação e Cultura do estado da Bahia,

1972.

BELAUNDE, Luisa Elvira. Deseos encontrados: escuelas, profesionales y plantas em la

Amazonía peruana. In.: Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade,

Salvador, v. 19, n. 33, p. 1-14, jan./jun., 2010.

BRASILEIRO, S. O Processo Faccional no povo indígena Kiriri. Salvador: Dissertação

apresentada ao mestrado em Sociologia da UFBA, 1996.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 2007.

CÔRTES, Clélia Neri. 1996 A Educação é como o Vento. Os Kiriri por Uma Educação

Pluricultural. Dissertacão de Mestrado em Educação, Universidade Federal da Bahia,

Salvador, 150 páginas.

DANTAS, B. G, SAMPAIO J. L, CARVALHO, R. M. G. de Povos Indígenas do

Nordeste Brasileiro: Um Esboço Histórico. In: CARNEIRO DA CUNHA, M. (org.)

História dos Índios do Brasil. São Paulo: FAPESB/SMC, Companhia das Letras, 2001.

FÉLIX, Cláudio Eduardo. Uma escola para “formar guerreiros”: professores e

professoras indígenas e a educação escolar indígena em Pernambuco. Irecê-BA: Print

Fox, 2007.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

GALLOIS, Dominique Tilkin. Programa de Educação Waiãpi: reivindicações indígenas

vesus modelos de escola. In: SILVA, Aracy Lopes; FERREIRA, Mariana Kawall Leal

(orgs). Práticas pedagógicas na escola indígena: a questão indígena e a escola. São

Paulo: Global, 2001.

HERNÁNDEZ, Isabel. Educação e sociedade indígena. São Paulo: Cortez, 1981.

HOWARD, Catherine. 2000. A domesticação das mercadorias: estratégias Waiwai. In:

ALBERT, Bruce & RAMOS, Alcida (Orgs.). Pacificando o branco: cosmologias do

contato no Norte-Amazônico. São Paulo: UNESP-Imprensa Oficial do Estado.

LUCIANO, Gersem dos Santos. O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os

povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de

14

Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.

MACÊDO, Sílvia Michele. Educação por outros olhares: aprendizagem e experiência

cultura entre índios Kiriri do sertão baiano: Dissertação apresentada ao Mestrado em

Educação da UFBA, 2009.

MCCALLUM, Cecilia. O corpo que sabe: da epistemologia Kaxinawá para uma

antropologia médica das terras baixas sul-americanas. In.: Antropologia da saúde.

ALVES, P. C. & RABELO, M. C. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998.

NOSELLA, Paolo. A Escola de Gramsci. São Paulo: Cortez, 2004.

PROFESSORES INDÍGENAS. Nosso povo: leituras Kiriri: educação diferenciada na

visão do povo Kiriri / Secretaria da Educação. Salvador: MEC / FNDE / SEC / SUDEB,

2005 a. Livro do Aluno / Ensino Fundamental.

PROFESSORES INDÍGENAS. Nosso povo: leituras Kiriri: educação diferenciada na

visão do povo Kiriri / Secretaria da Educação. Salvador: MEC / FNDE / SEC / SUDEB,

2005 b. Caderno de Orientação Metodológica / Professor.

Silva, Aracy Lopes da. 2001. ‘Pequenos “xamãs”: crianças indígenas, corporalidade e

escolarização’. In: Crianças Indígenas: Ensaios Antropológicos. Silva, Aracy L. da,

Macedo, AVL da, & Nunes, A. (orgs.). SP:MARI/FAPESP/GLOBAL.

SILVA, Aracy Lopes da; FERREIRA, Mariana Kawall Leal Ferreira (orgs.). Práticas

pedagógicas na escola indígena. São Paulo: Global, 2001.

15