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REFLEXÕES SOBRE A CULTURA CORPORAL*
Leila Marrach Basto de Albuquerque
“Sabemos hoje claramente que o procedimento tradicional de retirar um corpo de seu
ambiente de coexistência, interná-lo em um laboratório, submetê-lo a dissecações e
vivissecções, pensando que com isso se possa surpreender, no íntimo dessa
interioridade, aquilo que faz desse corpo algo vívido - como se a vida fosse propriedade
privada do organismo individual - dista muito de ser satisfatório para o entendimento
de animais, de plantas e até de microorganismos. Com muitíssimo menor razão
podemos continuar a admiti-lo como procedimento que pretenda conhecer o corpo
humano.” (RODRIGUES, 2005, p. 171).
Introdução.
Considero que a Educação Física, ao lado das outras áreas da saúde, hoje,
encontra-se na fronteira entre as ciências humanas e naturais. Esta circunstância pode,
por um lado, inspirar propostas redentoras de paradigmas holistas ou de esforços
transdisciplinares, mas, por outro lado, pode também resultar em disputas acirradas por
territórios e conflitos virulentos de propriedade de objeto de estudo. Conflitos que, em
última análise, se situam entre o inevitável da natureza e o arbitrário da cultura.
Sem querer resolver esta questão complicada que envolve epistemologia,
política científica e reserva de mercado - não necessariamente nesta ordem -, me
restrinjo, nesta mesa, a mostrar alguns dos inúmeros caminhos através dos quais os
corpos humanos se constroem e se reconstroem e expressam as criativas articulações
entre a cultura e a natureza. Vou falar, portanto, da cultura corporal na perspectiva
radical das Ciências Sociais, apoiada em estudos meus e de pensadores representativos
deste assunto.
* Comunicação apresentada na mesa redonda Cultura e Educação Física do Congresso Cultura Corporal, realizado no SESC Vila Mariana e promovido pelo SESC e CBCE, no período de 18 e 19/11/2006.
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A vantagem de se mostrar alguns exemplos de corpos históricos e sociais se
prende à própria particularidade deles, que estimula uma visão relativista de respeito e
de valorização da nossa capacidade inventiva enquanto espécie. Encaro isto como um
fundamento ético que orienta uma epistemologia.
Ciências Sociais e corporeidades.
Porém, antes, eu quero lembrar que o corpo é um assunto recente nas Ciências
Sociais. A relação entre as questões corporais e as questões sociais comparece no
cenário acadêmico, primeiramente, pela via da saúde e das conexões entre pobreza e
doença, já no século XIX. Eram estudos voltados para a saúde física e mental no âmbito
do processo de industrialização. Mas isso não contribuiu para tornar o corpo um objeto
de estudo a ser explorado pelas Ciências Sociais. Na verdade o corpo não chegou a ser
um tema de interesse da Sociologia clássica, como o foram a religião e o conhecimento
– objetos fundacionais que criaram tradição ao longo da história e se tornaram áreas
consagradas.
Havia como que uma divisão de tarefas na qual às Ciências Sociais estavam
reservados os fenômenos superorgânicos, aqueles que são resultantes da capacidade
humana de simbolização. Os fenômenos orgânicos eram destinados às Ciências
Naturais.
Assim, é só com os movimentos sociais dos anos de 1960, que atingiram vários
setores da cultura e do comportamento, no ocidente, que os corpos vêm a ser
corporeidades. RODRIGUES (2005, p.159) explica que nesta época constituiu-se um
contexto propício para estudos que “punham em evidência as diferenças gigantescas
entre o humano e o corpo simplesmente animal”. E, neste processo, os estudos pioneiros
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foram inestimáveis para a constituição das dimensões históricas, sociológicas e
antropológicas das corporeidades.
Corporeidades.
Comecemos com o clássico ensaio de Marcel Mauss (1974 [1934]), que não só
inventaria e classifica as técnicas corporais em diversas culturas, como mostra as
dificuldades empíricas e conceituais de tratar este objeto apenas pelo ângulo de uma
única ciência. Na sua constatação, aparentemente simples, de que “[...] o primeiro e
mais natural objeto técnico, e ao mesmo tempo meio técnico do homem é seu corpo”
(MAUSS, 1974 [1934], p.217), identifica coisas biológicas, psicológicas e sociológicas.
Ao defender o caráter de montagens fisio-psico-sociológicas dos atos corporais, mostra
que a autoridade social desempenha papel importante em fazer adaptar o corpo ao seu
emprego. Porém, a educação do corpo, por seu lado, acarreta também profundas
conseqüências biológicas e psicológicas.
Talvez o seu exemplo mais eloqüente, e ao mesmo tempo desafiador, esteja no
universo religioso quando relaciona algumas técnicas corporais na origem de nossos
estados místicos. Ele menciona a ioga. Particularmente, eu identifico três grandes
grupos, como as técnicas centradas na respiração, nos movimentos e nos alimentos,
como portas de entrada para estados alterados de consciência, próprios das experiências
místicas. Isoladamente ou combinados, esses grupos nos dão as iogas, as meditações, as
peregrinações, as danças, os jejuns, a seleção de alimentos, a ingestão de ervas. E, ao
lado destes, os nossos sentidos contribuem com a emissão e audição de sons, a inalação
de aromas e o controle da visão. Tudo isso mostra como somos bioquímicos e
simbólicos, ao mesmo tempo...
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Aliás, todas as religiões têm muito a dizer sobre o corpo. Vou lembrar apenas
algumas metáforas da carne no nosso catolicismo. Assistir a uma missa nos proporciona
imagens como: sangue de Cristo, encarnação do Filho de Deus, agonia do corpo,
ressurreição da carne, castidade, sangue e corpo partilhados, além dos muitos gestos
corporais que acompanham este ritual, como a bênção com as mãos, o ajoelhar-se, as
saudações e as diversas atitudes de contrição (ALBUQUERQUE, 2006).
José Carlos Rodrigues (2005), avaliando a contribuição de Mauss, chama
atenção para as manifestações em grupo como via de acesso para compreender o
“homem total”, já que elas expressam as dimensões orgânicas dos sentimentos, das
idéias e dos símbolos. Lágrimas, gritos, risos, são, simultaneamente, tudo isto, explica
ele. Nestes casos, os domínios da Psicologia, da Sociologia e da Biologia ficam
misturados. Assim, é menos nas separações e mais nos encontros entre o biológico e o
social, nas interpenetrações entre o individual e o coletivo e nas correspondências entre
o animal e o humano, presentes nas efervescências coletivas, que o corpo humano se
materializa. Como diz Rodrigues, é nestas circunstâncias que a cultura reverbera na
carne.
Os corpos são, também, superfícies onde se inscrevem mudanças sociais e
ambientais. Um exemplo esclarecedor se articula em torno da idéia de vantagem
adaptativa, aquelas características físicas, próprias de certas populações e que lhes
garantem a sobrevivência em determinados ambientes naturais. O caso mais conhecido
é dos povos africanos que desenvolveram uma concentração maior de melanina na pele
como forma de suportar a exposição às altas temperaturas do seu continente. Também
os nativos do continente americano teriam garantido sua sobrevivência através de uma
herança genética que os levaria a estocar gordura na região do abdome, como forma de
protegê-los contra a fome em períodos de escassez. O contato com outras culturas e
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civilizações ou a mudança de habitat e as conseqüentes alterações no modo de vida,
como alimentação, sedentarismo e traumas culturais, trazem, quase sempre,
conseqüências inesperadas do ponto de vista da saúde física e mental para os grupos
humanos. Cito como exemplo os índios Yurok da Califórnia que, devido à assimilação
dos padrões modernos de consumo de alimentos e bebidas alcoólicas, apresentam um
alto índice de diabetes ou de probabilidade de adquiri-la, transformando aquilo que era
vantagem, em uma dada situação cultural, em desvantagem, em outra (FERREIRA,
1998).
E por falar nisto, as nossas corporeidades modernas e ocidentais constituíram-se,
como todos vocês sabem, dentro daquilo que Norbert Elias (1990) chamou de processo
civilizador que nos obrigou a desenvolvermos controles e autocontroles dos nossos
corpos e mentes. Constituíram-se, então, corporeidades centradas na relação dualista e
hierárquica da mente sobre o corpo, em que o caráter mecânico do corpo e o caráter
pensante da mente atribuem, a esta, atividades racionais e superiores.
Este é o horizonte político e cultural que acompanhou e justificou o colonialismo
desde a sua origem. Assim, é importante chamar a atenção para este aspecto pouco
conhecido da nossa civilização do comportamento, quando ela procurou se impor sobre
outras culturas, não sem um alto custo. O relato do médico psiquiatra Fanon (1968) é
eloqüente: ele identificou na patologia chamada de contratura muscular generalizada,
disseminada entre os argelinos, a expressão, nos músculos do colonizado, de sua
resistência e recusa à autoridade colonial.
Contemporaneamente, os corpos têm apresentado novos sentidos, a partir de
traduções pós-modernas da noção de natureza e da posição do homem nela. A idéia
moderna de um homem fora da natureza e que a contempla da sua onisciência tem
convivido com uma concepção que integra a ambos num cosmo englobante. Essas
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novas perspectivas têm favorecido a construção de novos mapas do corpo. São novas
corporeidades que retrucam às gestões civilizadoras do corpo e esperam resgatar uma
espontaneidade natural que teria sido perdida com o projeto técno-científico moderno. O
universo das terapias é rico em exemplos. Nas margens dos saberes oficiais, os
holísticos e os alternativos acreditam que:
As forças vitais que nos rodeiam - as quais não podem ser simplesmente
explicadas - são ricas, misteriosas e complexas. Muitos de nós somos
instintivamente receptivos a estas forças e estamos inclinados a rejeitar
os desenvolvimentos crescentemente alarmantes das ciências médicas.
Nós todos sabemos que nosso corpo tem a habilidade para curar-se e
que os procedimentos médicos complexos e crescentemente invasivos
podem fazer mais mal que bem”. (Shealy, 1999, p.8).
Estes novos atributos do corpo almejam valorizar aquilo que não foi
transformado pela cultura - o natural, talvez? - como fonte de saberes e poderes que
devem ser preservados.
Porém, também as práticas terapêuticas regidas pelo método científico e,
portanto, legitimadas por ele, sofrem influência desses novos mapas do corpo. Um
estudo rigoroso, conduzido por médicos e publicado em periódico científico, procura
demonstrar a relação positiva entre religiosidade e recuperação da saúde. Apoiados em
farta evidência empírica, os autores concluem que:
Existe uma associação entre espiritualidade e saúde que provavelmente
é válida, e possivelmente causal. É plenamente reconhecido que a saúde
de indivíduos é determinada pela interação de fatores físicos, mentais,
sociais e espirituais. Os profissionais da saúde já contam com
indicações científicas do benefício da exploração da espiritualidade na
programação terapêutica de virtualmente qualquer doença. (SAAD et
all., p.107).
Obviamente, estas propostas são possíveis a partir de um afrouxamento das
visões modernas de corpo, mente e espírito, o que abre uma fresta para o corpo mostrar
outros modos de ser e outras possibilidades, sejam da cultura, sejam da natureza.
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Para finalizar esta apresentação de criações coletivas de corpos, quero trazer
alguns resultados de um estudo que realizei acerca dos gestos curadores em duas
religiões: o passe espírita e o johrei messiânico (ALBUQUERQUE, no prelo). Enquanto
execução de movimentos, ambos são idênticos do ponto de vista cinesiológico.
Carregam, porém, sentidos diferentes que derivam de variáveis culturais e históricas
importantes. Em ambas as religiões, para curar os outros ou ser curado, pelas mãos, os
corpos se sacralizam, ganham poderes e dimensões fora do código do cotidiano.
Na Igreja Messiânica Mundial, as corporeidades estão presas na dualidade
natural x antinatural. Esta naturalização dos cuidados do corpo tem como referência
uma recusa às transformações trazidas pelo processo de modernização. Com isso, esta
religião produz corpos com dimensões cósmicas, conferidas pelas energias dos
elementos naturais terra, água e fogo. A soma destes elementos produziria a energia
divina ou a divina luz, concedida, porém, apenas ao fundador deste movimento
religioso, Meishu-Sama. Ele a outorga aos homens, pelo gesto curador – o johrei. Em
suma, o ideal de corpo, para a Messiânica, é na natureza intocada pela modernidade.
Na doutrina de Kardec os corpos estão presos a uma contabilidade que envolve
ações nesta e em outras vidas. Desse modo, os corpos são resultantes do que ocorre com
o espírito e o perispírito, entre vivos e mortos. Além disso, são carregados de fluidos e
energias, mobilizados por vontades e desejos através da mediunidade. As doenças
seriam, então, resultantes das tensões entre livre arbítrio e carma. Assim, os corpos têm
uma dimensão moral, para os espíritas, fruto das escolhas e do destino, que atingem o
perispírito com doenças ou curas.
Acreditam os espíritas que o gesto curador é um atributo de todos os homens,
desde sempre, pois todos somos médiuns. A experiência mediúnica da cura confere aos
corpos atributos sagrados, através dos espíritos, fluidos e energias. Portanto, o dom de
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cura está democraticamente disponível para todos os homens desde os tempos
imemoriais, já que todos disporiam de energias e fluidos.
Pistas.
Levi-Strauss (1969, p. 37) nos ensinou que, “por ser um animal doméstico, o
homem é o único que se domesticou a si mesmo”.
Assim, o meu modo de abordar a Educação Física, isto é, a cultura corporal, o
corpo e o movimento, o esporte, a recreação e o lazer, é com este sotaque de cientista
social.
Quero lembrar que estamos vivendo uma circunstância histórica propícia para
ouvir outras vozes, ou no mínimo, não emudecê-las. Objetos de estudo como: a dança
do ventre, os banhos rituais, as terapias alternativas, as curas religiosas, o eco-
feminismo, as dietas alimentares, os saberes híbridos, as capoeiras, as lutas, os jogos, as
competições, as marchas, as danças folclóricas, as recreações e os esportes permitem
compreender as inúmeras culturas e as infinitas naturezas que as coletividades humanas
têm inventado e que se expressam em modos de ser dos corpos.
Isto é, os corpos são territórios privilegiados para mostrar o histórico, o híbrido,
o mestiço, o tradicional, o imemorial, o espontâneo, o disciplinado, o leigo, o prático, o
sábio, o criativo, o empírico, o simples e tantos outros aspectos que guardam o sentido
de experimentação e criação coletivas.
Enfim, estas minhas reflexões procuraram enfatizar que, na sua articulação com
a história, os corpos são produzidos tanto natural como culturalmente. E se ao longo dos
recentes 400 anos os pensadores ocidentais se empenharam em definir, delimitar e
atribuir valores à cultura e à natureza, quando se trata do corpo, nos deparamos com um
caleidoscópio que mostra configurações novas a cada movimento da história. Isto é,
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ninguém sabe que tipo de relação da cultura com a natureza ele pode nos apresentar.
Diante disso, resta-me sugerir cautela e dizer que não se pode fazer pouco caso dos
cuidados que devem cercar as nossas incursões nos corpos humanos.
*
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, L. M. B. de. As possibilidades de uma Fisiologia da Religião. Anais do II Simpósio Internacional sobre Religiões, Religiosidades e Culturas. GT: O espectro Disciplinar da(s) Ciência(s) da Religião. UFGD, Dourados, MS, abril/2006. ________. The healing process in two religious worlds. Japanese Journal of Religious Studies, Japan. (no prelo). FANON, F. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. FERREIRA, M.K.L. Corpo e história do povo Yurok. Revista de Antropologia, v.41, n.2, p.53-105, 1998. LEVI-STRAUSS, C. Las estructuras elementales del parentesco. Buenos Aires: Piados, 1969. MAUSS, M. Técnicas corporais. In: ______. Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP, [1934]1974. v.2. RODRIGUES, J. C. Os corpos na Antropologia. In: MINAYO, M.C.de S.; COIMBRA Jr., C.E.A. (Org.). Críticas e atuantes: Ciências Sociais e Humanas na América Latina. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2005. p. 157 – 182. SAAD, M. et all. Espiritualidade baseada em evidências. Acta Fisiátrica, v.8, p. 107-112, 2001. SHEALY, N.C. (Ed.). Alternative healing therapies. Shaftesbury, Dorset: Element Books, 1999. *