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Texto sobre a questão do ato de ler, abordando a questão do ato de ler para além de textos escritos
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Reflexão sobre o ato de ler
O ato de ler envolve múltiplas dimensões do seu objeto, não se restringindo
apenas para as leituras textuais; abrange mesmo imagens, sinais, cores, expressões
culturais, ações alheias, contextos, atos políticos, valores morais. Ler envolve a
capacidade do indivíduo de apreender uma determinada significação que se expressa
material ou imaterialmente e relacioná-la com seus referenciais culturais, suas
concepções de mundo, sua bagagem histórica e sua profundidade consciente sobre a
dinâmica de sua realidade em um âmbito micro e macro social.
Ler o mundo precede, dessa forma, a leitura escrita; adquirindo e
compreendendo os mecanismos da linguagem, o ser humano passou a ler seu mundo de
forma cada vez mais complexa e a teorizar sobre ele, edificando chaves interpretativas
para fenômenos naturais baseados em suas experiências pessoais e sociais. No processo
cada vez mais amplo e profundo da troca interativa de conhecimentos práticos de modos
de sobrevivência envolvendo a fabricação de ferramentas, técnicas de agricultura,
domesticação de animais, fabricação de armas, manipulação de minerais dentre tantas
outras formas de transformação da natureza pelo trabalho humano, a leitura ganhou
sentidos que excedem a escrita, uma vez que podemos interpretar o verbo “ler” como a
capacidade de decifrar ou imprimir um sentido ao que se quer ler.
Na atividade de homens e mulheres ao longo da história a ação de ler
possibilitou condicionar suas atitudes frente as adversidades que o mundo natural lhes
impuseram; permitiu que se criassem as mais diversas formas de organizações
societárias com seus sistemas políticos, cosmogonias, teorias sobre a vida, sobre a
morte, sobre a natureza, sobre o ser humano (assim se procedeu com as civilizações
africanas do Egito, Kush, Punt, Méroe e com os gregos, macedônios e romanos, para
nos determos na Antiguidade) construções materiais e conjuntos de valores próprios que
passam, dessa forma, a reger as relações sócio afetivas de uma determinada
comunidade. Mas nos enganemos que o ato de ler possibilitou o ser humano se criar e
desenvolver relações, instituições e códigos cada vez mais complexados sem gerar
conflitos entre si; estes tendo suas origens na invenção e na defesa da propriedade
privada e consecutivamente nas guerras travadas entre as civilizações para a expansão
dos interesses de uns poucos detentores de grandes glebas de terras, exploradores de
seus recursos naturais através do sub julgamento da força de trabalho de outros
indivíduos.
Se olharmos para o passado, desde a edificação das primeiras grandes
organizações políticas do crescente médio os conflitos entre elas se generalizaram em
momentos diferentes, tornando a alternância da dominação de uns sobre os outros
constante e consequentemente a imposição da leitura mundo dos dominadores sob os
dominados se fez a modo de garantir e perpetuar seu poder. Assim se deu em tantos
outros momentos do pretérito em que uma organização sócio política com seu exército
se tornou soberano sob outros povos, Estados e civilizações, mas essas conquistas não
se efetuaram apenas pela força bruta. O acolhimento de novos preceitos religiosos por
parte de um governo foi uma característica comum nos novos moldes de dominação e
propagação do poder, fazendo com que a nova carga de ideias religiosas passasse a
integrar a cultura de um Estado e se constituísse como uma nova forma de leitura do
mundo.
Assim se procedeu com o Ocidente no século IV d.C., quando o imperador
romano Constantino decretou o catolicismo como religião oficial do império romano,
iniciando uma nova era não apenas para os domínios do Magnum Império, mas detendo
em seu germe a força motriz que dirigiria, em grande parte, o curso da história dali em
diante. Essa conversão do imperador romano ocasionou inúmeras divergências entre os
plebeus romanos e o governo central, uma vez que aqueles ficaram proibidos de cultuar
suas divindades e passaram a ser perseguidos pelo poder central. Com a dissolução do
império no século V da era cristã, a igreja católica manteve seu poder e deflagrou-se
com protuberância nas instituições do Império de Carlos Magno, que, após sua morte,
seu império foi dividido entre os nobres cavaleiros e seus filhos, mantendo a fé cristã
como orientação religiosa e como instrumento de leitura da sociedade vigente, mas essa
fé ganhava de forma constante e crescente ares de intolerância, até que no século XIII a
igreja católica começa a perseguir sistematicamente os “desviantes” do cristianismo, ou
seja, aqueles que vivenciavam a fé em Cristo fora dos moldes impostos pela igreja
institucionalizada ou que cultuavam e efetuavam ritos pagãos foram atormentados,
aprisionados, torturados e executados pelos agentes da igreja. Com o advento do
movimento renascentista a leitura mundo ganha novos apetrechos intelectuais e os
dogmas católicos passam a ser questionados, tendo a razão ganho seu pequeno espaço
nas consciências dos pensadores da época, mas ainda assim a carga simbólica
dogmática condicionava homens e mulheres nas suas atitudes cotidianas, ou seja, as
leituras que esses faziam sobre suas vidas e os acontecimentos incidentes no curso de
suas existências era dirigidos pela fé cristã, fé que moveu chefes de governos a
torturarem e espoliarem outras culturas, como aconteceu com os judeus residentes nos
países ibéricos (Espanha e Portugal), com os ameríndios e os negros escravizados
africanos.
Esses contatos entre povos diferentes possibilitou que suas leituras mundo
ganhassem novas características por intermédio da constante troca simbólica que se
estabeleceu no entroncamento do convívio de diferentes matizes culturais, ou seja, a
hibridização foi uma consequência natural e por conseguinte, as novas formas de
subjetividade operante na leitura mundo se transmutaram.
Com as revoluções burguesas do século XVIII que inauguram a época
contemporânea a leitura mundo é incrementada de novos requintes condizentes com o
contexto econômico, político, social e cultural que se edificou, tendo aquela carga
religiosa do passado deixado suas reminiscências nas mentes de homens e mulheres. A
transformação em massa de camponeses em operários fabris sob condições de labuta
desumanas foi determinante para que uma nova consciência se construísse e passasse a
encabeçar atos de contestação a nova ordem econômica/política imposta que envolviam
desde greves a quebras de maquinários, pois na leitura mundo desses trabalhadores
eram as máquinas a causa de seus males, como o desemprego ou as excessivas jornadas
de trabalho..
Eis então que chegamos a nossa realidade, que é múltipla e diversa, mas
contém pontos em comum em vista de convivermos no mesmo sistema econômico, o
capitalismo, o que cabe perguntar: como as relações de produção e a circulação de
mercadorias determinam nossas leituras mundo? São apenas esses dois fatores que
operam nas nossas formas de conceber as relações sócio afetivas? De interpretar
fenômenos sociais, políticos e culturais? Certamente que não; o curso da história não é
contínuo, mas também não é feito só de rupturas. Reminiscências são comuns e
demandam tempo para ou serem superadas ou irem se transformando e se adequando
aos novos contextos históricos. Assim se procede com valores morais, atitudes,
concepções sobre determinados fenômenos sociais, sob a forma de se conceber um
modelo de estético, cultural e comportamental; assim se processa com o lugar do
indivíduo que faz sua leitura mundo.
Com o advento do capitalismo industrial a força de trabalho explorada do
homem pelo homem trouxe desdobramentos nas suas atitudes que, junto com a divisão
do trabalho e sua crescente especialização fragmentou os trabalhadores na sua
consciência, impedindo-o de vislumbrar o processo produtivo como um todo, fazendo-o
que ele não se reconheça na produção de suas mercadorias, uma vez que estas são
apropriadas pelos detentores dos meios de produção. Dessa forma, o produto fabricado
pelo operário se torna estranho a ele, pois sua destinação não é o seu consumo imediato,
mas sim o processo de circulação de mercadorias que, com a invenção da publicidade
midiática, as mercadorias ganharam um enorme poder de persuasão, condicionando a
forma de ler da sociedade referente ao consumo, aos gostos estéticos e as preferências
modelares que encantam os olhares dos consumidores; estes preferindo a imagem do
que o conteúdo. Assim se realiza com os padrões de beleza do ser humano impostos por
um conjunto de fatores que envolve a construção histórica de uma sociedade, o
enraizamento e sua perpetuação da indústria estética (academias com seus personal
trainners, produtos para o cabelo etc.), os meios de comunicação e a publicidade que
privilegiam um único tipo de representação do humano, edificando em nossas formas de
ler o belo com um único viés, e nos levando a negar tudo o que foge desses estereótipos
criados pelos mecanismos da sociedade capitalista que estimula intensamente um hábito
intenso de consumo de mercadorias muitas vezes sem utilização prática para o
indivíduo, mas adquirida por suas “propriedades místicas” que envolve a capacidade de
um produto atrair os sentidos de percepção de homens e mulheres. Tais propriedades
nada mais são que características objetivas do produto, como cores, formato, cheiro e
desenhos.
Vemos então que estamos inseridos em uma conjuntura histórica da qual o
processo produtivo e a propaganda são elementos fundamentais na forma de conceber
aquilo que é ou não é necessário consumir, estimulando dessa forma um senso nos
indivíduos de posse e controle sob seus sentimentos e suas escolhas quanto aquilo que
desejam, envolvendo assim homens e mulheres a abstrair a objetividade da realidade em
um processo do qual os sentidos são estimulados para serem manipulados em prol do
consumo. A reificação adentra nesse processo de mercantilização das relações humanas
e no estranhamento do produtor quanto ao seu produto fabricado por ele,
individualizando profundamente o trabalhador e orientando seus modos de sentir,
pensar e agir em um mote fragmentário, pois a noção da totalidade do processo
produtivo e suas relações sociais são escamoteadas pela dinâmica capitalista de
produção de mercadorias ou prestação de serviços, relegando apenas para a esfera do
privado sentimentos de solidariedade e de fraternidade.
Mas não é apenas a economia que determina a leitura mundo de uma
sociedade, construindo as ferramentas que processam na concepção de seres humanos
sob suas realidades imediatas e outras conjunturas. Uns dos meios edificadores da
leitura mundo são os diversos meios de comunicação com os seus conteúdos
diversificados, apresentando em cada um deles um determinado posicionamento político
calcado em valores e interesses de seus mandatários, sejam interesses econômicos,
políticos ou de manter o status quo da sociedade nos seus mais diversos aspectos, como
hábitos de consumo, opiniões sobre partidos políticos, movimentos sociais, economia e
outros fenômenos sociais como a criminalidade e a pobreza.
Jornais televisivos ou impressos com suas colunas de opinião e apresentação
das matérias sob um determinado ângulo e revistas que fazem análises sob a sociedade
corroboram para a transformação da nossa leitura mundo, pois tendemos a criar uma
identificação entre nossos conceitos e valores com o texto veiculado, reforçando e
aglutinando mais informações sobre a dinâmica histórico-social na nossa bagagem de
conhecimentos e dirigindo nossas concepções sobre o que se está abordando por um
único caminho, que pode deter um aspecto progressista ou reacionário. Advém de um
processo histórico o posicionamento da linha editorial de um veículo de informação
junto com sua posição econômica, delimitando os modos de abordagem sob os sujeitos
e objetos analisados que podem estar em consonância com a leitura mundo da sociedade
em geral, criando, como descrito acima, uma identificação entre a agência de
informação e o leitor.
A cultura, entendida aqui como todo aparato de manifestação simbólica
material e imaterial que expressa uma ou várias visões de mundo, podendo abranger
desde a forma de alimentação, formas de expressão corporal, estilos musicais,
arquitetura, relações sócio afetivas, relações políticas, diversidade religiosa e tantas
outras formas de conceber e participar da sociedade, também é um instrumento que
constrói nossa leitura mundo, uma vez que nascemos em um seio cultural transformado
pelas relações sociais mas que mantém alguns de seus aspectos legado pelo passado;
nossas formas de interpretar os fenômenos sociais e naturais advém da carga cultural
que recebemos, que é diversa, múltipla e multifacetada, mas que se faz parte de um
todo, compondo uma comunidade, seja ela nacional ou não. Como sociedade
diversificada, os meios de comunicação apreciam e rejeitam manifestações culturais,
repudiando, por exemplo, credos religiosos que estejam a margem de uma fé
hegemônica; depreciando-as e as rebaixando como sendo religiões de incivilizados e
que pactuam com forças místicas tendentes a prejudicar a sociedade (pacto com forças
demoníacas, em uma perspectiva judaico-cristã, por exemplo).
Cabe levantar alguns questionamentos acerca dessas variantes. Como a
estrutura econômica se relaciona com a cultura e as classes sociais? Qual é o papel da
mídia na manutenção das classes sociais, seus privilégios e carências? Como a cultura
se manifesta em diferentes camadas da sociedade? Como a classe social influi na leitura
mundo de seus indivíduos? Ela é determinante ou há outra variantes que contribuem
para a hegemonia de uma determinada forma de leitura mundo, como os meios de
comunicação que monopolizam a informação e sua transmissão às massas? Como as
diferentes formas culturais de diferentes classes interagem entre si e formam uma leitura
mundo em ambas as classes? Há, através desses questionamentos, um significado
implícito que é a dialética, pois o intercâmbio de diferentes fatores como a informação
elitista transmitida às massas, os diversos aportes culturais de uma classe e a estrutura
econômica formam um todo indissociável que se expressa nas relações sociais, tendo o
processo histórico que desemboca no presente o suporte desse constructo da realidade.
Ao analisarmos as relações sociais procuramos identificar sua interligação
com um todo que abarca as esferas do econômico, da cultura, do político e das relações
de classe; buscamos analisar como os diversos tipos de leitura mundo se constroem e se
transformam em sua profundidade, procurando tornar inteligível em suas múltiplas
manifestações e compreender as contradições (como elas se formaram) e a lógica que
guia essa leitura mundo.
Por fim, percebemos que o processo de construção da leitura mundo é
dinâmico e intercambiável, estando coligado com um movimento histórico e social que
abrange um todo influente nas formas de conceber a nossa realidade. Talvez o que
necessitamos é deter minimamente a noção desse todo, desse arcabouço social, para
compreendermos como as formas de dominação de uma classe sobre a outra se
processa, quais são seus artifícios e seu modo operandi para, assim, nos precaver de
uma leitura mundo que é imposta a nós, distorcida e parcial, detentora de uma intenção
de assegurar o encravamento das transformações sociais progressistas que mulheres e
homens podem e devem desencadear em prol de uma vida em que a utopia seja
palpável, cabendo perguntar: existe uma utopia expressa em uma leitura mundo
futurística ou o capital a mercantilizou?
São Paulo, 7 de julho de 2015