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Reflexão sobre o ato de ler O ato de ler envolve múltiplas dimensões do seu objeto, não se restringindo apenas para as leituras textuais; abrange mesmo imagens, sinais, cores, expressões culturais, ações alheias, contextos, atos políticos, valores morais. Ler envolve a capacidade do indivíduo de apreender uma determinada significação que se expressa material ou imaterialmente e relacioná-la com seus referenciais culturais, suas concepções de mundo, sua bagagem histórica e sua profundidade consciente sobre a dinâmica de sua realidade em um âmbito micro e macro social. Ler o mundo precede, dessa forma, a leitura escrita; adquirindo e compreendendo os mecanismos da linguagem, o ser humano passou a ler seu mundo de forma cada vez mais complexa e a teorizar sobre ele, edificando chaves interpretativas para fenômenos naturais baseados em suas experiências pessoais e sociais. No processo cada vez mais amplo e profundo da troca interativa de conhecimentos práticos de modos de sobrevivência envolvendo a fabricação de ferramentas, técnicas de agricultura, domesticação de animais, fabricação de armas, manipulação de minerais dentre tantas outras formas de transformação da natureza pelo trabalho humano, a leitura ganhou sentidos que excedem a escrita, uma vez que podemos interpretar o verbo “ler” como a capacidade de decifrar ou imprimir um sentido ao que se quer ler.

Reflexões Sobre o Ato de Ler

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Texto sobre a questão do ato de ler, abordando a questão do ato de ler para além de textos escritos

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Page 1: Reflexões Sobre o Ato de Ler

Reflexão sobre o ato de ler

O ato de ler envolve múltiplas dimensões do seu objeto, não se restringindo

apenas para as leituras textuais; abrange mesmo imagens, sinais, cores, expressões

culturais, ações alheias, contextos, atos políticos, valores morais. Ler envolve a

capacidade do indivíduo de apreender uma determinada significação que se expressa

material ou imaterialmente e relacioná-la com seus referenciais culturais, suas

concepções de mundo, sua bagagem histórica e sua profundidade consciente sobre a

dinâmica de sua realidade em um âmbito micro e macro social.

Ler o mundo precede, dessa forma, a leitura escrita; adquirindo e

compreendendo os mecanismos da linguagem, o ser humano passou a ler seu mundo de

forma cada vez mais complexa e a teorizar sobre ele, edificando chaves interpretativas

para fenômenos naturais baseados em suas experiências pessoais e sociais. No processo

cada vez mais amplo e profundo da troca interativa de conhecimentos práticos de modos

de sobrevivência envolvendo a fabricação de ferramentas, técnicas de agricultura,

domesticação de animais, fabricação de armas, manipulação de minerais dentre tantas

outras formas de transformação da natureza pelo trabalho humano, a leitura ganhou

sentidos que excedem a escrita, uma vez que podemos interpretar o verbo “ler” como a

capacidade de decifrar ou imprimir um sentido ao que se quer ler.

Na atividade de homens e mulheres ao longo da história a ação de ler

possibilitou condicionar suas atitudes frente as adversidades que o mundo natural lhes

impuseram; permitiu que se criassem as mais diversas formas de organizações

societárias com seus sistemas políticos, cosmogonias, teorias sobre a vida, sobre a

morte, sobre a natureza, sobre o ser humano (assim se procedeu com as civilizações

africanas do Egito, Kush, Punt, Méroe e com os gregos, macedônios e romanos, para

nos determos na Antiguidade) construções materiais e conjuntos de valores próprios que

passam, dessa forma, a reger as relações sócio afetivas de uma determinada

comunidade. Mas nos enganemos que o ato de ler possibilitou o ser humano se criar e

desenvolver relações, instituições e códigos cada vez mais complexados sem gerar

conflitos entre si; estes tendo suas origens na invenção e na defesa da propriedade

privada e consecutivamente nas guerras travadas entre as civilizações para a expansão

dos interesses de uns poucos detentores de grandes glebas de terras, exploradores de

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seus recursos naturais através do sub julgamento da força de trabalho de outros

indivíduos.

Se olharmos para o passado, desde a edificação das primeiras grandes

organizações políticas do crescente médio os conflitos entre elas se generalizaram em

momentos diferentes, tornando a alternância da dominação de uns sobre os outros

constante e consequentemente a imposição da leitura mundo dos dominadores sob os

dominados se fez a modo de garantir e perpetuar seu poder. Assim se deu em tantos

outros momentos do pretérito em que uma organização sócio política com seu exército

se tornou soberano sob outros povos, Estados e civilizações, mas essas conquistas não

se efetuaram apenas pela força bruta. O acolhimento de novos preceitos religiosos por

parte de um governo foi uma característica comum nos novos moldes de dominação e

propagação do poder, fazendo com que a nova carga de ideias religiosas passasse a

integrar a cultura de um Estado e se constituísse como uma nova forma de leitura do

mundo.

Assim se procedeu com o Ocidente no século IV d.C., quando o imperador

romano Constantino decretou o catolicismo como religião oficial do império romano,

iniciando uma nova era não apenas para os domínios do Magnum Império, mas detendo

em seu germe a força motriz que dirigiria, em grande parte, o curso da história dali em

diante. Essa conversão do imperador romano ocasionou inúmeras divergências entre os

plebeus romanos e o governo central, uma vez que aqueles ficaram proibidos de cultuar

suas divindades e passaram a ser perseguidos pelo poder central. Com a dissolução do

império no século V da era cristã, a igreja católica manteve seu poder e deflagrou-se

com protuberância nas instituições do Império de Carlos Magno, que, após sua morte,

seu império foi dividido entre os nobres cavaleiros e seus filhos, mantendo a fé cristã

como orientação religiosa e como instrumento de leitura da sociedade vigente, mas essa

fé ganhava de forma constante e crescente ares de intolerância, até que no século XIII a

igreja católica começa a perseguir sistematicamente os “desviantes” do cristianismo, ou

seja, aqueles que vivenciavam a fé em Cristo fora dos moldes impostos pela igreja

institucionalizada ou que cultuavam e efetuavam ritos pagãos foram atormentados,

aprisionados, torturados e executados pelos agentes da igreja. Com o advento do

movimento renascentista a leitura mundo ganha novos apetrechos intelectuais e os

dogmas católicos passam a ser questionados, tendo a razão ganho seu pequeno espaço

nas consciências dos pensadores da época, mas ainda assim a carga simbólica

dogmática condicionava homens e mulheres nas suas atitudes cotidianas, ou seja, as

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leituras que esses faziam sobre suas vidas e os acontecimentos incidentes no curso de

suas existências era dirigidos pela fé cristã, fé que moveu chefes de governos a

torturarem e espoliarem outras culturas, como aconteceu com os judeus residentes nos

países ibéricos (Espanha e Portugal), com os ameríndios e os negros escravizados

africanos.

Esses contatos entre povos diferentes possibilitou que suas leituras mundo

ganhassem novas características por intermédio da constante troca simbólica que se

estabeleceu no entroncamento do convívio de diferentes matizes culturais, ou seja, a

hibridização foi uma consequência natural e por conseguinte, as novas formas de

subjetividade operante na leitura mundo se transmutaram.

Com as revoluções burguesas do século XVIII que inauguram a época

contemporânea a leitura mundo é incrementada de novos requintes condizentes com o

contexto econômico, político, social e cultural que se edificou, tendo aquela carga

religiosa do passado deixado suas reminiscências nas mentes de homens e mulheres. A

transformação em massa de camponeses em operários fabris sob condições de labuta

desumanas foi determinante para que uma nova consciência se construísse e passasse a

encabeçar atos de contestação a nova ordem econômica/política imposta que envolviam

desde greves a quebras de maquinários, pois na leitura mundo desses trabalhadores

eram as máquinas a causa de seus males, como o desemprego ou as excessivas jornadas

de trabalho..

Eis então que chegamos a nossa realidade, que é múltipla e diversa, mas

contém pontos em comum em vista de convivermos no mesmo sistema econômico, o

capitalismo, o que cabe perguntar: como as relações de produção e a circulação de

mercadorias determinam nossas leituras mundo? São apenas esses dois fatores que

operam nas nossas formas de conceber as relações sócio afetivas? De interpretar

fenômenos sociais, políticos e culturais? Certamente que não; o curso da história não é

contínuo, mas também não é feito só de rupturas. Reminiscências são comuns e

demandam tempo para ou serem superadas ou irem se transformando e se adequando

aos novos contextos históricos. Assim se procede com valores morais, atitudes,

concepções sobre determinados fenômenos sociais, sob a forma de se conceber um

modelo de estético, cultural e comportamental; assim se processa com o lugar do

indivíduo que faz sua leitura mundo.

Com o advento do capitalismo industrial a força de trabalho explorada do

homem pelo homem trouxe desdobramentos nas suas atitudes que, junto com a divisão

Page 4: Reflexões Sobre o Ato de Ler

do trabalho e sua crescente especialização fragmentou os trabalhadores na sua

consciência, impedindo-o de vislumbrar o processo produtivo como um todo, fazendo-o

que ele não se reconheça na produção de suas mercadorias, uma vez que estas são

apropriadas pelos detentores dos meios de produção. Dessa forma, o produto fabricado

pelo operário se torna estranho a ele, pois sua destinação não é o seu consumo imediato,

mas sim o processo de circulação de mercadorias que, com a invenção da publicidade

midiática, as mercadorias ganharam um enorme poder de persuasão, condicionando a

forma de ler da sociedade referente ao consumo, aos gostos estéticos e as preferências

modelares que encantam os olhares dos consumidores; estes preferindo a imagem do

que o conteúdo. Assim se realiza com os padrões de beleza do ser humano impostos por

um conjunto de fatores que envolve a construção histórica de uma sociedade, o

enraizamento e sua perpetuação da indústria estética (academias com seus personal

trainners, produtos para o cabelo etc.), os meios de comunicação e a publicidade que

privilegiam um único tipo de representação do humano, edificando em nossas formas de

ler o belo com um único viés, e nos levando a negar tudo o que foge desses estereótipos

criados pelos mecanismos da sociedade capitalista que estimula intensamente um hábito

intenso de consumo de mercadorias muitas vezes sem utilização prática para o

indivíduo, mas adquirida por suas “propriedades místicas” que envolve a capacidade de

um produto atrair os sentidos de percepção de homens e mulheres. Tais propriedades

nada mais são que características objetivas do produto, como cores, formato, cheiro e

desenhos.

Vemos então que estamos inseridos em uma conjuntura histórica da qual o

processo produtivo e a propaganda são elementos fundamentais na forma de conceber

aquilo que é ou não é necessário consumir, estimulando dessa forma um senso nos

indivíduos de posse e controle sob seus sentimentos e suas escolhas quanto aquilo que

desejam, envolvendo assim homens e mulheres a abstrair a objetividade da realidade em

um processo do qual os sentidos são estimulados para serem manipulados em prol do

consumo. A reificação adentra nesse processo de mercantilização das relações humanas

e no estranhamento do produtor quanto ao seu produto fabricado por ele,

individualizando profundamente o trabalhador e orientando seus modos de sentir,

pensar e agir em um mote fragmentário, pois a noção da totalidade do processo

produtivo e suas relações sociais são escamoteadas pela dinâmica capitalista de

produção de mercadorias ou prestação de serviços, relegando apenas para a esfera do

privado sentimentos de solidariedade e de fraternidade.

Page 5: Reflexões Sobre o Ato de Ler

Mas não é apenas a economia que determina a leitura mundo de uma

sociedade, construindo as ferramentas que processam na concepção de seres humanos

sob suas realidades imediatas e outras conjunturas. Uns dos meios edificadores da

leitura mundo são os diversos meios de comunicação com os seus conteúdos

diversificados, apresentando em cada um deles um determinado posicionamento político

calcado em valores e interesses de seus mandatários, sejam interesses econômicos,

políticos ou de manter o status quo da sociedade nos seus mais diversos aspectos, como

hábitos de consumo, opiniões sobre partidos políticos, movimentos sociais, economia e

outros fenômenos sociais como a criminalidade e a pobreza.

Jornais televisivos ou impressos com suas colunas de opinião e apresentação

das matérias sob um determinado ângulo e revistas que fazem análises sob a sociedade

corroboram para a transformação da nossa leitura mundo, pois tendemos a criar uma

identificação entre nossos conceitos e valores com o texto veiculado, reforçando e

aglutinando mais informações sobre a dinâmica histórico-social na nossa bagagem de

conhecimentos e dirigindo nossas concepções sobre o que se está abordando por um

único caminho, que pode deter um aspecto progressista ou reacionário. Advém de um

processo histórico o posicionamento da linha editorial de um veículo de informação

junto com sua posição econômica, delimitando os modos de abordagem sob os sujeitos

e objetos analisados que podem estar em consonância com a leitura mundo da sociedade

em geral, criando, como descrito acima, uma identificação entre a agência de

informação e o leitor.

A cultura, entendida aqui como todo aparato de manifestação simbólica

material e imaterial que expressa uma ou várias visões de mundo, podendo abranger

desde a forma de alimentação, formas de expressão corporal, estilos musicais,

arquitetura, relações sócio afetivas, relações políticas, diversidade religiosa e tantas

outras formas de conceber e participar da sociedade, também é um instrumento que

constrói nossa leitura mundo, uma vez que nascemos em um seio cultural transformado

pelas relações sociais mas que mantém alguns de seus aspectos legado pelo passado;

nossas formas de interpretar os fenômenos sociais e naturais advém da carga cultural

que recebemos, que é diversa, múltipla e multifacetada, mas que se faz parte de um

todo, compondo uma comunidade, seja ela nacional ou não. Como sociedade

diversificada, os meios de comunicação apreciam e rejeitam manifestações culturais,

repudiando, por exemplo, credos religiosos que estejam a margem de uma fé

hegemônica; depreciando-as e as rebaixando como sendo religiões de incivilizados e

Page 6: Reflexões Sobre o Ato de Ler

que pactuam com forças místicas tendentes a prejudicar a sociedade (pacto com forças

demoníacas, em uma perspectiva judaico-cristã, por exemplo).

Cabe levantar alguns questionamentos acerca dessas variantes. Como a

estrutura econômica se relaciona com a cultura e as classes sociais? Qual é o papel da

mídia na manutenção das classes sociais, seus privilégios e carências? Como a cultura

se manifesta em diferentes camadas da sociedade? Como a classe social influi na leitura

mundo de seus indivíduos? Ela é determinante ou há outra variantes que contribuem

para a hegemonia de uma determinada forma de leitura mundo, como os meios de

comunicação que monopolizam a informação e sua transmissão às massas? Como as

diferentes formas culturais de diferentes classes interagem entre si e formam uma leitura

mundo em ambas as classes? Há, através desses questionamentos, um significado

implícito que é a dialética, pois o intercâmbio de diferentes fatores como a informação

elitista transmitida às massas, os diversos aportes culturais de uma classe e a estrutura

econômica formam um todo indissociável que se expressa nas relações sociais, tendo o

processo histórico que desemboca no presente o suporte desse constructo da realidade.

Ao analisarmos as relações sociais procuramos identificar sua interligação

com um todo que abarca as esferas do econômico, da cultura, do político e das relações

de classe; buscamos analisar como os diversos tipos de leitura mundo se constroem e se

transformam em sua profundidade, procurando tornar inteligível em suas múltiplas

manifestações e compreender as contradições (como elas se formaram) e a lógica que

guia essa leitura mundo.

Por fim, percebemos que o processo de construção da leitura mundo é

dinâmico e intercambiável, estando coligado com um movimento histórico e social que

abrange um todo influente nas formas de conceber a nossa realidade. Talvez o que

necessitamos é deter minimamente a noção desse todo, desse arcabouço social, para

compreendermos como as formas de dominação de uma classe sobre a outra se

processa, quais são seus artifícios e seu modo operandi para, assim, nos precaver de

uma leitura mundo que é imposta a nós, distorcida e parcial, detentora de uma intenção

de assegurar o encravamento das transformações sociais progressistas que mulheres e

homens podem e devem desencadear em prol de uma vida em que a utopia seja

palpável, cabendo perguntar: existe uma utopia expressa em uma leitura mundo

futurística ou o capital a mercantilizou?

São Paulo, 7 de julho de 2015