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Reflexões sobre texto e ensino (Parte 1) Maria Cristina Rigoni Costa Maria da Aparecida Meireles de Pinilla Maria Thereza Indiani de Oliveira

Reflexões sobre texto e ensino

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Reflexões sobre texto e ensino

(Parte 1)

Maria Cristina Rigoni Costa Maria da Aparecida Meireles de Pinilla

Maria Thereza Indiani de Oliveira

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Reflexões sobre texto e ensino (primeira parte) 1

No dia-a-dia da escola, são inúmeros os momentos em que o professor de português se questiona sobre as estratégias que deve usar para estimular nos alunos o prazer da leitura, o interesse pelas possibilidades de uso que a língua oferece, o conhecimento das diferentes formas de construção do texto.

Para refletir sobre o ensino de língua portuguesa na escola, deve-se lembrar que o desenvolvimento de um indivíduo pressupõe sua inserção na sociedade em que vive, em um grupo social com o qual se comunica e troca experiências, ao mesmo tempo que absorve os conhecimentos acumulados dentro do grupo ao longo da sua história. E o que torna possível essa interação é a linguagem, que tem entre suas funções a comunicação, a representação do mundo, a transmissão de informações, possibilitando a interação entre os membros de uma sociedade.

Ao interagir nas diferentes situações do dia-a-dia, as pessoas, agentes verbais (agente verbal é o indivíduo que estabelece interação social por intermédio do uso da linguagem) procuram atingir objetivos, estabelecer relações, causar efeitos, desencadear comportamentos, enfim, atuar de determinada maneira dentro de seu grupo social. Nesse processo, produzem diferentes textos, com base em diversas formas de expressão verbal e não-verbal. Reconhecer que existem inúmeras possibilidades de construção textual em função dos objetivos da interação falante/ouvinte é fundamental para a abordagem da língua materna na escola.

Assim, para interagir por intermédio da linguagem, lendo/ouvindo e produzindo textos, vários tipos de conhecimento são ativados, segundo o ponto de vista cognitivo: conhecimento do sistema lingüístico, conhecimento de mundo, conhecimento da organização de textos, assim como conhecimento de outros meios semióticos, como imagens, cores, fotos, sons, design etc.

O conhecimento do sistema lingüístico envolve os vários níveis da organização lingüística utilizados na compreensão e produção de enunciados (vocabulário, formação e flexão de palavras, organização dessas palavras em estruturas mais complexas – sintagmas, orações, períodos). O conhecimento de mundo, construído ao longo das experiências de vida, é decisivo no processo de apreensão do sentido, colaborando no processamento de textos de maior complexidade lingüística (vocabulário, estruturação da frase). O conhecimento da organização textual diz respeito à forma como a informação é organizada, gerando expectativas no momento da leitura e determinando escolhas no momento da produção (em um artigo de opinião, supõe-se a existência de uma tese, de argumentos, de uma conclusão). A incorporação de diferentes mídias à comunicação cotidiana vem, além disso, exigindo do homem contemporâneo o conhecimento de meios semióticos como o cinema, a internet, a publicidade, que envolvem o processamento de informações não-verbais.2

Charaudeau (2001) aborda essa questão sob outro ponto de vista, identificando as competências necessárias à interação comunicativa: a) competência situacional: o sujeito constrói seu discurso em função da identidade dos interlocutores (status, papel social), da finalidade da comunicação (prescrever, solicitar, informar, instruir, demonstrar etc.), dos seus propósitos (tematização) e das circunstâncias materiais (interlocutivas, em que a coerência depende dos dois locutores, e monolocutivas, em que o sujeito falante é dono do espaço da tematização); b) competência discursiva: envolve estratégias enunciativas (imagem do eu e do outro, modalização), estratégias enunciatórias (escolha do modo de organização do discurso), estratégias semânticas (o conhecimento compartilhado devido ao sistema de crenças, identidade social, gerando inferências, fenômenos de interdiscursividade); c) competência semiolingüística (todo sujeito sabe manipular/reconhecer a forma dos signos, suas regras combinatórias e seus sentidos utilizados para expressar uma intenção de comunicação de acordo com o contexto situacional e as exigências da organização do discurso): envolve composição do texto, construção gramatical e uso adequado das palavras.3

A língua portuguesa, portanto, não deve ser abordada como um instrumento, como uma herança pronta, mas sim como um produto histórico-social, como fruto do trabalho de seus falantes, cidadãos

1 Este texto é de autoria de RIGONI, Maria Cristina; PINILLA, Maria Aparecida e INDIANI, Maria Thereza.2 “O conhecimento lingüístico, o conhecimento textual, o conhecimento de mundo devem ser ativados durante a leitura para poder chegar ao momento da compreensão, momento esse que passa desapercebido, em que as partes discretas se juntam para fazer um significado.” Kleiman, Angela. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. Campinas: Pontes, 1989, p.26.3 Charaudeau, Patrick. “De la competencia social de comunicación a las competencias discursivas”. Revista Latinoamericana de estudios del discurso. Venezuela: ALED, vol. 1, n.1, 2001.

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brasileiros. Nessa perspectiva, "ensinar" português é renovar, em seus usuários, o prazer de utilizar sua língua, recuperando sua historicidade e sua função social -- a língua existe para ser usada, e só se realiza, como língua, nesse uso.

Do ponto de vista do aluno, “aprender português” é ampliar as habilidades de leitura e a capacidade de expressão, é saber manusear cada vez melhor esse instrumento que é a língua. Encarar o texto como um espaço de interação, como um produto histórico-social, relacioná-lo a outros textos armazenados na memória textual coletiva, admitir a multiplicidade de leituras por ele ensejadas são desafios permanentes para um ensino conseqüente da Língua Portuguesa.

Dessa forma, o texto, considerado como espaço de construção de sentido, é o lugar em que se dá a interação entre sujeitos, tendo como cenário o contexto sociocognitivo.4 É preciso, portanto, levar em conta todas as características do processo enunciativo que o gerou, já que o texto se situa em um tempo e espaço definidos, persegue uma determinada intenção e instaura uma relação de interação entre produtor e leitor/ouvinte.

Mesmo que ainda não tenha um conhecimento formalizado, o aluno, com base em sua experiência de usuário da língua, percebe que os textos se organizam de diferentes maneiras de acordo com as situações de comunicação em que se realizam. Cabe à escola apresentar ao aluno textos de diferentes gêneros, adequados às situações de uso e aos objetivos da interação, de modo a ampliar sua competência comunicativa. Na prática docente, o professor deve contribuir para o letramento do aluno, desenvolvendo competências que o levem a reconhecer que a pluralidade de discursos contribui para ampliar sua auto-estima, seu sentido de cidadania e seu papel social.

Essa visão do ensino de língua baseia-se na concepção sócio-interacionista desenvolvida por estudiosos como Vygotsky, Bakhtin e Bronckart. Isso significa dizer que as pessoas utilizam diferentes estratégias para atingir seus objetivos, de acordo com a situação, o lugar, o veículo, o interlocutor – o mesmo conteúdo pode assumir formas textuais bem distintas em função das diferentes variáveis relacionadas ao contexto de produção. Por estar inserido em uma situação comunicativa, inúmeras são as marcas lingüísticas que garantem a adequação do texto a essa situação. Assim:

um discurso político pode ser interpretado de formas diferentes em dois momentos históricos distintos, já que as referências podem não ser de domínio do leitor deslocado no tempo;

uma charge está diretamente relacionada às condições político-sociais de um determinado momento histórico e pode não ser entendida se for deslocada temporal ou espacialmente;

textos humorísticos são altamente dependentes do contexto situacional e, sobretudo, do contexto cultural, para que possam produzir no leitor/ouvinte o efeito desejado;

uma reportagem sobre um acontecimento político poderá ter um caráter laudatório ou crítico em função da linha editorial da mídia envolvida;

certos textos literários só podem ser entendidos dentro do universo ficcional em que se inscrevem;

em uma situação de perigo ou urgência, muitas informações devem ser subtendidas pelo interlocutor, já que nem tudo pode ser dito explicitamente.

Se a produção é oral, o receptor está, geralmente, situado no mesmo espaço-tempo do produtor, e, assim, pode responder-lhe diretamente. Isso interfere na construção do texto, porque o diálogo passa a ser negociado permanentemente entre os dois. Se os interlocutores não estão no mesmo espaço-tempo, há a possibilidade da comunicação escrita se estabelecer (via cartas, e-mail, chat on-line) ou de se manter a comunicação oral por meio de instrumentos de comunicação, como o telefone. Em algumas situações, o receptor não pode responder, o que faz com que ele não se transforme em interlocutor e não interfira na seqüência de construção do texto.

Com base nessas informações, cada leitor estabelece um tipo bem peculiar de interação com o texto, produzindo, dessa forma, diferentes leituras, apoiadas em distintas experiências de vida. Assim, um mesmo texto pode ter, para duas pessoas, sentidos diferentes, dependendo do referencial de cada uma delas: tudo que acontece é visto e interpretado de um modo pessoal e intransferível, em uma leitura individual.

Elementos constantes e variáveis estão sempre presentes no processo de comunicação; por isso, um mesmo enunciado pode ter diferentes valores de comunicação de acordo com o contexto de uso, enquanto enunciados diferentes podem ter funções similares na mesma situação. A variedade e a 4 “Trata-se da dimensão dialógica do texto. Essa expressão, cunhada pelo autor soviético Mikhail Bakhtin, enfatiza a importância da interação eu e tu do texto (oral ou escrito). Quem escreve pressupõe um leitor; quem fala pressupõe um ouvinte. A disposição e a disponibilidade para a interação são essenciais à comunicação através de textos.” Bakhtin, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

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constância coexistem e é possível fazer delas uma sistematização, pois em um ato de comunicação há um conjunto de elementos que obrigatoriamente fazem parte dele.

Os estudos de texto mais comumente praticados em sala de aula contemplam, sobretudo, a estrutura formal e o conteúdo temático, sem levar em conta que o texto, para ser analisado, deve ser concebido como um momento de um processo ininterrupto e global de comunicação e interação. Segundo essa abordagem pragmática, o texto é um enunciado produzido não apenas de acordo com o sistema gramatical da língua, mas também orientado para influenciar o comportamento do interlocutor/leitor e para causar neste um efeito (satisfazê-lo, persuadi-lo, amedrontá-lo etc.).

Uma análise desse tipo terá, necessariamente, que considerar os dados extralingüísticos situacionais, procurando responder à pergunta: "o que é que o locutor quer fazer dizendo isto, e como o faz?", pois a comunicação pressupõe formas de agir verbais e não-verbais. Além disso, um texto não contém, necessariamente, todas as informações para sua compreensão: o ouvinte/leitor precisa recuperar elementos implícitos que o auxiliem nessa tarefa. Ele produz inferências, ou seja, estabelece relações entre o texto e o seu conhecimento de mundo, preenchendo lacunas não explicitadas.

Conclui-se, portanto, que o texto deve ser abordado como um conjunto de enunciados inter-relacionados que adquirem sentido a partir da interação texto/ leitor, de acordo com fatores diversos: a forma de desenvolvimento do tema, as relações de coerência entre o texto e os conhecimentos de mundo dos interlocutores, as relações coesivas entre seus constituintes e a adequação às necessidades pragmáticas da situação de interação lingüística em que foi gerado.

O trabalho de leitura e produção de textos, na escola, deve, portanto, favorecer ao aluno a identificação e incorporação das estratégias de organização textual que garantem sua unidade e eficiência, já que um enunciado oral ou escrito é considerado um texto quando se constitui como um espaço de produção e circulação de significados. Assim, a eleição do texto - e não palavras, frases, classes ou funções – como unidade de ensino decorre da constatação de que é no texto que o usuário da língua exercita sua capacidade de organizar e transmitir idéias, informações, opiniões em situações de interação.5

Para atingir esse objetivo, é necessário propor diferentes atividades que evidenciem os processos de construção lingüística: observar os procedimentos que garantem a coerência, exercitar o vocabulário de forma criativa e dinâmica, relacionar classe e função das palavras em unidades maiores (sintagmas e orações), ampliar essas unidades por meio de processos de subordinação e coordenação. Dessa forma, o aluno poderá aperfeiçoar-se no uso dos mecanismos lingüísticos que já domina na sua linguagem do dia-a-dia, bem como adquirir outros, próprios da língua padrão.

Detalham-se, a seguir, aspectos essenciais para uma abordagem do texto em sala de aula que permita atingir os objetivos referidos no início deste texto: estimular nos alunos o prazer da leitura, o interesse pelas possibilidades de uso que a língua oferece, o conhecimento das diferentes formas de construção do texto:

contexto de produção gêneros textuais modos de organização do discurso coerência textual (tema, progressão temática, inserção histórica, informatividade,

intertextualidade, seleção e combinação lexical, referenciação, encadeamento) estruturação textual (estrutura do parágrafo, subordinação e coordenação, conectores) estruturação da frase (sintagmas e classes de palavras) variação morfossintática

1. Contexto de produção

A leitura de um texto não se faz apenas pela significação das palavras e das frases ali presentes. Há que considerar a situação em que o texto foi produzido, bem como as inferências que podem ser realizadas a partir do conhecimento de mundo dos participantes do ato de comunicação. Dessa forma, o

5 “A concepção que se está adotando, sobre o texto como uma unidade interativa de comunicação funcional, construída na interlocução, é válida também para o ensino da gramática da frase. Parte-se do princípio de que não há frases isoladas, pois todas fazem parte de um contexto.” (Pauliukonis, M.A. L. “Texto e contexto”. In: VIEIRA, S. & BRANDÃO, S. Ensino de gramática. São Paulo: Contexto, 2007, p.246)

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processo de leitura torna-se muito mais abrangente porque envolve fatores intelectuais, emocionais, biológicos, culturais, econômicos e políticos do leitor.

Esse conjunto de elementos que atuam na compreensão do texto constitui o contexto de produção. Significados importantes e decisivos para uma compreensão mais profunda do texto são produzidos, dependendo de inferências mais simples ou mais complexas realizadas pelo leitor. Para isso, é preciso que ele observe marcas do contexto de produção presentes no texto: quem é o autor? Em que momento e lugar o texto foi produzido? De que forma o texto dialoga com o contexto, reiterando-o ou criticando-o? Qual o objetivo comunicativo do texto?

As condições de produção que determinam as características do texto são:

tempo (compartilhamento de valores e informações entre produtor e receptor); lugar social (família, escola, interação comercial, mídia); posição social do produtor na interação (papel de professor, pai, patrão, cliente, amigo); posição social do receptor na interação (papel de aluno, subordinado, filho, amigo, colega); objetivo da interação (qual o efeito que o texto deve produzir no receptor); canal / veículo (livro, jornal, tv, rádio, outdoor); grau de formalidade da situação.

Tempo

Em função das diferenças temporais – do ponto de vista cultural, social, político, econômico, por exemplo – os textos apresentam diferentes valores e exigem do leitor a realização de determinadas inferências, com base nas informações explícitas e implícitas ali contidas. Assim, quando produtor e receptor compartilham valores e informações, o processo de leitura é mais abrangente. Já quando o leitor não compreende as concepções expressas no texto, porque pertencem a outro momento histórico, necessita utilizar estratégias especiais. Na produção de um texto, as informações apresentam diferentes graus de detalhamento em função da possibilidade de o leitor estar ou não situado no mesmo momento histórico que o produtor.

Por exemplo, em notícias e cartas de leitor, inúmeras informações são ocultadas, porque estão subentendidas devido ao fato de produtor e leitor do jornal estarem inseridos em uma situação comum: guerra do Iraque, desastres ecológicos, campanha eleitoral etc. Já em um texto acadêmico, supõe-se que o leitor pode estar em outro momento histórico e, portanto, precisa de informações básicas para contextualizar a informação, embora sua atemporalidade faça com que a dependência do contexto seja muito menor do que a de notícias e cartas.

QUINO. O mundo da Mafalda. São Paulo: Martins Fontes. 1999, p. 44.

A leitura dessa tirinha exige que os alunos tenham consciência das graves questões mundiais. A presença da televisão, no primeiro quadrinho, sugere que as pessoas podem se informar sobre “tudo” o que acontece no mundo, principalmente os problemas, ao vivo e a cores. A imagem da menina solitária, pensativa, sentada em um banco frente à televisão, lembra a escultura O Pensador, de Rodin. O humor da tirinha apóia-se na idéia de que as notícias sobre o mundo são tão alarmantes que seria preciso um comercial “convincente” para colocá-lo à venda. Essa afirmação ironiza o poder da publicidade, porque permite deduzir que um bom comercial vende qualquer coisa, até o que seria invendável. Portanto, é preciso inferir que é muito difícil atribuir um valor positivo ao mundo. O leitor que não estiver consciente das dificuldades do mundo atual não conseguirá entender o sarcasmo da fala da personagem Mafalda.

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No ato de leitura, apresentam-se algumas questões cujas respostas podem ajudar o leitor a compreender melhor o sentido do texto e a perceber informações subjacentes.

a. Quem é o autor? O que você sabe sobre sua atuação profissional?

O autor da tirinha é Quino, cartunista argentino conhecido pela visão crítica com que procura desenvolver em seus leitores a reflexão sobre a vida cotidiana e o contexto social.

b. Em que momento e lugar o texto foi produzido?

O texto foi produzido na atualidade. Assim, para entender suas referências aos hábitos e valores da sociedade, é preciso relacioná-las aos acontecimentos contemporâneos. Embora o autor seja argentino, o caráter universal das suas tiras é alcançado porque os problemas discutidos afetam as pessoas em todas as partes do mundo.

c. De que forma o texto dialoga com o contexto, reiterando-o ou criticando-o?

O texto dialoga com as perplexidades contemporâneas: a passividade das pessoas frente à televisão, o poder da propaganda, as angústias em relação aos problemas mundiais.

d. Qual o objetivo comunicativo do texto?

O texto tem o objetivo de fazer humor voltado à crítica social: critica indiretamente o poder da propaganda e a veiculação de notícias alarmantes pelos jornais da televisão.

Lugar social

Em função das relações sociais que se estabelecem entre produtor e receptor, configura-se o lugar social, que determina práticas discursivas específicas. As relações de poder instituídas pelo lugar social são responsáveis desde a forma de abordar o assunto até a escolha do vocabulário.

No caso do jornalista científico, por exemplo, é o modo como ele incorpora e transmite os diferentes saberes institucionais (da ciência e do senso comum) que sustenta e legitima socialmente a sua posição de jornalista, comprometido tanto com a verdade da ciência quanto com a verdade da mídia e os saberes do leitor.

Outro exemplo de lugar social é o espaço escolar, que se constitui pelas relações entre professores e alunos, entre os professores como uma categoria profissional, entre professor e diretor, entre diretor e alunos, entre pais e professores. Esse espaço é dinâmico e as relações de poder autorizam o discurso de cada um desses papéis sociais.

Posição social do produtor e do receptor na interação

A posição que cada pessoa ocupa em um lugar social determina a constituição e os objetivos comunicativos de seu discurso. Além disso, cada leitor estabelece um tipo bem peculiar de interação com o texto de acordo com seu papel social. O mesmo conteúdo pode assumir formas textuais bem distintas em função das diferentes variáveis relacionadas ao contexto de produção. Seguem alguns exemplos:

um conselho dado por um amigo é construído de uma forma diferente do conselho dado por um professor, porque entre amigos existe a negociação entre as partes, e o conselho pode assumir a configuração de diálogo; o conselho dado pelo professor é, provavelmente, um monólogo, porque a diferença de lugar social do professor e do aluno dificulta ou impede a interlocução;

a conversa entre mãe e filho, por sua excessiva intimidade, gera diálogos elípticos que podem não ser entendidos por uma pessoa estranha, visto que os interlocutores se referem a situações desconhecidas pelos outros.

Objetivo da interação

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Em cada situação social, a interação entre as pessoas por intermédio da linguagem é dirigida por um objetivo comunicativo predominante: informar, convencer, relatar, explicar, ensinar, impressionar, revelar sentimentos, modificar comportamentos, causar prazer estético, divertir. Esse objetivo determina as escolhas para a leitura e a produção de cada texto: tema, progressão temática, gênero, modo de organização do discurso, recursos expressivos que se manifestam de diversas formas nos planos fônico, morfossintático, semântico e vocabular.

Relembrando a concepção de funções da linguagem, desenvolvida por Jakobson nos anos 70, pode-se estabelecer uma correlação entre os dois conceitos: objetivo da interação e função da linguagem. Jakobson distinguiu seis funções (referencial, emotiva, conativa, poética, fática e metalingüística), relacionando cada uma delas a um dos componentes do processo comunicativo. Na concepção do lingüista russo, em cada ato de fala, dependendo de sua finalidade, predomina um dos elementos da comunicação, e, por conseguinte, uma das funções da linguagem. As seis funções não se excluem. O que pode ocorrer é o domínio de uma das funções; assim, há mensagens predominantemente referenciais, predominantemente emotivas e assim por diante.

Embora se reconheça que o estudo das funções da linguagem, centrado nos componentes do ato da fala, seja importante para perceber como o texto se constrói, é preciso lembrar que essas categorias não devem ser abordadas de forma rígida e estanque, como é comum em diversos livros didáticos de Língua Portuguesa. Essa orientação tem trazido como conseqüência, para o estudante, uma visão compartimentada da linguagem, como se as funções pudessem existir independentes umas das outras, desvinculadas dos mecanismos de construção da textualidade.

Atualmente, a tendência é considerar duas grandes funções da linguagem: a cognitiva ou referencial e a pragmática ou interacional, levando em conta o papel dos interlocutores e do contexto de situação. 6

Na concepção pragmática, a interação se realiza de maneiras diferentes conforme a modalidade de uso da língua: na língua escrita, o emissor não está em intercâmbio direto com o receptor, por isso, a explicitação de todos os elementos é fundamental para a compreensão da mensagem, e o contexto extralingüístico deve ser descrito em detalhe; na conversação natural, são muitas as informações que não precisam aparecer sob a forma de palavras, já que o contexto situacional e os dados que falante e ouvinte dominam, um do outro, permitem a seleção das informações que serão subtendidas.

A leitura dos textos a seguir permite observar que o mesmo tema - clonagem - pode se apresentar sob a forma de gêneros distintos de acordo com a finalidade da interação:

"Pesquisadores do Instituto Roslin, nos arredores de Edimburgo, Escócia, produzem, em fevereiro de 97, Dolly, clone de ovelha geneticamente manipulado. Os cientistas escoceses fundiram um óvulo não fecundado com uma célula doada pela ovelha que queriam copiar." (Veja, 1997)

Essa notícia de jornal transmite uma informação em uma linguagem bem objetiva. Oferece informações sobre o local, a data e as características da experiência científica realizada. Devido à referência, por meio dessas informações, a elementos que constituem o repertório de experiências do leitor, nela predomina o caráter referencial, presente na maioria dos atos de comunicação.

"Puxa vida! Que loucura! Onde será que isto vai parar?"

O ouvinte/telespectador toma conhecimento da notícia sobre a clonagem e expressa seu espanto. Predomina, nessa frase, a função expressiva da linguagem, pois há uma exteriorização das emoções do indivíduo. A carga emotiva prevalece sobre a carga informativa, permitindo que se realize a interação entre o falante e o interlocutor. Essa comunicação é extremamente dependente do contexto situacional -- as mesmas expressões de espanto terão outro sentido se forem utilizadas em outras situações. Isso mostra que a língua, além de informar, funciona como um instrumento para a manifestação de emoções e sentimentos, conforme se verifica no texto anterior.

Da mesma forma, diferentes funções podem predominar em textos do mesmo gênero:

6 "A Pragmática é uma dimensão no estudo da linguagem que pretende compreender o estudo da língua como meio de ação, de atuação sobre os ouvintes ou leitores. Ela leva em conta os interlocutores e o contexto de situação. Quais são os elementos lingüísticos capazes de atuar no leitor? Eles são variados e ocorrem nos diferentes níveis lingüísticos, isto é, na seleção vocabular (léxico), na construção sintática, no uso de figuras (estilística) e nas estratégias semântico-pragmáticas ao apresentar idéias e argumentos." (Souza e Carvalho,1992).

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"Dizes que brevemente serás a metade de minha alma. A metade? Brevemente? Não: já agora és, não a metade, mas toda. Dou-te a alma inteira, deixa-me apenas uma pequena parte para que eu possa existir por algum tempo e adorar-te." (Graciliano Ramos. Memórias do cárcere)

Nessa carta, ao lado da função poética, coexistem a função emotiva e a função conativa, já que o autor confessa seus sentimentos à pessoa amada, seduzindo-a em um processo sugestivo que compreende as imagens: metade da minha alma, a alma inteira, não a metade, mas toda, uma pequena parte. A palavra metade, nesse contexto, assume uma significação metafórica, neutralizando o traço semântico [+concreto], em uma busca de redefinição poética do amor como entrega.

Carta

Há muito tempo, sim, que não te escrevo. Ficaram velhas todas as notícias. Eu mesmo envelheci: Olha em relevo, estes sinais em mim, não das carícias

(tão leves) que fazias no meu rosto: são golpes, são espinhos, são lembranças da vida a teu menino, que ao sol - posto perde a sabedoria das crianças.

A falta que me fazes não é tanto à hora de dormir, quando dizias "Deus te abençoe", e a noite abria em sonho.

É quando, ao despertar, revejo a um canto a noite acumulada de meus dias, e sinto que estou vivo, e que não sonho.

(Carlos Drummond de Andrade. Lição de coisas)

No poema de Drummond, além das funções poética e emotiva, a função conativa constitui um recurso expressivo no processo de estruturação da função poética: te escrevo, olha em relevo, fazias, me fazes, quando dizias. Cria-se um receptor virtual que permite a exteriorização do sentimento do poeta.

Canal / veículo

Todo processo de interação por meio da linguagem é determinado pelas características do canal / veículo comunicativo. Por exemplo, quando duas pessoas compartilham o mesmo espaço, a interação se dá pela fala, marcada por implícitos, elipses, marcadores conversacionais, repetições, pausas, elementos fáticos, porque a situação preenche as exigências de comunicação. Já na interação mediada pela escrita, há necessidade de maior planejamento, explicitação de informações, estruturação textual complexa, ausência de repetições, de modo a permitir ao leitor a apreensão do conteúdo sem apoio na situação concreta de comunicação.

Para a produção do texto falado, emissor e receptor devem, em princípio, situar-se no mesmo tempo e espaço, enquanto que, para a produção do texto escrito, isso não importa. Geralmente, o autor nem sabe quem será o seu leitor: ele constrói sozinho o seu texto. Por isso costuma-se falar do isolamento de quem escreve. Como conseqüência, o leitor só poderá dispor das informações que o texto oferece – não há retorno, a não ser a longo prazo. O texto escrito tem de suprir, portanto, a ausência da situação, fornecendo o maior número possível de pistas para esclarecer o seu sentido, a sua intenção. Entretanto, essas condições não pressupõem que aquele que escreve deve ignorar seu interlocutor. Critérios de adequação continuam a existir: em uma carta pessoal, como o interlocutor é conhecido, informações podem ser omitidas porque serão recuperadas devido aos conhecimentos compartilhados por produtor e receptor; em um editorial, como o leitor é um público relativamente determinado quanto a grau de escolaridade, classe econômica ou ideologia política, o jornalista deve estar sintonizado com

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suas expectativas (escolha do assunto, grau de aprofundamento da análise, referência a conhecimentos prévios).

São inúmeras as tentativas de reproduzir as características da oralidade, tanto na literatura como nos meios de comunicação de massa, com o objetivo de garantir mais veracidade aos personagens criados em romances, poemas, filmes e novelas. Na mídia televisiva e radiofônica, não se encontra esse tipo de oralidade que depende, exclusivamente, da situação. Na verdade, são textos escritos realizados oralmente, sem apresentar as características típicas do texto oral.

Embora possa ser reelaborado, o texto escrito - um conto, por exemplo - não deixa perceber as marcas de sua elaboração: apresenta-se acabado, coeso, com seqüência temporal, pressupondo a articulação de idéias e de aspectos lingüísticos. Já o texto conversacional está sempre em andamento, inclusive com mudança de tema devido à negociação entre as partes.

Grau de formalidade da situação

No seu dia-a-dia, o agente verbal entra em contacto com diferentes interlocutores, em situações sociais que apresentam graus distintos de formalidade. Em função do grau de intimidade entre os interlocutores, define-se o assunto, a forma de abordá-lo, o detalhamento do conteúdo, a escolha do registro, a seleção das palavras, a organização do texto. Quando os interlocutores estabelecem uma relação com alto grau de intimidade (em família, entre amigos), o grau de formalidade da situação é extremamente reduzido e é maior a incidência de implícitos. Por outro lado, em certos ambientes profissionais (reuniões, palestras, negócios), o grau de formalidade aumenta em função da reduzida intimidade entre os interlocutores, o que exige explicitação das idéias, estruturação mais complexa das frases, vocabulário mais preciso.

Implícitos

Para que os dados do contexto de produção possam ajudar na compreensão do texto, é preciso que o leitor realize inferências, ou seja, perceba informações implícitas e pressupostos. Isso ocorre porque o processo de leitura vai além da mera decodificação linear dos componentes semânticos dos vocábulos utilizados no enunciado.

O ouvinte/leitor pode reconhecer e compreender as palavras, mas ser incapaz de perceber satisfatoriamente o sentido do texto como um todo, porque o texto nem sempre fornece todas as informações possíveis. Há elementos implícitos, subentendidos, que precisam ser recuperados, a partir ou não de elementos presentes no texto. Esses implícitos só podem ser descobertos por um trabalho de conjectura feito a partir de uma avaliação global da situação comunicativa, por meio da recuperação das intenções do interlocutor. Por isso, o leitor/ouvinte precisa estabelecer relações dos mais diversos tipos entre os elementos do texto e o contexto, de forma a interpretá-lo adequadamente.

O exemplo seguinte ajuda a entender essa noção: Maria foi ao cinema e assistiu a um filme sobre dinossauros. Lendo essa frase, o ouvinte/leitor recupera os conhecimentos relativos ao ato de ir ao cinema: existem cadeiras, tela, bilheteria; há uma pessoa que vende bilhetes, outra que os recolhe na entrada; a sala fica escura durante a projeção etc. Enfim, isso não precisa ser dito explicitamente. Se assim não fosse, que extensão teriam os textos para fornecer, sempre que necessário, todas essas informações? Se, por um motivo qualquer, Maria não conseguiu assistir ao filme inteiro, essa informação deve ser explicitada, porque o esperado é que a pessoa assista ao filme até o final. Além disso, não é preciso dizer que ela voltou do cinema, porque também é uma informação óbvia.

Quando alguém se dirige a outra pessoa, dizendo Ufa, que calor, hein!, pode estar implícita a sugestão de abrir a janela ou ligar o ventilador, sem um pedido direto. A mensagem só será entendida se o interlocutor estiver atento à situação, interpretando possíveis gestos e expressões faciais. Também as piadas são textos que exigem inferências por parte do ouvinte/leitor, já que seu conteúdo ultrapassa o âmbito da mera significação das palavras, jogando sim com uma contextualização mais ampla e com dados que são de conhecimento restrito de um grupo social, de uma comunidade específica, de um momento histórico. Não é à toa que, às vezes, não se entendem piadas de americanos e ingleses, que se consideram grandes humoristas. A falta de conhecimento das referências culturais, contextuais ou situacionais das suas piadas impede que as inferências necessárias sejam feitas.

A implicatura é um sentido derivado atribuído a um enunciado depois de constatar que seu sentido literal é irrelevante para a situação. Ao perguntar “Qual é a função de Pedro no jornal?”, a resposta

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“Pedro é o filho do chefe” permite depreender que Pedro não tem função nenhuma, que Pedro não faz nada ou que Pedro não precisa fazer nada.

Um exemplo de informação pressuposta é a frase Pedro parou de fumar, que veicula a pressuposição de que Pedro fumava antes. Pedro passou a trabalhar à noite contém a pressuposição de que antes ele trabalhava de dia, mas pode conter também a pressuposição de que ele não trabalhava antes, dependendo da ênfase colocada em passar a ou em à noite. Vale lembrar que, nesses exemplos, a pressuposição é marcada lingüisticamente pela presença dos verbos parar de, passar a.

Nem as implicaturas nem as pressuposições fazem parte do conteúdo explicitado. A diferença entre elas está no fato de que, com respeito às pressuposições, a estrutura lingüística nos oferece os elementos que permitem depreendê-las; já com as implicaturas isto não acontece, o suporte lingüístico é menos óbvio e, portanto, elas dependem principalmente do conhecimento da situação, compartilhado pelo falante e pelo ouvinte. As pressuposições fazem parte do sentido literal das frases, enquanto as implicaturas são estranhas a ele.

Por exemplo, antes mesmo de ler uma notícia, pode-se tirar algumas conclusões porque a manchete consegue resumir bem o seu conteúdo e o leitor complementa as informações com base em sua experiência de vida. Além disso, ela é responsável por dar indícios, por revelar um pouco do ponto de vista do autor do texto.

Flamengo vende seus melhores jogadores (Pode-se concluir que o clube está em crise financeira, pois um clube que quer vencer não deve vender seus melhores jogadores.)

Só agora sai a lista dos convocados para a seleção (Pode-se concluir que o Brasil está atrasado para convocar os jogadores porque aparecem as palavras só agora.)

Indústria demite dois mil funcionários só este mês (Pode-se concluir que as indústrias estão em crise econômica, porque o número de demissões é alto, se combinado à expressão só este mês.)

A depender da vivência de cada leitor, certas manchetes podem admitir várias informações implícitas. Por exemplo:

Brasil assume a liderança regional na produção de gado.

a) O Brasil mudou os métodos de criação para melhorar os índices.b) O Brasil estava em má situação entre os países da região.c) Os responsáveis pelas mudanças agiram certo.d) O Brasil está melhorando em tudo, inclusive na produção de gado.

Microsoft vai enfrentar novo processo.

a) A Microsoft já enfrentou outros processos antes.b) A Microsoft fez alguma coisa errada para sofrer processos.c) A justiça americana funciona, mesmo para os ricos, ao contrário da brasileira.d) A Microsoft pode perder a posição de liderança na área de Informática.

Índice de preços tem a maior alta do ano.

a) Os preços estão subindo cada vez mais.b) Os preços estão sem controle.c) A política econômica não está funcionando.d) É preciso fazer alguma coisa para parar esse processo de alta de preços.

2. Gêneros textuais

Assim como é grande a diversidade de situações sociais, também é grande a diversidade de textos destinados a atender a diferentes intenções comunicativas. Um diálogo familiar, uma exposição pedagógica, um pedido de emprego, uma dissertação escolar, um artigo de jornal, um romance são textos que preenchem distintas finalidades, o que determina a forma com que cada um desenvolve a organização do conteúdo referencial, a estrutura frasal, o grau de formalidade da linguagem, o tipo de vocabulário, as marcas do tempo e lugar em que foi produzido.

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De acordo com sua experiência, os interlocutores desenvolvem determinadas expectativas a respeito dos textos. Por exemplo, a expectativa é que uma bula tenha como objetivo informar o doente sobre as propriedades do remédio, suas indicações, a posologia e os efeitos colaterais, e não que seja um texto que vise a convencê-lo dos benefícios do medicamento. Por isso, as características de uma bula e de uma propaganda são bem distintas, já que cada um desses gêneros tem uma intenção comunicativa própria.

A tabela exemplifica os objetivos comunicativos de alguns gêneros textuais:

Gêneros textuais Objetivo comunicativo predominante

diário, biografia relatar experiências

conto de fadas, romance, lenda contar histórias

editorial, carta de leitor, ensaio, resenha crítica, dissertação argumentativa

contestar, questionar, debater, defender opinião

conferência, artigo de div. científica, relatório expor, detalhar uma informação

instrução, receita, regra de jogo, regulamento ensinar a realizar uma ação

propaganda estimular a mudança de comportamento

Diferentes contextos geram, portanto, objetivos distintos de leitura, determinando a escolha de procedimentos que tornarão o processo de leitura mais eficaz:

obter uma informação específica; obter uma informação geral; experimentar prazer estético; seguir instruções (de montagem, de orientação geográfica); aprender um novo conceito; revisar um texto; construir repertório - temático ou de linguagem - para produzir outros textos; apresentar oralmente um texto a uma audiência (em conferências, saraus); reler para verificar se houve compreensão.

A grande maioria dos gêneros textuais não apresenta rigidez de características estruturais: geralmente um gênero não possui uma forma fixa, acabada. Seja um artigo de opinião, uma entrevista, uma propaganda ou uma carta de leitor, cada gênero apresenta características que o identificam, ou seja, mostra uma certa regularidade, o que não significa que tenha uma forma cristalizada. Além disso, alguns deles, como as reportagens, podem conter outros gêneros textuais, como notícias, entrevistas, gráficos, tabelas, ilustrações, artigos de opinião etc.

Na escola, alguns gêneros são utilizados como instrumentos no processo de ensino/ aprendizagem. A dissertação escolar é um exemplo de gênero que contribui para desenvolver habilidades específicas de leitura e produção textual: expor detalhes sobre um tema, estabelecer relações lógicas entre idéias pertinentes a esse tema, explicitar argumentos e comprová-los, reunir dados e depoimentos que comprovem as idéias defendidas.7

A diferença entre os gêneros se manifesta no grau de detalhamento da informação, na presença/ausência da opinião do produtor do texto, no tema escolhido, na utilização de gráficos ou imagens, no uso da ironia ou do humor, no grau de formalidade do texto, no tipo de veículo, na persuasão pretendida, entre outras. Todas essas variáveis têm repercussões na forma de estruturação

7 “Há gêneros escolares que funcionam na escola para ensinar: trata-se do gênero escolar como instrumento de comunicação na instituição escolar, dos quais a instituição necessita para poder funcionar. Ela, então, cria uma série desses gêneros (regras, explicações, exposições, instruções etc.), que devem funcionar porque, sem eles, a própria instituição não teria condições de funcionar. Seriam os gêneros escolares 1, que Rojo vai chamar de gêneros escolares (propriamente ditos); e há os gêneros escolares 2¸ a que Rojo denomina gêneros escolarizados, que são objeto de ensino/aprendizagem (gêneros secundários do discurso, transpostos para a sala de aula): narração escolar, descrição escolar, dissertação. Este último seria o protótipo por excelência desse tipo de gêneros, visto que é feito para a escrita, para o ensino da escrita, para toda a escolaridade e não existe, evidentemente, fora da escola.” (Koch, Ingedore. Desvendando os sentidos do texto, p. 59)

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lingüística do texto, por exemplo, no vocabulário, na complexidade sintática, na utilização de linguagem figurada, nos processos de concordância verbal e nominal.

3. Modos de organização do discurso

Nas atividades de leitura e produção de textos, devem-se levar em conta os gêneros textuais e os diferentes modos de organizá-los.

Usa-se a expressão “modos de organização do discurso” para designar uma espécie de seqüência teoricamente definida pela natureza lingüística de sua composição (aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas). Em geral abrangem categorias conhecidas como narração, argumentação, exposição, descrição, injunção e diálogo. Já a expressão “gênero textual” refere-se aos textos encontrados na vida diária que apresentam características sociocomunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, composição e estilo característicos. Se os modos de organização do discurso são em número limitado, os gêneros são inúmeros.

Cada um desses modos de organização do discurso se realiza por um modelo de encadeamento lógico dos conteúdos e por determinadas características lingüísticas: morfossintáticas, semânticas e lexicais.

É bom lembrar, no entanto, que esses diferentes modos de organização nem sempre aparecem isoladamente na construção do texto. Em geral, há uma imbricação entre eles. Em romances e contos, por exemplo, a narração do enredo conjuga-se com a descrição do espaço e dos personagens. Já em um roteiro de experiência, é possível combinar exposição, descrição e injunção. A abordagem de assuntos polêmicos que fazem parte do dia-a-dia pode conjugar a argumentação na defesa de pontos de vista com passagens narrativas e descritivas. Um texto publicitário pode resultar da combinação da descrição do produto, da exposição dos motivos para escolher o produto e da tentativa de persuadir o leitor a utilizar o produto com base em estratégias injuntivas.

Assim, na definição do modo de organização do discurso, predomina a identificação de determinadas seqüências textuais elaboradas de acordo com estratégias lingüísticas relevantes para a realização dos objetivos discursivos. Já na definição do gênero textual prevalecem os critérios de circulação sócio-histórica, tema, funcionalidade, finalidade.

Cada gênero textual pode ser constituído por seqüências textuais de base narrativa, descritiva, expositiva, argumentativa, injuntiva e dialogal, com características e objetivos definidos. Assim:

A) Narração

A seqüência textual narrativa tem por objetivo relatar fatos que ocorreram em determinado tempo e lugar, envolvendo personagens:

as seqüências narrativas apresentam uma sucessão de fatos reais ou imaginários, tendo, portanto, como fundamento, as ações e as pessoas que delas participam;

os tempos verbais e os advérbios marcadores de tempo e espaço são elementos essenciais para a coerência do texto de base narrativa, permitindo a ordenação temporal e referencial dos fatos enumerados;

ao lado das características narrativas, um texto pode apresentar traços de outros modos de organização interagindo com a narração, principalmente a descrição;

pronomes e expressões nominais (sinônimos, hiperônimos, antônimos, expressões metafóricas) são recursos de progressão textual recorrentes devido à necessidade de se manter a coerência no relato das ações dos personagens;

a estrutura narrativa é a base de determinados gêneros literários, como a epopéia, o romance, a novela, o conto;

a narração está presente, no dia-a-dia, sob a forma de cantigas de roda, contos de fada, poemas de cordel, música popular, piadas, histórias em quadrinhos.

Acontecimento

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Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos.Clarice Lispector

A tarde passava lerda, sufocando os que se arriscavam a sair de casa. O mormaço do asfalto invadia os carros, e os que vinham de ônibus arranjavam um jeito de pôr a cabeça na janela, como se lhes faltasse o ar.

Na ânsia de desamarrar a gravata – que me sufocava – levantei o queixo e, sem nenhuma intenção além do gesto involuntário, olhei para cima. Naturalmente, após afrouxar o laço, abaixei a cabeça... e só aí me dei conta do que “tinha” visto. Mirei de novo, incrédulo, o sol forte quase me ofuscando a visão. Um nó na garganta me impediu de gritar; reparei em volta: o mais absoluto descaso, ninguém notara o mesmo que eu – ou fingiam de maneira perfeita.

Tentei me comunicar com o vizinho de poltrona: ele me encarou displicente – um ligeiro sorriso no canto do lábio -, voltando o rosto para o outro lado; à minha frente todos se abanavam, alguns limpando o suor com as mãos, respirando fundo. Virei para a cadeira de trás, uma senhora rezava em meio a balbucios, de olhos fechados e os dedos tateando as contas do rosário – a seu lado um homem gordo dormia com a cabeça escorada na vidraça.

Não tive outra saída se não observar de novo. E aquilo continuava lá como se houvesse estado ali sempre, e ninguém notava, nem percebia meu gesto. Nas calçadas todos caminhavam como se nada estivesse prestes a acontecer. Nenhum dava o mínimo sinal de haver percebido... e agora eu duvidava de tudo: do ônibus que parecia irreal, das pessoas que deviam ter saído de um sonho, desse calor infernal, e daquele prenúncio de tudo o que estava para acontecer.

Afrouxei de vez o colarinho, larguei a pasta, afastei o mais que pude os joelhos... e respirei bem fundo por alguns minutos. Quando despertei, na esperança de que tudo fosse apenas um pesadelo, vi que nada tinha mudado, a senhora gorda agora se desmanchava devagarinho, os outros tornavam-se avermelhados, uma fumaça negra subia-me dos ombros e eu não tive mais coragem de olhar para cima, então baixei a cabeça e esperei.

(SALGUEIRO, Pedro et alii. Geração 90. São Paulo: Boitempo, 2001, p. 250.)

O conto é uma narrativa que se caracteriza pela condensação das informações, o que faz dele uma forma concisa e breve: os acontecimentos devem ser concentrados nos seus aspectos essenciais e toda a atenção deve voltar-se para a seqüência de ações que compõem a situação principal vivida pelos personagens. Por isso, os verbos no pretérito são um recurso indispensável à narração.

No conto Acontecimento, tem-se um primeiro parágrafo descritivo, para apresentar a atmosfera sufocante do ambiente, cenário em que a história vai se passar: o calor intenso sobre a cidade e seus habitantes. Essa característica tem importância fundamental na história porque o calor intenso provoca a cadeia de ações que levam o protagonista a descobrir “algo incrível”: desamarrou a gravata, levantou o queixo, olhou para cima, viu algo, afrouxou o laço, olhou para baixo, mirou novamente, reparou em volta.

Por ser um texto de base narrativa, as ações do personagem seguem uma ordem temporal (em que uma ação ocorre antes da outra) e um encadeamento causal (em que uma ação provoca outra como conseqüência): levantei o queixo e olhei para cima (além da ordem temporal, há uma relação de causa/conseqüência); quando despertei, vi que nada tinha mudado (relação temporal); eu não tive mais coragem de olhar para cima, então baixei a cabeça e esperei (além da ordem temporal, há uma relação de causa/conseqüência).

Vários recursos de referenciação contribuem para o encadeamento da narrativa: pronomes (os que, lhes, me, eu, ele, alguns, tudo, ninguém, nenhum, nada, desse, daquele, outro, aquilo); expressões nominais (vizinho de poltrona, senhora gorda, pessoas); expressões espacio-temporais (aí, de novo, agora, de trás, nas calçadas, para cima, para o outro lado, à minha frente, em volta, então, a seu lado). A alternância entre as formas verbais do pretérito perfeito (levantei, olhei, abaixei, mirei, impediu, reparei, virei, afrouxei, afastei, respirei, despertei, baixei, esperei) e do pretérito imperfeito (arriscavam, fingiam, abanavam, rezava, dormia, continuava, notava, caminhava) contribui para a progressão do texto.

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B) Descrição

A seqüência textual descritiva tem a finalidade de caracterizar a paisagem, o ambiente, as pessoas ou os objetos, para oferecer ao leitor /ouvinte a oportunidade de visualizar o cenário em que uma ação se desenvolve e as características dos personagens que dela participam:

a descrição pode ter uma finalidade subsidiária na construção de textos de vários gêneros, funcionando como um plano de fundo, que explica e situa a ação (na narração) ou que comenta e justifica a argumentação;

os advérbios de lugar são elementos essenciais para a coerência textual, permitindo a localização espacial dos cenários e personagens descritos;

a descrição detém-se sobre objetos e seres considerados em sua simultaneidade, e os tempos verbais mais freqüentes são o presente do indicativo no comentário e o pretérito imperfeito do indicativo no relato;

a descrição está presente no dia-a-dia, tanto na ficção (nos romances, nas novelas, nos contos, nos poemas) como em outros gêneros textuais (nas obras técnico-científicas, nas enciclopédias, nas propagandas, nos textos de jornais e revistas).

A tarde passava lerda, sufocando os que se arriscavam a sair de casa. O mormaço do asfalto invadia os carros, e os que vinham de ônibus arranjavam um jeito de pôr a cabeça na janela, como se lhes faltasse o ar.

(1º parágrafo do conto Acontecimento, de Pedro Salgueiro)

O olho-de-cão é um pequeno peixe marinho que chama a atenção por causa dos seus olhos enormes, que chegam a ser maiores que o comprimento do focinho, e sua cor vermelha bastante intensa.

Tem alto valor culinário e normalmente é encontrado na medida média de 35 centímetros de comprimento. Tem o corpo baixo e tipicamente alongado, com a coloração avermelhada mais intensa (rubro), orlas mais escuras margeando as nadadeiras dorsal e anal, enquanto as ventrais são negras.

A nadadeira caudal tem a borda reta e quadrada e lobos, inferior e superior, muito prolongados, com raios nas barbatanas. Já a nadadeira dorsal apresenta dez espinhos e onze raios, ao passo que a anal apresenta três espinhos e oito raios.

(Revista Pesca e companhia. Atol Editora Ltda., São Paulo, nº 137, maio de 2007, p.44)

Os dois fragmentos têm características marcadamente descritivas, que ajudam o leitor na visualização da cena (1º fragmento) e do peixe olho-de-cão (2º fragmento).

No 1º fragmento, a descrição do ambiente é realizada pelos substantivos tarde, mormaço, tarde, asfalto, carros, ônibus, janela; pelo adjetivo lerda; pelos verbos no pretérito imperfeito do indicativo arriscavam, invadia, vinham, arranjavam, e no gerúndio sufocando.

No 2º fragmento, a descrição do peixe é realizada pelos substantivos olhos, focinho, corpo, orlas, nadadeiras, borda, barbatana, espinho, raio; pelos adjetivos pequeno, enorme, intensa, alto, baixo, alongado, avermelhada, caudal, reta, quadrada, inferior, superior, prolongados, dorsal, anal; pelos verbos eminentemente descritivos ser, ter, apresentar no presente do indicativo.

C) Exposição

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A seqüência textual expositiva tem a finalidade de apresentar informações detalhadas sobre um determinado tema, analisando suas especificidades, de modo a compor uma visão abrangente sobre o objeto estudado:

as idéias devem ser apresentadas de forma simultânea, como na descrição; as seqüências expositivas apresentam estrutura sintática complexa para expressar relações

lógicas de causa/conseqüência, contraposição, explicação, comparação, definição, comprovação, detalhamento;

o vocabulário mais genérico e de caráter abstrato predomina, apresentando traços de univocidade;

as seqüências expositivas devem ter clareza e objetividade na apresentação das idéias para que o leitor acompanhe o raciocínio do autor;

as seqüências expositivas se colocam na perspectiva do conhecer, de forma isenta, impessoal, abstraindo-se do tempo e do espaço;

uma explicação de um livro didático, um artigo de uma revista científica, uma reportagem, uma dissertação escolar se constroem com base em seqüências expositivas.

A última fronteira

O Brasil dispõe de uma rigorosa legislação de proteção ambiental. Ela impõe aos projetos de novas hidrelétricas exigências minuciosas para reduzir ao máximo os efeitos negativos sobre a natureza e os moradores das proximidades. Na prática, as regras são usadas mais para bloquear obras de infra-estrutura do que para fiscalizar e proteger a natureza. Pelos dados do Ministério do Meio Ambiente, só no período de doze meses anteriores a agosto de 2006, 13 100 quilômetros quadrados de Floresta Amazônica – o equivalente a meio estado de Alagoas – foram derrubados para abrir espaço para a pecuária, a soja e outros fins. Os dados da devastação acelerada comprovam que a ameaça ambiental não está na construção de novas hidrelétricas, sobretudo porque estas adotam hoje tecnologias menos agressivas à natureza. O que aumenta o risco de o avanço energético na Floresta Amazônica fugir ao controle é o avassalador fracasso demonstrado pelo estado brasileiro no cumprimento da tarefa de fiscalizar e impedir a destruição de áreas que devem ser preservadas.

(Revista Veja. São Paulo, 04 de abril de 2007)

Essa reportagem se constitui como um texto de base expositiva porque busca atender às exigências de informação mais ampla sobre um determinado assunto – a devastação da Floresta Amazônica. Além de noticiar os fatos, procura alertar os leitores da revista para questões que lhe dizem respeito e, ao mesmo tempo, faz uma crítica à forma como esse problema vem sendo tratado pelo poder público.

O presente do indicativo é o tempo verbal utilizado como recurso expositivo em todo o texto: dispõe, impõe, comprovam, está, adotam, aumenta; uma ocorrência de verbo na voz passiva foi usada para narrar um fato acontecido que comprova o aumento da devastação, tema da reportagem: 13 100 quilômetros quadrados foram derrubados.

Observa-se também o emprego da comparação e da oposição de idéias com o objetivo de esclarecer uma informação: as regras são usadas mais para bloquear obras de infra-estrutura do que para fiscalizar e proteger a natureza; a ameaça ambiental não está na construção de novas hidrelétricas ... o que aumenta o risco (...), sendo que, na oposição, foi apagado o conector mas.

O vocabulário é objetivo, pela própria finalidade do texto, mas observam-se ocorrências de adjetivos de caráter valorativo, como em rigorosa (legislação), (exigências) minuciosas, (efeitos) negativos, (devastação) acelerada, (tecnologias menos) agressivas, avassalador (fracasso).

Para dar ao leitor uma idéia precisa do tamanho da área que foi derrubada (13 100 quilômetros é uma superfície difícil de imaginar), o autor usou um dado concreto – informou que essa área corresponde a metade do estado de Alagoas.

D) Argumentação

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A seqüência textual argumentativa busca convencer, influenciar, persuadir alguém:

as seqüências argumentativas têm como objetivo apresentar com clareza hipóteses, justificar essas hipóteses com base em argumentos, estabelecer relações lógicas entre os argumentos e contra-argumentos, exemplificar e encaminhar conclusões;

o enunciador, baseado na reflexão e no raciocínio, procura convencer o seu ouvinte/leitor e levá-lo a dominar o conhecimento pretendido;

muitos recursos lingüísticos são utilizados para criar estruturas mais complexas do que as observadas nas seqüências narrativas ou descritivas: estruturas subordinadas; conectores lógicos de causa/efeito, contradição e conseqüência; vocabulário abstrato; formas verbais no modo subjuntivo; pressuposições e inferências;

um arrazoado jurídico, um texto publicitário, um editorial de jornal se constroem com base principalmente em seqüências argumentativas.

Raiz da crise

A gravidade da crise de segurança pública por que passa o país não permite que haja um diagnóstico único. Existem algumas razões para explicá-la de maior peso que outras, é certo. Mas, assim como um paciente na UTI, várias complicações somadas produzem um quadro clínico preocupante. Não há dúvidas de que um desses fatores que preponderam sobre os demais é a baixa capacidade de o Estado punir de fato o criminoso. Isso conduz a uma cultura da impunidade, afetando a todos: as vítimas que se tornam cada vez mais indefesas; e os criminosos, cada vez mais ousados por não terem o que temer.

Na raiz dessa cultura da impunidade, estágio próximo ao da barbárie, há também ramificações múltiplas. Uma delas, polêmica, é a inadequação da anacrônica legislação penal brasileira, feita para um país que não existe mais – sem quadrilhas organizadas, com vínculos internos e externos, fortemente armadas. Era um país em que as drogas ainda não funcionavam como dínamo do banditismo.

Há correntes jurídicas que preferem a eficiência na aplicação da lei existente do que mudanças constantes na legislação. Seria uma opção válida em outros tempos. Como se vive em um quadro de emergência nacional, todas as frentes precisam ser atacadas. Bem ou mal, como vem sendo feito. O congresso, a partir do assassinato do menino João Hélio, voltou a cumprir a agenda de votações de importantes projetos de lei na área de segurança. Entre eles, o do agravamento das regras de progressão de penas, inadequadas para a situação em que nos encontramos. Há mais ainda a votar, principalmente para acelerar a tramitação de inquéritos e processos. Também não se discute que todas as instituições envolvidas com a repressão ao crime têm que ser modernizadas.

É inacreditável que bandidos como S.G.de P., suspeito de ter assassinado o músico francês na Dutra, mesmo condenado por um homicídio tenha recebido o benefício da liberdade condicional sem maiores cuidados. Claro, a primeira vez que saiu não voltou. Resultado: matou mais sete.

(Rio de Janeiro, O Globo, 22 de março de 2007)

O primeiro parágrafo do texto A raiz da crise apresenta o tema, que é o grave problema de segurança no país. Nesse parágrafo, o autor apresenta como causa maior do problema a impunidade por parte do Estado, incapaz de atuar com o rigor que a situação requer. É importante notar, nesse parágrafo, a presença de um artifício usado pelo autor: a comparação. A crise é tratada como se fosse um doente. Para essa crise não há um diagnóstico apenas, pois são muitas as complicações no caso dessa doença. Ainda nesse parágrafo, é mencionada a impunidade, decorrente da incapacidade do Estado para gerenciar a crise.

No segundo parágrafo, ao lado da cultura da impunidade, o autor apresenta uma outra causa para o estado de insegurança em que vive a sociedade – a inadequação da legislação penal, em descompasso com o avanço da criminalidade.

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O terceiro parágrafo fornece detalhes que comprovam a tese apresentada no primeiro parágrafo: diferentes pontos de vista das correntes jurídicas, retomada da discussão do problema somente quando um fato muito grave se repete, necessidade de modernização das instituições.

Concluindo o texto, o último parágrafo critica a falta de seriedade na concessão de liberdade condicional a criminosos comprovadamente perigosos.

Por se tratar de uma seqüência argumentativa, alguns recursos podem ser observados:

uso de verbos no presente do indicativo para mostrar que o problema da segurança é atemporal, está enraizado na sociedade: passa, (não) permite, existem, produzem, preponderam, é, conduz, tornam, há, preferem, vive, discute, têm.

presença de adjetivos que reforçam a opinião do autor: (diagnóstico) único, (quadro) clínico preocupante, baixa (capacidade), (ramificações) múltiplas, polêmica, anacrônica (legislação), (quadrilhas) organizadas, armadas, (vínculos )internos e externos, (regras) inadequadas, (vítimas) indefesas, (criminosos) ousados.

emprego de substantivos que evidenciam e reforçam o tema do texto: gravidade, segurança, impunidade, vítimas, criminosos, barbárie, quadrilhas, banditismo, crime, quadrilhas, banditismo, homicídio, penas, bandidos.

emprego de frases resumitivas, que aproximam o autor do leitor, como se estivessem em uma interação face a face: Claro, a primeira vez que sai não voltou. Resultado: matou mais sete.

emprego de contrastes para dar força à argumentação: vítimas cada vez mais indefesas X criminosos cada vez mais ousados; diagnóstico único X ramificações múltiplas; eficiência na aplicação da lei existente X mudanças constantes na legislação.

vocabulário voltado para o campo associativo da saúde, reforçando a comparação da crise a uma doença: gravidade, diagnóstico, paciente, UTI, complicações, quadro clínico, emergência.

Esses são alguns recursos lingüísticos presentes em textos de base argumentativa, escritos geralmente sobre temas polêmicos com a finalidade de mostrar e defender um ponto de vista e, sobretudo, de levar os leitores a uma reflexão crítica e a um posicionamento.

E) Injunção

A seqüência textual injuntiva tem o objetivo de detalhar os passos necessários para ensinar como fazer ou realizar uma ação:

as seqüências injuntivas dirigem-se ao leitor, utilizando verbos de procedimento, modo imperativo ou infinitivo, gráficos e desenhos;

os textos que têm como base a injunção dividem-se, geralmente, em duas partes: na primeira, apresentam aquilo que vai ser utilizado: ingredientes (se o texto for uma receita); materiais (se o texto tratar de uma experiência); na segunda, aparecem as instruções propriamente ditas (como os ingredientes devem ser misturados, como os materiais devem ser empregados);

os vocábulos são usados com precisão, em um sentido único, de maneira a possibilitar eficácia na emissão e compreensão de mensagens.

receitas culinárias, manuais de instrução, regras de jogo, bulas de remédio se constroem com base principalmente em seqüências injuntivas.

15 dicas de segurança com tratores

Você sabe operar um trator com segurança, de maneira a evitar acidentes consigo mesmo e com as outras pessoas? Então veja algumas dicas que podem ajudá-lo.

1 – O acesso ao trator deve ser sempre pelo lado esquerdo, para evitar esbarrões acidentais nos pedais e alavancas.

2 – Quando estiver em operação de transporte ou trafegando por estradas, os pedais dos freios devem ficar unidos para, se necessário, serem acionados ao mesmo tempo.

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3 – Evite fazer mudanças de marcha com o trator em movimento, especialmente em subidas e descidas.

4 – Não dirija o trator em velocidade acima de 10km/h. Trator foi feito para tracionar, não para correr.

5 – Reduza a rotação do motor para fazer curvas ou manobras nas cabeceiras da área trabalhada.

6 – Não use a embreagem para reduzir a velocidade do trator.

7 – Estacione o trator sempre com os pedais unidos e travados e com o estrangulador puxado.

8 – Não deixe a chave de partida no contato.

9 – Antes de colocar o trator em movimento, certifique-se de que não há pessoas ou obstáculos próximos à máquina.

10 – Não transporte pessoas no trator, em hipótese alguma.

11 – Não esqueça o pé “descansando” sobre o pedal da embreagem.

12 – Não deixe o motor funcionando quando o trator estiver em ambiente fechado.

13 – Não dirija o trator muito perto de valetas e barrancos.

14 – Para descer uma rampa com o trator, utilize a mesma marcha para a subida. Nunca desça rampas em ponto-morto ou com o pé na embreagem.

15 – Evite descer rampas tracionando carretas em terrenos molhados.

(Revista Cooperando. São José dos Campos (SP), novembro de 2005)

O texto 15 dicas de segurança com tratores tem como base o modo de organização injuntivo. Devido ao seu objetivo comunicativo - levar o leitor à utilização de uma máquina com segurança - sua estrutura se baseia em seqüências imperativas (evite, dirija, reduza, use, estacione, deixe, certifique-se, transporte, esqueça, utilize, alguns deles precedidos do advérbio não); vocabulário preciso relacionado à máquina (pedais, alavancas, freios, marcha, tracionar, rotação, motor, embreagem, estrangulador, chave de partida) e ao ato de conduzir um veículo (transporte, trafegando, estradas, subidas, descidas, velocidade, curvas, manobras, rampa, ponto-morto), o que contribui para que a linguagem seja objetiva, simples e didática, atendendo aos objetivos desse gênero textual.

Normalmente, em textos de base injuntiva as etapas necessárias para a execução do objetivo são detalhadas passo-a-passo. Por meio de verbos e substantivos, constrói-se determinada ordem de procedimentos importante para a tarefa, apresentando inicialmente informações mais genéricas, seguidas por informes mais específicos. Esse encaminhamento orienta o leitor, fornecendo ao texto o encadeamento necessário para sua compreensão. Nesse texto, em particular, não existe o passo-a-passo, pois o que se pretende é ensinar alguns cuidados que devem ser tomados com esse tipo de veículo. Por isso não há necessidade de uma ordenação das etapas.

Para estimular a leitura do texto e levar o leitor a seguir esses conselhos, o texto começa com uma pergunta: Você sabe operar um trator com segurança, de maneira a evitar acidentes consigo mesmo e com as outras pessoas?

Algumas “dicas” são seguidas de uma finalidade (marcada pelo conector para), que complementa o conselho: O acesso ao trator deve ser sempre pelo lado esquerdo, para evitar esbarrões acidentais nos pedais e alavancas (esta, em especial, contém uma advertência velada - se você não fizer desse modo, pode ter surpresas desagradáveis); Reduza a rotação do motor para fazer curvas ou manobras nas cabeceiras da área trabalhada. Não use a embreagem para reduzir a velocidade do trator.

Por se tratar de um conjunto de “dicas” de segurança, é interessante observar a ocorrência de verbos com sentido negativo (evitar, reduzir), do advérbio nunca e a alta freqüência do advérbio não (não dirija, não use, não transporte etc.)

Page 19: Reflexões sobre texto e ensino

F) Diálogo

A seqüência textual dialogal tem o objetivo de reproduzir a troca de idéias e informações sobre determinado assunto entre dois ou mais interlocutores:

o diálogo se constrói de forma seqüencial, pois cada fala pressupõe a anterior, em uma continuidade que segue uma linha lógica. Dessa forma, cada fala tem ligação com a anterior para que a conversa tenha coerência;

os interlocutores interagem para construir um sentido que se baseia no seu conhecimento de mundo, nas circunstâncias em que a conversa acontece e no conhecimento que cada um deles tem do assunto;

cada falante precisa articular bem sua fala a fim de prender a atenção do interlocutor, que também deve estar atento ao que é dito para processar a fala do outro e responder de forma coerente;

as seqüências dialogais se constroem a partir de turnos conversacionais (um fala, o outro ouve), mas os interlocutores são, alternadamente, falante e ouvinte, e ambos contribuem para o desenvolvimento do assunto em evidência;

essas seqüências são planejadas no momento em que acontecem, não há elaboração prévia;

as seqüências dialogais apresentam características lingüísticas próprias, entre as quais se incluem as pausas, as interrupções, as retomadas, as correções, a presença de marcadores conversacionais, que desempenham diferentes funções na interação.

entrevistas, debates, mesas-redondas, conversas espontâneas se constroem com base principalmente em seqüências dialogais.

contos, romances e crônicas utilizam seqüências dialogais para apresentar a fala dos personagens, porém é no teatro que o diálogo existe em sua totalidade, pois o texto é todo em seqüências dialogais.

Pequena crônica familiar

A família esperava reunida no sofá da sala, ansiosos, o jogo decisivo da copa do mundo. BRASILXARGENTINA, uma final clássica. Seu Pereira admirava boquiaberto a TV de plasma 41 polegadas, que comprara especialmente para o evento. Rute, na cozinha, preparava os lanches, e vovó Dolores tricotava tranqüila em um canto do sofá.

O momento tão esperado chega e é comemorado com alvoroço. Vovó Dolores agora cochilava gostosamente no seu canto do sofá, quando o Brasil marcou um gol contra. Como se programada, ao ouvir o grito de gol do Galvão Bueno, vovó levanta, e numa alegria explosiva, começa a cantoria:

-TODOS JUNTOS, VAMOS PRA FRENTE, BRASIL. SALVE A SELEÇÃO!!!

Meio receoso de estragar toda aquela comemoração, Joca, filho mais novo de Pereira e Rute, cutucou vó Dolores e disse:

- Vovó... Foi gol contra!

Sem graça vovó respondeu:

- Ah, foi gol contra, é? Daqui a pouco o Pelé entra em ação. Hoje eu quero ver o Garrincha marcar gol de pedalada.

Naquele momento Pereira sem querer disse:

- Mamãe, percebe-se que a senhora não entende nada de futebol mesmo!Que mané Pelé? Hoje quem bate um bolão é o Ronaldinho Gaúcho!

Apreensiva vovó Dolores respondeu:

- Quem é esse gaúcho? O jogo não é do Brasil?

-“Calaboca”, mamãe, olha o gol, olha o gol!

Galvão Bueno agora exclamava estrondosamente o seu grito tão conhecido:

- GOOOOOOOOOOOOOOOOLLLLLLLLLLLL!ÉÉÉÉÉÉÉDOBRASILLLLLLLL!!!

Page 20: Reflexões sobre texto e ensino

Vovó Dolores observava a euforia de Pereira que abraçava Rute, e Joca pulando e dançando, quieta no sofá. Implicado com aquilo Pereira perguntou:

- Por que não comemora, mamãe?

- Mas não foi gol contra? Não quero pagar mico (como diz o Joca) de novo! se explicou vovó Dolores

- Não, mamãe, agora foi gol mesmo.

Vovó Dolores levantou-se e começou outra farra:

- TODOS JUNTOS VAMOS... ESQUINDÔ, ESQUINDÔ! êêêêêê!!!!

- Já chega, mamãe, não acha? - disse Pereira, irritado.

- Nesta casa ninguém me compreende! lamentou-se Dolores. - Eu, uma velha torcedora incompreendida assistindo a uma final no mesmo recinto que vocês não dá certo. Vou-me embora, que aqui ninguém me quer mais.

Sob o alívio de seus familiares, vovó Dolores foi assistir ao jogo no quarto de Joca, onde estava a antiga TV.

E Pereira, Rute e Joça puderam assistir ao jogo em paz.

(Matheus Felipe. Publicado no Recanto das Letras em 11.06.06. http://64233161/search?q+cache:rIILvyIOynMJ:www.recantodasletras.com.br/04.7.2006)

Pequena crônica familiar é um texto que incorpora características próprias do modo de organização dialogal: a presença de elementos fáticos (é?, mamãe?, não acha?, calaboca, mamãe!), estruturas frasais simplificadas (Foi gol contra, Já chega, olha o gol) , troca de turno, discurso direto.

Para caracterizar os personagens, o narrador coloca-os em ação, falando e interagindo em torno de um tema. Por exemplo, Vovó Dolores não entende de futebol e isso aparece revelado em suas falas. O encadeamento do enredo se dá pela seqüência lógica do diálogo, quase dispensando a presença do narrador.

Por pretender retratar uma cena familiar, a crônica constrói sua coerência pelo uso de um vocabulário informal (calaboca, pagar mico, Que mané Pelé, esquindô) bem próprio da situação narrada. O campo semântico predominante é o de futebol (gol de pedalada, gol contra, torcedora, comemorar, jogo, final, Pelé, Garrincha, bate um bolão, gooooool, todos juntos vamos... pra frente Brasil).

4. CoerênciaA coerência é a relação que se estabelece entre o texto e os conhecimentos de mundo dos

interlocutores, garantindo a construção do sentido de acordo com as expectativas do leitor/ouvinte. Está, pois, ligada à compreensão, à possibilidade de interpretação daquilo que se diz, escreve, ouve, vê, desenha, canta etc. O leitor "processa" esse texto, é levado a refletir a respeito das idéias nele contidas. Pode, em resposta, reagir de maneiras diversas: aceitar, recusar, questionar, até mesmo mudar seu comportamento em face das idéias do autor, compartilhando ou não a sua opinião.

A coerência é, portanto, o resultado de processos mentais de apropriação do real e da configuração dos esquemas cognitivos que definem o saber sobre o mundo. Por isso, a coerência é decorrente de fatores das mais diversas ordens: lingüísticos, discursivos, cognitivos, culturais e interacionais.

O diálogo entre o texto e o contexto, entendido como a unidade maior em que a unidade menor está inserida, é relevante para a depreensão das relações de sentido que compõem a globalidade do texto. Elas devem obedecer a condições cognitivas gerais, satisfazendo aquilo que se sabe serem as relações lógico-semânticas entre estados de coisas: ordenação temporal e espacial, causalidade, entre outras. Essas relações se exteriorizam de diversas formas, entre elas o vocabulário, a combinação dos tempos verbais, a ordem de apresentação do conteúdo, a adequação dos campos semânticos.

A coerência depende de uma série de fatores, entre os quais vale ressaltar:

o conhecimento de mundo e o grau em que esse conhecimento é compartilhado pelos interlocutores;

Page 21: Reflexões sobre texto e ensino

a continuidade entre as idéias, que progridem em uma organização lógica; o domínio das regras de uso da língua, possibilitando as várias combinações dos elementos

lingüísticos; a interação entre os interlocutores (a situação em que se encontram, as suas intenções de

comunicação, suas crenças); o gênero do texto.

Um texto pode apresentar problemas de coerência em uma determinada situação porque quem o produziu não soube adequá-lo ao interlocutor, não valorizou suficientemente a questão da comunicabilidade, não obedeceu ao código lingüístico, enfim, não levou em conta o fato de que a coerência está diretamente ligada à possibilidade de se estabelecer um sentido para o texto.

A coerência se manifesta em vários aspectos da construção do texto. Ela tem uma dimensão sintático-semântica em função da estruturação lingüística (ordem dos elementos, seleção lexical, recursos de referenciação, conectores para expressar relações lógicas entre as idéias). A dimensão semântica caracteriza-se, também, por uma interdependência de sentido entre os elementos constituintes do texto. A coerência tem, principalmente, uma dimensão pragmática, que propicia ao leitor a realização de inferências com base em seus conhecimentos de mundo.

Além desses aspectos, a escolha/identificação do tema é relevante para a construção da coerência textual, já que a leitura e a produção de um texto só podem ser completas se todas as idéias aí desenvolvidas tiverem o tema como seu fio condutor.

O tema corresponde, portanto, à essência sobre a qual o texto se estrutura, o ponto em torno do qual se desenvolve. Por isso, a identificação do tema de qualquer composição, seja ela musical, pictórica ou verbal, é de tanta importância para a sua compreensão.

Na leitura de um texto, é preciso diferenciar a idéia principal das idéias secundárias que lhe servem de apoio. Nesse processo, o leitor deve identificar as pistas indicadoras desse eixo central, valendo-se de seu conhecimento de mundo para fazer inferências, descobrir as informações implícitas que fazem parte de um plano mais profundo do texto e, assim, chegar à sua síntese.

No parágrafo a seguir, pode-se identificar uma idéia principal e algumas idéias secundárias que servem para detalhar a informação:

“A capoeira é reconhecida como uma das marcas da cultura brasileira, em todo o mundo. Ela se desenvolveu em território brasileiro à época da escravidão. Era utilizada pelos escravos africanos como uma forma de defesa e ataque contra a opressão que sofriam dos senhores brancos. Durante anos, a capoeira foi discriminada e vista como uma luta violenta e perigosa. Com o passar dos tempos, essa espécie de dança e arte marcial passou a ser valorizada, espalhando seu ritmo contagiante pelo Brasil e, mais recentemente, pelo mundo. Hoje, ela é praticada por pessoas de todas as idades, sendo até mesmo ensinada nas escolas.”

Idéia principal A capoeira é reconhecida como uma das marcas da cultura brasileira, em todo o mundo.

Idéias secundárias

Ela se desenvolveu no Brasil na época da escravidão. Era utilizada pelos escravos como forma de defesa e ataque. Durante muitos anos foi discriminada, passando depois a ser valorizada. É um ritmo contagiante.

Hoje é praticada por muita gente e ensinada nas escolas.

Page 22: Reflexões sobre texto e ensino

4.1 Progressão temáticaA progressão temática é a forma como se encadeiam as idéias que contribuem para o

desenvolvimento do tema. A partir de um tema, é preciso que os tópicos mantenham um encadeamento entre si, uma relação de continuidade para dar andamento ao texto. Para que um texto seja considerado coerente, é preciso, portanto, que apresente continuidade tópica, sem rupturas definitivas nem digressões excessivamente longas.

O encadeamento de tópicos depende do gênero textual e, conseqüentemente, do modo de organização do discurso que estrutura as diferentes partes do texto. Por exemplo, em uma notícia, espera-se que a parte inicial apresente as principais características do acontecimento: o que aconteceu? com quem aconteceu? onde aconteceu? como aconteceu? por que aconteceu? quais as conseqüências?

Assim, após um primeiro parágrafo eminentemente narrativo, pode se seguir um parágrafo de base descritiva, para permitir que o leitor visualize o cenário do acontecimento e as características dos personagens. Uma notícia pode conter, também, depoimentos de alguém que tenha participado do acontecimento, de um expectador ou de uma autoridade relacionada ao fato, constituindo uma seqüência dialogal.

Dessa forma, vários tópicos se combinam para compor o texto e a coerência se constrói pelo encadeamento harmonioso entre eles.

Festival de pesca movimenta Cáceres

Realizou-se no último mês de setembro de 2006 o Festival Internacional de Pesca de Cáceres (FIP), a 215 km de Cuiabá. Este festival é considerado o maior do mundo em sua categoria, movimentando a economia regional e atraindo milhares de turistas à cidade.

O festival realiza-se anualmente. As provas reúnem mais de 1500 concorrentes, entre adultos e crianças: prova de pesca embarcada (barco e canoa, para adultos) e a prova de pesca de barranco (infanto-juvenil).

Durante os oito dias de feira, foram realizados espetáculos de grupos regionais, feiras náuticas, exposições de artesanato, campeonatos de vôlei de praia, futebol de areia, shows nacionais e regionais, oficinas de artes e de pesca. O festival incluiu também barracas de comidas típicas regionais.

O município de Cáceres é um importante pólo de turismo, pois encontra-se situado numa das regiões mais privilegiadas do Pantanal Matogrossense, visto que ostenta a grandiosidade e a beleza do Rio Paraguai e seus afluentes.

Um dos moradores deu o seguinte depoimento:

- A FIP é um momento mágico, de resgate da história e da cultura cacerense, de congraçamento das famílias locais com os turistas e, acima de tudo, de luta pelo ideal de preservação. É uma verdadeira festa!

No próximo mês de setembro, você tem um compromisso irresistível. Os cidadãos de Cáceres terão a maior satisfação em recebê-lo no Festival Internacional de Pesca!

(Wisley Tomaz e Lidiane Barros. Jornal Folha do Estado on-line,Cuiabá, 30 de abril de 2006.)

Essa notícia tem como tema a realização do Festival Internacional de Pesca de Cáceres. O tema se desenvolve a partir das seguintes informações:

Page 23: Reflexões sobre texto e ensino

O

reconhecimento da progressão temática dessa notícia, ou seja, a forma como seu conteúdo se desenvolve, é essencial para uma leitura abrangente.

Parágrafo Etapas de desenvolvimento do conteúdo

1ºResumo da notícia, que trata da realização do Festival Internacional de Pesca de Cáceres, no Mato Grosso, em setembro de 2006.

2º Detalhamento sobre as características do Festival.

3ºDetalhamento sobre o Festival de 2006: atividades que ocorreram durante os oito dias de festas.

4ºDescrição das características do município de Cáceres, lugar onde se realizou o Festival de 2006.

5º Depoimento de um morador da cidade.6º Conclusão da notícia, convocando o leitor para o Festival do ano seguinte.

Já do ponto de vista da produção textual, é preciso que o autor faça um planejamento das etapas necessárias para que seu texto apresente coerência. Alguns aspectos são essenciais nesse processo:

identificação do interlocutor do texto para quem escrever? definição do objetivo comunicativo para que escrever? seleção do tema sobre o que escrever? definição do veículo de comunicação qual é o canal? escolha do gênero e do modo de organização do discurso predominante como escrever?

A identificação do interlocutor do texto determina escolhas quanto ao vocabulário, ao desenvolvimento do conteúdo e à própria estruturação sintática do texto. Essas escolhas estão relacionadas ao grau de intimidade entre os interlocutores, ao nível de escolaridade e à faixa etária do destinatário, entre outros fatores.

qual foi o fato? Festival Internacional de Pesca

onde aconteceu? Cáceres

quando aconteceu? Setembro de 2006

quem participou? Pessoas vindas de vários lugares, do Brasil e do exterior

como aconteceu? prova de pesca embarcada (barco e canoa, para adultos); prova de pesca de barranco (infanto-juvenil); espetáculos de grupos regionais; feiras náuticas exposições de artesanato; campeonatos de vôlei de praia; futebol de areia; shows nacionais e regionais; oficinas de artes e de pesca; barracas de comidas típicas regionais.

para que aconteceu? promover competições de pesca; atrair turismo para a região; preservar a história e a cultura da região; movimentar a economia.

Page 24: Reflexões sobre texto e ensino

O autor define estratégias discursivas de acordo com o objetivo comunicativo: informar, convencer, relatar, explicar, ensinar, impressionar, revelar sentimentos, modificar comportamentos, causar prazer estético, divertir. Vale lembrar que esses aspectos constituem o contexto de produção.

Na escolha do tema, o autor deve decidir sobre o assunto a ser desenvolvido, delimitando-o para que o texto não fique vago e cumpra os objetivos comunicativos. Assim, ao abordar a questão do trabalho, precisa escolher entre diversas formas: trabalho urbano, rural, remunerado, voluntário, infantil, escravo e assim por diante. O encaminhamento que vai dar ao texto dependerá dessa escolha, daí a sua importância. A progressão temática do texto exige, portanto, a hierarquização e o encadeamento das idéias em uma seqüência coerente, de modo que as idéias secundárias sirvam de suporte à idéia principal, que corresponde à formulação do tema.

A escolha do gênero textual em que será produzido o texto é uma decorrência natural da identificação do perfil do interlocutor, do objetivo da comunicação e da temática, ou seja, da definição da situação social e da intenção comunicativa. As estratégias lingüísticas para construir o texto e o encadeamento lógico do conteúdo decorrem, então, da escolha do gênero, constituindo o modo de organização do discurso predominante.

O quadro a seguir apresenta alguns procedimentos necessários ao planejamento de um texto.

PROCEDIMENTO JUSTIFICATIVA PLANEJAMENTO DO TEXTO

Escolha do assunto Esse assunto chama a atenção pelas mudanças que as inovações tecnológicas provocam na vida das pessoas.

A evolução da tecnologia

Delimitação do assunto: o tema

Embora todos os aspectos desse assunto despertem grande interesse, é preciso delimitar o tema. Um produto que exemplifica muito bem o avanço da tecnologia é o telefone celular.

A evolução e a expansão da telefonia celular

Identificação do interlocutor

A escolha do interlocutor determina a seleção das idéias e o grau de formalidade da linguagem empregada. O texto será produzido para leitores com nível médio de escolaridade, ou seja, usuários comuns da telefonia celular e não especialistas no assunto.

Pessoas com nível médio de escolaridade

Determinação do objetivo

Abordar questões relativas às inovações da telefonia celular de modo a atrair a atenção desse público-alvo.

Mostrar as mudanças ocorridas na sociedade, graças à evolução e à expansão do telefone celular.

Escolha do canal / veículo

A escolha do canal/veículo depende dos objetivos comunicativos e do público-alvo.

Jornal de grande circulação nacional.

Determinação do gênero textual e do modo de organização do discurso predominante

A escolha do gênero e do modo de organização predominante depende das características do contexto de produção (objetivo comunicativo, canal/veículo, interlocutor, posição social do produtor e do interlocutor, tempo).

O texto será uma reportagem, tendo como modo de organização predominante a exposição.

Formulação da frase núcleo

Para elaborar a frase núcleo, é necessário sintetizar as idéias que se pretende desenvolver.

A evolução da telefonia celular é uma prova dos avanços tecnológicos.

Plano de desenvolvimento

Para garantir a progressão temática do texto, deve-se levar em consideração o encadeamento dos tópicos. Assim, é

1. Apresentação do tema: as mudanças que a evolução da tecnologia provoca em nossa

Page 25: Reflexões sobre texto e ensino

importante identificar a idéia principal e as idéias secundárias que atendam a cada um dos aspectos previstos na respectiva etapa.

vida e os avanços de um dos mecanismos eletrônicos: o telefone celular.2. A expansão e a evolução da telefonia celular na atualidade.3. As funções já conhecidas do telefone celular: transmitir mensagens de voz e de texto, navegar pela internet e tirar fotos.4. As futuras funções do telefone celular: no exterior, o celular já serve para pagar contas e abrir a porta da casa.

Formulação da conclusão

Depois de percorridas todas as etapas e os respectivos procedimentos, é preciso formular a conclusão que deve estar relacionada a todo o trabalho desenvolvido até aqui, levando-se sempre em conta o efeito que se quer atingir no leitor do texto.

As expectativas quanto aos novos equipamentos digitais: como será a chegada no Brasil da próxima geração de aparelhos que já está revolucionando a vida no Japão, na Europa e nos Estados Unidos?

No desenvolvimento desse tema, uma opção pode ser mostrar como o uso do telefone celular tem se popularizado nos últimos anos, partindo do seu surgimento apenas para as classes privilegiadas. Outra opção seria como as máquinas fotográficas vão sendo substituídas pelo uso do celular como câmera digital, com a expectativa de venda de celulares, que tiram fotos, muito maior que a de máquinas fotográficas digitais. Ainda outra possibilidade de desenvolvimento desse tema seria mostrar que os primeiros celulares que chegaram ao Brasil, no início dos anos 90, eram analógicos, faziam ligações instáveis, e como foi a evolução até os dias de hoje em que temos os chamados celulares de terceira geração.

O importante no desenvolvimento do tema é que não se perca de vista a idéia principal e que ela seja o fio condutor do texto.

4.2 Elementos relevantes para a coerência textual

A. Informatividade

É um dos fatores constitutivos da coerência textual. Não se deve depreender daí que ela só está presente nos textos eminentemente referenciais. Textos de qualquer natureza veiculam algum tipo de informação, desde os textos de comunicação diária, oral ou escrita, até aqueles com intenção estética, como os poéticos, por exemplo.

O grau de informatividade está diretamente relacionado à informação veiculada: previsível/ imprevisível, esperada / não-esperada. Quanto mais previsível, menor será o grau de informatividade de um texto e vice-versa. Por isso, textos altamente informativos exigem do leitor/ouvinte um esforço maior para sua compreensão. Textos científicos, por exemplo, têm como objetivo primeiro produzir informação teórica, com a finalidade de transmitir conhecimentos acerca de seu objeto de estudo: são mais detalhados, envolvem explicações, exemplificação. Os jornalísticos têm, igualmente, como função primordial veicular uma informação, mas como se apóiam em conhecimentos que os leitores já têm de uma determinada situação, podem ser menos detalhados. Noticiários de TV e rádio contam, ainda, com outros componentes informativos, como imagem, voz, expressão facial.

Page 26: Reflexões sobre texto e ensino

B. Intertextualidade

Considerada por alguns autores como uma das condições para a existência de um texto, a intertextualidade se destaca por relacionar "um texto concreto com a memória textual coletiva, a memória de um grupo ou de um indivíduo específico". 8

Trata-se da possibilidade de os textos dialogarem com outros textos. As obras de caráter científico remetem explicitamente a autores reconhecidos, garantindo, assim, a veracidade das afirmações. As conversas são entrelaçadas de alusões a inúmeras considerações armazenadas na memória de cada um. O jornal está repleto de referências já supostamente conhecidas pelo leitor. A leitura de um romance, de um conto, novela, enfim, de qualquer obra literária, remete a outras obras, muitas vezes de forma implícita. A compreensão de textos (considerados aqui da forma mais abrangente) muito dependerá das experiências de vida dos leitores porque determinadas obras só se revelam através do conhecimento de outras.

A noção de intertextualidade, da presença contínua de outros textos em determinado texto, sugere uma reflexão a respeito da individualidade e da coletividade em termos de criação.

C. Inserção histórica

Todo texto é produzido por um sujeito, em um determinado tempo e espaço. Tem, portanto, um caráter histórico, expressando o momento de produção e os ideais e concepções de um determinado grupo social. Isso não impede que leitores, em outros momentos, façam novas leituras, condizentes com suas referências, sua experiência de vida, sua visão de mundo. Assim, contexto de produção e contexto de uso devem ser levados em conta como fatores relevantes para a interação autor/texto/leitor.

Um texto retrata as idéias do tempo e da sociedade em que vive o seu autor, ou seja, é um depoimento sobre uma realidade. Por exemplo, os editoriais e as manchetes de jornais trazem matérias sobre os temas que estão em evidência naquele momento histórico. Não se deve depreender dessa afirmativa que o texto narra, obrigatoriamente, fatos históricos. Significa dizer que nos textos são reproduzidos os ideais, as concepções, os anseios e os temores de um povo em uma certa época.

D. Seleção e combinação vocabular

O conhecimento do significado das palavras garante uma parte essencial do entendimento entre as pessoas. Na interação comunicativa, podem surgir dificuldades de compreensão, uma vez que o sentido está relacionado a inúmeros fatores culturais, sociais, profissionais, de região, de escolaridade, de idade. Portanto, para haver comunicação, é necessário um repertório comum entre os interlocutores.

Por esse motivo, a seleção e a combinação vocabular têm papel fundamental na coerência textual. O texto a seguir se organiza a partir do tema ofícios, explorando os campos semânticos e campos associativos de acordo com a correspondência entre a ocupação e o caráter do profissional que a exerce. Os campos são apresentados a partir de quatro personagens: o ferreiro Apolinário, o latoeiro João José, o carpinteiro Manuel e o lenheiro. Essa organização em campos semânticos e campos associativos contribui para a coerência textual.

Ofícios- Comigo perdem o tempo. Meu ofício é malhar ferro.

Manuel pensou no seu ofício de cortar madeira, comparou os dois materiais. A diferença teria algum efeito na resistência das pessoas que lidam com um e outro? Bobagem. Pau é pau, ferro é ferro; e gente é gente. Um homem vai ser ferreiro ou carpinteiro ou sapateiro é por acaso, como aconteceu com ele, Manuel. O pai era carpinteiro, ele teve também de aprender o ofício, para ajudar; não podia ficar o tempo todo zanzando sem ocupação. Vai ver que com Apolinário aconteceu do

8 MIRA MATEUS, M.H. et alii. Gramática da língua portuguesa. 5a ed. rev. aum. Lisboa: Caminho, 2003.

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mesmo jeito. Mas será que não entra a força da vocação? Muitos rapazes quiseram aprender carpintagem com ele, mexeram, viraram, largaram, não aprendiam nem pegar as ferramentas.

E será também que o costume de lidar sempre com o mesmo material entra ano sai ano não vai influindo na alma da pessoa, contagiando moleza ou dureza? Reparando bem, cada um vai apanhando cara do ofício que desempenha.

Pensando nisso ele olhou para Apolinário. A cara cheia, quadrada, de carne dura, parece que posta em pedacinhos, acalcados à força; a testa larga, com um caroço de cada lado, como inchaços encravados; o nariz grande bem enterrado na cara, os olhos pequenos para não gastar muito espaço; o queixo largo, de ponta entortada para a frente; o pescoço quase da grossura da cabeça. Essa cara de Apolinário não poderia nunca ser cara de latoeiro, por exemplo. Latoeiro era João José, miudinho, ratinho, ombros estreitos de menino, mãos miúdas, não precisavam ser grandes para cortar folha, coisa tão mole. João José, enroladinho, lustroso, resmungão, de vez em quando se rebelando e arranhando os que lidam com ele.

E ele, Manuel? Mole como madeira no ferro? Às vezes querendo fingir dureza, inventando nós que a ferramenta não respeita, passa por cima e iguala? As mãos do carpinteiro, o corpo, a alma do carpinteiro não podem ser mais brutos do que a madeira. Em madeira não se trabalha batendo com força, com raiva; só lenheiro faz isso, mas lenheiro é quase igual ao machado que ele levanta e abaixa sem dó, sem consideração; basta olhar a cara de um lenheiro para se ver que ele não tem delicadeza nem tato: não precisa.

Ferreiro também trabalha batendo, pondo força. Mas tem uma diferença: ele tem uma medida a encher, um ponto a chegar, uma idéia a seguir; não bate para cortar nem rachar, bate para achatar, arredondar, conformar. Ferreiro trabalha fazendo, não desmanchando; e se desmancha é para fazer de outro jeito. Na brutalidade do ferreiro tem uma delicadeza escondida.

(José J. Veiga, A hora dos ruminantes )

Agrupam-se, a seguir, as palavras relacionadas aos seguintes campos: materiais empregados, processos que desenvolvem (gerais e específicos), características básicas de cada profissão, identificação do homem com a sua profissão.

Conceito nuclear

Sub-categorias Campo semântico / campo associativo

Ferreiro

materiais ferro

processosmalhar, encravar, acalcar, enterrar, entortar, bater, achatar, arredondar, dar, conformar, trabalhar fazendo,desmanchando para fazer

características força, mais economia, brutalidade, delicadeza,dureza

cara do ofíciomãos grandes, resistência, cara cheia, quadrada, carne dura, testa larga, olhos pequenos, queixo largo, pescoço grosso

Conceito nuclear

Sub-categorias Campo semântico / campo associativo

Latoeiro

materiais folha de lata

processos cortar, arranhar

características enrolado, lustroso, rebelde de vez em quando, resmungão

cara do ofíciomãos miúdas, rebelando-se, arranhando, miudinho, ratinho, ombros estreitos, enroladinho, lustroso

Page 28: Reflexões sobre texto e ensino

Conceito nuclear

Sub-categorias Campo semântico / campo associativo

Carpinteiro

materiais madeira

processos cortar, igualar, não trabalha batendo, trabalha fazendo

características mole, não força, não raiva, não delicadeza

cara do ofícionão resistência, mãos menos brutas que a madeira, moleza, finge dureza, inventa nós, sem raiva, sem força

Conceito nuclear

Sub-categorias Campo semântico / campo associativo

Lenheiro

materiais machado

processoscortar, rachar, levantar/abaixar (o machado), desmanchar, trabalhar batendo, trabalhar desmanchando

características força, raiva, não dó, não consideração, brutalidade

cara do ofício não delicadeza, não tato

E. Referenciação

O leitor constrói a coerência textual a partir de marcas de relações de continuidade. As referências a pessoas, coisas, lugares, fatos são introduzidas e, depois, retomadas, para se relacionarem, à medida que o texto vai progredindo. Com esse objetivo, recursos lingüísticos são chamados de “recursos coesivos referenciais”.

Para compreender um texto, o leitor deve ser capaz de (re)construir o caminho traçado pelo autor e estabelecer as relações marcadas no texto. O grau de dificuldade dessa habilidade pode ser aumentado em função do número de antecedentes possíveis para um termo, da distância dos antecedentes, da familiaridade do leitor com o assunto e o gênero textual utilizados e da relevância da(s) informação(ões) que o leitor tem a considerar.

Nesse processo, podem-se distinguir a reiteração e a substituição.

a) Reiteração

Por reiteração entende-se a repetição de expressões lingüísticas em que exista identidade de traços semânticos. Esse recurso é, em geral, bastante usado nas propagandas, com o objetivo de fazer o ouvinte/leitor reter o nome e as qualidades do que é anunciado.

O parágrafo que segue, escrito por um jornalista (apelidado de Víbora) na década de 1940, tem a intenção de criticar os grã-finos da cidade de São Paulo:

O chá na Jaraguá faz parte do ritual grã-fino. Lili não o dispensa. Zezé e Lelé fazem tudo, adiam tudo, mas não podem perder o chá na Jaraguá. O leitor, geralmente desprevenido, estará pensando, sem dúvida, que a Jaraguá é apenas uma casa de chá. Não. A Jaraguá também é livraria. A intenção era muito boa. Mas me parece que o grã-finismo está estragando o plano. A verdade é que a Jaraguá, que os idealizadores planejavam tornar imprescindível no mundo artístico e cultural de São Paulo, é hoje, apenas, mais um ponto de reunião do grã-finismo, um ponto onde Fifi marca encontro com Lelé para falar mal de Zuzu.

(Ivan Carvalho Finotti. O Estado de São Paulo. Caderno Aliás, 28/08/2005, p.J4)

A reiteração se realiza por meio das várias ocorrências da palavra Jaraguá e também pela forma adotada para nomear as pessoas (grã-finas) que freqüentavam a casa de chá-livraria - repetição de sílabas: Lili, Zezé, Lelé, Fifi, Zuzu.

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O trecho a seguir apresenta repetição das palavras aventureiros e portos, com o objetivo de estimular o interesse do leitor pela região de Porto Belo, incentivando o turismo interno.

A história de Porto Belo envolve invasão de aventureiros espanhóis, aventureiros ingleses e aventureiros franceses, que procuraram portos naturais, portos seguros para proteger suas embarcações de tempestades.

(Jornal do Brasil, Caderno Viagem, 25/08/93)

b) Substituição

A substituição é mais ampla, pois pode se efetuar por meio de sinonímia, antonímia, hiperonímia, hiponímia, expressões resumitivas, expressões metafóricas, formas metadiscursivas, pronomes, numerais, advérbios e artigos.

Ao utilizar uma palavra ou expressão para se referir a uma idéia contida no texto, o autor realiza uma atividade discursiva, porque cada escolha contribui para a construção gradativa do referente textual. Dessa forma, ele gera leituras inferenciais devido aos juízos de valor que são transmitidos por intermédio das palavras ou expressões. Isso acontece porque o autor tem em mente um determinado tipo de leitor, seus saberes, opiniões e juízos de valor. Se a imagem do leitor construída pelo produtor estiver equivocada, o resultado da interação autor-leitor-texto será diferente do esperado.

A família e os amigos de Romário fizeram mil preparativos para a grande festa. Mas esqueceram de avisar a bola, que, teimosa, não quis entrar. O atacante teve pelo menos três chances claras e, sempre que se aproximava do gol, levava ao delírio seus convidados. Tentando manter a calma diante da frustração por não marcar o milésimo gol no Maracanã, restou ao craque recordar a agonia de Pelé.

Além da mãe e da esposa, os filhos do artilheiro controlavam o acesso dos amigos e distribuíam camisas comemorativas.

(Jornal O Globo, 02 de abril de 2007)

A substituição do nome do jogador Romário pelos adjetivos atacante, craque e artilheiro revela uma valoração positiva que o texto lhe atribui. Embora seja um personagem polêmico, criticado muitas vezes por não gostar de treinar e por sua vida pessoal conturbada, a proximidade da realização do seu gol número 1000 fez com que a mídia o colocasse em destaque de forma elogiosa.

sinonímia – Esse processo de referenciação realiza-se por meio da substituição de um termo

ou expressão por outro equivalente do ponto de vista semântico.

Aos 26 anos, o zagueiro Júnior Baiano deu uma grande virada em sua carreira. Conhecido por suas inconseqüentes “tesouras voadoras”, ele passou a agir de maneira mais sensata, atitude que já o levou até a Seleção Brasileira.

Patrícia, a esposa, e os filhos Patrícia Caroline e Patrick são as maiores alegrias desse baiano (=Júnior Baiano) nascido na cidade de Feira de Santana. “Eles são a minha razão de viver e lutar por coisas boas”, comenta o zagueiro (=Júnior Baiano).

Na galeria do ídolos, Júnior Baiano coloca três craques: Leandro, Mozer e Aldair. “Eles sabem tudo de bola, diz o jogador (=Júnior Baiano). O zagueiro da Seleção (=Júnior Baiano) só questiona se um dia terá o mesmo prestígio deles.

Deixando para trás a fase de desajustado e brigão, o zagueiro rubro-negro (=Júnior Baiano) agora orienta os mais jovens e aposta nesta nova geração do Flamengo.

(Jornal dos Sports, 24/08/97)

As seguintes expressões foram utilizadas para substituir “zagueiro Júnior Baiano”: zagueiro, desse baiano, o zagueiro, o jogador, o zagueiro da seleção, o zagueiro rubro-negro. Esse tipo de procedimento é muito útil para evitar as constantes repetições que podem tornar um texto cansativo e pouco atraente. Diferentes maneiras foram empregadas para fazer alusão à mesma pessoa. Nesse parágrafo, observa-

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se ainda outro processo de substituição: o uso de pronomes (sua, ele, o, que retomam o jogador Júnior Baiano, e deles, que retoma os três craques).

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antonímia - Esse processo de referenciação realiza-se por meio da substituição de um termo ou expressão por outro com traços semânticos opostos.

Gelada no inverno, a praia de Garopaba oferece no verão uma das mais belas paisagens catarinenses.

(Jornal do Brasil, Caderno Viagem, 25/08/93)

hiperonímia e hiponímia - Na hiperonímia, a primeira expressão mantém com a segunda uma relação de todo-parte ou classe-elemento. Na hiponímia, tem-se a situação inversa: a primeira expressão mantém com a segunda uma relação de parte-todo ou elemento-classe. Em outras palavras, essas substituições ocorrem quando um termo mais geral - o hiperônimo - é substituído por um termo menos geral - o hipônimo -, ou vice-versa.

Tão grande quanto as baleias é a sua discrição. Nunca um ser humano presenciou uma cópula de jubartes, mas sabe-se que seu intercurso é muito rápido, dura apenas alguns segundos.

(Revista VEJA, no 30, julho/97)

Em Abrolhos, as jubartes fazem a maior esbórnia. Elas se reúnem em grupos de três a oito animais, sempre com uma única fêmea no comando. É ela, por exemplo, que determina a velocidade e a direção a seguir.

(Revista VEJA, no 30, julho/97)

Dentre as 79 espécies de cetáceos, as jubartes são as únicas que cantam - tanto que são conhecidas também por “baleias cantoras”.

(Revista VEJA, no 30, julho/97)

expressões resumitivas - Existe a possibilidade de uma idéia inteira ser retomada por um pronome, como acontece na frase a seguir:

Todos os detalhes sobre a vida das jubartes são resultado de anos de observação de pesquisadores apaixonados pelo objeto de estudo. Trabalhos como esse vêm alcançando bons resultados.

(Revista VEJA, no 30, julho/97)

O pronome esse retoma toda a seqüência anterior.

expressões metafóricas - Esse processo de referenciação realiza-se por meio da substituição de um termo ou expressão por uma expressão metafórica, que é responsável por veicular uma determinada opinião ou juízo de valor por parte do produtor do texto.

No exemplo, os termos assinalados têm o mesmo referente. Entretanto, há um julgamento de valor na substituição de Cuba por ilha da Fantasia, que pode ser lido com um toque de ironia.

Pelo jeito, só Clinton insiste no isolamento de Cuba. João Paulo II decidiu visitar em janeiro a ilha da Fantasia (=Cuba).

(Revista VEJA, nº 39, outubro/97)

formas metadiscursivas – Esse processo realiza-se pela referência a uma idéia, um parágrafo, uma parte do texto por meio de uma palavra que resuma o seu sentido. Constitui uma reflexão do autor sobre seu próprio texto, por isso é um ato eminentemente discursivo.

O movimento não chega a ser silencioso, mas faz pouco alarde. Trinta mil catadores de lixo já estão reunidos em cooperativas, dando mais valor a uma atividade pouco reconhecida.

(Editorial da revista Razão social do jornal O Globo, abril 2007)

pronomes - Esse processo de referenciação realiza-se por meio da substituição de um termo ou expressão por pronomes, responsáveis pela função dêitica, ou seja, por localizar o referente

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em relação às pessoas do discurso. Pode ser anafórica (o referente aparece antes) ou catafórica (o referente aparece em seguida, no texto).

Durante o período da amamentação, a mãe ensina os segredos da sobrevivência ao filhote e é arremedada por ele (=filhote). A baleiona salta, o filhote a (=baleiona) imita. Ela (=baleiona) bate a cauda, ele (=filhote) também o (=bate a cauda) faz.

(Revista VEJA, no 30, julho/97)

Madre Teresa de Calcutá, que (=Madre Teresa de Calcutá) em 1979 ganhou o Prêmio Nobel da Paz por seu (=Madre Teresa de Calcutá) trabalho com os destituídos do mundo, estava triste na semana passada. Perdera uma amiga, a princesa Diana. Além disso, seus (=Madre Teresa de Calcutá) problemas de saúde agravaram-se. Instalada em uma cadeira de rodas, ela (=Madre Teresa de Calcutá) mantinha-se, como sempre, na ativa. Já que não podia ir a Londres, pretendia participar, no sábado, de um ato em memória da princesa, em Calcutá, onde morava há quase setenta anos. Na noite de sexta-feira, seu (=Madre Teresa de Calcutá) médico foi chamado às pressas. Não adiantou. Aos 87 anos, Madre Teresa perdeu a batalha entre seu (=Madre Teresa de Calcutá) organismo debilitado e frágil e sua (=Madre Teresa de Calcutá) vontade de ferro e morreu vítima de ataque cardíaco. O Papa João Paulo II declarou-se “sentido e entristecido”. Madre Teresa e o papa tinham grande afinidade.

(Revista VEJA, nº 36, setembro/97)

Ele (=o guarda-costas) foi o único sobrevivente do acidente que matou a princesa, mas o guarda-costas não se lembra de nada.

(Revista VEJA, no 37, setembro/97)

F. Encadeamento textual

A organização textual pressupõe que os enunciados se inter-relacionem de modo a garantir a seqüenciação lógica do texto e a interdependência entre as idéias que constituem o desdobramento temático. Esse encadeamento pode ser expresso por conectores ou ser inferido a partir do encadeamento dessas idéias.

As baleias que acabam de chegar ao Brasil saíram da Antártida há pouco mais de um mês. No banco de Abrolhos, uma faixa com cerca de 500 quilômetros de água rasa e cálida, entre o Espírito Santo e a Bahia, as baleias encontram as condições ideais para (finalidade) acasalar, parir e (adição) amamentar. As primeiras a chegar são as mães, que ainda amamentam os filhotes nascidos há um ano. Elas têm pressa, porque (causa) é difícil conciliar amamentação e viagem, já que (causa) um filhote tem necessidade de mamar cerca de 100 litros de leite por dia para (finalidade) atingir a média ideal de aumento de peso: 35 quilos por semana. (...)

Cada população de jubartes canta uma mesma música durante a temporada de reprodução. Ao longo dos meses, porém (contraposição), ela vai sofrendo pequenas mudanças, até que depois de cinco anos é completamente diferente da música original. Quando (tempo) as baleias estão pelas redondezas de Abrolhos, é comum que os mergulhadores se assustem com as longas melodias que ecoam pela região. Como (causa) o mar é um excelente propagador de sons, eles têm a impressão de que uma jubarte pode estar a poucos metros de distância.

(Revista Veja, no 30, julho/97)

No encadeamento por justaposição de idéias, a coesão se dá em função da seqüência do texto, da ordem em que as informações, as proposições, os argumentos vão sendo apresentados. Quando isto acontece, ainda que os operadores não tenham sido explicitados, eles são depreendidos da relação que está implícita entre as partes da frase. O trecho abaixo é um exemplo de justaposição.

Foi em cabarés e mesas de bar que Di Cavalcanti fez amigos, conquistou mulheres, foi apresentado a medalhões das artes e da política. Nos anos 20, trocou o Rio por longas temporadas em São Paulo; em seguida foi para Paris. Acabou conhecendo Picasso, Matisse e Braque nos cafés de Montparnasse. Di Cavalcanti era irreverente demais e calculista de menos em relação aos famosos

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e poderosos. Quando se irritava com alguém, não media palavras. Teve um inimigo na vida. O também pintor Cândido Portinari. A briga entre ambos começou nos anos 40. Jamais se reconciliaram. Portinari não tocava publicamente no nome de Di.

(Revista VEJA, no 37, setembro/97)

Nesse trecho, mesmo sem a utilização de conectores, instaura-se uma relação temporal entre as idéias e, implicitamente, uma relação de causalidade. A única exceção é a ocorrência do conector “quando”.

O encadeamento lógico do texto depende do estabelecimento de relações temporais e espaciais, já que uma seqüência só se apresenta coesa e coerente quando a ordem dos enunciados estiver de acordo com aquilo que sabemos ser possível ocorrer no universo a que o texto se refere, ou no qual o texto se insere. Se essa ordenação temporal não satisfizer essas condições, o texto apresentará problemas na sua coerência. A referenciação espácio-temporal é assegurada pelo emprego adequado dos tempos verbais, obedecendo a uma seqüência plausível, pelo uso de advérbios, numerais ordinais que contribuem para a progressão das idéias no texto, pelos conectores ou operadores discursivos.

Chafariz sem água deixa praça sem graça

Equipamentos instalados na Avenida Princesa Isabel estão secos há quase dez anos e hoje são o retrato do vandalismo

Eles foram construídos durante as obras de revitalização do canteiro central da Avenida Princesa Isabel, em 1996, mas hoje são o retrato do abandono e do vandalismo. O conjunto de nove chafarizes, que jorravam água para o alto, virou um depósito de folhas e de plásticos e em nada lembram a antiga atração da praça de Copacabana. Como eram cercados por refletores de luz, eles produziam um belo efeito à noite. Mas hoje poucas pessoas se lembram de que o local um dia teve um chafariz.

Logo que foram inaugurados, os jatos d’água passaram a ser usados como chuveirinhos por banhistas que saíam da praia e queriam tirar o sal do corpo.

– Há muito tempo que os equipamentos estão quebrados. Mas lembro perfeitamente de quando saía da praia e limpava os pés sujos de areia na água. Todo mundo fazia isso – conta o auxiliar de escritório Tiago Eduardo Viana.

Quando funcionavam, eram usados para lavar roupa

Os problemas pioraram quando os chafarizes foram transformados por mendigos em tanques de lavar roupa. Devido ao mau uso, apresentaram defeito e foram desligados em 1998. Na época, a prefeitura prometeu religar os equipamentos, mas eles acabaram sendo destruídos por vândalos e ladrões.

– Nem sabia que isso era um chafariz – disse um gari que trabalhava na praça ontem pela manhã.

Em 2002, segundo a secretaria municipal de Meio Ambiente, os equipamentos já tinham sido roubados e destruídos.

– Roubaram tudo, desde as bombas de água, os refletores, alumínios, hidrômetros, disjuntores até as grelhas de proteção – lamentava a secretária de Meio Ambiente, Rosa Fernandes.

Naquele ano, a Fundação Parques e Jardins teria tentado junto ao comércio local fazer parcerias para viabilizar a reforma da praça, mas não obteve sucesso. Hoje, o local é habitado por moradores de rua e jovens que ganham a vida vendendo balas e fazendo malabares nos sinais de trânsito.

Segundo Rosa Fernandes, uma nova reforma custaria cerca de R$ 600 mil à prefeitura.

– Não adianta a gente consertar se os equipamentos vão ser destruídos. A prefeitura quer remodelar novos chafarizes para evitar esse tipo de problema – afirma.

(Fernanda Pontes, O Globo, 05/04/2007)

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Para anunciar a destruição dos chafarizes de uma praça de Copacabana, a notícia compara vários momentos históricos, relatando as mudanças:

1996: durante as obras de revitalização, logo que foram inaugurados, há muito tempo, quando saía da praia; um dia;

1998: quando os chafarizes foram transformados em tanques de lavar roupa, foram desligados em 1998, na época;

2002: em 2002, naquele ano; 2007: ontem pela manhã, hoje.

Na notícia, há, também, várias referências espaciais, contribuindo para a coerência: na Avenida Princesa Isabel, em Copacabana, na praça, na praia, nos sinais de trânsito. Os campos semânticos predominantes também colaboram para a coerência textual: água, chafariz, vandalismo, Copacabana.

Com respeito à ordem dos vocábulos na oração, deslocamentos de vocábulos ou expressões dentro da oração podem levar a diferentes interpretações de um mesmo enunciado.

O barão admirava a bailarina que dançava com um olhar lânguido.

A expressão com um olhar lânguido, devido à posição em que foi colocada, causa ambigüidade, pois tanto pode se referir ao barão como à bailarina. Para deixar claro um ou outro sentido, é preciso alterar a ordem dos vocábulos.

O barão, com um olhar lânguido, admirava a bailarina que dançava.O barão admirava a bailarina que, com um olhar lânguido, dançava.

A moto em que ele estava passeando lentamente saiu da estrada.

A análise deste período mostra que ele é formado de duas orações: A moto saiu da estrada e em que ele estava passeando. A qual das duas, no entanto, se liga o advérbio lentamente? Da forma como foi colocado, pode se ligar a qualquer uma das orações. Para evitar a ambigüidade, recorre-se a uma mudança na ordem dos vocábulos.

A moto em que lentamente ele estava passeando saiu da estrada.A moto em que ele estava passeando saiu lentamente da estrada.

No que diz respeito à regência nominal, há enunciados que se prestam a mais de uma interpretação. Do enunciado A liquidação da Mesbla foi realizada no fim do verão pode ser entendido que a Mesbla foi liquidada, foi vendida ou que a Mesbla promoveu uma liquidação de seus produtos. Isso acontece porque o nome liquidação está acompanhado de um outro termo (da Mesbla). Dependendo do sentido que se quer dar à frase, pode-se reescrevê-la de duas maneiras:

A Mesbla foi liquidada no fim do verão.A Mesbla promoveu uma liquidação no fim do verão.

A lei é um absurdo do começo ao fim. Primeiro, porque permite aos moradores da superquadra isolar uma área pública, não permitindo que os demais habitantes transitem por ali. Segundo, o projeto não repassa aos moradores o custo disso, ou seja, a responsabilidade pela coleta de lixo, pelos serviços de água e luz e pela instalação de telefones. Pelo contrário, a taxa de limpeza pública seria reduzida para os moradores. Além disso, a aprovação do texto foi obtida mediante emprego de argumentos falsos.

(Revista VEJA, julho/97)

Primeiro e Segundo - estes conectores indicam a ordem dos argumentos, dos assuntos.

5. Estruturação textual

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Um texto é, em geral, constituído por parágrafos, que o autor vai encadeando com o intuito de desenvolver uma idéia, uma argumentação. Um parágrafo é formado por uma idéia principal à qual se ligam idéias secundárias. Entre as idéias secundárias e a principal existem relações de diferentes tipos: causa, comparação, comprovação, conseqüência, contra-argumentação, contraposição, definição, detalhamento, exemplificação, explicação, projeção.

Causa – a idéia secundária apresenta uma causa da idéia principal.

O teste de DNA determina com precisão quem é o pai de uma criança. A Ciência conseguiu eliminar a imprecisão da paternidade.

O Brasil fracassou na tentativa de desenvolver uma tecnologia espacial de ponta. A manobra adotada pelo Inpe para colocar o Saci-1 em órbita pode ser a causa do fracasso da experiência.

Comparação – as idéias secundárias estabelecem entre si ou com a principal uma relação de comparação.

a) Falar de assuntos relacionados ao sexo com maior franqueza ajuda a prevenir doenças como a AIDS. Os americanos condenam o sexo antes do casamento mais do que os ingleses, na proporção de 25% contra 8%. Praticamente os mesmos dados se aplicam ao assunto homossexualismo.

b) O cientista não é uma pessoa que pensa melhor do que as outras. O cientista é como um pianista que domina uma técnica, mas não sabe executar uma música.

c) O Brasil fracassou na tentativa de desenvolver uma tecnologia espacial de ponta. Os americanos são mais desenvolvidos do que os brasileiros na ciência aeroespacial.

Comprovação – a idéia secundária contribui para comprovar a idéia principal.

a) Falar de assuntos relacionados ao sexo com maior franqueza ajuda a prevenir doenças como a AIDS. As estatísticas mostram que a cada 100 000 habitantes 9,4 morrem nos EUA em decorrência de AIDS.

b) Algumas estrelas ficam gulosas ao envelhecer e passam a engolir corpos celestes. Há cientistas que estudam esse processo apoiados por observação por telescópio espacial.

c) O Brasil fracassou na tentativa de desenvolver uma tecnologia espacial de ponta. O satélite Saci-1 não está sinalizando sua órbita.

Conseqüência – a idéia secundária contém uma conseqüência da idéia principal.

a) O lançamento do boletim eletrônico permite que os pais acompanhem o desempenho escolar dos filhos, via Internet. Agora é mais difícil esconder as notas baixas.

b) Adolescentes insatisfeitos com a própria aparência correm mais risco de começar a fumar do que os da mesma idade com peso dentro da média. Cada vez os jovens começam a fumar mais cedo.

c) O teste de DNA determina com precisão quem é o pai de uma criança. Cresce o número de homens que fazem teste de DNA.

d) O teste de DNA determina com precisão quem é o pai de uma criança. Pessoas atualmente recorrem ao teste para, em caso de dúvida, confirmar a paternidade.

e) O teste de DNA determina com precisão quem é o pai de uma criança. A demanda pelo teste é grande.

f) O Brasil fracassou na tentativa de desenvolver uma tecnologia espacial de ponta. O Inpe pediu ajuda à Nasa para recuperar o Saci-1.

Contra-argumentação – a idéia secundária contém um argumento que é contrário ao apresentado na idéia principal.

a) O cientista não é uma pessoa que pensa melhor do que as outras. Um instrumento científico que fosse a melhoria de um sentido que não temos seria inútil.

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Contraposição – a idéia secundária se contrapõe à idéia principal.

a) O cientista não é uma pessoa que pensa melhor do que as outras. Existe um mito de que o cientista pensa melhor do que os outros.

Definição – as idéias secundárias ajudam a definir uma parte da idéia principal, contribuindo para a sua compreensão.

a) O cientista não é uma pessoa que pensa melhor do que as outras. A ciência é uma especialização de potenciais comuns a todos. Um instrumento é uma extensão de uma parte do corpo. A ciência é hipertrofia de capacidades que todos têm. Especialização é conhecer cada vez mais de cada vez menos.

Detalhamento - as idéias secundárias contêm detalhes que ilustram a idéia principal.

a) O lançamento do boletim eletrônico permite que os pais acompanhem o desempenho escolar dos filhos, via Internet. 20 escolas em 10 estados brasileiros já utilizam o projeto. Os pais podem consultar na Internet o desempenho escolar. Os filhos podem acessar a escola pela Internet. O programa foi lançado oficialmente em agosto de 1999. O nome do projeto é Escola 24 horas.

b) Uma pesquisa está redescobrindo a mulher do século XIX e revelando o novo perfil da família brasileira. A mulher não podia estudar. A mulher não podia votar. A mulher enfrentava longas jornadas de trabalho. A família era menor do que se pensava. Muitas famílias eram do tipo nuclear. A taxa de mortalidade infantil era muito alta. A falta de emprego no local onde viviam obrigava muitos homens a se afastar de casa. Era grande o número de mulheres que trabalhavam e chefiavam a família.

c) Uma pesquisa está redescobrindo a mulher do século XIX e revelando o novo perfil da família brasileira. As mulheres reclamavam de espancamento e adultério. As mulheres pediam a separação. A lei era severa, protegendo o homem. A sociedade esperava da mulher uma atitude de obediência e submissão. Estudos feitos anteriormente se restringem às elites.

d) O teste de DNA determina com precisão quem é o pai de uma criança. O exame de DNA é caro. A maioria dos convênios médicos não cobre esse tipo de teste. 10% das crianças nascidas ao redor do globo não foram geradas por seus presumidos pais. Há poucos laboratórios para fazer o teste de DNA. O Genomic é um laboratório muito procurado. Os laboratórios estão muito sobrecarregados. Foi criado o DNA On Line para tirar dúvidas.

Exemplificação – as idéias secundárias reforçam a principal por meio de exemplos.

a) Falar de assuntos relacionados ao sexo com maior franqueza ajuda a prevenir doenças como a AIDS. Os ingleses são mais francos nas pesquisas e nas campanhas de prevenção às doenças sexualmente transmissíveis. Na Inglaterra este número cai para 0,7 por 100 000 habitantes.

Explicação – a idéia secundária serve para explicar a idéia principal.

a) O Brasil fracassou na tentativa de desenvolver uma tecnologia espacial de ponta. O Saci-1 era a tentativa brasileira de produzir ciência aeroespacial com pouco dinheiro.

Projeção – a idéia secundária avança, para um tempo futuro, o assunto que é apresentado na idéia principal.

a) O lançamento do boletim eletrônico permite que os pais acompanhem o desempenho escolar dos filhos, via Internet. Câmaras instaladas nas escolas permitirão aos pais o acompanhamento dos filhos.

b) Algumas estrelas ficam gulosas ao envelhecer e passam a engolir corpos celestes. É muito remota a possibilidade de esse fenômeno ocorrer no sistema solar.

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Essas relações lógicas entre a idéia principal e as idéias secundárias podem ser observadas com clareza nos parágrafos a seguir, elaborados a partir da mesma idéia principal. A diferença entre eles deriva da forma como cada um se desenvolve.

Parágrafo 1 - por definição

“A informática tem importante papel na educação hoje em dia. Por informática devemos entender tudo aquilo que se refira à criação, manipulação e transmissão de informação por intermédio de computadores, essas máquinas incríveis que estão cada vez mais ajudando o homem - no trabalho, na vida doméstica, no lazer.”

A idéia principal deste parágrafo é “A informática tem importante papel na educação hoje em dia.” Para desenvolver essa idéia, o parágrafo apresenta duas definições:

o que é informática = “criação, manipulação e transmissão de informação por intermédio de computadores”

o que é computador = “máquinas incríveis que estão cada vez mais ajudando o homem - no trabalho, na vida doméstica, no lazer”

Parágrafo 2 - por detalhamento

“A informática tem importante papel na educação hoje em dia. O acesso à Internet permite que cada estudante possa obter informação do que se passa em todo o mundo. O uso do cd-rom traz para a sala de aula uma infinidade de recursos audiovisuais, essenciais para o ensino das ciências, da geografia e das línguas estrangeiras. Programas editores de texto, programas de desenho, dicionários eletrônicos vão ajudar a todos no desempenho de inúmeras tarefas escolares e preparar futuros profissionais.”

A idéia principal deste parágrafo também é “A informática tem importante papel na educação hoje em dia.” Mas a diferença é que, para desenvolver essa idéia, o parágrafo apresenta um detalhamento dos recursos que a informática oferece para a melhoria do processo educacional:

acesso à Internet permitindo obter informação de todo o mundo;

uso do cd-rom com recursos audiovisuais, nas aulas de ciências, geografia e línguas estrangeiras;

programas editores de texto;

programas de desenho;

dicionários eletrônicos.

O parágrafo recebe também uma conclusão: esses recursos “vão ajudar a todos no desempenho de inúmeras tarefas escolares e preparar futuros profissionais.”

Parágrafo 3 - por exemplificação

“A informática tem importante papel na educação hoje em dia. E os alunos da Escola Municipal Monteiro Lobato são um bom exemplo disso: desde fevereiro de 1999, eles fazem inúmeras pesquisas para as aulas de geografia e ciências nas páginas de universidades de todo o mundo. Isso só foi possível porque um laboratório foi montado na escola e cada aluno pode passar até 5 horas por semana consultando a Internet para realizar seus trabalhos escolares.”

A idéia principal deste parágrafo também é “A informática tem importante papel na educação hoje em dia.” Mas a diferença é que, para desenvolver essa idéia, o parágrafo apresenta a exemplificação de uma escola que utiliza a informática na sala de aula: “os alunos da Escola Municipal Monteiro Lobato são um bom exemplo disso.” Várias informações são fornecidas:

data: “desde fevereiro de 1999”;

tipo de atividade desenvolvida: “os alunos fazem inúmeras pesquisas para as aulas de geografia e ciências nas páginas de universidades de todo o mundo”;

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como é o projeto: “um laboratório foi montado na escola e cada aluno pode passar até 5 horas por semana consultando a Internet para realizar seus trabalhos escolares.”

Parágrafo 4 - por comparação

“A informática tem importante papel na educação hoje em dia. Se compararmos a quantidade de informação acessível a estudantes e professores, nesse momento, com a informação disponível há alguns anos, poderemos ter uma medida dessa importância: uma enciclopédia eletrônica supera, em alguns aspectos, as possibilidades de um livro didático comum; além disso, pela Internet, podemos, sem sair da cadeira, consultar fontes de outros países ou ouvir a opinião de alguém sobre determinada questão.”

A idéia principal deste parágrafo também é “A informática tem importante papel na educação hoje em dia.” Mas, a diferença é que, para desenvolver essa idéia, o parágrafo faz uma comparação entre dois momentos diferentes:

antes: o professor só dispunha do livro como apoio para pesquisa;

agora: são enormes os recursos que as enciclopédias eletrônicas e a Internet oferecem ao estudante e ao professor.

Parágrafo 5 - por causa/conseqüência

“A informática tem importante papel na educação hoje em dia. A introdução do computador na sala de aula e a conexão das escolas na Internet exigirão uma preparação adequada dos professores e dos alunos para lidarem com as máquinas e para enfrentarem as questões apontadas a partir dessa nova realidade. Se não houver essa preparação, tais atividades terão pouca validade pedagógica. A utilização da informática e da Internet na escola pode correr o risco de se fechar em si mesma, isto é, no uso do computador pelo computador.”

A idéia principal deste parágrafo também é “A informática tem importante papel na educação hoje em dia.” Mas, a diferença é que, para desenvolver essa idéia, o parágrafo apresenta algumas conseqüências da utilização da informática como auxiliar no processo educacional:

conseqüência obrigatória: preparação adequada dos professores e dos alunos para lidarem com as máquinas e para enfrentarem as questões apontadas a partir dessa nova realidade;

conseqüência possível: a utilização da informática e da Internet na escola pode correr o risco de se fechar em si mesma, isto é, no uso do computador pelo computador.

6. Estudo de texto

O editorial a seguir é estudado de modo a explicitar as competências envolvidas no processo de leitura e produção de textos.

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(Editorial do jornal O Globo de 3 de fevereiro de 2007)

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Contexto de produção

Esse texto foi publicado em fevereiro de 2007 no jornal O Globo, veículo de grande circulação nacional. Reflete uma questão da atualidade, que tem se configurado como uma das grandes preocupações deste início de século – o aquecimento global e suas conseqüências para as gerações futuras. Essa reflexão se destina tanto a leitores que já têm consciência do problema quanto aos que precisam ser mobilizados para uma mudança de comportamento. Esse texto foi escrito em registro formal e não vem assinado porque representa a linha editorial do jornal.

Gênero textual – editorial

Este gênero textual faz parte dos textos de opinião. Expressa a opinião do veículo (jornal, revista) a respeito de assunto marcante da atualidade, geralmente polêmico, com o objetivo de convencer o leitor a tomar uma atitude. Apresenta uma tese que pode ser fundamentada por depoimentos, pesquisas, exemplificações, citações, dados estatísticos. A linguagem do editorial deve apresentar clareza, objetividade, impessoalidade, além de estar de acordo com a variante formal da língua.

O texto Sinal de alarme é um editorial porque apresenta a posição do jornal frente à importante questão do aquecimento global. Para isso, analisa dados apresentados por cientistas a respeito do problema e, com base nesse diagnóstico, procura persuadir os leitores da urgência de tomar atitudes firmes.

Modo de organização do discurso – argumentativo

O texto de base argumentativa defende um ponto de vista a respeito de determinado assunto e procura influenciar o leitor, convencê-lo por meio de recursos argumentativos. Assim, apresentar hipóteses com clareza, justificá-las com base em argumentos, estabelecer relações lógicas entre os argumentos e contra-argumentos, exemplificar e encaminhar conclusões constituem a base desse modo de organização do discurso.

O editorial Sinal de alarme apresenta a tese “A situação de emergência em que se encontra o planeta exige medidas urgentes para reduzir as conseqüências do aquecimento global.”

O autor vale-se de uma série de argumentos para defender sua idéia:

parte dos efeitos do aquecimento global já pode ser considerada irreversível;

o relatório da ONU, elaborado por cientistas, aponta as conseqüências catastróficas do aumento da temperatura média do planeta;

as conseqüências tendem a crescer até o fim deste século;

segundo os cientistas, o efeito estufa é causado pela atividade humana;

há mais de nove anos o Protocolo de Kioto já propunha medidas para corrigir esse problema;

a recusa dos Estados Unidos em assinar o Protocolo de Kioto dificulta a concretização das providências necessárias;

o presidente da França apela para mudanças radicais.

Esses argumentos apóiam-se em dados numéricos:

aumento da temperatura média do planeta em 1,8 a 4 graus Celsius;

elevação do nível dos mares entre 18 e 60 centímetros;

relatório elaborado por 2500 cientistas;

90% de probabilidade do efeito estufa ser causado por atividade humana;

os Estados Unidos têm 5% da população mundial e emitem 25% dos gases do efeito estufa.

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A partir dos argumentos, elabora-se a conclusão: “O diagnóstico está feito e as dúvidas dissipadas; resta agir.”

Em cada parágrafo, o editorialista apresenta os argumentos que apóiam sua tese e encerra com a explicitação de seu ponto de vista, extremamente crítico, sobre a falta de atitudes concretas no âmbito mundial.

Coerência

A interação autor/texto/leitor é determinante na construção do sentido. A partir das pistas oferecidas, o leitor ativa seus conhecimentos prévios para estabelecer a coerência do texto. Apóia-se, para isso, na identificação do tema, na identificação de idéias principais e secundárias, no acompanhamento da progressão temática, na adequação do vocabulário com base nos diferentes campos semânticos e associativos relacionados ao tema, nas relações lógicas que se estabelecem entre as idéias, no diálogo com outros textos da memória coletiva, estabelecendo relações de intertextualidade.

O texto Sinal de alarme se constrói em torno do tema “O aquecimento global causado pelo homem” e se vale de argumentos para defender a idéia da necessidade de providências imediatas para conter esse processo. Como o efeito estufa é um assunto muito discutido atualmente nos meios de comunicação, o leitor faz inferências para concluir que alguns países são mais responsáveis do que outros pela situação do planeta, que poucas providências estão sendo tomadas pelos maiores poluidores, que o exercício da cidadania exige tomada de posição das pessoas ao escolher os dirigentes, que o consumismo exagerado é um dos maiores responsáveis por essa situação dramática, enfim, que a humanidade está seriamente ameaçada. Há também, no texto, muitas referências históricas, o que facilita a sua localização no tempo: Protocolo de Kioto assinado em 2005, relatório da ONU sobre o clima divulgado em fevereiro de 2007, governo francês de Jacques Chirac.

Para os leitores mais informados, que têm conhecimento do conteúdo do texto do Protocolo de Kioto, considerado muito tímido pelo editorialista, do relatório da ONU, considerado alarmante pelos cientistas, ou do discurso de Jacques Chirac, representando o clamor mundial por mudanças, instauram-se relações intertextuais.

A progressão temática do texto pode ser percebida na construção dos cinco parágrafos que constituem o editorial. Nos quatro primeiros, são apresentados argumentos que encaminham para a conclusão contida no último parágrafo.

Parágrafo Etapas de desenvolvimento do conteúdo

1ºApresentação da questão da irreversibilidade do aquecimento global apoiada em previsões alarmantes feitas por cientistas na hipótese de ausência de medidas para enfrentar o problema.

2ºAnálise sobre a principal causa do efeito estufa (queima de petróleo e carvão; interesses de grandes setores industriais e governamentais) e apresentação de solução para o problema (controle da emissão de gases).

3ºReflexão sobre a necessidade urgente de medidas e a demora na concretização de ações devido à falta de adesão ao protocolo de Kioto por um país (Estados Unidos) responsável pelo aumento do efeito estufa.

4ºReafirmação sobre a gravidade da situação e a necessidade de uma verdadeira revolução, com base na referência a um órgão internacional (ONU) e ao presidente de um país (França).

5º Conclusão do processo de argumentação com apelo à tomada de atitude.

Page 42: Reflexões sobre texto e ensino

A seguir, detalham-se as idéias contidas em cada parágrafo e o modo de organização do discurso em que foram desenvolvidas.1º parágrafo – a irreversibilidade dos efeitos do aquecimento global

Período Etapas de desenvolvimento do conteúdo Modo de organização

1ºConstatação que apóia a tese e que serve para impactar o leitor.

expositivo

2ºAnálise dos cientistas, em relatório da ONU, explicando as conseqüências do aumento da temperatura global.

expositivo

3º Afirmação bombástica sobre a necessidade de atitudes. argumentativo

2º parágrafo – a responsabilidade do homem (indústrias e governos)

Período Etapas de desenvolvimento do conteúdo Modo de organização

1º Apresentação das causas do aumento da temperatura. expositivo

2ºDenúncia do interesse das indústrias e dos governos MASApresentação de soluções e justificativa.

argumentativo

3º parágrafo – a urgência da situação e a lentidão na tomada de medidas

Período Etapas de desenvolvimento do conteúdo Modo de organização

1º Alerta para a urgência de soluções. argumentativo

2º A demora em colocar em prática o protocolo de Kioto. expositivo

3º Explicação sobre a responsabilidade dos EUA na demora em aplicar o protocolo de Kioto deixando implícito que os maiores poluidores não aderiram.

expositivo

4º Alerta sobre a urgência na ação. argumentativo

4º parágrafo – sinal de alarme para a necessidade de medidas radicais

Período Etapas de desenvolvimento do conteúdo Modo de organização

1º Justificativa do título. expositivo

2º Encaminhamento da conclusão com base na citação dos cientistas.

argumentativo

3º Encaminhamento da conclusão com base na citação do presidente da França

argumentativo

5º parágrafo – conclusão

Período Conteúdo Modo de organização

1º Conclusão do processo argumentativo e apelo à tomada de atitude.

argumentativo

Page 43: Reflexões sobre texto e ensino

Por se tratar de um editorial, o texto não explora recursos polissêmicos, já que a precisão da linguagem é essencial para a defesa de uma idéia e a adesão do leitor.

Na seleção vocabular, pode-se constatar que os substantivos pertencem aos seguintes campos semânticos: elementos da natureza (clima, chuva, mares, temperatura, ilhas, cidades, água, gases, geleiras); processos que expressam mudanças que estão ocorrendo na natureza (fenômenos, efeito estufa, aquecimento, derretimento, dilatação, inundação, desertificação, escassez, queima); diagnóstico (cientistas, relatório, painel, resultado, processo, sinal de alarme, conferência, problema); gravidade da situação (crise, situação de emergência, revolução, ação, inação, prazo, medidas).

No que diz respeito à adjetivação, observa-se seu caráter “contundente” para transmitir a idéia de urgência da situação, na tentativa de chamar a atenção do leitor para a gravidade do problema do aquecimento global: irreversível, intolerável, enormes, verdadeira, estrito, negativos, global, crescente. Alguns deles são antepostos aos substantivos para enfatizar a sua função persuasiva: estrito controle, verdadeira revolução, enormes dimensões.

Os verbos podem ser divididos em dois grupos: os verbos de sentido específico referem-se à ação dos cientistas e autoridades que diagnosticaram o problema; os verbos de sentido genérico, combinados a nomes substantivos e adjetivos, expõem o problema e exigem soluções, consubstanciando a tese do autor.

Os verbos se apresentam em diferentes tempos, de acordo com o desdobramento temático e os modos de organização do discurso:

Pretérito perfeito – para expressar os estudos elaborados, as conferências realizadas, os tratados assinados: elaboraram, concluíram, produziu, entrou em vigor.

Presente – verbos de sentido genérico utilizados para se referir à situação de emergência que o mundo está vivendo, foco da tese do autor: há, é, pode.

Futuro do presente – para fazer previsões sobre os efeitos do aquecimento na vida do homem: fenômenos que serão sentidos (constatação).

Futuro do pretérito – para expressar uma hipótese: persistir na inação seria intolerável (opinião).

Futuro do subjuntivo – para expressar condição, alertando para a necessidade de uma tomada de atitude: se nada for feito para enfrentar o problema.

Infinitivo – para expressar as propostas de ação relacionadas à tese do autor: é preciso evitar, é preciso compreender, para que possa conter, ajuda a explicar, persistir na inação é intolerável, resta agir.

Além da seleção vocabular, é preciso que o autor utilize marcas de continuidade, responsáveis pela referência a pessoas, fatos, lugares, que são introduzidas e depois retomadas, de modo a garantir a economia da linguagem e a coerência textual, já que o editorial deve ser um texto curto e objetivo.

Page 44: Reflexões sobre texto e ensino

Sinal de alarme

Parte dos efeitos do aquecimento global já pode ser considerada irreversível. Segundo os 2.500 cientistas que elaboraram o relatório do painel da ONU sobre o clima divulgado ontem, não há como evitar o aumento da temperatura média do planeta em 1,8 a 4 graus Celsius e, em alguma medida, suas conseqüências: elevação do nível dos mares em algo entre 18 e 60 centímetros, devido ao derretimento das geleiras e à dilatação da água, com a inundação de ilhas - habitadas ou não - e cidades costeiras; aumento da desertificação; mudanças no padrão de chuvas; escassez de água potável. Fenômenos que serão sentidos de maneira crescente pelo menos até o fim deste século, e nos próximos mil anos se nada for feito para enfrentar o problema.

Ao mesmo tempo, os cientistas concluíram que, com mais de 90% de probabilidade - o que significa dizer, além de qualquer dúvida razoável -, o efeito estufa é mesmo causado pela atividade humana, principalmente pela queima de petróleo e carvão. Noção que certamente contraria interesses de grandes setores industriais e mesmo de governos, mas deixa claro o rumo a ser seguido - o mais estrito controle da emissão de gases -, para que se possa conter em alguma proporção os resultados negativos do processo de aquecimento.

É preciso compreender, contudo, que o prazo é cada vez mais curto. Há mais de nove anos que se realizou a conferência que produziu o Protocolo de Kioto, já na época criticado pela sua timidez frente às enormes dimensões de um problema que na realidade era conhecido há décadas. E quando o protocolo entrou em vigor, passando a tratado, em 2005, não contava, como ainda não conta, com a adesão dos Estados Unidos - que têm 5% da população mundial e emitem 25% dos gases do efeito estufa. Isso ajuda a explicar por que tão pouco de concreto se fez de lá para cá. Mas persistir agora na inação seria intolerável.

O relatório da ONU é um sinal de alarme. Os próprios cientistas que o elaboraram falam em situação, mais do que crise, de emergência. Nas palavras do presidente da França, Jacques Chirac, não é mais hora de meias medidas, mas de uma verdadeira revolução.

O diagnóstico está feito e as dúvidas dissipadas; resta agir.

A reiteração de palavras ou expressões é utilizada, no texto, para a referência aos elementos básicos do tema: cientistas/ os próprios cientistas; Protocolo de Kioto/o protocolo; o relatório do painel da ONU/o relatório da ONU.

Um recurso de referenciação muito importante para esse editorial é a substituição de palavras ou expressões por outras que contêm um juízo de valor, porque isso ajuda o leitor a compreender a posição defendida pelo editorialista e, em alguns casos, a formar sua própria opinião:

aquecimento global / aumento da temperatura média do planeta / o problema / efeito estufa / processo de aquecimento / um problema

conseqüências do aquecimento / fenômenos

com mais de 90% de probabilidade / além de qualquer dúvida razoável

o presidente da França / Jacques Chirac

Page 45: Reflexões sobre texto e ensino

Expressões metadiscursivas são utilizadas no texto para retomar idéias desenvolvidas em parágrafos anteriores ou no texto como um conjunto:

(efeito estufa ser causado pela atividade humana) / noção (2º par.)

(todo o texto) / o diagnóstico (5º par.)

Ainda com essa função, encontra-se também o pronome isso (3º par.), forma resumitiva utilizada para fazer referência à falta de compromisso dos EUA com os princípios do Protocolo de Kioto, agora transformado em Tratado. Já o pronome nada (se nada for feito) não tem referente explícito mas sim implícito, porque o leitor pode se remeter a uma infinidade de outros textos que apontam as soluções.

São inúmeras as ocorrências de formas pronominais para retomar palavras ou expressões nomeadas anteriormente:

(cientistas) que elaboraram

(aumento da temperatura média do planeta) suas conseqüências

(fenômenos) que serão sentidos

(com mais de 90% de probabilidade) o que significa dizer

(noção) que certamente contraria

(conferência) que produziu

(o protocolo de Kioto) sua timidez

(um problema) que era conhecido

(EUA) que têm 5% da população mundial e emitem 25% dos gases do efeito estufa

(cientistas) que o (relatório na ONU) elaboraram

Para garantir o encadeamento lógico das idéias, o autor utiliza marcas explícitas representadas pelos conectores ou marcas subentendidas pelo processo da justaposição. Dessa forma, o leitor pode perceber as relações lógicas que se estabelecem entre as idéias.

Temporalidade

ao mesmo tempo, os cientistas concluíram... (2º par.) e quando o protocolo entrou em vigor... (3º. par.)

Contraposição

mas deixa claro o rumo a ser seguido (2º. par.) é preciso compreender, contudo, que o prazo...(3º.par.) mas persistir agora na inação seria... (3º.par.) mas de uma verdadeira revolução (4º.par.)

Causa

ajuda a explicar por que tão pouco de concreto... (3º.par.)

Finalidade

para que se possa conter em alguma proporção... (2º.par.)

Conclusão

o diagnóstico está feito e as dúvidas dissipadas... (5º.par.) resta agir (5º.par.)

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Adição

(não contava) como (ainda não conta) (o diagnóstico está feito) e (as dúvidas dissipadas)

Conformidade

segundo os 2500 cientistas, não há como evitar... (1º.par.)

Condição

se nada for feito para enfrentar o problema... (1º. par.)

As referências ao momento histórico utilizadas pelo autor na sua argumentação são feitas por meio das seguintes expressões:

ontem (dia 2/2/2007) até o fim deste século nos próximos mil anos ao mesmo tempo há mais de nove anos na época de lá (mais de nove anos) para cá (2007) agora há décadas em 2005

A ausência de referências espaciais pode ser interpretada como uma intenção do autor de chamar a atenção do leitor para o fato de que esse problema é mundial, não tem uma localização específica. Na verdade, a única referência espacial (de lá ... para cá) foi empregada como referência temporal.

Conclusões

A concepção de ensino da língua materna aqui proposta envolve, portanto:

a comparação entre textos de gêneros diversos e os diferentes modos de organização do discurso;

a observação do contexto de produção textual;

a percepção e a utilização de procedimentos responsáveis pela coerência textual;

a percepção e a utilização de procedimentos responsáveis pelo encadeamento e pela referenciação, condições fundamentais para a estruturação do texto;

a consciência do caráter dinâmico e criativo do vocabulário;

a ampliação de enunciados por meio dos processos de subordinação e coordenação;

o relacionamento entre classe e função dos vocábulos na unidade maior que é a frase.

Os cinco primeiros aspectos foram abordados nesta primeira parte, os dois últimos constituirão a segunda parte das reflexões sobre texto e ensino.

Page 47: Reflexões sobre texto e ensino

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