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Campina Grande, REALIZE Editora, 2012 1 RELAÇÕES DE DOMINAÇÃO/SUBORDINAÇÃO DE GÊNERO NO CONTO DE FADA TRADICIONAL “CINDERELA” Ladyana dos Santos Lobato Universidade Federal do Pará/UFPA Carlos Augusto Sarmento-Pantoja Universidade Federal do Pará/UFPA (Coautor) RESUMO: Na presente comunicação nos propomos a identificar as relações de dominação/subordinação de gênero que estão reproduzidas no conto de fada tradicional “Cinderela”. Para isso utilizaremos três versões diferentes do conto de fada selecionado: Reuniremos, nesta comunicação, discussões teóricas sobre Ideologia e Relações de Gênero a fim de justificar a análise que pode ser feita sobre o referido conto de fada, em especial, sobre o perfil físico e psicológico dos personagens. Perceberemos que a reprodução de estereótipos socialmente atribuídos aos gêneros pode ser identificada através do enredo, das falas e da representação gráfica dos personagens, por isso nesta comunicação identificaremos, justificaremos com a fundamentação teórica e comprovaremos com passagens do próprio conto, concepções que denotam para inferioridade feminina e relação estreita da mulher a vida familiar e doméstica, ressaltando a contribuição deste artefato literário (o conto) na formação da identidade de gênero das crianças. Palavras-Chaves: contos de fada, relações de gênero, ideologia, dominação/subordinação. INTRODUÇÃO Como foco de análise desta comunicação, discorreremos sobre os estudos de dominação de gênero presentes nos contos de fada tradicionais, uma vez que identificamos, nesses contos, a representação de determinados perfis de masculinidade e de feminilidade que estão reproduzindo e propagando um tipo de sujeito social normalizado pela sociedade e que acaba legitimando certas práticas de discriminação à mulher que ainda emergem no interior de diversas instâncias sociais, de forma bastante sutil. Entre essas instâncias, encontramos a família, a escola, a igreja, a política e em especial, as instâncias culturais, tais como os contos de fada, os quais foram destacados para esta análise porque são considerados clássicos da literatura infantil, estão

RELAÇÕES DE DOMINAÇÃO/SUBORDINAÇÃO DE GÊNERO NO CONTO DE ...editorarealize.com.br/revistas/fiped/trabalhos/7183e89031f4d35... · Campina Grande, REALIZE Editora, 2012 1 RELAÇÕES

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Campina Grande, REALIZE Editora, 2012

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RELAÇÕES DE DOMINAÇÃO/SUBORDINAÇÃO DE GÊNERO NO

CONTO DE FADA TRADICIONAL “CINDERELA”

Ladyana dos Santos Lobato – Universidade Federal do

Pará/UFPA

Carlos Augusto Sarmento-Pantoja – Universidade Federal do

Pará/UFPA (Coautor)

RESUMO: Na presente comunicação nos propomos a identificar as relações de

dominação/subordinação de gênero que estão reproduzidas no conto de fada tradicional

“Cinderela”. Para isso utilizaremos três versões diferentes do conto de fada selecionado:

Reuniremos, nesta comunicação, discussões teóricas sobre Ideologia e Relações de Gênero a

fim de justificar a análise que pode ser feita sobre o referido conto de fada, em especial, sobre o

perfil físico e psicológico dos personagens. Perceberemos que a reprodução de estereótipos

socialmente atribuídos aos gêneros pode ser identificada através do enredo, das falas e da

representação gráfica dos personagens, por isso nesta comunicação identificaremos,

justificaremos com a fundamentação teórica e comprovaremos com passagens do próprio conto,

concepções que denotam para inferioridade feminina e relação estreita da mulher a vida familiar

e doméstica, ressaltando a contribuição deste artefato literário (o conto) na formação da

identidade de gênero das crianças.

Palavras-Chaves: contos de fada, relações de gênero, ideologia, dominação/subordinação.

INTRODUÇÃO

Como foco de análise desta comunicação, discorreremos sobre os estudos de

dominação de gênero presentes nos contos de fada tradicionais, uma vez que

identificamos, nesses contos, a representação de determinados perfis de masculinidade e

de feminilidade que estão reproduzindo e propagando um tipo de sujeito social

normalizado pela sociedade e que acaba legitimando certas práticas de discriminação à

mulher que ainda emergem no interior de diversas instâncias sociais, de forma bastante

sutil.

Entre essas instâncias, encontramos a família, a escola, a igreja, a política e em

especial, as instâncias culturais, tais como os contos de fada, os quais foram destacados

para esta análise porque são considerados clássicos da literatura infantil, estão

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carregados de simbolismo, retratam figuras femininas e fazem com que facilmente nos

identifiquemos com eles. A abordagem que discorremos sobre os contos de fada seguiu

os estudos teóricos de Figueiredo (2006), WIKIPÉDIA (2007), Rogel (1985), Vieira

(2005), Coelho (2005), Oliveira (2006), Oliveira (2007), Abramovich (1997) e

Abramowicz (2006).

O que queremos destacar, no entanto, quando falamos em contos de fada, é que

estes, desde sua história, sempre estiveram ligados a instrução das crianças. Entre os

conteúdos “ensinados” pelos contos de fada, aquele relacionado a questões de gênero

foi o que mais nos chamou atenção porque este aspecto retoma todo um processo

histórico e social que acompanhou a trajetória da mulher até os dias atuais. Relembrar a

forma como esse processo foi desencadeado, desde a segregação da mulher até as lutas

dos movimentos feministas contemporâneos, as lacunas deixadas por eles, além da

emergência do gênero, foi de fundamental importância para se melhor situar e adequar a

presença feminina nos contos de fada, mais especificamente, no conto “Cinderela”.

Contribuíram com essa fundamentação sobre gênero a abordagem teórica de Louro

(1997), Duarte (2004) e o GTPOS (2001), os quais nos ajudaram a perceber, através da

análise desse conto que a mulher, de um lado, assume um espaço social tradicional, no

qual é destinada a vida doméstica e a submissão ao homem, e de outro, é apresentada

segundo um modelo padrão de características físicas e psicológicas.

Essas questões que circundam a figura feminina nos contos de fada se devem a

uma ampla ideologia que ainda perpetua sobre o perfil da figura feminina. Dividida em

relações de dominação, não só de gênero, mais também de classe, de raça e idade, a

sociedade utiliza-se de diversos mecanismos para manter esses tipos de relações. Neste

caso usa a ideologia para divulgar certos tipos de concepções e acaba contribuindo com

a construção de um pensamento unificado, envolto em formas invertidas da realidade,

que devem ser aceitas naturalmente. O discurso ideológico representa, portanto, um

elemento mantenedor das relações sociais atuais, nas quais a mulher conquistou um

espaço antes restrito ao masculino, modificou diversas práticas de discriminação, mas

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ainda continua a ser vista como inferior e de uma forma preconceituosa por diversas

instâncias sociais. Utilizamos para falar sobre ideologia os estudos de Lowy (1988),

Aranha (1993) e Chauí (2002).

Em síntese, os contos de fada estão contribuindo com a propagação de

ideologias que manifestam uma dominação masculina e estabelecem um lugar

secundário para a mulher, fato que se dá de forma bastante implícita e a reprodução

desse tipo de relação social acaba sendo “ensinadas” às crianças, escondida pos trás de

sua suposta inocência. Consequentemente, com isso, não só as crianças, mas todos os

leitores e ouvintes dos contos de fada estão formando sua forma de ver, entender e

reproduzir as relações sociais ocorridas na sociedade de que fazem parte.

Dessa forma, falar sobre relações de gênero, ideologia e dominação sempre nos

conduzirá para uma discussão extremamente útil e necessária devido à atualidade de tal

temática. Analisá-los, no entanto, como artefatos culturais amplamente reconhecidos,

fazem dessa pesquisa um estudo bastante interessante e de elevada relevância e

necessidade social. A concretização dessa pesquisa não só nos ajudou a compreender as

relações sociais existentes entre homens e mulheres que ocorreram ao longo de todo um

processo histórico e social de conquistas e opressões femininas, mas também nos atentar

para a precisão de se repensar as relações entre os gêneros levando em consideração

diversos questionamentos sobre que feminismo se quer e de que masculino estamos

falando.

Este trabalho também se faz importante porque percebemos que as relações de

dominação de gênero precisam ser estudadas mais intensificadamente e analisadas sob

diversos ângulos, inclusive do ponto de vista das instâncias destinadas às crianças, pois

uma vez que identificamos concepções ideológicas de dominação reproduzidas

naturalmente pelos contos de fada, em especial, pelos contos “Cinderela”, “Branca de

Neve” e “A Bela e a Fera”, nos quais percebemos a disseminação de perfis

estereotipados de feminino e masculino, ficamos cientes de que os contos de fada estão

contribuindo com a internalização e propagação de modelos que ideologicamente são

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impostos para os indivíduos. Dado esta ciência, esta pesquisa estará se transformando

num espaço de revelação, crítica e análise para servir de suporte as pessoas interessadas

na educação das crianças, pois o referencial teórico abordado contribuirá efetivamente

na análise descritiva dos contos, uma vez que este nos esclarece para informações que

encontraremos implícitos e explícitos nos contos de fada e que antes nos era desprovido

por conta da falta de embasamento teórico e por nos encontrarmos envolvidos por tais

ideologias.

Assim esta pesquisa, objetivou identificar as relações de dominação de gênero

nos contos de fada “Cinderela”, “Branca de Neve” e “A Bela e a Fera”, além disso,

observar quais os discursos ideológicos presentes nestes contos de fada contribuem para

que a mulher seja considerada submissa ao homem e destinada ao mundo doméstico;

caracterizar as mensagens e as representações gráficas dos contos de fada que associam

a mulher a um ideal de corpo, cor, beleza física e atributos psicológicos; perceber nos

contos de fada os aspectos ideológicos de universalização, naturalização e inversão; e

estabelecer a definição de características gerais que podem ser comuns a todos os contos

de fada.

No entanto, para que estes objetivos fossem alcançados, utilizou-se como

procedimento metodológico a pesquisa qualitativa, a qual consiste num método de

investigação que busca definir os aspectos problematizadores, levantando dados e

obtendo informações adicionais, antes que se possa desenvolver uma abordagem

discursiva sobre o referido tema. Por isso, baseando-se nos dados oferecidos pelo

levantamento bibliográfico pertinente ao assunto, o referencial teórico será aplicada aos

contos de fada tradicionais, “Cinderela”, “Branca de Neve” e “A Bela e Fera”, onde

manipularemos os próprios contos, cada um em três versões: “Cinderela”, da Coleção

Clássicos Encantados, Coleção Cochrane e Coleção o Mundo Encantado das Princesas;

“Branca de Neve”, da Coleção Clássicos Encantados, Coleção Clássicos Adoráveis e

Coleção Bauzinho Encantado; e “A Bela e a Fera”, da Coleção Clássicos Encantados,

Coleção Clássicos Adoráveis e Coleção Fairy Tales Castle. A análise desenvolvida será

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justificada com passagens e gravuras dos contos de onde obteremos diversas

informações, comparando, diferenciando, ratificando, indagando e refletindo sobre os

conceitos teóricos que fundamentam esta análise.

O trabalho de pesquisa em questão está organizado em três capítulos. No

capítulo I, conceituaremos toda fundamentação teórica que está relacionada com o tema,

por isso abordaremos, inicialmente, a temática dos Contos de Fada, na qual

discorreremos sobre o contexto histórico, a conceituação e as características dos contos

de fada. Em seguida abordaremos a temática Ideologia e trataremos das características

de Universalização, Naturalização e Inversão afim de melhor entendermos de que forma

a concepção ideológica se reproduz e fica subentendida por trás de diversas práticas

sociais consideradas naturais, mas que acabam supondo algum tipo de dominação.

Concluiremos o referencial teórico destacando o que concerne às Relações de Gênero,

temática pela qual resgataremos um pouco das lutas dos movimentos feministas

contemporâneos, das lacunas deixadas por estes movimentos e das concepções

ideológicas que contornavam e ainda contornam a figura feminina.

No capítulo II, apresentamos uma abordagem descritiva, na qual as informações

teóricas serão aplicadas na análise dos contos “Cinderela”, “Branca de Neve” e “A Bela

e a Fera”, a fim de aportamos as relações de dominação de gênero e os aspectos

ideológicos de universalização, naturalização e inversão que estão envolvidos,

respectivamente, nesses contos.

Para finalizar nossa pesquisa, no capítulo III, apresentamos o entrecruzamento

dos Contos de Fada que analisamos, considerando o que estes contos possuem em

comum em relação aos elementos da narrativa para que possamos inferir algumas

características aos contos de fada em geral.

Assim, esta pesquisa resulta em um espaço de revelação das ideologias contidas

nas mensagens dos contos de fada, destina-se a identificação de conteúdos que

divulgam concepções que circundam a figura feminina, a fim de refletir sobre o perfil

de mulher que está sendo propagado pelos contos de fada e onde podemos apontar

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relações de dominação. Haja vista a ingenuidade apresentada pelos contos de fada, neste

projeto, existiu o interesse em revelar o que está por trás dessa simplicidade. Contudo,

fazendo um balanço crítico sobre os discursos implícitos e explícitos dos contos de fada

e revelando suas reais ideologias, não queremos fazer disso um problema, mas ao

contrário, queremos intensificar um método de análise a fim de oferece um suporte a

pais e professores na educação das crianças.

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I - O GÊNERO NOS CONTOS DE FADA: UMA RELAÇÃO IDEOLÓGICA

1. 1 OS CONTOS DE FADA

Os contos de fadas existem há século com diferentes versões em diferentes

culturas. Segundo Figueiredo (2006), os primeiros contos de fada identificados pela

história literária são de origem céltica (séc. II a.C.) e fizeram parte da cultura oral

popular até o século XVII quando o francês Charles Perrault coletou e organizou os

contos de fada em um livro. Durante a organização Perrault adaptou os contos ao gosto

da corte francesa, diminuiu os trechos relacionados à cultura pagã e a sexualidade

humana, acrescentou ricos detalhes descritivos e uma espécie de “moral da história”, no

final do conto, diferenciando assim esses contos de sua versão original. De acordo com

Figueiredo (2006), no século XIX, os filólogos e irmãos Jacob e Wilhelm Grimm

preocupados em estudar a língua alemã e registrar seu folclore, também realizaram um

trabalho de coletânea de contos populares, acabaram publicando um livro, o qual

registrou alguns contos de fada na versão original, sem adaptações e lições morais de

Perrault. Essa publicação impulsionou o surgimento da literatura infantil com vários

autores do mundo inteiro escrevendo para crianças.

Dado esse breve contexto histórico, buscamos agora conceituar o que é um conto

de fada. Para isso, separamos o termo conto de fada para se definir inicialmente o que é

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um conto e o que é uma fada e, posteriormente, chegarmos a uma conclusão mais

abrangente.

Segundo Rogel (1985) o conto é uma forma narrativa em prosa de pequena

extensão, possui apenas um núcleo temático, o tempo e o espaço bastante reduzidos,

descreve os personagens e lugares com poucos detalhes e apresenta um conteúdo

bastante significativo que chama a atenção do leitor, muitas vezes, para o plano da

fantasia, pois “parece que podemos estabelecer a sua gênese a partir das narrativas

religiosas, das pequenas histórias sobre a vida de santos ou de personagens míticas.

Mais tarde estas pequenas narrativas foram sendo enriquecidas com elementos oriundos

do folclore, surgindo, então, seres fantásticos, tão ao gosto popular, como os dragões, os

duendes e as fadas.” (ROGEL, 1985, pág. 85). Dessa forma, destinado às narrativas de

mitos e lendas, o conto, originalmente, fazia parte da literatura oral que constituíam o

folclore popular de antigas civilizações.

As “fadas”, segundo Wikipédia (2007), possuem origem pagã e representam um

dos aspectos que caracterizam os contos de fada. São entidades fantásticas,

características do folclore europeu ocidental, apresentam-se como mulheres imortais e

dotadas de poderes sobrenaturais adequados a provocar metamorfoses, além disso,

sempre estiveram relacionadas ao amor, principalmente como elemento mediador entre

os amantes, pois são capazes de intervir na vida dos mortais para resolver problemas

que só encontram soluções através da magia. Etimologicamente a palavra fada vem do

latim fatum que significa destino, fatalidade, fado.

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Com base nesses conceitos em que se tentou definir o que é um conto e o que é

uma fada, podemos chegar ao conceito mais abrangente do que seja um conto de fadas,

propriamente dito. Ao associarmos ambos os conceitos, entendemos, sinteticamente,

que o conto de fadas trata-se de um tipo de estrutura narrativa curta que está ligada a

fantasia. No entanto, os contos de fada possuem uma dimensão que vai muito além

dessa simples associação de termos “se apresentam como a maneira mais significativa

que a humanidade encontrou para expressar aquelas experiências que não encontram

condições de se explicar no esquema lógico-formal da narrativa intencionalmente

objetiva” (VIEIRA, 2005, pág. 8). Isto é, uma forma que a humanidade encontrou de

realizar os desejos que não pode concretizar no plano da realidade, mas somente no

imaginário, através da fantasia.

Mas acontece que os contos de fada não correspondem somente a essa satisfação

de desejos, pois atreladas a essa suposta necessidade humana existem diversas relações

de dominação que são propagadas ideologicamente para constituir a mentalidade das

pessoas. Na própria história dos contos de fada percebemos que estes tinham a

finalidade de instruir moralmente as crianças, portanto seu caráter de entretenimento

pode ser entendido apenas como uma forma de reproduzir um perfil de sociedade

idealizado pelas dominações de classe, de raça ou de gênero.

No geral, os contos de fada são narrativas simples que tratam de questões éticas

universais, valorizam a formação de valores quando ressaltam o bem e denunciam o mal,

desprezando os sentimentos mais banais. É exatamente por lidarem com questões que

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norteiam a essência da condição humana, que os contos de fada perpetuam até hoje.

Meireles apud Coelho (2005, pág.11) nos diz que “os livros que têm resistido ao tempo

são os que possuem uma verdade capaz de satisfazer a inquietação humana, por mais

que os séculos passem”. No entanto, o sentido de verdade adotado nos contos de fada,

deve ser questionado, pois este supõe uma verdade absoluta, produto das mais diversas

relações sociais de poder que acabam reproduzindo ideologias que mascaram e

distorcem a realidade, motivo este que nos leva a discutir o que os contos de fada

tomam como o Bem e o Mal, o Certo e o Errado e que tipo de dominação está sendo

ocultada por trás desses valores.

Os contos de fada também expressam os obstáculos que precisam ser vencidos

para que o herói ou heroína chegue a sua auto-realização. Nos contos de fada o herói é o

personagem masculino conhecido como o príncipe e a heroína é a personagem feminina

protagonista do conto, também identificada como a princesa. Neste sentido, também

perpassa uma relação de poder em que o masculino está sempre determinado a superar

os obstáculos e auxiliar a heroína do conto nesse processo.

Assim, os contos de fada se associam a uma forma ideológica de ver o mundo,

simbolizam o caminho pessoal de desenvolvimento inscrito socialmente, por isso,

encantam as criança e os adultos desde sua criação. Segundo Abramovich (1997), os

contos de fada falam de amor, medos, descobertas, encontros, carências, perdas e buscas.

Entendemos que isso contribui com o fato de que os indivíduos facilmente se

identifiquem com os contos e encontrem neles diversos significados para sua a vida,

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pois todos esses elementos contribuem na constituição do conto e se reúnem para

construir uma intrigante narrativa que não serve apenas de divertimento, mas também

de transmissão de valores e costumes, pois os contos de fada, além de estimular a

imaginação, ajudam-nos a desenvolver o intelecto, a tornar claras as emoções, mesmo

que elas estejam banalizadas nas concepções de poder impostas pela sociedade

patriarcal.

Segundo Todorov apud Oliveira (2006), apesar do termo “conto de fadas”, essas

histórias podem contar ou não com a presença de fadas, no caso de não existirem, a

magia e o encantamento surge de outras fontes. Isto significa que a presença de uma

fada não é elemento indispensável na caracterização de um conto de fada, na verdade o

que distingue o conto de fada dos outros gêneros literários é a sua estrutura escrita, não

o aspecto sobrenatural, isto é, não é a magia de uma fada que caracteriza um conto com

a especificidade de conto de fada, mas a estrutura e o enredo da narrativa que trata de

um problema existencial e sua posterior resolução através da intervenção de um

elemento mágico que faz com que o herói ou heroína cheguem a sua auto-realização, a

qual para a heroína, é válido ressaltar, que está relacionada ao encontro do “par

perfeito”, um príncipe.

Sinteticamente, a estrutura dos contos de fada, segundo Oliveira (2007)

apresenta inicialmente as dificuldades sofridas pelos personagens principais. Em

seguida, os contos de fada passam por um processo de ruptura, na qual a heroína sai de

sua realidade e entra num mundo desconhecido, logo depois, aparece nos contos de fada

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a restauração dos problemas existenciais através da presença da fada ou de outro

elemento mágico, até os contos chegarem ao seu desfecho através da volta à realidade,

um casamento ou a transcendência.

A repetição da problemática e da estrutura narrativa é, portanto, um elemento

básico que caracteriza um conto de fadas. A magia, neste contexto, é só mais um

elemento que surge para desenrolar e dar ao conto de fadas o desfecho esperado. Vieira

(2005, pág. 9) assim conceitua a estrutura geral dos contos de fada:

O herói ou heroína vivem sempre dificuldades grandes e chegam a um momento de

impasse em que alguma coisa extraordinária precisa acontecer para que haja uma

solução satisfatória. Entram então em ação múltiplos poderes naturais e sobrenaturais

ou mágicos, tanto do lado do bem como do lado do mal: inimigos terríveis,

companheiros fiéis, personagens imbuídos de insegurança, de esperteza, de coragem,

figuras transcendentes como fadas, anjos, demônios e dragões. A luta é sempre

extremante difícil, mas, ao final, faz-se a justiça, encontra-se a paz, a harmonia, vence o

bom e o bem.

Além do núcleo narrativo dominante, outra característica importante a destacar

nos contos de fada é o aspecto fantasia, pois ele também representa um ponto

provocador da continua atualidade dos contos de fada. A presença do elemento mágico

na solução de problemas existenciais, muito atrai os seres humanos que por conta de

uma necessidade social, buscam superar os problemas e limitações de sua realidade que

foram impostos pelas relações de poder pertencentes a concepção ética e moral, as quais

são claramente desenvolvida nos contos de fada. Mesmo sabendo que a realidade

imposta socialmente está presente nos contos de fada, entendemos que existe uma

projeção dos desejos não realizados socialmente ao criar um mundo em fantasia,

fazendo com que haja uma disposição natural que o ser humano possui para aceitar o

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sobrenatural. Abromovich (1997, pág. 138), assim se refere a importância do elemento

fantasia:

Pois é só estarmos atentos ao nosso processo pessoal, às nossas relações com os outros

e com o mundo, à nossa memória e aos nossos projetos, para compreender que a

fantasia é uma das formas de ler, de perceber, de detalhar, de raciocinar, de sentir... o

quando a realidade é um impulsionador(e dos bons!!!) para desencadear nossas

fantasias...

A fantasia nos contos de fada possui a função de levar o leitor para um mundo

imaginário onde tudo é possível, inclusive animais e objetos que falam, feitiços,

encantamentos e metamorfoses, a fantasia é, portanto, um importante instrumento em

aguçar a imaginação e oferecer elementos que podem ajudar a estruturar melhor nossos

devaneios, o desenvolvimento das habilidades, o crescimento pessoal e principalmente a

identificação.

Assim, os contos de fada tornam-se um importante instrumento de estudo devido,

principalmente, a prioridade que concedem a presença da figura feminina, pois a mulher

é um elemento central nos contos de fada, todo enredo gira em torno dela. Geralmente é

a princesa da história aquela que exerce o papel de personagem principal. Em outro

plano, e com papel não menos importante, outras figuras femininas também são típicas

dos contos de fada, seja como a madrasta, a bruxa, a fada, a avó ou a irmã, outras

mulheres assumem diferentes funções sociais nesses contos. A presença feminina, além

de ser motivo desse estudo, é mais um, entre tantos aspectos apontados aqui, que

caracterizam os contos de fada. Abramowicz (2006), aponta que esses contos possuem

como temáticas principais histórias femininas de sofrimento e realizações, nos quais, as

mulheres possuem um espaço privilegiado e característico, espaços estes que precisam e

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serão, mais enfrente, questionados, pois acontece que difundidos pelo mundo inteiro, os

contos de fada tradicionais divulgam as mesmas ideologias no que se refere a figura

feminina, principalmente através do perfil das mulheres desses contos. Dessa forma,

para melhor percebermos que tipos de ideologias circundam pelos contos de fada, se faz

necessário que entendamos primeiro, o que é Ideologia e quais as suas formas de

manifestação.

1. 2 IDEOLOGIA

Conceituar o termo ideologia não é uma tarefa tão simples, a pluralidade de

significados e as contradições entre estes fazem do conceito de ideologia algo muito

complexo. No entanto, apesar dessa pluralidade de significados precisamos delimitá-lo

em busca de encontrar o conceito mais adequado a esta pesquisa, já que ela se refere aos

contos de fada e ao modo como as mensagens são transmitidas por estes. Nesse

caminho sabemos que o termo ideologia possui um sentido amplo e diversos outros

sentidos específicos.

Em seu sentido amplo podemos concebê-lo como o conjunto de idéias ou

concepções sobre algum assunto que mereça discussão, ou seja, um posicionamento

crítico sobre determinados fatos. É assim que em sua postura de caráter filosófico,

podemos falar na ideologia de uma escola, na ideologia religiosa, partidária, etc. Já em

relação aos sentidos específicos do termo ideologia, de acordo com Lowy (1988), estes

foram resultados da própria formação histórica dessa palavra por autores como Destutt

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de Tracy, Lenin, Gramsci, Manheim, entre outros. Isso significa que o termo ideologia

não é próprio de Marx, pois conforme este mesmo autor, ele foi literalmente inventado

pelo filósofo francês Destutt de Tracy como um subcapítulo da Zoologia e com um

significado que já estava relacionado à formação de idéias, mas aquelas idéias que se

alcançava através dos órgãos do sentido e da relação entre os seres vivos e o meio

ambiente.

De acordo com os estudos teóricos de Lowy (1988), a palavra ideologia ganhou,

posteriormente, um sentido pejorativo quando Napoleão chamou Destutt de Tracy e

seus seguidores de “ideólogos” no sentido de “deformadores da realidade”. Este autor

acredita que foi com este sentido que Marx encontrou o termo e o utilizou a partir de

1846 em seu livro chamado A Ideologia Alemã, no qual enriqueceu e ampliou o

conceito de ideologia que adquiriu um sentido negativo quando Marx a conceituou

como uma consciência deformada da realidade, um processo ilusório e invertido que

leva a uma falsa justificativa dos conflitos sociais.

Até mesmo após Marx o conceito de ideologia continuou sendo motivo de

debate, na obra de Lenin, por exemplo, o termo deixa de ter um sentido negativo e passa

a designar qualquer doutrina sobre a realidade social que tenha vínculo com uma

posição de classe, ou seja, existe uma ideologia burguesa e uma ideologia proletária,

cada qual defendendo os interesses de sua própria classe social e política.

Desse modo, Gramsci, assim como Lenin, também não vê a ideologia como

ilusória e negativa, mas sim como qualquer ideário de um grupo de indivíduos, o autor

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também cita Karl Manheim, em seu livro Ideologia e Utopia, no qual tenta definir o que

é ideologia, dizendo que se trata de um conjunto de idéias que orientam para

estabilização, legitimização ou reprodução da ordem estabelecida, sentido este que faz

com que o termo ideologia assuma um caráter conservador da divisão de classes.

Apesar dos diferentes sentidos que o termo ideologia adquiriu ao longo dos anos

e que causou um complexo de arbitrariedade em sua definição, existe uma idéia que

Lowy (1988) não deixa escapar desse processo de conceituação, a de que o

desenvolvimento de uma ideologia ou forma de pensamento não ocorre desvinculado do

desenvolvimento histórico e político das classes sociais. Isso significa que seja qual for

o conceito adotado, a formação ideológica dos indivíduos não é um processo isolado,

mas de construção de idéias produzidas junto com a formação da estrutura social.

No entanto, o conceito de ideologia que melhor justifica este trabalho está

relacionado com aquele adotado pela teoria marxista que, em síntese, corresponde a

uma falsa consciência da realidade estabelecida sobre diversas relações de poder.

Adotamos esse conceito porque buscamos nesta pesquisa identificar e interpretar os

discursos presentes no perfil dos personagens dos contos de fada, isto é, se quer

“desvendar” que tipo de ideologia está se propagando através destes contos. A imagem

de desenhos inocentes, repassada pelos contos de fada, referenda uma forma de

dominação que no caso dos contos não se trata essencialmente de uma dominação de

gênero, mas também de uma dominação racial e social.

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Para contribuir com esta compreensão, buscamos Aranha (1993) que diz que a

ideologia marxista é uma forma de conhecimento ilusório que surgiu diante da tentativa

humana de explicar a realidade, mas mascarando os conflitos sociais. A autora também

ratifica que a ideologia recebe influência de vários tipos de relações de poder e serve

para manter a ordem social estabelecida atingindo diretamente a mentalidade e a

consciência dos indivíduos, dominando sua forma de agir e pensar.

No mesmo perfil de conceituação Marxista, é que Chauí (2002, pág.113)

apresenta sua definição de ideologia, a qual considera que:

A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias e

valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da

sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar, o que

devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo

explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo,

normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade dividida em

classes uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem

jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes, a partir da divisão na

esfera da produção.

Percebemos, portanto, a função da ideologia de adaptar os indivíduos as normas

estabelecidas pela sociedade, camuflando as diferenças de classe, o preconceito, as

injustiças, através da propagação de idéias e regras que nos “ensinam” a pensar e agir,

“com isso é assegurada a coesão dos homens e a aceitação sem crítica das tarefas mais

penosas e pouco recompensadoras, em nome da ‘vontade de Deus’ ou do ‘dever moral’

ou simplesmente como decorrente da ‘ordem natural das coisas’.” (ARANHA, 1993,

pág. 37).

A ideologia apresenta algumas características de essencial importância para

serem destacadas neste trabalho, as quais correspondem, na verdade, a algumas formas

Campina Grande, REALIZE Editora, 2012

18

de manifestação. São elas a naturalização, a universalização e a inversão, as quais serão

abordadas segundo os estudos teóricos de Aranha (1993).

Naturalização é, de acordo com esta autora, a característica que fundamenta a

ideologia, já que justifica como naturais ou adequadas, as situações que são produzidas

pela ação humana. Podemos perceber, nesse sentido, que é por isso que a divisão de

classes, por exemplo, é vista como um processo natural, pois os indivíduos que estão na

condição de dominantes, assim como aqueles que estão na condição de dominados,

exercem seus papéis sociais de forma passiva e espontânea.

A universalização para Aranha (1993), é responsável pela representação de uma

sociedade una, na qual todos têm os mesmos direitos e deveres e que na verdade

corresponde a uma abstração da realidade, pois quando analisada percebemos a vigência

de oportunidades e interesses divergentes. Assim a afirmação de que a educação é um

direito de todos reproduz uma universalização ilusória, visto que a educação beneficia

uma classe privilegiada, em detrimento de uma classe desfavorecida que enfrenta

maiores dificuldades, tais como aquelas relacionadas ao acesso e permanência na escola.

Já a inversão é a característica da ideologia, na qual o efeito de uma determinada

situação social é considerado como causa, a autora melhor esclarece essa característica,

apontando como exemplo, a função social da mulher, que considerada ideologicamente

como um ser frágil, sensível e paciente fora destinada, “por natureza”, para a vida

doméstica e familiar. Na verdade o que ocorreu historicamente foi investido, a mulher

foi destinada à vida doméstica porque na divisão do trabalho seu lugar foi definido

Campina Grande, REALIZE Editora, 2012

19

levando-se em conta o papel masculino, como este era o papel de domínio, a mulher

recebeu uma função complementar, além disso, devido a importância que se dava ao

nascimento de homens sadios e fortes para a guerra, a mulher também tinha uma função

reprodutora de onde vem sua designação para a maternidade. Neste caso, percebemos o

caráter de inversão da ideologia que propaga um suposto perfil feminino para justificar

a causa da função social da mulher está historicamente relacionado a vida doméstica,

ocultando assim uma forma de dominação masculina.

Vale ressaltar que a inversão nada mais é do que uma conseqüência da

universalização, pois é esta quem primeiro defini um perfil feminino universal para que

a inversão possa tomá-lo como motivo para justificar determinada situação social.

Definir esta terceira característica é de fundamental importância para o contexto deste

trabalho, pois é ela que legitima o conflito de relações de gênero que se pretende

abordar nos contos de fada, nos quais se percebe uma reprodução da realidade social

refletida por essa ideologia invertida.

Dessa forma, a naturalização, a universalização e a inversão vão construindo a

ideologia que Marx chamou de ilusória, ou seja, uma aparência que oculta a realidade

social como ela realmente é e foi construída. A função da ideologia, no entanto, não é

somente ocultar a realidade, mas também impedir-nos de refletir sobre ela e

consequentemente evitar transformá-la. Para Chauí (2002) isso implica no fato de

adotarmos crenças, opiniões ou idéias sem saber de onde vieram, isto porque a

sociedade as reproduzem e nos incurte através das instituições sociais, como a família, a

Campina Grande, REALIZE Editora, 2012

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escola, os meios de comunicação, as relações de trabalho e a política, as quais acabam

transformando-as em verdades.

A formulação teórica da ideologia, como a abordamos aqui, surgiu da decisão de

Marx de compreender a realidade através da prática social e política da classe operária,

percebemos até aqui o poder exercido por ela na mentalidade das pessoas e chegamos

ao momento de enfatizar que o pensamento humano nunca está totalmente determinado

por sua força. Segundo Aranha (1993) sempre haverá espaço de crítica que possibilite a

elaboração do que chamamos de discurso contra-ideológico, isto é, um discurso teórico

de desvendamento do real, um espaço de crítica e debate que esclareça as contradições

internas do discurso ideológico e sua representação dominante que acredita numa

hegemonia de classe, de raça, de valores, de trabalho e em especial de gênero, os quais

são construídos pela própria classe dominante e estendidos como normas universais as

classes dominadas.

Assim, este trabalho representa um tipo de espaço de revelação dos processos

reais e históricos dos quais se origina um tipo de dominação, que neste caso trata-se de

uma dominação de gênero, refletido através dos personagens dos contos de fada. Como

será abordado um discurso contra-ideológico precisávamos entender inicialmente o que

é e quais as características da ideologia, a fim de entender que tipo de força doutrinária

se está desvendando, por que acontece e o quanto é difícil identificá-la mascarada por

práticas consideradas naturais para constituir o gênero feminino e o gênero masculino.

Campina Grande, REALIZE Editora, 2012

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Partindo desta análise se faz necessário que nos detenhamos mais nos contos de

fada a fim de entender qual a influência destes na construção ideológica dos indivíduos.

Como queremos, neste trabalho, enfatizar questões que circundam as relações entre

mulheres e homens nos contos de fada, será de fundamental importância que nos

restrinjamos somente a construção ideológica do gênero, pois a ideologia é um processo

complexo que envolve vários marcadores sociais, entre eles o gênero, que neste caso,

torna-se mais um constituinte da formação ideológica dos indivíduos. Portanto, se

abordarmos a influência dos contos de fada na construção do gênero, devemos entender

inicialmente o que seria essas relações de gênero, ou melhor, o que é o gênero e em que

contexto histórico-social ele está envolvido.

1. 3 RELAÇÕES DE GÊNERO

Abordar o conceito de gênero é de essencial importância para o desempenho

deste trabalho, uma vez que a compreensão sobre ele remete-nos ao entendimento mais

rápido do que se quer abordar nos contos de fada quando falamos em papéis femininos e

masculinos. O Gênero ajudará a compreender quais as características sociais, políticas e

ideológicas que circundam historicamente a mulher, e assim perceber que toda essa

análise ainda é fundamental para apontar e justificar o perfil social da mulher do mundo

contemporâneo, perfil esse que precisa ser examinado e que está refletido nas diversas

instâncias culturais da sociedade, inclusive nos contos de fada.

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Poderíamos inicialmente partir de um conceito mais geral e conceituar gênero

como “a forma como se manifesta, social e culturalmente, a identidade sexual dos

indivíduos” (AURÉLIO, 2001, pág. 345). No entanto, deter-se a essa definição seria

uma forma vaga e fugaz onde se perderia a oportunidade de resgatar a história desta

palavra e enfatizar que o conceito de gênero está intimamente ligado, lingüística,

histórica e socialmente as lutas dos movimentos feministas contemporâneos.

Para Louro (1997) o gênero é a forma como homens e mulheres se manifestam

histórica e socialmente como masculinos e femininos. Esta mesma autora é quem nos

ajudará a recuperar um pouco do processo ao qual os movimentos feministas estão

inseridos. De acordo com Louro (1997) a segregação social e política que as mulheres

foram historicamente conduzidas teve como conseqüência uma ampla ideologia na qual

a mulher não era vista como sujeito, por isso foi por tanto tempo ocultada e reduzida ao

mundo doméstico como o seu verdadeiro universo.

Essa segregação se dava por conta de uma suposta relação de poder, baseada na

concepção biologicista, na qual os homens exerciam um papel superior ao das mulheres,

visto que era a anatomia destes sujeitos que definiam seus papéis sociais. Desta forma,

segundo esta concepção, o corpo feminino determina a situação da mulher à vida

familiar e doméstica e o corpo masculino determina a situação do homem ao trabalho

externo e vida pública. Percebemos, portanto, que a concepção biologicista é a visão de

gênero que prevalece nos contos de fada, pois identificamos nestes contos um perfil

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feminino frágil e por isso ligado a meiguice e a ingenuidade e um perfil masculino

robusto ligado a coragem e a força.

Segundo Louro (1997), a própria instituição familiar quando “organiza” as

relações sexuais entre mulheres e homens, utiliza-se de um tipo de controle social no

qual é propagado que a identidade principal da mulher é o de ser mãe e que sua

sexualidade deve ser socialmente aceita na reprodução de filhos legítimos . De outro

modo sabemos que essa forma de ver a distinção de gênero nem sempre se aplica

completamente, a mulher da antiguidade, por exemplo, possuía um perfil feminino

robusto, que em nada corresponde com o perfil fragilizado corporalmente da concepção

biológica do gênero e, ainda assim, estava ligada a vida doméstica. Por outro lado,

podemos citar as Mulheres Amazonas, figuras femininas fortes e valentes que estavam

totalmente ligadas à guerra, função definida por outras civilizações, apenas para o

gênero masculino.

Acontece que a concepção biológica foi a que operou de forma hegemônica por

muito tempo e de acordo com Louro (1997), além de justificar os papéis masculinos e

femininos pela força física, na qual o homem era considerado é um ser forte e a mulher

um ser frágil, apontava ainda para os direitos legais que o marido tinha sobre sua esposa,

por conta de uma tradição histórica, na qual o papel feminino foi construído com base

no papel masculino, de onde a mulher adquiriu uma função secundária que não lhe dava

autonomia, nem direito ao voto, ao estudo, ao trabalho externo. Eram os valores

masculinos que prevaleciam e como não podiam ser ameaçados, a mulher foi silenciada,

Campina Grande, REALIZE Editora, 2012

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tornou-se dependente da figura masculina, o pai, depois o marido e em seguida os filhos

e recebia uma educação inclinada para o matrimônio e cuidado dos filhos e do lar.

As diferenças estabelecidas socialmente entre mulheres e homens mascaravam

uma relação cada vez mais excludente, Louro (1997), nos diz que isso ocorria através de

uma ideologia de naturalização que estabelecia que o perfil feminino apresentava

características como corpo, emoção, passividade e sensibilidade e o perfil masculino

apresentava características opostas destas como a mente, razão, atividade e objetividade.

De acordo com esta autora, várias ações individuais ou coletivas marcaram a história

das lutas contra esse tipo de opressão das mulheres e aconteceram de forma organizada

no Ocidente a partir do século XIX. Foi através de manifestações feministas baseadas

em grupo de conscientização, marchas e protestos que as mulheres começaram a

contestar e exigir a igualdade de direitos com relação aos homens. O chamado

“sufragismo” foi considerado a primeira onda do feminismo e nele buscava-se estender

o direito de voto as mulheres.

Além das preocupações sociais e políticas, os movimentos feministas entram

nas construções teóricas e a problematização sobre o papel da mulher foi disseminado

em livros, jornais e revistas. Louro (1997) nos diz que as ciências humanas, tais como a

Antropologia, a Sociologia, a Educação, entre outras, começaram a discutir sobre as

desigualdades denunciando a opressão e criticando as características estereotipadas

como femininas, além disso, esta mesma autora afirma que mulheres engajadas

politicamente com os movimentos feministas fundaram revistas, promoveram eventos,

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construíram estatísticas, apontaram lacunas na construção ideológica do papel da

mulher e assumiam uma responsabilidade histórica de construir o lugar social da mulher

com pretensões de mudança.

A justificativa biológica para as desigualdades entre mulheres e homens foi

intensamente questionada, Louro (1997, pág. 21) nos diz o que se pretendia com isso:

Demonstrar que não são propriamente as características sexuais, mas é a forma como

essas características são apresentadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa

sobre elas que vai construir, efetivamente, o que é feminino ou masculino em uma dada

sociedade em um dado momento histórico.

O movimento feminista foi se constituindo, portanto, com anseios de mudança,

entre os quais se discutia uma suposta igualdade entre os gêneros, principalmente no

que concerne ao mercado de trabalho. Acontece que nessa busca por transformações o

movimento feminista deixou muitas lacunas, entre elas a constituição de uma pseudo-

igualdade, pois as feministas apesar de “conquistarem” um espaço no mercado de

trabalho, acabaram, com isso, provocando apenas mudanças setoriais, já que

acumularam mais tarefas, haja vista que lutaram por uma igualdade fora do lar, mas não

lutaram por esta mesma igualdade dentro do espaço doméstico.

O conceito de gênero, no entanto, acabou sendo construído tendo em vista as

concepções feministas e neste sentido não estava se estabelecendo como uma forma de

negar a biologia, mas de mostrar que a construção social e histórica das relações de

gênero é produzida sobre as características biológicas. Isto significa que o gênero

também pode esclarecer que as desigualdades estabelecidas entre as mulheres e os

homens não precisam ser buscadas nas diferencias biológicas, mas na história da

Campina Grande, REALIZE Editora, 2012

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sociedade, nas formas de representações, nas condições de acesso e oportunidades, nos

interesses de cada grupo social.

O conceito de gênero exige que se pense as relações entre as mulheres e homens

de forma plural, evitando características generalizadas porque segundo Louro (1997)

não só homens se diferenciam de mulheres, como também homens se diferenciam de

outros homens e mulheres se diferenciam de outras mulheres, o que não condiz com a

noção histórica de estabelecer um único perfil masculino e um único perfil feminino. A

construção de características gerais e papéis masculinos e femininos fortalecem uma

suposta oposição entre os gêneros que se relacionam em uma lógica que Louro (1997)

chama de dominação-submissão, a qual deve ser criticada, uma vez que o masculino e o

feminino não podem ser vistos como pólos dicotômicos, mas como pólos que compõe e

contém um ao outro. Percebemos que é dessa dicotomia que surge entre os gêneros

binarismos como o público-privado, razão-sentimento, forte-frágil e outros nos quais

percebemos a prioridade do primeiro elemento em relação ao segundo.

Contudo, os movimentos feministas atingiam seu objetivo de denunciar as

formas de silenciamento e opressão das mulheres, mas nessa luta percebemos que a

principal dificuldade foi a de trazer para nossas práticas sociais o resultado do que se

queria conquistar. A grande limitação estava na derrubada da concepção de dicotomia

que não era só histórica, mas também ideológica e que girava em torno da suposta

superioridade masculina. Nesse contexto, os estudos de Foucault apud Louro (1997),

trouxeram uma grande contribuição para a discussão das relações de poder dos estudos

Campina Grande, REALIZE Editora, 2012

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feministas. Em seus estudos Foucault apud Louro (1997), situa o poder como uma

estratégia de funcionamento da sociedade que ela própria adota, mas não como um

privilégio que alguém possui e do qual pode se apropriar. O poder é base para garantir

diferenças e desigualdades entre os gêneros e muitas “teorias foram construídas e

utilizadas para ‘provar’ distinções físicas, psíquicas, comportamentais; para indicar

diferentes habilidades sociais, talentos ou aptidões; para justificar os lugares sociais, as

possibilidades e os destinos ‘próprios’ de cada gênero.” (LOURO, 1997, pág. 45).

Assim a emergência do gênero foi complementar as lutas feministas para

estabelecer uma nova relação entre mulheres e homens, relação esta mais integrante e

menos polarizada. A oposição estabelecida entre mulheres e homens foi construída

historicamente, não é um processo inerente ao ser humano, apontada por LOURO (1997,

pág. 33) quando considera que:

Os sujeitos que constituem a dicotomia não são, de fato, apenas homens e mulheres,

[mas] homens e mulheres de varias classes, raças, religiões, idades, etc. e suas

solidariedades e antagonismos podem provocar os arranjos mais diversos, perturbando a

noção simplista e reduzida de “homem dominante versus mulher dominada”.

Percebemos, portanto, que as relações entre os gêneros continuamente foram se

transformando, hoje já não se poderia mais falar em regras de comportamento e perfis

sociais adequados ao homem e a mulher. Além disso, Duarte (2004) salienta que hoje as

mulheres correspondem a maioria da população; no mercado de trabalho dividem

espaço com os homens e assumem cargos antes restritos somente a eles; na vida

acadêmica lhes superam em número de matrícula nas universidades; na estrutura

familiar já não estão mais restritas aos cuidado da casa e dos filhos, inclusive

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conquistaram a livre escolha de ter ou não filhos; além disso, seu comportamento

sexual está mais liberal. Acontece que, se por um lado, a quebra do isolamento do lar e a

participação da mulher no espaço público lhe trouxeram uma gama de conquistas, por

outro lado, no ambiente de algumas práticas sociais, a mulher ainda continua a ser

desvalorizada, submissa e dita como inferior ao homem. O preconceito de inferioridade

feminina ainda é reproduzido através da religião, das leis, dos meios de comunicação e

da família, na qual, no seu dia-a-dia, a própria mulher reproduz a pseudo-superioridade

masculina através da educação de seus filhos quando separa tarefas, umas para os

meninos e outras para as meninas. Não que a mulher seja responsável por isso, mas é

que o aspecto ideológico é tão profundo que ela mesma acaba sendo sujeito dessa

reprodução.

As instituições que, ainda hoje, reproduzem preconceitos de gênero, utilizam-se

da ideologia de que há uma suposta igualdade entre homens e mulheres, porém, por trás

dessa ideologia percebemos diversos discursos e práticas que de forma implícita ou

explícita revelam alguns aspectos discriminatórios que ficaram como resultado das

conquistas femininas. Entre eles podemos citar o que concerne ao mercado de trabalho,

espaço que a mulher adentrou, mas com um salário inferior ao do homem, além disso, a

própria entrada da mulher no mercado de trabalho não foi uma conquista tão intrigante,

pois existia por trás de tudo isso um interesse capitalista pela mão de obra também

feminina.

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Quando analisamos esse panorama, da presença da mulher na relação de

trabalho, com mais profundidade, percebemos que os espaços ocupados pela mulher

representam extensões do setor doméstico, isto é, a mulher ainda é aquela que cuida e

educa só que agora também em um mundo exterior ao doméstico, pois, no geral, a

mulher está no setor de educação, saúde, assistência social, escritório, costura. A

maioria delas segue uma jornada de trabalho externo e quando chega em casa ainda tem

que organizar ou controlar o trabalho doméstico ou ela contrata outra pessoa para fazer

este serviço, que aliás, é comumente outra mulher.

O GTPOS (2000) pode acrescentar a esta análise o que acontece no campo

acadêmico, no qual a realidade nos mostra uma divisão sexista dos candidatos a cerca

da escolha dos cursos, onde os homens, na sua maioria, optam por carreiras que lidam

com máquinas e números, enquanto as mulheres, seguindo a ordem inversa, ficam com

as carreiras na área da educação e saúde. Pode-se citar também o fato de que ainda se

encontram mulheres adotando o sobrenome dos maridos e a crescente e excessiva

obsessão de algumas mulheres pela aparência física, por se manter jovem e magra, e

pela adequação as estações da moda, artifícios que atualmente lhe servem para

concorrer com outra mulher, mas que consciente ou inconsciente “não deixam de ser

outra forma de aprisionamento, como esforço (ainda negado) para atrair o olhar

masculino.” (Duarte, 2004, pág.21).

Assim, apesar das mudanças, o que se desvendou aqui foram algumas lacunas

deixadas pelos movimentos feministas que resultaram em práticas onde as relações de

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gênero ainda acontecem de forma sexista, por conta das instituições sociais que ainda

divulgam ideologias que diferenciam mulheres e homens. Entre essas instâncias é que

situamos os contos de fada, instrumentos utilizados pela sociedade com a finalidade de

“instruir” as crianças estabelecendo as mais possíveis relações de poder. Essa reflexão,

portanto, irá contribuir de forma significativa para que se possamos alcançar o objetivo

de identificar representações explícitas e implícitas de discriminação à mulher

veiculadas através dos contos de fada, uma vez que “o uso do conceito de gênero nos

auxilia a refletir tanto sobre a discriminação da mulher como sobre o preconceito diante

da homossexualidade, passando pelas relações de poder e pela desvalorização do

trabalho”. (GTPOS, 2000, pág. 61).

Dessa forma, a análise que podemos fazer sobre os contos de fada será aqui

apresentada através da investigação dos contos “Cinderela”, “Branca de Neve” e “A

Bela e a Fera”. Escolhemos esses contos porque são os mais reconhecidos clássicos da

literatura infantil e melhor apresentam os aspectos que queremos enfatizar quando

falamos em relações de dominação de gênero e ideologia, por isso partiremos da

fundamentação teórica para suscitar as características particulares de cada um dos

contos de fada em questão e assim observá-los seguindo suas particularidades.

II - O UNIVERSO FEMININO REITERPRETADO NOS CONTOS

“CINDERELA”, “BRANCA DE NEVE” E “A BELA E A FERA” E SUA

RELAÇÃO IDEOLÓGICA.

2. 1 CINDERELA

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O conto Cinderela, também conhecido como “A Gata Borralheira”, apresenta

inicialmente as dificuldades sofridas pela personagem Cinderela. A trama do enredo

surge porque a mãe de Cinderela faleceu e seu pai se casou com uma viúva que já tinha

duas filhas. Percebemos com isso, portanto, que fazem parte do conto quatro figuras

femininas, sendo que Cinderela é a princesa, isto é, a heroína e a madrasta e suas filhas

são consideradas vilãs.

Cabe iniciarmos essa análise partindo da representação gráfica das personagens

femininas, pois percebemos que esta por si só, marca desigualdades entre as

personagens e define padrões femininos. A protagonista, além de ser adolescente, é

representada por uma figura esbelta, meiga, branca, bonita e com formas suaves. As

vilãs são consideradas mulheres “feias”, suas feições são marcadas por traços mais

fortes e pontiagudos. Podemos perceber essa diferença de perfil gráfico feminino nas

figuras 1 e 2 a seguir:

Figura 1 – Conto “Cinderela”, Coleção Clássicos Encantados.

(A madrasta, à esquerda; suas filhas, no centro; Cinderela, à direita no canto inferior).

Figura 2 – Conto “A Gata Borralheira”, Coleção Cochrane.

(Cinderela, à esquerda e a madrasta e suas filhas, à direita).

Esses tipos de representações ideais de corpo e de aparência fazem da beleza

física um fator fundamental para a mulher nos contos de fada mostra-se adequada,

através de uma ideologia de naturalização, a um padrão que é imposto pela sociedade,

no qual a mulher deve esta constantemente em busca desse “ideal” atendendo, dessa

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forma, também um mercado consumidor, pois percebemos que o perfil valorizado nos

contos de fada tradicionais é o da heroína e por isso não encontramos nesses contos

princesas de pouca beleza ou com peso acima do considerado “normal”.

A representação gráfica serve, também, para diferenciar o que este conto de fada

identifica como personagens “bons” e personagens “maus” fazendo uma relação entre

belo e bondade e feio e maldade, por isso as princesas são sempre figuras femininas

amáveis, enquanto que as vilãs, mulheres de pouca beleza e forma, são orgulhosas e

invejosas. Vejamos essa identificação no seguinte trecho:

As meninas nunca se deram bem porque as filhas da viúva eram egoístas, antipáticas

e feiosas. Cinderela, no entanto, era uma menina muito meiga, boa e bonitinha. (A

Gata Borralheira – Coleção Cochrane1, ver anexo 1.3, pág. 00).

Percebemos, com isso, que a beleza é a principal responsável para que no início

da narrativa Cinderela esteja passando por diversas dificuldades, pois é a sua beleza que

provoca sentimentos de inveja em uma outra mulher, no caso, na madrasta e em suas

filhas, e por isso a obrigam a fazer as tarefas domésticas do castelo e usar roupas velhas

e rasgadas. Percebemos esse aspecto na seguinte passagem:

Tanto a mãe como as filhas sentiram muita inveja da Cinderela e, por isso,

maltrataram-na desde o primeiro dia. A menina era obrigada a fazer todo o trabalho

do castelo: tinha que limpar o chão, cozinhar, cortar lenha, carregar água e dormir

num canto da cozinha, sobre um pobre colchão de palha... (A Gata Borralheira –

Coleção Cochrane, ver anexo 1.3, pág. 00).

Identificamos que esta problemática enfrentada por Cinderela está estreitamente

ligada a um tipo de dominação, que no caso trata-se de uma dominação doméstica.

1 A identificação dos contos analisados será feita pelo nome da coleção, uma vez que não encontramos na

maioria das versões dos contos que estamos analisando, referências às traduções, ano de publicação ou

número de páginas.

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Vemos a mulher destinada a um tipo de segregação e opressão que não vem de um

gênero diferente, isto é, não vem do masculino sobre o feminino, mas do próprio

feminino sobre o feminino. Apesar de o termo opressão adquirir um outro sentido, esta

idéia nos fez lembrar sobre a atual inserção da mulher no mercado de trabalho que

consequentemente, em alguns casos, teve que destinar os serviços domésticos de sua

casa para outra pessoa, que geralmente é outra mulher.

Porém, o que queremos enfatizar realmente é a forma como a mulher nos contos

de fada recebe esse tipo de dominação, pois a representação gráfica do conto

“Cinderela” denota para um trabalho penoso, conforme podemos observar nas figuras 3

e 4:

Figura 3 – Conto “A Gata Borralheira”, Coleção Cochrane.

(Representação do trabalho doméstico realizado por Cinderela)

Figura 4 – Conto “Cinderela”, Coleção Clássicos Encantos.

(Representação do trabalho doméstico realizado por Cinderela)

No entanto, percebemos que neste aspecto, os contos de fada reproduzem o

caráter da ideologia de naturalização, pois apesar da opressão recebida, a mulher realiza

o trabalho doméstico como algo natural, isto é, que lhe é próprio. Percebemos essa

característica no seguinte trecho:

Cinderela aceitava tudo isso com muita paciência e bondade... (A Gata Borralheira -

Coleção Cochrane, ver anexo 1.3, pág. 00).

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Neste outro trecho percebemos também a idéia de conformidade, pois Cinderela

não se entristece por conta do trabalho, mas por conta da falta de relação afetiva, o que

implica dizer que se alguém lhe amasse ela faria o trabalho tranquilamente:

Cinderela fazia todo o serviço de casa. Chorava muito porque sentia-se só, sem

ninguém que a amasse.(Cinderela - Coleção O Mundo Encantado das Princesas, ver

anexo 1.2, pág. 00)

Dessa forma, a beleza física nos contos de fada é um aspecto caracterizador da

personagem feminina, mais especificamente da princesa, percebemos que esta

característica não é responsável somente pelo estabelecimento de determinada relação

de dominação, mas por outro lado, a beleza também é responsável pelo relacionamento

amoroso dos contos de fada. Antes de abordarmos o momento em que o conto de fada

em questão chega a esse primeiro flerte, do qual o príncipe se apaixonará por Cinderela,

ressaltaremos uma interessante relação definida entre homens e mulheres, pois é

possível identificar uma suposta superioridade masculina no fato de que o príncipe é

representado como aquele capaz de atrair várias mulheres, para gozar da autonomia de

escolher entre estas aquela que quer casar-se. A mulher por outro lado, é uma figura

romântica e sonhadora e por isso, em posição de submissão vai ao encontro deste

príncipe em busca de um bom casamento. Vejamos:

Um dia, o rei resolveu dar um baile no palácio e convidou todas as jovens do reino,

pois o príncipe, nesta ocasião, escolheria uma esposa. As filhas da madrasta passaram

o dia provando vestidos para o baile. Cinderela também queria ir ao baile, porém sua

madrasta proibiu. (Cinderela – Coleção O Mundo Encantado das Princesas, ver anexo

1.2, pág. 00).

Certo dia chegou ao castelo uma notícia muito importante, o filho do rei convidaria

todas as jovens solteiras do reino para um grande baile no palácio. Escolheria, entre

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elas, uma jovem bondosa e bonita, com a qual se casaria. Quando as irmãs da

Cinderela receberam o convite, gritaram de alegria:

- Iremos ao palácio do rei – cantavam... (A Gata Borralheira – Coleção Cochrane, ver

anexo 1.3, pág. 00).

Percebemos que essa passagem do conto é resultado de uma ideologia de

universalização, isto é, amplamente aceita, na qual a figura masculina possui autonomia

para tomar atitudes que atraiam a figura feminina para um relacionamento, no entanto, o

contrário não é ideologicamente aceito sem que a mulher não seja criticada por isso.

Seguindo, então, o enredo do conto, sabemos que Cinderela acaba indo ao baile

graças às metamorfoses provocadas por sua fada madrinha que lhe consegue uma

carruagem, um cocheiro, um vestido novo e um sapatinho de cristal, com a condição de

que volte a meia-noite, uma vez que o encanto terminará neste momento. Não devemos,

no entanto, deixar de atentar que a atração do príncipe por Cinderela também foi

resultado da junção desses elementos, pois além da beleza que possuía, Cinderela estava

sobre o efeito de um encantamento, o qual lhe apresentava com um certo status social.

O encantamento, mas principalmente a beleza da princesa surge, portanto, para

justificar o relacionamento amoroso dos contos de fada, pois é por eles que o príncipe

sente-se atraído à primeira vista pela heroína. Percebemos este aspecto nas seguintes

passagens:

No palácio os convidados não tiravam os olhos de Cinderela e, ao vê-la, o belo

príncipe foi imediatamente convidá-la para dançar. (Cinderela – Coleção Clássicos

Encantados, ver anexo 1.1, pág. 00).

Cinderela entrou no palácio e todos ficaram encantados com sua beleza. O príncipe só

dançou com ela. (Cinderela – Coleção O Mundo Encantado das Princesas, ver anexo 1.2,

pág. 00).

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Portanto, a beleza é vista no conto de Cinderela sobre duas óticas que resultam

em diferentes conseqüências, de um lado relações de dominação, de outro um futuro

casamento.

Voltando ao enredo do conto percebemos que na hora estabelecida Cinderela é

obrigada a sair do baile às pressas e, por isso, acaba perdendo seu sapatinho de cristal. É

possível identificarmos neste momento toda simbologia que circunda o sapatinho, pois

na análise que fazemos desse objeto entendemos que ele funciona como uma espécie de

“isca” da qual o príncipe se utilizará para chegar à mulher que escolheu como esposa.

Grosso modo, o homem assume o papel de “caçador” e a mulher o papel de “caça”,

conforme podemos perceber nas próprias passagens do conto:

No dia seguinte (o príncipe) enviou seu mensageiro com o sapatinho à procura da

donzela pela qual se apaixonou. (Cinderela – Coleção Clássicos Encantados, ver anexo

1.1, pág. 00).

O príncipe, que tinha se apaixonado por Cinderela, para achá-la, mandou que

provassem o sapatinho em todas as jovens do reino. (Cinderela – Coleção O Mundo

Encantado das Princesas, ver anexo 1.2, pág. 00).

O príncipe acaba chegando até Cinderela através do sapatinho de cristal que foi

testado nos pés de todas as moças do reino, “mas nenhuma das moças tinha os pés tão

pequeninos” (Cinderela – Coleção Clássicos Encantados, ver anexo 1.1, pág. 00) como

os pés de Cinderela. Percebemos, com isso, que a própria simbologia existente em “pés

pequenos” evoca para um ideal de mulher, reproduzido pela ideologia de

universalização, na qual pés pequenos são sinônimos de delicadeza e feminilidade.

Vejamos a figura 5 que mostra o sapatinho de cristal e observemos o tamanho do pé

direito da personagem apresentada como aquela que foge do padrão estabelecido:

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Figura 5 – Conto “A Gata Borralheira”, Coleção Cochrane.

(As irmãs de Cinderela testando o pequeno sapatinho de cristal)

Apesar do encantamento e fantasia presentes no conto Cinderela, existe um fato

curioso em torno do sapatinho de cristal que devemos destacar. Segundo o conto, a

magia realizada pela fada madrinha de Cinderela terminou a meia-noite quando a

carruagem voltou a ser uma abóbora, o cocheiro voltou a ser um gato, os cavalos

voltaram a ser ratos e o vestido de Cinderela voltou a ser o antigo vestido velho. No

entanto, apesar de terminado o encantamento, percebemos que o sapatinho de cristal não

voltou ao que era antes, um velho e simples sapato. Este permaneceu com seu encanto

desde que o príncipe o encontrou nas escadarias do palácio.

A análise que podemos fazer sobre esse fato não se justifica somente porque os

contos de fada são contos de caráter maravilhoso, mas também porque percebemos que

através do sapatinho a figura masculina surge no final do conto com o objetivo de ser a

“salvação” feminina. Isto significa que a mulher, nos contos de fada, passa por diversos

obstáculos, os quais só terminam quando esta encontra o seu “par perfeito”, pois a

mulher na relação de dominada encontra no homem que está na posição de dominador a

realização de seus sonhos. Observamos através da figura 6 que o destino final da

personagem feminina no conto de fada é o casamento:

Figura 6 – Conto “Cinderela”, Coleção Clássicos Encantados.

(Representação gráfica do final dado ao conto, no qual a mulher é conduzida ao

casamento, no qual “viverá feliz para sempre”).

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Implicitamente percebemos que Cinderela é tirada da vida de segregação e

opressão que levava, no entanto, é conduzida ao casamento, pelo qual poderá voltar

novamente à vida doméstica, visto que nos contos de fada as mulheres não possuem

nenhum tipo de realização profissional ou vida exterior a doméstica, conforme os

valores da época em que os contos de fada acontecem, no entanto, desta vez, ela sairá

das responsabilidades do pai para as do marido e viverá, através do matrimônio, “feliz

para sempre”.

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III - ENTRECRUZAMENTO DOS CONTOS DE FADA

Falar sobre os contos de fada, em questão, analisando as particularidades de cada

um, foi importante para melhor identificarmos as relações de dominação de gênero

presentes nesses contos. De forma minuciosa, ressaltamos diversas concepções que

circundam o feminino e o masculino nos contos “Cinderela”, “Branca de Neve” e “A

Bela e a Fera” e agora se faz necessário que façamos um entrecruzamento destes contos,

analisando os elementos da narrativa, para que possamos inferir características gerais

que definam qualquer conto de fada tradicional conhecido pela história literária.

Percebemos através dos contos de fada que analisamos a existência de várias

características comuns aos contos. Entre essas características, encontramos o tempo e o

espaço, uma vez que correspondem a elementos da narrativa de caráter indefinido, isto é,

os contos de fada podem ter acontecido em qualquer tempo e em qualquer lugar, tal

como podemos perceber nas seguintes passagens:

Há muitos anos vivia, em um longínquo castelo... (A Gata Borralheira –

Coleção Cochrane, ver anexo 1.3, pág. 00).

Era uma vez uma rainha que sonhava com uma filhinha de pele branca como a neve...

(Branca de Neve – Coleção Clássicos Encantados, ver anexo 2.1, pág. 00).

Era uma vez um jovem que vivia em um lindo castelo... (A Bela e a Fera –

Coleção Clássicos Encantados, ver anexo 3.1, pág. 00).

No entanto, apesar do tempo incerto e psicológico do “era uma vez” ou “há

muitos anos”, percebemos na análise que fizemos dos contos, não só através das

transcrições, mas também das gravuras que, de certa forma, os contos de fada remetem-

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se a Idade Média quando identificamos, não o lugar, visto que acontece, por exemplo,

em um “longínquo castelo”, mas as características desse lugar, o qual é formado, além

de castelos, também por aldeias, bosques, florestas. Podemos citar mais um motivo para

a associação dos contos de fada à Idade Média, trata-se de algumas características gerais

que observamos, tais como o tipo de roupa usado pelos personagens, os bailes, o uso

das carruagens e cavalos, a presença da figura do rei e do camponês. Apesar desta

ligação, o caráter de atemporalidade e a falta de identificação espacial são responsáveis

por uma forte característica dos contos de fada, a sua atualidade. Isso acontece porque o

leitor ou ouvinte, principalmente infantil, facilmente pode se identificar com estes

contos trazendo-os para o seu tempo e para o seu espaço. Vale ressaltar que este fato

referenda um tipo de dominação bastante estratégica: a identificação. Recurso que os

contos de fada utilizam-se para fazer com que o seu leitor ou ouvinte identifique-se

facilmente com eles.

Outro elemento da narrativa a considerar nos contos de fada refere-se aos

personagens, pois a maioria destes não possui nome próprio, e quando possui, é

chamado por algum aspecto que lhe identifique. Cinderela, por exemplo, recebe a

denominação de “Gata Borralheira” por ser uma mulher jovem que é obrigada a fazer os

trabalhos pesados de uma casa e costumar sentar-se perto do fogão à lenha. Podemos

perceber essa identificação na seguinte passagem:

Todos os dias, assim que terminava o seu trabalho, a menina sentava-se num cantinho,

perto do fogão à lenha, sobre as cinzas e, por isso, suas irmãs a chamavam de “Gata

Borralheira”. (A Gata Borralheira – Coleção Cochrane, ver anexo 1.3, pág. 00).

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Branca de Neve não possui nome próprio, mas recebe essa denominação pela

tonalidade da pele, tal como é expresso pelo trecho:

Era uma vez uma rainha que sonhava com uma filhinha de pele branca como a neve,

boca vermelha como o sangue e cabelos pretos como a noite. Algum tempo depois,

nasceu a princesa, exatamente como a rainha sonhava. Chamaram-na Branca de

Neve. ( Branca de Neve – Coleção Clássicos Encantados).

Já Os Sete Anões, no geral, são assim denominados para identificar o número de

personagens que apresentam nanismo, mas que possuem identificações próprias que, no

caso, estão relacionadas a sete diferentes características. Vejamos:

Era uma verdadeira casa em miniatura: sete cadeirinhas... sete pratinhos... sete

caminhas... as caminhas com os nomes: Fofura, Sabido, Alegre, Soneira, Espirro, Sr.

Brabo e Pixotinho 2

( Branca de Neve e os Sete Anões – Coleção Bauzinho

Encantado)

Bela, do conto “A Bela e a Fera”, é assim denominada devido a beleza que

possui, conforme percebemos no seguinte trecho:

Era uma vez um comerciante que morava com sua filha. Uma moça tão bonita que o

seu nome era Bela... (A Bela e a Fera – Coleção Clássicos Adoráveis)

A Fera, por sua vez, recebe essa denominação devido ser um príncipe que

acabou sendo transformado em um animal feroz e cruel, vejamos:

Era uma vez um jovem que vivia em um lindo castelo... Certa noite recebeu a visita de

uma velhinha que lhe pediu abrigo. Mas ele negou o pedido e mandou a velhinha

embora... Indignada, ela transformou-o em uma horrível fera...” (A Bela e a Fera –

Coleção Clássicos Encantados).

Vale ressaltar que também encontramos nos contos de fada personagens que não

possuem nome próprio nem recebem nenhum tipo de denominação, são identificados de

2 Apesar dessas denominações atribuídas aos Sete Anões, percebemos que dependendo das versões do

conto “Branca de Neve” elas podem variar, no entanto, por ter sido essa a referência que encontramos nos

contos analisados preferimos mantê-la.

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forma mais geral pela função que assumem nos contos, por isso são chamados por “o

pai de...”, “a mãe de...”, “a rainha”, “o rei”, “a fada”, “a madrasta”, etc. Também

queremos enfatizar a figura masculina na pessoa do príncipe, pois este, em todos os

contos que analisamos, também não recebem nenhum tipo de denominação.

Percebemos, com isso, que na falta de especificação do nome das personagens

nos contos de fada também apresenta-se uma estreita relação de dominação, pois isto

implica no fato de que qualquer pessoa pode se identificar com os personagens dos

contos e reproduzir, por isso, a relação de dominação ou subordinação propagada por tal

personagem de forma mais sutil.

Os contos de fada também possuem em comum o personagem principal, pois

todos apresentam a mulher, no caso, a princesa, como protagonista do conto. Além

disso, esta personagem é apresentada seguindo um modelo estereotipado de feminino,

pois cabe a mulher, nos contos de fada, assumir atributos vinculados a paciência, a

ternura, a bondade, a sensibilidade, e a fragilidade, intensificando o fato de que

geralmente nos contos de fada existe uma conexão entre feminino e afetividade. O

homem, personagem secundário dos contos de fada, também assumi atributos

estereotipados de masculino que estão vinculados a coragem, a audácia, a força e a

razão, os quais podem denotar para um ideal masculino baseado em uma pseudo-

superioridade.

Outra questão que a análise particular dos contos de fada nos ajudou a identificar,

refere-se ainda aos personagens secundários, pois percebemos nos contos de fada a

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reprodução de outros perfis de sujeitos sociais, entre eles podemos destacar, por

exemplo, a figura da mãe, da madrasta e do pai. A mãe definida como uma pessoa boa,

amável, mas que acaba falecendo e deixando sua filha para ser “cuidada”

posteriormente, se for o caso, pela madrasta, mulher de atitudes ruins e grosseiras. E o

pai que, por sua vez, é apresentado pelos contos de fada como uma figura não tão

relevante na relação pai-filha.

Os personagens dos contos de fada são, portanto, figuras planas, que mantêm

suas características próprias dependendo da função que exercem nos contos. Vale

acrescentar que se os personagens são “bons” ou “maus”, permanecem assim até o final

do conto e são diferenciados com aspectos que estão relacionados a beleza e a feiúra.

Quanto ao enredo, os contos de fada falam da existência de um determinado

problema, enfrentado pela heroína, logo no início do conto, como é o caso de

“Cinderela” e “Branca de Neve” que vivenciam uma dominação doméstica. Ou um

problema que surgirá logo depois, como é o caso do conto “A Bela e a Fera” através da

dominação de aprisionamento. Independente do obstáculo encontrado, ele será superado,

no final da narrativa, pela princesa, mas com a ajuda do príncipe que se apaixonará à

primeira vista pela princesa, mulher provida de uma beleza incomparável que faz com

que o príncipe da história apaixone-se à primeira vista por ela.

Os contos de fada para existirem também apontam certas incoerências no enredo,

tal como percebemos em “Cinderela”, na história do sapatinho de cristal que além de

não ter perdido o encanto depois da meia-noite, calçava apenas os pés de Cinderela; em

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“Branca de Neve”, no qual a heroína não morreu quando mordeu a maçã envenenada,

mas apenas adormeceu; e em “A Bela e a Fera” que convenceu seu pai a voltar ao

castelo da Fera para cumprir sua promessa mesmo sabendo que ela ou pai seriam

aprisionados.

Paralelo às incoerências dos contos de fada, surge o aspecto de encantamento

responsável por defini-los como contos de caráter maravilhoso. O encantamento é uma

característica do enredo imprescindível nos contos de fada. Surge em “Cinderela”

através da presença da fada madrinha e das magias que esta faz para deixar Cinderela

pronta para ir ao baile. Em “Branca de Neve” o encantamento surge através da

transformação da madrasta em uma velhinha e no fato de Branca de Neve acordar de

seu sono profundo através de um beijo do príncipe. Já em “A Bela e a Fera”, o

encantamento surge quando o príncipe é transformado em uma Fera e quando o encanto

é quebrado pelo fato de Bela ter se apaixonado por ele.

Outra característica que os contos “Cinderela”, “Branca de Neve” e “A Bela e a

Fera” possuem em comum e que podem ser estendidas à maioria dos contos de fada

tradicionais é o destino final dos personagens, pois percebemos que estes contos

chegam ao desfecho com um casamento, tal como observamos nas seguintes passagens:

O casamento foi muito bonito... Cinderela e seu príncipe viveram felizes para sempre.

(A Gata Borralheira – Coleção Cochrane, ver anexo 1.3, pág. 00).

...um príncipe que passava por ali viu Branca de Neve e se apaixonou. Ele deu-lhe um

beijo e ela acordou... Os dois casaram e viveram felizes para sempre. (Branca de Neve

– Coleção Clássicos Encantados, ver anexo 2.1, pág. 00).

Quebrado o encanto, o príncipe e a Bela se casaram e foram felizes para sempre. (A

Bela e a Fera – Coleção Clássicos Adoráveis, ver anexo 3.2, pág. 00).

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A idéia de casamento apresentada pelos contos de fada é vista, portanto, como

uma etapa de realização pessoal das personagens femininas, as quais depois de

passarem por uma determinada dificuldade, são “recompensadas” com um príncipe por

terem sido belas e bondosas. Percebemos com isso a reprodução ideológica de que a

auto-realização feminina só pode ser encontrada no casamento, ou seja, a mulher deve

ser destinada a vida conjugal e está dependente de uma figura masculina para poder ser

feliz. Não percebemos nos contos de fada a realização feminina encontrada, por

exemplo, através da realização profissional, o que implicaria na quebra da formação da

antiga estrutura patriarcal que destina a mulher, automaticamente, à vida familiar e

doméstica.

Conseqüente ao casamento, os contos de fada finalizam com o “viveram felizes

para sempre” que não deixa de ser uma reprodução ideológica religiosa do “até que a

morte nos separe”, isto é, a reprodução da concepção de que o casamento deve ser uma

união eterna, uma aliança sagrada que denota para uma vida de realização pessoal,

principalmente feminina, e que se fundamenta em uma vida de harmonia.

Assim, todos esses elementos da narrativa e suas correspondentes características

são expostos por um narrador em terceira pessoa, o qual é apenas um observador dos

acontecimentos e limita-se ao ato de contar. Além destes, estamos certos que muitos

outros aspectos em comum podem ser encontrados nos contos de fada, mais a partir

destes já é possível definir de forma geral a maioria dos contos de fada tradicionais, não

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só através dos elementos apontados mais também através das ideologias propagadas por

estes contos quanto a presença da figura feminina.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Refletir sobre as relações de gênero que circundam os contos de fada foi uma

tarefa minuciosa que, por um lado, exigiu atenção a diversos aspectos diferentes desses

contos, tais como o perfil dos personagens, as representações gráficas, os discursos, as

situações por eles vivenciadas, as ações e o encantamento, uma vez que eles expressam

através desses recursos, de forma sutil, os aspectos que queríamos analisar quando

falávamos em relações de gênero presentes nos contos de fada.

Por outro lado, as discussões teóricas apontadas nesta pesquisa das quais fazem

parte a definição, o contexto histórico e as características dos contos de fada, além da

Ideologia e as Relações de Gênero, reuniram-se para justificar e complementar a análise

que fizemos sobre esses aspectos dos contos de fada. A questão que mereceu ser

analisada aqui não correspondia somente ao fato de que os contos de fada divulgam

concepções sobre relações de gênero, mas que estes reproduzem estereótipos

ideológicos socialmente atribuídos aos gêneros, os quais os leitores e ouvintes dos

contos de fada podem internalizar, reproduzir e vivenciar.

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Percebemos que apesar da quantidade significativa de contos de fada e das

particularidades apresentadas por cada um destes, eles poderiam ser analisados de forma

geral, uma vez que, quando comparados, foi possível encontrar um leque de

características comuns, principalmente no que concerne aos elementos da narrativa. O

entrecruzamento dos contos que analisamos possuiu uma função especial neste trabalho:

oferecer uma visão geral sobre os contos de fada tradicionais.

De certo este trabalho ainda pode exigir um estudo mais intenso, uma vez que

pode ser estendido para a análise de outros contos de fada tradicionais, ou até mesmo

ser aprofundado nos próprios contos que analisamos, já que o aspecto ideológico

encontra-se tão difundido nos contos de fada que ainda existem muitas concepções

ideológicas escondidas e que podem ser identificadas em “Cinderela”, “Branca de

Neve” e “A Bela e a Fera”.

Apesar disso, as discussões que levantamos, por si sós, já estabelecem a

ampliação de um conhecimento valioso para os estudos sobre relações de gênero. A

efetivação deste trabalho foi tão significante que ainda durante a sua realização íamos

progredindo na definição de uma visão contra-ideológica, mais realista e menos utópica

sobre as relações sociais estabelecidas entre mulheres e homens. Conseguimos lançar

um olhar mais crítico e minucioso de acordo com os avanços que fazíamos nas leituras

da fundamentação teórica, na leitura das versões dos contos de fada que utilizamos e na

análise descritiva que íamos desenvolvendo sobre os contos, para chegarmos finalmente

a efetivação de um trabalho inovador.

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Assim, não queremos fazer das discussões que levantamos um problema ou uma

oposição exagerada aos contos de fada tradicionais, mas ao contrário, queremos

intensificar um método de análise a fim de oferecer um suporte a pais e professores na

educação das crianças, uma vez que os contos de fada são artefatos culturais que não

precisam, nem queremos que sejam descartados, mas utilizados como recurso precioso

para principiar uma discussão sobre gênero nas instâncias culturais destinadas,

principalmente, as crianças.

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