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Relações entre estado, sociedade civil e mercado: a abordagem da Economia Civil. Autoria: Jorge Braun Neto, Maurício Custódio Serafim Resumo: Este ensaio teórico tem por objetivo apresentar a economia civil como abordagem para a compreensão das relações entre estado, mercado e sociedade civil. O trabalho apresenta primeiramente as origens da economia civil e seu posicionamento no campo da Nova Sociologia Econômica. Em seguida abordamos a compreensão acerca da importância das lógicas estruturantes da economia civil: reciprocidade, redistribuição e troca de equivalente, estabelecendo uma ponte com a abordagem de Polanyi (1998; 2012), e apresentando a relacionalidade como paradigma da economia civil. Por fim, concluímos explicitando desdobramentos teóricos.

Relações entre estado, sociedade civil e mercado: a ... · Relações entre estado, sociedade civil e mercado: a abordagem da Economia Civil. Autoria: Jorge Braun Neto, Maurício

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Relações entre estado, sociedade civil e mercado: a abordagem da Economia Civil.

Autoria: Jorge Braun Neto, Maurício Custódio Serafim

Resumo: Este ensaio teórico tem por objetivo apresentar a economia civil como abordagem para a compreensão das relações entre estado, mercado e sociedade civil. O trabalho apresenta primeiramente as origens da economia civil e seu posicionamento no campo da Nova Sociologia Econômica. Em seguida abordamos a compreensão acerca da importância das lógicas estruturantes da economia civil: reciprocidade, redistribuição e troca de equivalente, estabelecendo uma ponte com a abordagem de Polanyi (1998; 2012), e apresentando a relacionalidade como paradigma da economia civil. Por fim, concluímos explicitando desdobramentos teóricos.

 

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1 Introdução As relações entre estado, mercado e sociedade civil organizada se constituem em uma problemática que vem sendo explorada por diferentes esforços teóricos, na busca de compreender como se dão essas interações. Entre estas perspectivas, duas correntes – neoliberal e neoestatal – são as comumente utilizadas para as discussões envolvendo estado, mercado e sociedade civil. O surgimento de novos estudos, principalmente ligados à Nova Sociologia Econômica, trouxeram um novo olhar a essas questões. Tais abordagens serão exploradas mais adiante neste trabalho. Um destas novas perspectivas – que, de fato, não se configura assim tão nova, pela sua raiz histórica, conforme abordaremos –é a da Economia Civil. A economia civil tem suas raízes na Idade Média, principalmente na Itália, originada da tradição do humanismo civil,e pauta-se na busca pelo bem viver, pela qualidade dos laços estabelecidos entre as pessoas, e do fortalecendo do público enquanto espaço de “felicidade pública”. Sua ideia central é a possibilidade de haver outros princípios, além do lucro e da troca mercantil, dentro da esfera econômica. Desta forma, é possível conceber a experiência da sociabilidade humana e da reciprocidade no interior da vida econômica, nem paralela, nem anterior e nem posterior (BRUNI; ZAMAGNI, 2010).

Apresentar a economia civil enquanto abordagem para a compreensão das relações entre estado, mercado e sociedade civil pode ser uma tarefa intensa. Por um lado, a economia civil é uma abordagem relativamente nova no cenário acadêmico brasileiro, mas muito mais antiga considerando sua origem histórica, quando comparada a outras teorias ditas clássicas. Por outro lado, decorrente deste fator, deve-se a relativa escassez de material disponível tanto em português, quanto em inglês, que trabalhem a temática. Uma obra de destaque é o livro intitulado Economia Civil: eficiência, equidade e felicidade pública, dos professores italianos Luigino Bruni e Stefano Zamagni. Primeiramente apresentamos as origens da economia civil e seu posicionamento dentro da Nova Sociologia Econômica. Apresentamos em seguida a compreensão acerca da importância das lógicas estruturantes da economia civil: reciprocidade, redistribuição e troca de equivalente, estabelecendo uma ponte com a abordagem de Polanyi (1998; 2012), e apresentando a relacionalidade como paradigma da economia civil. Por fim, concluímos apresentando os desdobramentos teóricos da discussão. 2 Perspectivas à compreensão das relações entre estado, mercado e sociedade civil e a Nova Sociologia Econômica A forma como se concebe e se compreende as relações entre sociedade civil, estado e mercado, conforme destacamos na introdução, impactam, em diferentes níveis da vida pública, trazendo consigo diversas perguntas que podem ser respondidas a partir da visão teórica e prática de como se concebem tais interações. Os impactos podem ser percebidos, por exemplo:na gestão dos bens e serviços públicos – quem são os responsáveis pela promoção dos bens públicos? Quais os bens devem ser tutelados pelo Estado? Qual o papel da sociedade civil nas políticas públicas e na gestão governamental? Qual o papel do mercado frente na promoção dos bens públicos?; dos recursos comuns – quais recursos são considerados comuns? Até que ponto e de que forma o mercado pode explorar estes recursos?; da cidadania – quais são os espaços de cidadania dentro de uma sociedade? Há quem interessa essa cidadania?; nas relações interpessoais dentro de uma comunidade – qual a importância de uma terceira parte na garantia da realização dos contratos? Qual a importância da solidariedade e da confiança no sistema social? Quais são os espaços de liberdade?

 

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Tradicionalmente essas questões têm sido respondidas a partir de duas abordagens –uma centrada no mercado e outra centrada no estado – normalmente consideradas como “mundos hostis”, expressão utilizada por Zelizer (2011) para definir os encontros entre economia e intimidade, onde as esferas estão separadas, em arenas distintas, e que o contato entre elas causaria desordem e contaminação. Estes princípios se caracterizam da seguinte forma (BRUNI; ZAMAGNI, 2010):

(a) abordagem neoliberalista: compreende que a propagação dos mercados e do princípio da eficiência que o acompanha é a solução para os problemas sociais. A empresa é vista como uma entidade asocial, assim como o próprio social é destituído do mercado. Este é aético e socialmente neutro, buscando, contudo, o bem comum a partir da soma da busca dos objetivos tomados individualmente. Em uma imagem, o mercado teria como função fazer o “bolo crescer”. A solidariedade começa onde termina o mercado, separando o bolo. Por fim, o mercado é visto como a mais alta expressão da sociedade civil, não devendo, por isso, ser alvo de qualquer ingerência. (b) abordagem neoestatalista: o mercado é uma ameaça para o social, pois o mercado é considerado um espaço de exploração do forte sobre o fraco. A empresa é antissocial. O mercado como um todo é concebido como responsável pela desertificação dos laços sociais, das relações realmente humanas. O avanço do mercado expandiria também a racionalidade instrumental e destruiria os vínculos sociais do mundo da vida. O antídoto para tal problema é o princípio da redistribuição com vistas à equidade, tendo o estado como seu principal ator.

Outras abordagens, além desta perspectiva mais tradicional, emergiram com o surgimento da Nova Sociologia Econômica, como o trabalho fundador de Granovetter (1985). O argumento do autor de que os sistemas econômicos estão imersos em sistemas sociais foi angular para o desenvolvimento de um arcabouço extenso na formação da disciplina da Nova Sociologia Econômica. Andion (2009) categoriza tais correntes em dois grandes blocos: (1) a Nova Sociologia Econômica de língua inglesa e (2) a Nova Sociologia Econômica de língua francesa. Dentro das correntes anglo-saxãs encontram-se a do próprio Granovetter (1985), das redes e inserção social, cultural e política dos mercados; as Institucionalistas, composta pelos Novos institucionalistas, os Neoschumpeterianos e os Neocorporatistas; e, por fim a Socioeconomia. O campo francófono, por sua vez, se constitui dos Institucionalistas de língua francesa, compostos por regulacionistas e pela teoria das Grandezas e das Convenções; o Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais (MAUSS) e o paradigma da Dádiva; e correntes como a Economia social, solidária e plural. A Economia Civil pode ser considerada como uma corrente da Nova Sociologia Econômica de língua italiana, pautada na compreensão de que o estado, mercado e sociedade civil são todos espaços de sociabilidade e reciprocidade. 3 Aspectos introdutórios da economia civil A abordagem da economia civil se assemelha pouco com a concepção de economics, ou ainda, enquanto um complexo de cálculos econométricos que busca descrever a realidade, inclusive o comportamento humano a partir de modelos pré-definidos baseados no utilitarismo, onde a esfera da ética ou é negada ou é relegada a um plano sem importância. Não que a economia civil rejeite qualquer tentativa quantitativa de compreender a realidade, ao contrário, contém também essa dimensão. Há uma busca pelo realinhamento entre estes

 

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dois campos, pois o conhecimento produzido pela economia tem sim utilização prática e o economista é também um agente que influencia a realidade. Primeiramente, a economia civil busca retomar a importância e a centralidade das organizações da sociedade civil, tendo em vista que a economia contemporânea dá pouca centralidade e importância para este tipo de organização. A crítica da economia civil nasce da concepção na qual se relegou às organizações da sociedade aquilo que não é função de estado ou de mercado, ou seja, a sociedade civil nasceria das fissuras deixadas pelo estado e mercado. Isto se deve porque tradicionalmente compreende-se, de um lado, o estado como espaço do público, do monopólio da ação política exercida a partir da lei; de outro, o mercado como espaço privado para a realização de fins idiossincráticos, baseados no contrato. Esta concepção tem como resultado lógico o império do estado sobre a coisa pública, sobre a comunidade e sobre o civil.

Contudo, antes dos estados-nação (1648 - tratados de Westphalia) o mercado já existia como instituição e dava respostas para as necessidades do civil, sendo o próprio mercado uma das bases da comunidade, pois as trocas eram realizadas primeiro por serem todos membros da mesma comunidade. A lógica dominante neste mercado era o da reciprocidade, da doação, na concepção de um mercado civil, espaço para satisfação das necessidades relacionais (busca de sentido), além das necessidades materiais (biológicas).

No entanto, o mercado não era primoroso a tal ponto de ser perfeito: práticas condenadas na época como a usura (emprestar dinheiro a juros abusivos) e a simonia (comércio de bens espirituais) eram punidos.A economia civil busca demonstrar que não é pelos espaços deixados pelo mercado e pelo estado que surge a sociedade civil, mas diferentemente, a sociedade civil que alicerça o estado e o mercado (BRUNI, ZAMAGNI, 2010).Neste sentido, a Economia Civil não se alia ao dualismo promovido pelas abordagens neoliberais e neoestatais, citadas anteriormente. Para a Economia Civil há uma discussão anterior e mais ampliada em comparação ao dualismo estado versus mercado: de que forma podem coexistir os princípios norteadores da ordem social - redistribuição, trocas equivalente e reciprocidade - dentro de um mesmo sistema social? Estes princípios serão abordados mais a frente. Esta é a principal característica da economia civil: ao invés de compreender a sociedade em esferas, antes, enfatiza os princípios reguladores da reciprocidade, da redistribuição e das trocas equivalentes. Devemos fazer um breve resgate histórico para compreender as bases do surgimento da economia civil, para que possamos adentrar de forma mais adequada em suas nuances. 4 Gênese da Economia Civil: da Idade Média ao Humanismo Civil. A história da economia civil está intimamente ligada à história da sociedade civil. Possui suas raízes na Idade Média, em especial na cultura dos monastérios. Os monastérios e abadias foram os primeiros espaços onde o econômico se tornou mais proeminente. Nestas instituições encontramos também as raízes das primeiras experiências de gestão e contabilidade. As trocas entre os mosteiros e as cercanias, entre "as cidade de Deus e a [...] cidade dos homens [...], [acarretava] em uma tensão vital entre a civitas e o mosteiro" (BRUNI, ZAMAGNI, 2010, p. 31), propiciavam o contato com o código dos monastérios, inclusive os da conduta econômica: socorrer aqueles que mais necessitavam. Com a proliferação, por um lado, do comércio, e o surgimento da escolástica de outro, a atividade econômica iria ganhar cada vez mais corpo. A noção propagada até então era de que a vida econômica em si era algo pernicioso. Ocorrerá pois, como resultado do processo histórico, uma mudança nesta concepção: o que distingue a atividade econômica lícita da ilícita é o fato de as trocas, as prestações de serviços e as retribuições acontecerem no âmbito das relações de amizade e de solidariedade, ou seja, no âmbito de uma comunidade: "podemos

 

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trocar porque, antes, somos partes de uma comunidade que cria as condições para que a troca seja útil e civil" (BRUNI, ZAMAGNI, 2010, p. 34). Os montepios (séc. XVI) são um exemplo da afirmação anterior. Estas instituições funcionavam como uma espécie de banco de ajuda aos pobres contra os usurários – aqueles que cometiam a usura ou atividade econômica ilícita. Os empréstimos eram de pequena monta, lastrados em bens deixados em garantia por parte dos tomadores, sendo os recursos destes proto bancos geridos por representantes comunidadei. A cidadania estava ligada então ao "vínculo de reciprocidade em que se baseia a reflexão sobre os empréstimos, os juros e a restituição" (BRUNI, ZAMAGNI, 2010, p. 39). Antonio Genovesi (1713-1769), talvez o maior expoente da economia civil, escreveu no século XVIII, sua tese sobre o empréstimo, chegando ao enunciado: "tu tens o direito de emprestar sob usura aos teus irmãos: desde que não sejam pobres” (BRUNI, ZAMAGNI, 2010, p. 42). Estes fatos se articulam para demonstrar que a atividade econômica estava permeada de relações, e que estavam ligadas a participação na vida em comunidade: "só podemos comerciar nos mercados, porque, antes, somos parte de uma mesma comunidade que, em certos casos (como no dos pobres), exige dom [...]. O comércio é justo, ético e civil quando está em conformidade com o princípio da reciprocidade [...]"(BRUNI, ZAMAGNI, 2010, p. 43). Esta compreensão extrapola a filantropia, por exemplo, pois o dom expressa, obrigatoriamente, o estabelecimento de algum tipo de vínculo entre as partes. O período entre a Idade Média e a Moderna – meados do século XV, começo do século XVI – ficou conhecida como o período do humanismo, sendo em especial o humanismo civil fator de relevância para a compreensão das raízes da economia civil. O humanismo civil foi marcado por um conjunto de nuances que o definiram. Primeiramente, a volta as civilizações clássicas (Roma e Grécia) criaria uma polarização entre o primeiro momento do humanismo civil, influenciado pelas ideias de Cícero e Aristóteles, com a valorização da comunidade, do estado e da cidade; e o segundo momento influenciado por Platão, onde o indivíduo é descolado de suas relações e é tomado como "individualista, contemplativo, solitário e esotérico" (BRUNI, ZAMAGNI, 2010, p. 49). Além disto, a economia civil começa a se interessar pelo bem viver e pela valorização do trabalho. Na esteira, principalmente no primeiro momento do humanismo civil, a questão da felicidade aristotélica seria de relevo para afirmação da importância da vida com o outro: a felicidade seria fruto das virtudes civis e, por isso, da vida em comunidade. Contudo, esse período que se constitui na chamada "utopia do civil" daria lugar a um conjunto de esforços teóricos que reafirmavam o papel da terra, da diferenciação social, do organicismo. A sociabilidade tornar-se-ia "algo extrínseco, transitório, acidental" (BRUNI, ZAMAGNI, 2010, p. 56). A modernidade traria consigo uma transformação antropológica fundamental: a concepção do homem como egoísta, sendo a vida em sociedade um fenômeno estrutural externo e imposto ao ser humano. Hobbes e Kant são dois importantes expoentes, principalmente esse último, que cunharia a expressão "insociável sociabilidade" (BRUNI, 2012). Viver em comunidade seria visto como um peso, retirando a reciprocidade e a relacionalidade como dimensões do ser humano: a communitas passa a ser percebida como immunitas. Nomeou-se esta passagem como a “noite do civil”. Obras como “O Príncipe” de Maquiavel, “O Leviatã” de Hobbes e a “Fábula das Abelhas” de Mandeville, dariam corpo e tom à noite do civil. Como resultado intelectual deste processo, a motivação para a vida em comum passa do amor ao temor; a necessidade de um pacto artificial para a criação de uma instituição externa investida de força para manter vida social; a troca de lugar entre virtudes e vícios no civil. Como resposta a esta noite do civil, a economia civil propôs a concepção da felicidade pública, reafirmando o civil como espaço de virtudes, e a importância do público como

 

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espaço de realização: "eu posso ser rico até sozinho, mas, para ser feliz, preciso da companhia de pelo menos mais uma pessoa" (BRUNI, ZAMAGNI, 2010, p. 65). Esta felicidade está ligada ao bem comum, entendido como resultado das "precondições institucionais e estruturais que permitem aos cidadãos desenvolver [...] sua felicidade individual" (BRUNI, ZAMAGNI, 2010, p. 65). Assim, a economia civil passa a ser compreendida como a ciência da felicidade pública ou do bem-viver social. Usualmente credita-se a Adam Smith e aos fisiocratas franceses o nascimento da economia como campo científico. Contudo, a partir da ótica da economia civil, podemos compreender que este campo tem suas raízes anteriormente estabelecidas na própria Itália, especialmente durante o humanismo italiano (1734-1759). As duas escolas de maior destaque da economia civil são a napolitana e a milanesa. A escola napolitana tem como seu maior expoente Genovesi. As principais acepções dessa corrente são: (I) o comércio é um fator civilizador, promovendo o bem-estar social, pois é o comércio forte um sinal de desenvolvimento de laços e de fé pública, além do fato de que o comércio requer um ambiente de paz e não de guerra; (II) os juros são uma ferramentas antissocial que garante e subsidia motivações virtuosas dos cidadãos; (III) a confiança pública como core do desenvolvimento, por meio de laços fortes e da produção do chamado "capital social"; (IV) "civilização", ou seja, a compreensão de que as pessoas, dentro da uma economia civil, devem utilizar seus esforços para promover o bem-estar e a promoção da comunidade; (V) a felicidade como busca do bem-estar de todos, a busca de uma vida boa, pauta as ações econômicas; (VI) a reciprocidade é base da economia civil, o instrumento de sociabilidade da esfera civil, que promove o surgimento e fortalecimento de relações, da própria sociedade, e por consequência desenvolvimento e felicidade pública. A escola milanesa tem como seu principal expoente Pietro Verri (1728-1797). Os esforços teóricos desta escola focavam-se em compreender duas questões em específico: "o papel das leis justas na felicidade pública e a importância da criatividade e da inteligência da pessoa na geração do valor dos bens"(BRUNI, ZAMAGNI, 2010, p. 81): as boas leis civis seriam peça-chave para alcançar a felicidade pública; o papel central da pessoa na sociedade e na economia, refletido também na capacidade humana de gerar valor. Após a apresentação breve deste histórico, exploraremos com mais profundidade a visão da economia civil acerca da reciprocidade, da redistribuição e trocas equivalentes, como lógicas para a compreensão da economia civil. 5 Reciprocidade, redistribuição e trocas equivalentes: em busca da relacionalidade. Como apontamos nos aspectos introdutórios e buscamos mostrar no histórico, a compreensão acerca da reciprocidade, da redistribuição e das trocas equivalentes são de relevo para a economia civil enquanto abordagem. A redistribuição é concebida como ferramenta para a promoção da equidade, estando tipicamente contida dentro das funções ideais de Estado. Uma figura central recebe e distribui bens e serviços, de acordo com necessidades específicas. As trocas equivalentes são idealizadas como espaço de eficiência, ou o espaço do mercado stricto conforme o concebemos hoje, sendo este mercado um caso particular do mercado civil, onde a ênfase está colocada somente na troca, ou seja, uma das lógicas possíveis. Nas trocas equivalentes se estabelece principalmente a figura do contrato, enquanto ferramenta que funda relações mutuamente recíprocas entre as partes. Contudo, abre-se um parênteses acerca da compreensão específica do mercado pela abordagem da economia civil. O mercado é muito mais amplo do que aquilo que nos acostumamos a entender, pois este é um tipo de mercado. Para a economia civil, o mercado não é único, e sim plural, pois ele é "concebido e vivido como lugar não só da eficiência, mas também das práticas da

 

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sociabilidade, sobretudo, e relacionalidade" (BRUNI, ZAMAGNI, 2010, p. 27). O mercado é um espaço plural, que inclui as trocas equivalentes, da eficiência e de reciprocidade, enfim, um mercado civil. O mercado pode ser entendido de modo mais alargado, como um "mundo vital"(BRUNI, ZAMAGNI, 2010, p. 152), responsável por: (I) produzir e distribuir riqueza pautado em um parâmetro de equidade; (II) um espaço autônomo em que possam operar, de modo autônomo, independentemente e no mesmo patamar de dignidade, também sujeitos econômicos, que não tendo o lucro por fim, são capazes de gerar valor; (III) um espaço em que o consumidor é cidadão, enquanto portador de direitos não apenas em relação à qualidade do produto [...] mas também em relação ao processo produtivo que origina esse produto. A reciprocidade tem como finalidade compartilhar o sentimento de confiança dentro de um agrupamento social. Ela possibilita que cada indivíduo possa buscar realizar seu plano de vida, ou aquilo que Aristóteles chamaria de eudaimonia (PABST, 2009; BRUNI, 2012), a busca pela boa vida, que só se realiza a partir do contato com o outro, no estabelecimento de vínculos de reciprocidade na comunidade. A felicidade se torna assim o resultado da vida civil, da vida com o outro, da criação e manutenção dos vínculos sociais. O civil é o espaço comumente destinado para a reciprocidade, em específico as organizações da sociedade civilii. Neste sentido, a reciprocidade estabelece relações mutuamente recíprocas entre as partes. Estabelecendo-se então que as trocas equivalentes e a reciprocidade têm como ponto comum estabelecer relações mutuamente recíprocas entre as partes, o que as difere? Especificamente a compreensão da reciprocidade enquanto dom. Os estudos de Marcel Mauss (2003) sobre a dádiva, e em específico o dom, surgiram das inquietações políticas do autor sobre os rumos do movimento socialista na Rússia, partindo-se da observação que tal movimento estaria fadado ao fracasso por tentar extirpar da sociedade a economia de mercado (MARTINS, 2008). Mauss buscou, a partir do estudo de sociedades antigas, desenhar uma possibilidade para as sociedades modernas, "valorizando a liberdade de interação dos indivíduos na organização da vida social" (MARTINS, 2008, p. 116) e fazendo uma crítica da teoria econômica mainstream do período e do utilitarismo. Nos estudos de Mauss, existem duas categorias para o dom. A primeira categoria, o dom munus, relaciona o dom com uma estrutura subjacente de troca, ou seja, como ferramenta para criar compromisso entre pessoas. A própria origem da palavra comunidade - cum-munus (com munus) - remete a existência do dom nas relações sociais, sendo visto como "obrigação necessária para preservar o vínculo social" (BRUNI; ZAMAGNI, 2010, p. 162). Na segunda concepção, do dom enquanto reciprocidade, este é também uma ferramenta libertadora, pois não se espera um retorno do destinatário para aquele que doou, mas sim para um terceiro, mantendo um ciclo de doação. O dom, nesta perspectiva, se constitui como um fator gerador da reciprocidade. A Figura 1representa estas diferenças entre as duas categorias do dom.

 

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Figura 1. Tipologias do dom Fonte: Elaborado a partir de BRUNI e ZAMAGNI (2010) e CAILLË (2002). Nesta perspectiva estabelecem-se uma série de "transferências bidimensionais, independentes umas das outras e ao mesmo tempo interligadas" (KOLM, 1994 apud BRUNI; ZAMAGNI, 2010, p. 153). Independentes pois implicam em voluntariedade, sem estabelecimentos de pré-requisitos. Deste modo, esta percepção não é "condicional (como a do contrato) nem é puramente incondicional (como a filantropia), pois, se é verdade que a dedicação do outro não é condição prévia para a minha, ao mesmo tempo, não alcanço meus objetivos sem a resposta do outro" (BRUNI; ZAMAGNI, 2010, p. 154), ou seja, de uma "incondicionalidade condicional" (CAILLÉ, 2002). A bidimensionalidade se dá na relação de resposta do outro, ou seja, na própria incondicionalidade condicional entre o eu e o tu. Soma-se a estas duas características a transitividade: o vínculo de reciprocidade pode não estar diretamente direcionado para aquele que desencadeou a reciprocidade, e sim a um terceiro, diferenciando o dom-reciprocidade de um possível "egoísmo cruzado". Assim sendo, o "contrato é um encontro de interesses, a reciprocidade [...] um encontro de gratuidades" (BRUNI; ZAMAGNI, 2010, p. 158). A Figura 2 resume e apresenta as considerações principais acerca desta compreensão tripartite entre reciprocidade, redistribuição e trocas equivalentes.

Figura 2. Considerações acerca das lógicas estruturantes Fonte:Elaborado a partir de BRUNI e ZAMAGNI (2010) e BRUNI (2012). A economia civil tem como desafio "encontrar os modos [...] de permitir a coexistência destes três princípios reguladores dentro de um mesmo sistema social" (BRUNI; ZAMAGNI, 2010, p. 24). Neste sentido, a economia civil extrapola as dicotomia público e privado (PABST, 2012), buscando superar a polarização entre estado e mercado, pois concebe que o mercado, a sociedade civil e o próprio estado são também espaços de reciprocidade-

 

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dom. O civil, dentro desta abordagem aponta para a qualidade como se estabelecem as relações (BRUNI; ZAMAGNI, 2010). A abordagem compreende que a sociabilidade e a relacionalidade se dão também dentro da vida econômica normal. Conforme exploramos o posicionamento da economia civil dentro da Nova Sociologia Econômica, e, com a subsequente apresentação da tipologia tripartite das lógicas estruturantes, podemos, em certo momento, questionarmos acerca da proximidade destas lógicas com as formas de integração de Polanyi (2000, 2012), principalmente se considerarmos a importância deste autor para o nascimento e desenvolvimento da Nova Sociologia Econômica (MACHADO, 2010), bem como a aproximação semântica entre os termos utilizados. Portanto, é importante fazermos aproximações necessárias - e centrais - entre a Economia Civil e os trabalhos de Karl Polanyi. 6 Aproximações necessárias: Polanyi e a Economia Civil O trabalho de Polanyi na identificação das características da economia primitiva a partir dos trabalhos de Malinowski e sua divisão entre reciprocidade, redistribuição e troca (POLANYI, 1998), colocou seu trabalho como um clássico da Nova Sociologia Econômica. As economias primitivas usariam três princípios para a organização da vida econômica (POLANYI, 2012), graficamente apresentados pela Figura 3: (a) a reciprocidade, que se dá entre grupos simétricos, que se identificam um com os outros como iguais, estabelecendo relações de mutualidade; (b) a redistribuição, onde há centralidade, a presença de normas estabelecidas sendo garantidas por uma terceira parte ad hoc; (c) a troca, por meio de "movimento bidirecional de bens entre pessoas orientadas para o ganho que cada uma delas obtém dos termos resultantes" (POLANYI, 2012, p. 91), entre grupos aleatórios.

Figura 3. Formas de Integração Fonte: Elaborado a partir de POLANYI (1998; 2012). De fato, tais formas de integração se aproximam muito das lógicas estruturantes, tanto pelos princípios de distribuição que as acompanham quanto pelas características próprias de cada uma. Contudo, existem algumas diferenças. A redistribuição – tanto em Polanyi quanto para a Economia Civil – possui as mesmas características. A finalidade em ambos são a equidade, a partir da presença de uma entidade central, que coleta e redistribui. Os estados normalmente possuem essa função, assim como

 

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eram os chefes tribais nos estudos de Polanyi. Os estados modernos se utilizam de políticas públicas para executar esta função. Nas trocas de equivalente, a compreensão acerca do que sejam as trocas é compartilhada nas duas perspectivas.O debate mais profundo se dá com relação ao espaço onde as trocas naturalmente mais ocorrem: o mercado. Polanyi (2012) compreende o mercado como um espaço de trocas a taxas variáveis, espaço regido pela tríade oferta-demanda-preço onde as pessoas agem com o intuito de obter retornos econômicos. O mercado atuaria como um espaço exclusivo para trocas, inexistindo o estabelecimento de relações de reciprocidade. O mercado contagiaria os outros espaço, impondo sua lógica, pois ele "avança sobre a desertificação da sociedade". A economia civil têm outra percepção acerca desta abordagem. Conforme expusemos anteriormente, para esta abordagem o mercado como conhecemos é um tipo particular de mercado - mercado stricto -, espaço da racionalidade instrumental. Porém,o mercado é uma instituição plural, no qual não somente há uma racionalidade, mas sim racionalidades que coexistem. O salto da economia civil reside na compreensão de que o mercado é também um espaço do civil, um espaço onde se estabelecem relações. Sendo assim, o mercado um espaço não só para a racionalidades, mas também para relacionalidades. Como apontamos anteriormente,essa é a origem do próprio mercado: comerciamos antes porque fazemos parte de uma comunidade, não a comunidade que surge do resultado de nosso comércio. Tal concepção nos leva a discutir a questão da reciprocidade, que tornará ainda mais clara a questão da relacionalidade. Vale ainda destacar que mesmo a troca no mercado de sentido stricto acaba por gerar, em grau mais fraco, algum tipo de laço e de relação. Em termos de reciprocidade, enquanto forma, as duas abordagens se aproximam. Além da distinção entre dom-munus e dom-reciprocidade, enquanto espaço, a economia civil compreende que não somente espaços de simetria são espaços potenciais de reciprocidade. A sociedade civil como espaço de maior simetria seria o espaço convencional para a reciprocidade, mas não só: o mercado e o estado são também espaços de reciprocidade, ou seja, espaços para o dom. A reciprocidade-dom fortalece as relações, tornando assim o espaço do civil ainda mais rico. Por isso, a principal distinção entre as duas abordagens reside neste ponto: na economia civil, o mercado, o estado e a sociedade civil são todos espaços onde podem se dar relações de reciprocidade-dom, em coexistência com as outras lógicas estruturantes. A partir disso, estabelecem-se relações fortes entre indivíduos, grupos, instituições, tornando mais forte a tessitura social. É a partir da qualidade das relações estabelecidas que se pode alcançar a confiança pública e na importância das virtudes no espaço público, que acarreta, de diversas formas, a melhoria da vida em sociedade, levando aquilo que a economia civil coloca como objetivo da vida em sociedade: a felicidade pública. Além da felicidade pública, é a partir da relacionalidade que a pessoa pode buscar sua autorrealização pessoal, seu "florescimento: preciso do outro para descobrir que vale a pena que eu mesmo me conserve; ou melhor ainda, que eu floresça, implicando não apenas no reconhecimento de seu direito de existi [do outro], mas também na necessidade que ele exista para que eu mesmo possa existir, em relação a ele" (SEN, 1998, apud BRUNI; ZAMAGNI, 2010, p. 157 e 158). 7 Conclusão: Impactos para as relações entre estado, mercado e sociedade civil à luz da Economia Civil Neste ensaio apresentamos a economia civil enquanto abordagem para a compreensão das relações entre estado, mercado e sociedade civil. Perpassando brevemente pelo seu posicionamento dentro da Nova Sociologia Econômica, apresentamos o histórico do surgimento e as principais visões teóricas da economia civil.

 

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Para a Economia Civil as lógicas estruturantes da ordem social são: o de trocas equivalentes, que tem por finalidade a eficiência, normalmente empregado dentro do mercado em sentido stricto; o da redistribuição, que tem por finalidade a equidade, utilizado comumente pelo estado; e o do dom como forma de reciprocidade, que tem por finalidade proporcionar confiança generalizada e liberdade em sentido positivo, ou seja, dos indivíduos concretizarem sua plenitude, usualmente percebido dentro da esfera sociedade civil. O grande desafio da Economia Civil é encontrar quais as formas possíveis que permitam a coexistência desses princípios no interior do mesmo sistemas social. Relacionando a Economia Civil com o trabalho de Polanyi (1998; 2012), apresentamos algumas semelhanças e diferenças, principalmente ao posicionamento da reciprocidade em todos os espaços convencionais, onde outras lógicas são mais claramente observáveis: redistribuição-estado, trocas-mercado. Essa reciprocidade observável em todos as lógicas permite uma compreensão de que estes espaços são de múltiplas racionalidades e relacionalidades, sendo esta um importante conceito para a Economia Civil. Dedicaremos agora algumas linhas finais a um esforço de estabelecer alguns possíveis desdobramentos teóricos da discussão. Primeiramente, compreender o tecido social a partir de lógicas estruturantes que podem coexistir dentro de um mesmo sistema institucional como mercado, estado ou a sociedade civil requer um olhar mais atento e um esforço epistemológico maior. Isto requer o descolamento das abordagens tradicionais - neoliberais e neoestatais - e um esforço mais acurado para compreender os impactos destas relações. Compreender a reciprocidade como uma lógica potencialmente existente em todas as estruturas sociais, impacta em compreender estes espaços como espaços de relacionalidade, especialmente o mercado, é compreender que todos os espaços possuem como finalidade a criação e manutenção de vínculos sociais, o "espírito de fraternidade", como espaços de reciprocidade-dom. Para tanto, requer uma visão mais generosa e atenciosa da realidade, principalmente na forma e nos instrumentos que utilizamos para compreende-la. Finalizamos apontando que a Economia Civil traz consigo uma agenda de pesquisa profícua de possibilidades que se abrem, como por exemplo: em que casos e de que forma o estado pode promover a reciprocidade e relacionalidade? Quais as experiências e de que forma o mercado se expressa através de um mercado civil? Quais as experiências e de que forma o mercado promove relacionalidade? Quais os impactos nas sociedades contemporâneas do mercado civil? Como se dão as interfaces entre os diferentes binômios destas lógicas estruturantes (estado/mercado, mercado/sociedade civil organizada, estado/sociedade civil organizada) na promoção da reciprocidade e da relacionalidade? Quais os espaços para o dom dentro do mercado e do estado? 8 Referências ANDION, Carolina. Correntes que formam a Nova Sociologia Econômica. Texto para fins didáticos. 2009. BRUNI, Luigino. Reciprocity, Altruism and the Civil Society: in praise of heterogeneity. Oxon: Routledge, 2008. BRUNI, Luigino; ZAMAGNI, Stefano. Economia civil: eficiência, equidade e felicidade pública. Vargem Grande Paulista, SP: Editora Cidade Nova, 2010. BRUNI, Luigino. The Genesis and Ethos of the Market. Palgrave Macmillan: London, 2012.

 

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