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RELAÇÕES INTERNACIONAIS CONTEMPORÂNEAS 2012/2

Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

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RELAÇÕES INTERNACIONAIS CONTEMPORÂNEAS

2012/2

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José Miguel Quedi Martins (Org.)

Relações internacionais

contemporâneas 2012/2:

estudos de caso em política externa e de

segurança

Primeira edição

Porto Alegre, 08 de maio de 2013.

Série Cadernos ISAPE

Page 4: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE)

Rua 24 de outubro, 850/310

Bairro Moinhos de Vento

CEP: 90510-000

Porto Alegre, RS, Brasil

Fone: (51) 30846175

Capa: Rômulo Barizon Pitt

Editoração: Bruno Gomes Guimarães

Revisão técnica: Bruno Magno, Pedro Vinícius Pereira Brites, Athos

Munhoz Moreira da Silva e Walmir Françoes Júnior

Impresso pela Liro Editora Livre

© 2013 Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia

Martins, José Miguel Quedi, 1964

Relações internacionais contemporâneas 2012/2: estudos de caso

em política externa e de segurança / organizado por José Miguel

Quedi Martins. — Porto Alegre, Instituto Sul-Americano de

Política e Estratégia (ISAPE), 2013.

vi 198p. ; 21cm

ISBN 978-85-65135-06-1 (impresso)

ISBN 978-85-65135-07-8 (ebook)

1. Relações internacionais 2. Política externa 3. Segurança (militar)

CDD 327

Page 5: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Sumário

Agradecimentos 1

Apresentação 2

José Miguel Quedi Martins

Introdução 4

Marco Cepik

Capítulo 1

POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DOS ESTADOS UNIDOS 7

André França, Bruna Jaeger, Francine Ferraro, Giordano Bruno

Antoniazzi Ronconi, Guilherme Simionato, Henrique Acosta & Lucas

Santos

Capítulo 2

POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA REPÚBLICA POPULAR DA

CHINA 31

Giovana Esther Zucatto, João Arthur da Silva Reis, João Gabriel

Burmann da Costa, Marília Bernardes Closs, Mirko Levis Gonçalves

Pose, Osvaldo Alves Pereira Filho & Renata Schmitt Noronha

Capítulo 3

POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA RÚSSIA 48

Ana Paula de Mattos Calich, Jéssica da Silva Höring, Klei Medeiros,

Leonardo Albarello Weber, Wagner Augusto Silveira & Willian Moraes

Roberto

Capítulo 4

POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA ÍNDIA 72

Angela Gallina Brandalise, Helena Marcon Terres, Júlia Simões

Tocchetto, Livi Gerbase, Luiza Costa Lima Corrêa, Matheus Machado

Hoscheidt & Pedro Felipe da Silva Alt

Capítulo 5

POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DO JAPÃO 93

Eric Feddersen, Lucas da Rocha Rodrigues, Victor Merola & Vinícius

Lanzarini

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Capítulo 6

POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA ALEMANHA 109

Laís Helena Andreis Trizotto, Mariele Laís Christ, Patrícia Assoni

Grechi & Luísa Saraiva Bento

Capítulo 7

POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA FRANÇA 126

Andressa Cristina Gerlach Borba, Luciana Costa Brandão, Maximilian

Dante Barone Bullerjahn, Marina Soares Scomazzon, Natasha Pergher

Silva & Valentina Assis Arnt Andreazza Rossi

Capítulo 8

POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DO REINO UNIDO 142

Glaúcia de Siqueira Noronha, Jéssica Delabari de Lima, Marina Lua

Vieira dos Santos & Matheus Schneider Gebhardt

Capítulo 9

POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA TURQUIA 157

Aércio Artur Mateus, Anaís Brum Medeiros, Bernardo Rolim Soares,

Gustavo Hack de Moura, Maud Trutta, Pedro Perfeito da Silva &

Pedro Hercz Merlo

Capítulo 10

CONSIDERAÇÕES FINAIS: RECOMPOSIÇÃO HEGEMÔNICA E INSERÇÃO

INTERNACIONAL DO BRASIL 174

José Miguel Quedi Martins

Page 7: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

1

Agradecimentos

Agradecemos à União Federal à qual dirigimos todo o nosso esforço

de pesquisa, pois, sem ela, a existência deste trabalho não teria nenhum

significado.

Reconhecemos, também, a importância dos seus órgãos de fomento,

que através de suas políticas de financiamento, viabilizaram a execução

desta pesquisa. Especificamente às seguintes instituições: à UFRGS, por

intermédio da Pró-reitoria de Pesquisa (PROPESQ), pelas bolsas de

iniciação científica; à Pró-reitoria de Extensão (PROREXT), pelas bolsas

de extensão que viabilizaram as atividades de extensão, a orientação dos

grupos de trabalho e a gestação dos textos do livro. Agradecemos à

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)

pela bolsa do programa de incentivo à iniciação científica Jovens Talentos

para a Ciência. Além dessas, agradecemos à Faculdade de Ciências

Econômicas, ao Departamento de Economia e Relações Internacionais;

ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais e,

especialmente, ao CEGOV, pela parceria e estímulo constante.

Naturalmente, agradecemos ao Instituto Sul-Americano de Política e

Estratégia, pelo envolvimento ativo na formulação, produção, editoração

e publicação dessa obra.

Agradecemos, ainda, aos Professores Paulo Visentini, Coordenador

do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais;

Marco Cepik, Diretor do Centro de Estudos Internacionais sobre

Governo; André Reis, Coordenador do Curso de Graduação de Relações

Internacionais, pelo incentivo à produção e autonomia intelectual

discente.

Os colaboradores Bruno Magno, Helena Terres, Walmir Françoes,

Athos Munhoz, João Gabriel Burmann, Luiza Corrêa, João Arthur Reis,

Giovana Zucatto, Laís Trizotto, Gustavo Hack, Pedro Brites, Natasha

Pergher, Osvaldo Alves e Pedro Perfeito pelo apoio fundamental na

finalização do livro. Agradecemos também a Bruno Guimarães,

responsável pela editoração, e a Rômulo Pitt, que desenvolveu a arte da

capa.

Por fim, prestamos gratidão aos estimados familiares e amigos que

foram privados da companhia dos alunos e envolvidos para que esse

projeto fosse realizado.

Os Autores

Porto Alegre, abril de 2013.

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2

Apresentação

Preliminarmente, cabe reconhecer que este Caderno é tão somente o

que promete: uma compilação dos relatórios finais da disciplina de

Relações Internacionais Contemporâneas do curso de graduação em

Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

(UFRGS). Em suma, dos trabalhos feitos em sala de aula. Quaisquer que

sejam suas limitações, acredita-se que sejam perfeitamente

compreensíveis. Os trabalhos servem para testemunhar o esforço

empreendido na formação do internacionalista na UFRGS. Como

Professor que ministrou a disciplina e que organizou a publicação,

assumo a responsabilidade por todos eventuais equívocos ou omissões

contidos nas análises.

Também gostaria de reconhecer que o mérito da realização das

pesquisas, das formulações e do esforço de análise cabem exclusivamente

aos seus autores — os estudantes da turma de Relações Internacionais

Contemporâneas do semestre 2012/2. A todos, agradeço por seu empenho

na disciplina e, além disso, por sua dedicação para viabilizar este livro, o

que lhes custou horas de sono, lazer e convívio com aqueles que lhes são

caros.

A Universidade procura, através de seus cursos de graduação em

Relações Internacionais, do Programa de Pós-graduação em Estudos

Estratégicos Internacionais (PPGEEI) e das atividades de pesquisa e

consultoria do Centro de Estudos Internacionais sobre Governo

(CEGOV), promover a formação integral do profissional e do cidadão.

Como tal, projeta-se uma multiplicidade de valores: o autossacrifício

como condição para o exercício da verdadeira solidariedade; a autonomia

intelectual como fundamento da cidadania e a importância da iniciativa; o

empreendedorismo, imprescindíveis para a atuação profissional no setor

público e privado. Em suma, a Universidade procura preparar o indivíduo

para a sua inserção na transição tecnológica e na sociedade do século

XXI.

Em nosso país infelizmente disseminou-se uma cultura de

minoridade política. Trata-se do Estado — e, por extensão, de todos os

ramos do serviço público, entre os quais a Universidade — como uma

fonte permanente e inesgotável de recursos. A cidadania parece ter

perdido a noção de que aos direitos correspondem responsabilidades, e

que é através do exercício do dever, da prestação dos serviços para o bem

comum, que se atinge a maioridade política. O adolescente chega ao

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3

estado adulto, o homem se converte em cidadão e adquire o seu

sentimento de pertencimento à comunidade política: o Brasil.

Nesse sentido, o lançamento do livro “Relações Internacionais

Contemporâneas 2012/2” sugere um novo momento nas relações entre

docentes e discentes: mais do que reivindicar, trata-se de realizar, fazer

acontecer. É enaltecedor ver que os alunos assumem sua parcela de

responsabilidade em sua própria formação e, de forma solidária, auxiliam

a incrementar a proposta pedagógica criando, através dessa linha de

publicações, uma conexão entre a sala de aula e o mercado de trabalho.

Com isso, o Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia

(ISAPE) encorpora-se a própria proposta didático-pedagógica, chegando

à sala de aula, estimulando a produção intelectual no âmbito da

graduação e disseminando desde cedo a cultura da solidariedade, do

empreendedorismo e da autonomia intelectual. Em suma, incentivando os

futuros internacionalistas a tomar parte na construção de nosso país.

A iniciativa desta publicação demonstra o esforço do corpo discente

em contribuir para a afirmação do perfil da profissão de internacionalista.

Trata-se de efetuar a análise das Relações Internacionais para os setores

público e privado, contribuindo nos diferentes níveis de governo para

formação de parcerias internacionais e estimulando, no setor privado, a

internacionalização de empresas e o comércio exterior. Sobretudo,

permitir que cada um dê sua contribuição para a inserção internacional do

Brasil.

Por isso, saúdo o ISAPE e os autores dos trabalhos aqui expostos,

em particular a turma 8 do curso de Relações Internacionais da UFRGS.

Esperamos que os textos sirvam como testemunho, para os próprios

graduandos, acerca dos valores que adquiriram em sua formação: a

primazia do filtro do interesse nacional, a afirmação da soberania do

Brasil ao qual deve submeter-se todo esforço de análise; a importância do

processo de integração da América do Sul e a relevância da cooperação

inter-regional, materializada no eixo sul-sul. Mais importante que o

mérito da análise, cumpre ao internacionalista guardar seus valores, saber

quem é e a quais interesses serve.

José Miguel Quedi Martins

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4

Introdução Este volume reúne os trabalhos de conclusão elaborados no segundo

semestre de 2012 pelos alunos da disciplina de Relações Internacionais

Contemporâneas, no curso de graduação em Relações Internacionais da

UFRGS.

A disciplina foi ministrada pelo professor José Miguel Quedi

Martins, meu amigo de longa data, quem também estimulou seus alunos a

compilarem seus trabalhos aqui. Os textos aqui reunidos, despretensiosa

porém responsavelmente, dão testemunho do esforço empreendido por

discentes e docentes na formação do profissional de Relações

Internacional na UFRGS.

Mas, afinal, o que são Relações Internacionais? Pode-se dizer que

essa disciplina tem como um de seus principais objetivos o estudo do

comportamento das unidades soberanas, os Estados, que compõem o

Sistema Internacional. E o que é Sistema Internacional? É possível

conceituá-lo como a matriz em que se dão as relações entre os Estados.

Importa entender que o Sistema Internacional se caracteriza tanto por seu

número de polos (polaridade ou equilíbrio), quanto pelos padrões de

comportamento que estes mantém entre si (polarização). Ambos

(polaridade e polarização) constituem o cerne da política Internacional

que, como nos ensina Kenneth Waltz, é a política das grandes potências.

Mas, e o que são grandes potências?

Bem, cada grande potência corresponde a um polo no sistema

internacional. Uma dimensão central da estrutura do Sistema

Internacional é dada pelo número de polos, ou seja, de grandes potências.

Podemos dizer que, se o Sistema Internacional é dominado por uma única

potência (nesse caso uma superpotência), ele é unipolar; se a hegemonia

do sistema é disputada por duas grandes potências, ele é bipolar; e caso a

direção do sistema fique a cargo de três ou mais potências, ele é

multipolar. Qual dessas formas de equilíbrio é a mais estável? Qual é a

vigente hoje? Os teóricos dividem-se a esse respeito. Suas conclusões

refletem, ao menos em parte, suas inclinações individuais ou preferências

nacionais. Para William Wohlforth, por exemplo, preferível é o sistema

unipolar que, no entender do autor, é a forma de equilíbrio atualmente

vigente e os indicadores econômicos internacionais indicariam

indisputável preponderância dos Estados Unidos. Kenneth Waltz, por sua

vez, acredita que a bipolaridade é a forma de equilíbrio mais estável,

posto que mais simples. Ele reconhece, contudo, os traços pronunciados

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5

de unipolaridade do sistema e considera que, atualmente, ele se inclina

para a multipolaridade. Já para Henry Kissinger, a multipolaridade é

apontada como a forma mais desejável e estável de equilíbrio. Ele a

associa ao chamado Concerto Europeu, que assegurou o século de paz

entre 1818 e 1914. O autor também aponta a proeminência dos Estados

Unidos e da China, mas reconhece as capacidades da Rússia, a

importância da Europa e dos novos polos de poder emergentes. Quem

tem razão?

Esse tem sido o principal dilema, prático e teórico, no estudo das

Relações Internacionais no último quarto de século. Desde o final da

Guerra Fria, o Sistema Internacional tem assistido a formas híbridas e

sobrepostas de equilíbrio. Assim, dizia-se, com alguma propriedade, que

o mundo era unipolar do ponto de vista militar, bipolar do ponto de vista

econômico e multipolar do ponto de vista político-cultural. Contudo,

hoje, com a ascensão econômica da China, o surgimento da Organização

de Cooperação de Xangai (OCX) e o declínio europeu simultâneo à

ascensão dos BRICS, novas realidades exigem que os futuros

profissionais da área tenham capacidade de produzir respostas originais,

ou pelo, sejam capazes de fazerem perguntas abrangentes e relevantes.

Afinal, a ausência de resposta para a pergunta sobre “quantos polos

existem no sistema internacional contemporâneo?” implica reconhecer

que o sistema não está em equilíbrio. Se nenhuma forma de polaridade é

claramente dominante, então estamos diante de uma crise hegemônica,

em que a ascensão e o declínio de potências dificultam caracterizar a

hierarquia internacional. Grosso modo, estamos diante de duas

possibilidades, ou a recomposição hegemônica, mediante concertação

entre as grandes potências e uma liderança com novo conteúdo ético, ou

algum tipo de confrontação militar que cumpra o papel de guerra central,

definindo a hierarquia do sistema.

Desde o surgimento do sistema internacional de estados após os

Tratado de Vestfália (1648), entretanto, todas as recomposições da

liderança hegemônica foram realizadas mediante a guerra, não de forma

pacífica. Como regra, a guerra central tem sido a forma de redefinir o

equilíbrio, quando o declínio e a ascensão incerta de potências

multiplicam o número de polos para além de uma governança possível.

Por outro lado, os humanos e suas criaturas, os Estados, têm sido

capazes de criar soluções e engendrar fórmulas que não aquelas

consagradas ou conhecidas em várias áreas. Permanece incerto, pois,

como se dará a definição do equilíbrio internacional: se por uma

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6

recomposição hegemônica lenta e pactuada, ou se através da guerra

central — ainda que, dada a capacidade destruidoras dos arsenais

termonucleares, esta guerra central possa ser travada de forma indireta,

através das guerras locais aparentemente desconectadas entre si.

A dificuldade envolvendo o número de polos do Sistema

Internacional refletiu-se nas escolhas dos estudos de caso, que também

foi constrangida pelas limitações do calendário acadêmico. Nesse caso, a

ausência mais sentida é a do Brasil que, contudo, esteve no cerne de todas

as preocupações. Desde a agenda de temas estudados pelos autores

(estudo da infraestrutura, comércio exterior, transição tecnológica) até as

preocupações envolvendo as formulações de cenários, todas foram

presididas pelo crivo do interesse nacional brasileiro. Parabéns aos

autores e ao professor coordenador pela iniciativa.

Marco Cepik

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7

Capítulo 1

POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DOS

ESTADOS UNIDOS

André França

Bruna Jaeger

Francine Ferraro

Giordano Bruno Antoniazzi Ronconi

Guilherme Simionato

Henrique Acosta

Lucas Santos

Introdução

Este capítulo procura estudar e definir tendências da política externa

e de segurança dos Estados Unidos, polo líder do Sistema Internacional.

Parte-se da hipótese de que o país se alterna, historicamente, entre dois

conteúdos éticos: a Doutrina Monroe e o Destino Manifesto. Dessa

dualidade surgem cenários possíveis para os próximos anos, cada qual em

conformidade com um dos tipos ideais sugeridos ou uma combinação dos

dois tipos: (a) comando estadunidense de um mundo multipolar nucleado

regionalmente, exercido através do exemplo e do conhecimento; (b)

liderança através da força, do unilateralismo e da disseminação do caos; e

(c) concomitância de práticas ora semelhantes à Doutrina Monroe, ora

compatíveis com o Destino Manifesto, alternando-se entre buckpassing e

burden-sharing e configurando um cenário intermediário entre (a) e (b).

A análise das características gerais do país permite compreender

quais seus desafios atuais e futuros, de modo que ela se torna

fundamental para entender o atual momento em que os EUA se

encontram e as suas potencialidades futuras. O vasto território norte-

americano (3º no mundo) corporifica um Estado Região capaz de se

voltar tanto para o Oceano Atlântico quanto para o Pacífico. Mesmo com

os seus mais de 12 mil quilômetros de fronteiras, os EUA não se

ressentem de ameaças terrestres, beneficiando-se do poder parador da

água de dois oceanos (MEARSHEIMER, 2007). Além disso, os EUA

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

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foram capazes de tirar proveito também de suas capacidades produtivas e

de construir a maior marinha do mundo — a única que, indubitavelmente,

pode ser considerada de águas azuis.

Os EUA possuem o maior PIB do mundo — aproximadamente US$

14,5 trilhões (2011). O setor de serviços responde por 79,6% do PIB, a

indústria por 19,2% e a agricultura 1,2%. Contudo, devido a crise de

2007, o comportamento da economia tem sido objeto de debate. Em

termos absolutos, o PIB se mantém muito alto, mas tem apresentado uma

tendência declinante, com taxas de crescimento cada vez menores. Em

2009 o PIB apresentou crescimento de 3,1%, caindo para 2,4% em 2010

e, finalmente, de apenas 1,8% em 2011 (U.S. BUREAU OF ECONOMIC

ANALYSIS, online).

1. DUALIDADE: EXPLICANDO A TIPOLOGIA

É possível estabelecer dois tipos ideais que formam o dualismo das

relações internacionais dos EUA — decorrentes da Doutrina Monroe e do

Destino Manifesto. O primeiro tipo ideal representa os valores do

autogoverno, de promoção da cidadania e de exercício da liderança pelo

exemplo. Os princípios básicos do direito dos povos ao autogoverno e à

autodeterminação foram expressos ainda em 1823, pelo presidente James

Monroe. O segundo tipo ideal tem características de dominação

civilizatória, derivada da crença de que o povo dos EUA é excepcional,

está destinado a guiar o mundo. Sua formulação se encontra em artigo do

jornalista John O'Sullivan e, por isto, daremos a este tipo ideal o nome de

Destino Manifesto — o título de seu artigo (MANTOVANI, 2006).

Ambos os tipos ideais perpassam a história dos EUA e incorporam-

se em sua ação de política externa até os dias de hoje. São tipos ideais

porque na realidade misturam-se, intercambiam-se e mimetizam-se.

Contudo, na medida em que encarnam polaridades opostas da alma

estadunidense, servem como instrumento para se aferir em que direção

vai a política externa e de segurança dos EUA.

2. BREVE HISTÓRICO

O texto escrito pelo federalista Alexander Hamilton no final do

século XVIII já demonstra a importância que a Marinha viria a ter para o

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Política externa e de segurança dos Estados Unidos

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país, com sua capacidade de projetar poder em qualquer lugar do planeta

e de carregar e transportar elevadas tonelagens de suprimentos. Hamilton

enfatiza a importância de uma Marinha forte para afastar as potências

europeias da região do Caribe.

Em 1823, o presidente James Monroe, ao lançar a Doutrina Monroe,

explicitou a ideia da regionalização sob a égide dos Estados Unidos e

afirmou o repúdio a uma nova colonização europeia. Desta forma,

almejou-se a formação de uma esfera de influência sobre as Américas, o

que veio a impactar os processos de independência ocorridos por volta

deste período.

Por sua vez, a conquista do oeste norte-americano se deu em

conformidade com a ideia de Destino Manifesto, segundo a qual Deus

havia fixado aquele imenso território para o povo estadunidense. Em

1848, minas de ouro foram descobertas na Califórnia e Karl Marx (1850)

escreveu que este fato representaria o deslocamento do centro de

gravidade mundial da Inglaterra para a América do Norte, o que de fato

veio a acontecer. É nesse período que os EUA se estabeleceram como um

Estado Região que abarcava todo um continente e, sem rivais terrestres

ameaçadores, viram-se beneficiados pelo poder parador da água dos

oceanos — que teriam de ser transpostos por qualquer potência capaz de

atacá-los.

Na Guerra Hispano-Americana, em 1898, coloca-se em prática a

ideia de defesa da região, concebida pela Doutrina Monroe. Mais do que

isso, a conflagração representou a chegada efetiva dos estadunidenses ao

Pacífico, graças à conquista das Filipinas e de outras pequenas ilhas. Com

a política de portas abertas em relação à China, os EUA marcam de vez

sua presença no Oriente e, ao manifestar desejo de aumentar sua

influência na região, expandem a Doutrina Monroe para além das

Américas.(CUMMINGS, 2009; SENISE, 2008)

Percebe-se na Carta do Atlântico, de 1941, vários princípios do

nosso tipo ideal de Doutrina Monroe, com ideias de autogoverno e de

não-conquista de outros países (novos colonialismos). Por isso, entende-

se a Carta como a globalização da Doutrina Monroe. Mais adiante, no

período da Guerra Fria, a Doutrina Nixon expressa várias características

da Doutrina Monroe, como a negação do Império Americano, ao

viabilizar o século do Pacífico em cooperação com os novos países

industrializados (NICs), como — e principalmente — a

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

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China.(MANTOVANI, 2006)

A ascensão neoliberal, na década de 1970, cujo ícone é Ronald

Reagan, e a neoconservadora da década de 2000, simbolizada por George

Bush, têm em comum o retorno ao Destino Manifesto. Desta vez, porém,

em uma forma específica dele, a partir da interpretação das ideias de John

Boyd. Ele foi um defensor da guerra moral que se baseia em atordoar o

adversário ininterruptamente, disseminando o caos sempre que possível e,

a partir disso, gerenciar esse caos, de acordo com o interesse dos EUA.

(OSINGA, 2005) Como exemplos dessas práticas estão o financiamento

de guerrilhas no Afeganistão na década de 1970 e as Guerras do Golfo. O

resultado final da efetivação das ideias de Boyd seria a condição de

guerra permanente.

3. INSTITUIÇÕES POLÍTICAS

A desigualdade de renda nos EUA — que cresce desde a década de

1970, mas que apenas virou tema de debate político após a crise de 2007

— tem produzido como efeito o surgimento de movimentos políticos de

uma classe média que se vê diminuir em número e que busca uma forma

de reverter essa tendência.

A partir deste problema comum, nasceram dois movimentos com

alinhamentos políticos tão incompatíveis quanto o Tea Party e o

movimento Occupy. Cabe ressaltar aqui que ambos questionam de

alguma forma o papel político da União, deslegitimando a ação do

governo federal. O Tea Party o faz através da luta por um Estado mínimo,

com baixíssima cobrança de impostos; o Movimento Occupy, pelo ideal

de gestão local através da democracia direta.

Estes movimentos são a materialização da divergência do conteúdo

ético no seio da classe social-símbolo dos EUA. De um lado, a parte da

população que crê que o Estado mínimo e a Livre Iniciativa são, mais do

que uma resposta para a crise, os verdadeiros valores da América; de

outro, a parte que acredita nos programas governamentais de

transferência de renda e no Estado de Bem-Estar Social, mesmo que

mínimo, como meios de promover a justiça social que já caracterizou sua

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Política externa e de segurança dos Estados Unidos

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nação1.

O que se seguiu a derrota de Mitt Romney à presidência, em uma

eleição cuja vitória era dada como certa pelos Republicanos, foi o

questionamento sobre os rumos que a oposição terá nos próximos quatro

anos de governo: manterá e reforçará seu alinhamento com as alas mais à

direita do partido ou rumará ao centro? O que se pode perceber pelos

formadores de opinião de caráter mais conservador2 é a convicção de que

a atual linha do partido deve se manter, o que acabará por dificultar a

aprovação de medidas por parte do Executivo no Congresso. Ao mesmo

tempo, comprovou-se a impossibilidade demográfica dos Republicanos

voltarem a eleger presidente contando apenas com os votos de

protestantes brancos da zona rural3. Surge aí um desafio para um partido

que até agora vinha abraçando causas muitas vezes racistas e

xenofóbicas: conquistar as minorias, em especial os latinos. A própria

consciência do partido quanto a esta realidade indica que seu alinhamento

com as forças do Tea Party deve se dar enquanto durarem os problemas

econômicos dos EUA (visto que apoiam as mesmas medidas econômicas

frente a crise) e que, quando o debate envolver temas de caráter nacional,

devem surgir atritos entre os dois.

Na esteira das eleições americanas, outro assunto que ganhou

atenção da mídia foram as petições feitas no canal online oficial da Casa

Branca pela secessão de diversos estados da União. Apesar da baixa

adesão — as assinaturas representam cerca de 0,46% dos habitantes dos

oito Estados que atingiram o mínimo de 25 mil assinaturas4 — o que

merece nossa atenção é o fato das petições apontarem um suposto não-

cumprimento do papel concernente à União. Este movimento soma-se ao

empreendido pelo Tea Party e o Occupy no questionamento do papel da

Federação. Ao mesmo tempo, os Estados “secessionistas” possuem

1 Para uma interpretação conservadora deste fenômeno, consulte Brooks, Americas New

Culture War. 2 Ver Pearce, The Future Rise of the Grand Old Party, Huffington Post; Antle, After

Romney's loss, Republicans need a rethink but not reinvention, The Guardian. 3 Para declarações de Republicanos moderados sobre a necessidade de abraçar as

mudanças demográficas no Estados Unidos, ver as notícias veiculadas em The Raw

Story e The New York Times. 4 Cálculo feito pelos autores com base no número de assinaturas no canal online

petitions.whitehouse.gov e nos dados do censo de 2010 disponibilizados pelo portal do

U.S. Census Bureau.

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

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histórico de problemas sociais com negros, hispânicos e mulheres —

sugerindo que talvez a divisão do conteúdo ético americano possa ser não

apenas geograficamente localizável mas, eventualmente, também

etnicamente identificável.

Ao contrário do Brasil — em que a unidade da Federação é cláusula

pétrea da Constituição — nos EUA há a possibilidade legal para que a

secessão permaneça como opção política legal. Em 1868, no caso Texas

versus White, a Suprema Corte julgou ilegal a secessão unilateral; mas

claramente deixou aberta a possibilidade desta ocorrer pelo consenso

entre os Estados ou pela revolução5.

Os atuais movimentos de crítica à União refletem não somente as

divergências de conteúdo ético quanto ao papel do Estado na economia,

mas em última instância refletem a encruzilhada quanto à política externa

e de segurança dos Estados Unidos. Mais do que o questionamento ao

papel da União (expresso pelos movimentos de crítica como o Occupy, o

Tea Party, os incipientes movimentos secessionistas e uma certa

desconfiança do estadunidense médio com relação a seu governo), está

em jogo a governabilidade do poder Executivo e sua capacidade de

comandar a política externa e de segurança.

Longe de se afirmar que a secessão americana se avizinha, busca-se

jogar luz sobre o que parece ser um desgaste no tecido social americano.

Em um cenário hipotético de médio prazo, em que a economia americana

não se recupera e uma Administração decide pelo enfrentamento direto

com China ou Rússia, estaria a unidade americana assegurada? Mesmo

que os Estados Unidos saíssem vitoriosos de um enfrentamento nuclear,

quantas bombas seriam necessárias para que um sério debate sobre a

conveniência de se manter na União surgisse nos estados que hoje já

sinalizam insatisfação? É legítimo supor que uma guerra total, muito

provavelmente termonuclear, possa catalisar estes movimentos e

promover a fragmentação dos Estados Unidos.

Em um período de fortes mudanças na correlação de poderes no

Sistema Internacional, questionamentos como estes — apesar de ousados

— são válidos na busca de antecipar-se à mudanças significativas na

ordem política e social americana que acarretem desdobramentos graves e

desfavoráveis para o Brasil e o Ocidente.

5 Para o texto completo do julgamento da Suprema Corte americana, acesse

supreme.justia.com/cases/federal/us/74/700/case.html

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Política externa e de segurança dos Estados Unidos

13

4. ECONOMIA

O principal objetivo da análise da situação econômica dos EUA é

responder se há um declínio relativo na maior economia do mundo. Leva-

se em conta o contexto pós-crise de 2007 em que o país tende à

estagnação econômica, ao aumento da interdependência e a crescente

pobreza interna.

A crise que se iniciou em 2007 representa uma ruptura no padrão de

crescimento do PIB dos EUA. Apesar de verificar-se certa recuperação,

ela se apresenta lenta e insuficiente, para evitar o declínio econômico,

agravado pelo ao aumento crescente da inflação.

A partir da Teoria dos Ciclos Sistêmicos de Acumulação de Giovanni

Arrighi, pode-se dizer que os EUA têm uma economia baseada no setor

financeiro, o que confere ao país sensibilidade à instabilidade suscitada

pelas crises financeiras globais recorrentes. Como pode ser visto a partir

da crise econômica atual, o setor produtivo estadunidense é muito mais

prejudicado, pela diminuição do crédito e do investimento na indústria,

somando-se à declinante taxa de lucro do país, a qual, nos países

emergentes, aumenta juntamente ao investimento.(ARRIGHI, 1996;

2001)

A balança comercial dos EUA se mantém há muitos anos negativa e

o valor absoluto de suas exportações é baixo para uma economia da sua

dimensão. Os EUA importam muitos bens de baixo valor agregado da

Ásia — principalmente da China — o que contribui para o comércio intra

industrial, enquanto exportam bens de alto valor agregado —

majoritariamente para os países do NAFTA.

Quanto ao investimento estrangeiro direto (IED), apesar de ser o país

que mais faz e o que mais recebe, os EUA mantêm um saldo negativo e

que tende a se agravar, visto que sua economia mostra-se cada vez menos

atrativa, ao contrário dos países emergentes. Além disso, mais da metade

do IED que faz e que recebe é da União Europeia, o que representa uma

expressiva interdependência com uma economia ora em decadência. Por

outro lado, o fluxo de IED com os países emergentes é baixo, o que vai

contra a tendência global. Ainda, o IED que os EUA recebem tem baixo

impacto no PIB e no emprego, o que se verifica como mais um indicador

de declínio econômico.

Atualmente, os imigrantes representam em torno de 14% da

população total dos EUA e crescem mais do que a população nativa.

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

14

Devido às piores condições de emprego e educação, representam um alto

gasto para o país e uma parcela significativa do saldo negativo em

Transações Correntes Unilaterais. Além disso, crescem a concentração de

renda, a desigualdade e a taxa de pobreza nos EUA, o que torna muito

difícil manter o nível de desenvolvimento do país, de forma a ser

necessário que aumentem os gastos sociais para a recuperação econômica

como um todo.

Os EUA possuem a maior dívida pública do mundo, de US$ 16,4

trilhões em 2012, sendo US$ 5,3 trilhões de dívida externa. A China

possui um pouco mais de US$ 1 trilhão em títulos da dívida dos EUA e

aproximadamente seis vezes mais em reservas de dólares, o que garante

alto grau de interdependência entre os dois países. A situação da dívida se

sustenta devido ao fato de que os EUA tem a prerrogativa de controlar a

taxa de juros dos seus próprios dividendos e também em razão do temor

da desvalorização do dólar, o que mantém a China comprando títulos da

dívida dos EUA. Entretanto, visto que os chineses compram cada vez

menos (devido à possibilidade de calote), há um grande risco de

aprofundamento da crise econômica atual, caso os EUA não recuperem

sua economia mais rapidamente e não haja reformas no sistema

monetário internacional.

5. INFRAESTRUTURA

Detentores da melhor infraestrutura do mundo6, os Estados Unidos

dominam os investimentos no setor quando comparados aos outros

países. Contribuem para isso o governo dos Estados Unidos ser o maior

investidor mundial em infraestrutura e o país hospedar o maior número de

empresas da área.

Os Estados Unidos também possuem uma das maiores redes de

transportes — hidrovias, ferrovias e rodovias — do mundo. A rede

hidroviária norte-americana é altamente desenvolvida, conectando o país

de norte a sul através da bacia do Mississipi e contando com mais de mil

terminais aquaviários (OLIVEIRA, 2012).

Além de hidrovias e ferrovias, importam as infovias, as estradas

eletrônicas do século XXI. Os EUA possuem uma notável rede de fibra

6 Dados de 2012 retirados de http://www.bentley.com/en-US/.

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Política externa e de segurança dos Estados Unidos

15

óptica que atravessa grande parte do seu território e abrange a maioria

dos grandes centros urbanos. Além dos benefícios, como velocidade de

sinal e maior quantidade de informação transmitida, a utilização de cabos

de fibra ótica em vez de cabos convencionais propicia resistência a pulsos

eletromagnéticos — tanto os provenientes de ataques que utilizam

diretamente esses meios, quanto os que acompanham explosões

nucleares7. Essa fantástica rede permite que os Estados Unidos

mantenham sua infraestrutura digital e seus sistemas de comunicação, o

que aumenta a sua capacidade de reação após ataques estratégicos de

grande proporção8.

No que tange ao setor energético, o país é o maior consumidor de

petróleo do mundo e apenas o terceiro maior produtor. Dados de 20119

indicam que os Estados Unidos apresentam um déficit de

aproximadamente 9 milhões de barris diários. Esse saldo negativo poderá

ser alterado, no entanto, por volta de 2020, segundo o relatório World

Outlook 2012 da U.S. Energy Information Administration (EIA, online).

Desse modo, os Estados Unidos se tornariam autossuficientes em

hidrocarbonetos e reduziriam a sua dependência externa. Atingir esta

meta depende da manter o desenvolvimento extraordinário da exploração

de hidrocarbonetos não-convencionais como o shale gas e o tight oil

(respectivamente, gás e petróleo extraídos de formações rochosas pouco

porosas).

Nos últimos anos, o governo norte-americano tem incentivado novas

fontes de energia, como os biocombustíveis — especialmente o etanol

produzido a partir de milho — e as energias eólica e solar. Durante o

governo Obama, o consumo de energias renováveis10

passou de 7% a

10% do consumo nacional (EIA, online).

Neste sentido, pode-se dizer que o projeto mais ambicioso é o do

elevador espacial, uma construção que atravessa a órbita terrestre e

absorve a energia do sol. A ideia, que data de 1965, partiu do britânico

7 Mais em Highland Communication Services. Benefits of Fiber Optics. Disponível em:

<http://www.ci.highland.il.us/public_documents/highlandil_hcs/hsc_services/Benefits>

Acesso em: 13 Jan. 2013. 8 Mais em EMANUELSON, Jerry. Nuclear Electromagnetic Pulse. Disponível em:

<http://www.futurescience.com/emp.html> Acesso em: 13 Jan. 2013. 9 Dados retirados de http://www.eia.gov/. 10 A fonte consultada (EIA) considera como energias renováveis a hidroeletricidade, a

energia geotérmica, a energia solar/fotovoltaica e a energia eólica.

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

16

Arthur Clarke, o qual a defendeu em um de seus livros de ficção. A

NASA, o MIT e dezenas de outros centros de alta tecnologia, dentro e

fora dos EUA, a trouxeram para a realidade. O custo estimado do projeto

varia entre US$ 8 e 20 bilhões e seu aspecto crítico é o domínio da

tecnologia de nanotubos de carbono e de propulsão a laser. Estejamos a

anos ou décadas do elevador espacial, se os EUA não abandonarem a

iniciativa, o pioneirismo será americano. Mais, ela poderá revigorar de

modo inusitado sua economia. Nesta hipótese, os EUA poderão tornar-se

senhores (e fornecedores mundiais) de uma fonte virtualmente

inesgotável de energia.

6. TRANSIÇÃO TECNOLÓGICA

Antes de abordar a posição dos EUA na transição tecnológica, deve-

se ter em mente alguns conceitos e ideias importantes. Primeiro, deve-se

entender que o gerenciamento do conhecimento é vital para o país liderar

ou estar no topo da competição pelas inovações. É por meio deste ciclo

de inovações, caracterizado por forte competição entre os atores, que se

procura engendrar a melhor capacidade inovativa, que tem de se mostrar

eficiente tanto em termos qualitativos como quantitativos (para futura

produção). Segundo, após a inovação, ocorre a difusão do produto por

vários meios (roubo, doação, barganha) e assim nesse meio termo o

progresso técnico desacelera. Todavia, é necessário perceber que estes

ciclos são dinâmicos: enquanto ocorre a difusão, o ciclo de inovações

continua acontecendo, incorporando cada vez mais conhecimento e

procurando inovar cada vez mais. Assim, percebe-se alguns pontos

importantes: primeiro, o que importa é dominar e acelerar o ciclo de

inovações por meio do gerenciamento do conhecimento; segundo, é

necessária uma base organizacional que incorpore cada vez mais

conhecimento; terceiro, as forças de mercado por si só não conseguem

direcionar o limite do conhecimento, pois não existe uma demanda

concreta — é necessária a presença estatal11

.

11 É pela competição interestatal (militar) que se procura inovar, criando armamentos

superiores tática e estrategicamente. Cabe também salientar que, em termos

schumpeterianos, a inovação é o motor que impulsiona o capitalismo. Dessa forma, não

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Política externa e de segurança dos Estados Unidos

17

No caso dos EUA, após a Segunda Guerra, surgiu um sentimento,

entre os militares, de que estar tecnologicamente superior aos outros seria

determinante para ganhar guerras. Assim, ocorreu um esforço militar em

institucionalizar o ciclo de inovações juntando todas as forças da

sociedade, criando assim um complexo militar-industrial-acadêmico

(MEDEIROS, 2004). Por essa lógica, com seus laboratórios bancados

pelo governo, as universidades se transformam no centro vital da

pesquisa acadêmica; o Legislativo aprova valores bilionários para serem

investidos em P&D — graças à doutrina de superioridade tecnológica —;

e as inovações oriundas deste processo são difundidas para firmas

emergentes que trabalharam em cooperação (e.g.: IBM, Intel).

As atuais restrições orçamentárias devem ser devidamente

matizadas. A imprensa alardeia os valores nominais dos cortes. Contudo,

dificilmente se destaca que a economia em custeio permitirá a

recuperação da capacidade de investimento estadunidense. E, raramente,

alude-se que os EUA, sozinhos, respondem por quase um terço do

investimento mundial em P&D — um montante nominal de quase meio

trilhão de dólares. A vantagem estadunidense é ainda mais confortável se

comparada a alguns de seus competidores. A Rússia participa com 24,9

bilhões de dólares e a Índia, com US$ 38 bilhões para os 427,2 bilhões de

dólares dos EUA. Dentre estes competidores, a China é a única que

apresenta um crescimento de P&D superior ao percentual do PIB; ainda

assim, com um valor nominal de apenas US$ 174,9 bilhões. Constata-se

que o investimento dos EUA em P&D permanece 144 % maior que o

chinês, segundo colocado no ranking mundial. (GRUEBER e STUDT,

2011: online).

A Agência de Projetos Avançados de Pesquisa de Defesa (DARPA) é

uma das maiores instituições que representa a gestão integrada entre

defesa, produção e disseminação de conhecimento. O objetivo da

DARPA é sustentar projetos que produzam inovações voltadas para a

segurança nacional12.

A Agência está associada à liderança tecnológica

são os custos econômicos que irão direcionar as inovações, mas sim os custos

estratégicos de um país caso ele se atrase tecnologicamente. 12 O melhor exemplo, oriundo da ARPA (que depois se transformou na DARPA), é a

ARPANET. Esse projeto tinha como objetivo criar uma rede de comunicações que

mantivesse o comando e controle em caso de um ataque nuclear. Para isso seria

necessária uma rede de computadores descentralizados e não-hierárquicos em todo o

país (bases militares e universidades). A internet surgiu a partir deste projeto.

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

18

dos EUA. Em grande medida, a ela se deve o quase monopólio em

produção de superprocessadores. Em média, os EUA produzem oito dos

dez superprocessadores mais rápidos do mundo (os demais pertencem a

China e Japão). Os superprocessadores importam, pois permitem a

prototipação virtual, proporcionando simulações que reduzem os custos

de desenvolvimento e de manter a liderança na inovação.

De fato, os projetos da DARPA — robótica em gravidade zero,

nanotecnologia — apontam os rumos da fronteira do conhecimento, ou

seja, como se dará o próximo salto tecnológico13

. Destaca-se o já

mencionado elevador espacial, o qual abre novas possibilidades no

campo energético, mas também com relação ao próprio comando do

espaço. Projetos relacionados à fusão nuclear controlada em reator

também demandam grande investimento em P&D e, como o elevador

espacial, prenunciam a libertação da humanidade das formas de energia

não renovável.

Na esfera de motores, a tecnologia hipersônica, revelada em projetos

como o X-51, contém o germe de uma nova fronteira tecnológica,

expressa na produção de aeronaves que se deslocam a mais de cinco

vezes a velocidade do som (Mach 5). O veículo orbital X-37B ilustra a

conexão desta forma de propulsão com o domínio do espaço. Importa é

que os hipersônicos irão promover a interação entre os domínios do ar e

do espaço: percorrendo o globo em minutos, derrubando os preços dos

fretes, promovendo a efetiva globalização. Atualmente os projetos ainda

estão voltados para sua interface militar. Entre os mais avançados está o

Force Application and Launch From Continental US (FALCON), cuja

meta é produzir um veículo hipersônico com capacidade de ataque global

a partir do território dos EUA. A ideia é reduzir a dependência de bases

no exterior, o que na esfera da política externa permitirá aos EUA

associar simultaneamente universalismo e isolacionismo, podendo ter

uma atitude mais flexível frente às regiões. Em suma, a propulsão

hipersônica prenuncia para o século XXI transformações análogas às

cumpridas pelo computador e a rede no século XX.

13 Observando a história capitalista, entende-se que os grandes saltos tecnológicos estão

relacionados com a fonte energética com a qual se supre as capacidades produtivas.

Com a escassez próxima dos hidrocarbonetos, entende-se a energia verde como o futuro

do crescimento econômico e do desenvolvimento de um país no sistema internacional.

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Política externa e de segurança dos Estados Unidos

19

7. SEGURANÇA E DEFESA

As prioridades de defesa dos EUA para o século XXI estão definidas

no Strategic Guidance de 2012 (DOD, 2012c). No documento reconhece-

se que os EUA vivem um ponto de inflexão na sua estratégia de defesa:

após uma década de guerra, deve-se moldar forças menores e mais

enxutas, porém mais flexíveis, ágeis e tecnologicamente avançadas. No

entanto, isso não é uma novidade; o que esse documento tem de inovador

é a ideia de rebalanceamento da Ásia. Atenta-se para as crescentes

capacidades antiaéreas e antinavio da China (A2/AD)14

, que podem

bloquear o fluxo internacional de comércio e, assim, limitar a liberdade

de ação dos EUA no Sistema Internacional. Nesse sentido, o documento

enfatiza a importância crescente da Índia como parceiro estratégico dos

EUA na região sul da Ásia, além de fazer algumas sugestões para lidar

com o A2/AD: a) desenvolvimento de um novo bombardeiro stealth15

; b)

manutenção das capacidades submarinas estadunidenses; c)

aprimoramento das capacidades espaciais; d) adoção do Joint

Operational Access Concept (JOAC).

A JOAC seria, basicamente, a resposta estratégica estadunidense ao

A2/AD (DOD: 2012a). Ela é baseada em uma sinergia de domínio-

cruzado, ou seja, a integração profunda de todos os domínios — exército,

força aérea, marinha, cibernética e espaço — a fim de que sejam

complementares. Taticamente, para passar por defesas A2/AD, deve-se

desenvolver várias linhas de ataque, cada uma independente da outra —

inclusive em comunicação e controle. Os ataques seriam em

profundidade, diretamente nas capacidades-chave da defesa adversária.

Para isso, seriam necessárias diversas bases avançadas, a fim de suprir

essas linhas independentes e deixar obscura a origem da ofensiva.

Naturalmente, o aspecto crítico da JOAC é a penetração em profundidade

no território chinês; por isso a diretriz deve ser tomada como uma

formulação de transição, depende da efetivação de tecnologias tais como

as armas de energia direta e a propulsão hipersônica para tornar-se

taticamente sustentável.

Por este percurso dedutivo, constata-se que documento nos informa

14 A2/AD — Capacidades de Anti-Acesso e de Negação de Área. 15 Tecnologia que permite diminuir a assinatura eletrônica das aeronaves: dificulta o

reconhecimento pelos radares inimigos.

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

20

que nos próximos anos a tecnologia hipersônica se tornará realidade —

ao menos para fins militares. Afinal, as atuais aeronaves disponíveis,

como o F-22 e, em breve, o F-35 — apesar de serem furtivas (stealth),

não asseguram mais a penetração em profundidade em território inimigo,

ao menos impunemente. Isto se deve à disseminação de radares de micro-

ondas que conseguem identificar e alvejar as aeronaves 5ª geração a

despeito de sua furtividade16

. Além disso, o preço dessas aeronaves é

muito superior às de 4ª geração, o que dificulta sua produção em larga

escala e, portanto, a capacidade de custear perdas.

Nem por isso os EUA estão indefesos, importa lembrar que mantêm

uma confortável liderança em aeronaves de 4ª geração possuindo um total

que excede a soma de seus potenciais adversários. Contudo, elas estão

sendo retiradas de serviço em um ritmo imprudente, o que pode vir a

alterar este panorama nos anos vindouros. Isto está implicitamente

reconhecido no Strategic Guidance de 2012 e nas avaliações sobre os

custos de desenvolvimento do F-35 (DOD, 2012b: 6).

O balanço sobre os limites da furtividade demonstra que os EUA

vêm investindo erroneamente nos últimos anos — bastou o

desenvolvimento de uma nova geração de radares para contrarrestá-la.

Além do caso das aeronaves, suprarreferido17

, temos o caso do destróier

stealth BGG-1000, que demandou muitos recursos na década passada, até

que, enfim, percebeu-se que seria mais proveitoso investir nos modelos já

em uso (Classe Arleigh Burke). O comissionamento do RIM-161 (SM-3)

— anti-ICBM18

— nos navios desta classe demonstra que ela ainda tem

um decisivo papel a cumprir no serviço ativo. Rússia e China estão

empenhados, justamente, em produzir belonaves com as características

dos destróieres estadunidenses.

O mesmo se deu com a Classe Seawolf: foram construídos três

exemplares ao custo unitário de US$ 2,8 bilhões — pela primeira vez um

submarino revelou-se mais caro que um porta-aviões — para se descobrir

que a atualização Classe Los Angeles em serviço, ainda possuía

16 Mais em MILLS, Chris. F-35 Joint Strike Fighter vs Russia's New Airborne Counter-

Stealth Radars. Air Power Australia NOTAM, 2009. Disponível em

<http://www.ausairpower.net/APA-NOTAM-140909-1.html> 17 Mais em GOON, Peter. Is the JSF Affordable? An Australian’s Perspective. Air Power

Australia NOTAM, 2010. Disponível em <http://www.ausairpower.net/APA-NOTAM-

170710-2.html> 18 Sigla em inglês para Míssil Balístico Intercontinental.

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Política externa e de segurança dos Estados Unidos

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capacidades muito superiores às de seus competidores. A solução

intermediária, encontrada entre o governo e os fabricantes — entre voltar

a produzir a Los Angeles ou partir-se para a Seawolf — resultou na

criação da a Classe Virginia A intenção era que fosse mais barata que a

Seawolf, que o custo unitário ficasse na casa dos US$ 1,8 bilhão mas, até

agora, não se conseguiu baixar de US$ 2,0 bilhões. O problema maior foi

a decisão de cancelar encomendas da Los Angeles, como os cascos em

serviço estão no limite da vida útil, poderá haver uma crise em 2028-29.

Quaisquer que sejam seus problemas, a Marinha dos EUA ainda não

possui, ou terá, rival no mundo em um horizonte predizível de eventos.

Continua apta a seu papel: o de sustentáculo da projeção global do

poderio estadunidense. Seja por intermédio de seus porta-aviões, pelos

submarinos Los Angeles, pelo destroyers e cruzadores ou pelos

submarinos estratégicos Ohio.

Na esfera da estratégia também se percebe uma ruptura da gestão

Obama com sua predecessora. Os EUA assinaram com a Rússia o New

Start, em abril de 2010, reduzindo a quantidade de armas estratégicas

para preservar as vulnerabilidades recíprocas. Ocorre que a Rússia

simplesmente não podia mais sustentar suas forças estratégicas em franca

deterioração. Tratou-se de um claro sinal de que o novo governo não

desejava obter a primazia nuclear. Contudo, como ficou evidente nas

negociações envolvendo a ratificação do New Start no congresso, Obama

não conseguiu encarrar a Defesa Antimíssil (DAM). Ainda assim,

restringiu o comissionamento de mísseis antibalísticos aos vasos de

superfície e declarou que os europeus também devem pagar a conta. O

assunto veio à tona na Cúpula de Lisboa da OTAN (2010), quando se

decidiu que, caso a Europa deseje uma defesa antimíssil baseada em terra,

ela terá de ser financiada pelos próprios europeus. Fica nítido que, para os

democratas, a DAM permanece apenas como mais um recurso de poder

dos EUA, sem mais se perseguir a primazia nuclear. (PICCOLI, 2012).

8. SITUAÇÃO E CONJUNTURA

Em 2008, o democrata Barack Obama foi eleito e, com ele, a política

externa e de segurança dos Estados Unidos retomou ideias mais

compatíveis com o conteúdo ético da Doutrina Monroe. O novo

presidente adotou uma abordagem que preza pelo multilateralismo e

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

22

parece favorável a investimentos em economia verde, como comprovam

os investimentos do país em biocombustíveis e em pesquisas relacionadas

ao elevador espacial, por exemplo. No entanto, muitas de suas ações são

dificultadas por um Congresso de maioria republicana e pela crise

econômica global. Esta última provocou o crescimento ou mesmo a

criação de organizações de oposição como o Tea Party, o Occupy e os

movimentos separatistas.

Em 2012, com a reeleição de Obama, abriu-se uma nova situação.

Até o momento, o Presidente tem dado continuidade a algumas de suas

políticas. No Afeganistão e na Síria, percebe-se que o governo

estadunidense promove buckpassing, reduzindo seus gastos de custeio no

Oriente Médio e conferindo responsabilidade à Turquia; em consequência

disso, cresce a integração regional entre turcos, afegãos e paquistaneses.

Quanto ao Irã, os Estados Unidos adotaram uma política de sanções e não

manifestam desejo de auxiliar Israel na hipótese configura-se uma

confrontação militar não tenha sido provocada pelos iranianos

(Resolution 65/2013 US Senate Committee on Foreign Relations). No

que diz respeito à Rússia e à Europa, destaca-se a entrega do projeto do

escudo antimísseis para mãos europeias, como forma de reduzir custos e

tensões com os russos.

As ações norte-americanas com relação à Península Coreana, no

começo do ano de 2013, demonstraram, contudo, uma queda de braço

entre a alta cúpula do Poder Executivo e o Comando do Pacífico

(PACOM). Os primeiros buscavam aliviar as tensões e promover o

diálogo, posição exemplificada pelo tom conciliador do secretário de

Estado John Kerry em sua visita ao Leste Asiático. O PACOM, por sua

vez, atuou na contramão, tendo, inclusive, enviado bombardeiros B-2

para sobrevoar a Península Coreana. Desse modo, a disputa quanto à PES

dos Estados Unidos não se dá apenas pela via eleitoral, mas também em

manobras que podem desautorizar a política externa do governo Obama.

Em relação à Ásia, percebe-se uma preocupação em buscar parceiros

internacionais a fim de criar bases terrestres avançadas. A JOAC preza

pela diversificação das bases, pode-se perceber isso na prática com o

desembarque dos fuzileiros navais americanos na Austrália no final de

201219

, bem como nos diversos treinamentos conjuntos com Índia,

19 São planejados que até 2017 estejam 2500 Marines no norte da Austrália, em Darwin.

Mais em http://www.defense.gov/news/newsarticle.aspx?id=66098.

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Política externa e de segurança dos Estados Unidos

23

Malásia, Filipinas, Indonésia e Tailândia. Nesse sentido, para os EUA,

importa especificamente a Índia, que recebe tecnologia de radares dos

EUA e Japão. A política estadunidense para o país se confunde entre

burden-sharing e buckpassing, atualmente pendendo mais para o último,

de modo que o país é considerado como vital para os interesses

estadunidenses na região.

As políticas de desengajamento dos EUA levam em conta a

realidade fiscal do país. O país esteve próximo do Abismo Fiscal, um

mecanismo automático acionado quando o déficit atinge marca de US$

2,1 trilhões, o resultado é a retirada de US$600 bilhões no orçamento dos

EUA. O déficit foi gerado pelos altos gastos militares e pela baixa

arrecadação, principalmente entre a população de alta renda. As

negociações para evitar o Abismo Fiscal demonstraram grandes impasses

políticos. O acordo realizado na virada de 2012 para 2013 incluiu um

aumento de impostos para as famílias que ganham mais de US$450 mil

ao ano e indivíduos que ganham mais de US$ 400 mil ao ano.

Permaneceu em aberto, contudo, a definição sobre a elevação do teto para

a dívida pública estadunidense, o que poderá gerar novo impasse já no

ano de 2013.

9. CENÁRIOS

A partir do estudo desenvolvido, pode-se delinear pelo menos três

possíveis cenários para os próximos anos de política externa e de

segurança dos EUA. Cada um deles sintetiza aspectos passíveis de serem

combinados entre si e mais compatíveis com um ou outro tipo ideal da

dualidade proposta.

O melhor cenário consiste no avanço da construção de uma

economia baseada no conhecimento e de um novo pacto social mundial,

em que a governança seja nucleada em regiões. O condicionante principal

é a extensão das práticas de buckpassing pelos estadunidenses, reduzindo

seus gastos de custeio e permitindo maior aceleração da recuperação

econômica. Por consequência, o país readquiriria grande capacidade de

produção de conhecimento em larga escala, direcionando-a para

investimentos em economia verde e avançando no projeto do elevador

espacial. A liderança estadunidense seria praticada, mais do que tudo,

pela força do exemplo, como sugere a Doutrina Monroe.

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

24

O cenário intermediário consiste, em linhas gerais, na manutenção

de uma situação semelhante à atual. O governo estadunidense colocaria

em prática, concomitantemente, práticas de buckpassing e de burden-

sharing, a depender do contexto e da localidade específica. Como

resultado, os processos de regionalização ao redor do globo seriam

estimulados, ainda que indiretamente e de maneira mais vagarosa do que

no melhor cenário. O país manteria uma lenta recuperação econômica,

bem como os impasses já verificados entre Executivo e Legislativo.

O pior cenário para os próximos anos consistiria nos seguintes

fatores: a eleição de um candidato nos moldes do que foi visto na última

eleição (Mitt Romney); o retorno das tensões com a Rússia; a volta de

uma economia baseada nos hidrocarbonetos e o unilateralismo. Em

outros termos, seria o retorno do Destino Manifesto ao poder. Nesse

contexto, em um primeiro momento, os EUA buscariam incansavelmente

a primazia nuclear, direcionando o foco para o Escudo Antimísseis

(DAM) europeu baseado em terra, na Polônia e na República Tcheca,

iniciando uma corrida armamentista com a Rússia. Com o

desenvolvimento do hipersônico, os EUA poderiam dispensar qualquer

tipo de parcerias regionais, visto que o unilateralismo por si só já bastaria.

Portanto, haveria um retorno a Boyd e ao gerenciamento do caos, cujo

resultado líquido seria a guerra permanente.

Considerações Finais

O declínio relativo na economia dos EUA se dá no contexto pós-

crise de 2007, em que o país se recupera lentamente, enquanto outras

economias mostram um expressivo crescimento econômico. Adiciona-se

a isso a forte interdependência da economia estadunidense com a

decadente União Europeia em termos de IED; o deficit cambial e fiscal

que caracterizam a crise hegemônica desde o Vietnã ao Iraque.

Por outro lado, há que se notar a grande interdependência com a

China, o volume de títulos torna os dois países menos propensos à

confrontação. O aumento do comércio bilateral, mesmo em um contexto

de crise, aponta o caminho mais provável para a recuperação

estadunidense: intensificar sua inserção nos mercados mais dinâmicos da

Ásia.

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Política externa e de segurança dos Estados Unidos

25

Importa notar que a pesquisa convalidou a percepção de Giovanni

Arrighi, para quem os EUA teriam ingressado na fase de expansão

financeira ainda na década de 70. Cabe lembrar que, para o autor, o que

caracteriza esta fase não é apenas um crescimento maior da economia

simbólica em relação à economia real, mas também a expansão do setor

bancário às custas do setor industrial. Neste sentido, a recuperação da

competitividade das empresas americanas na década de 80, constatada

por Alfred Chandler, não teria sido suficiente para conter a tendência da

expansão financeira, uma vez que a Ásia permaneceu sendo polo

dinâmico da economia mundial. China e Índia substituíram os Tigres

Asiáticos, mas a região permaneceu como líder no desenvolvimento do

PIB industrial e das demais capacidades produtivas.

Contudo, é prematuro considerar que o êxito da Ásia se dará às

expensas dos EUA. Talvez pretender que os EUA recuperem o papel da

indústria na composição do PIB seja uma utopia reacionária — apenas

possível mediante um nível de empobrecimento em umbrais muito

superiores aos atuais. Aliás, como explica o próprio Arrighi, muitas das

indústrias na China e Índia são de procedência americana. Ao menos em

certa medida, a crise estadunidense é fruto do virtuosismo de seu modelo

de transnacionalização. Seu aprofundamento parece ser a chave para

saída da crise: convertendo os EUA em exportador de Tecnologia Verde.

Esta inserção beneficia o setor de serviços, o carro chefe da economia.

Naturalmente, exige um sistema de seguridade a assistência social, que

terá de ser custeado com impostos.

Se, por um lado, não parecem existir problemas intransponíveis para

os EUA, por outro lado, seria prematuro ignorar os desafios do presente.

Em grande medida, a transposição das atuais dificuldades está

relacionada à transição tenológica. Na sociedade do conhecimento e da

informação, deter um terço do P&D mundial parece ser garantia

suficiente que os Estados Unidos não irão se converter numa nova

Inglaterra. Por outro lado, verifica-se um declínio relativo20

: na década de

80, os EUA respondiam por metade do P&D mundial. Embora os EUA

contem com um grande e diversificado complexo acadêmico-militar-

industrial, pode-se observar que o governo reduz sua demanda de

produtos com alta tecnologia e as empresas aportam menos recursos em

P&D. Se prolongada, esta situação poderá acelerar a decadência relativa,

20 Se diz relativa, porque no caso, trata-se de comparar os EUA com si próprios.

Page 32: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Relações internacionais contemporâneas 2012/2

26

ameaçando a liderança tecnológica dos EUA. Em qualquer hipótese, a

presente situação exige a recuperação econômica do país e reformas

profundas.

O dilema atual, definido, no âmbito deste texto, nos termos da

oposição entre o buckpassing e o burden-sharing, atesta a manutenção da

dualidade típica da PES estadunidense, mas não autoriza qualquer tipo de

conclusão acerca de seu perfil cabal no século XXI. Para além das

disputas dos grupos de pressão internos, existem condicionantes externos

que impedem os EUA de decidir livremente entre “passar o balde” e

“dividir o fardo”. O mais provável é que, em algum grau, ambas se

combinem.

No momento atual, enquanto a crise econômica persiste, a tecnologia

do hipersônico não é lançada e, por conseguinte, a JOAC não se torna

totalmente operacional, os EUA tendem a buscar parcerias e dividir o

fardo (burden-sharing) da segurança global com potências regionais, vide

Índia. Outra opção é o clássico buckpassing, como nos casos de

Afeganistão e Síria. Importa lembrar que ambas as políticas fortalecem

pivôs regionais e, consequentemente, aceleram processos de integração

regional.

Os Estados Unidos ainda são a maior potência do Sistema

Internacional e nenhum outro país ou região é capaz de lhe fazer frente.

Se, por um lado, esta condição impõe aos EUA o ônus de introjetar os

principais problemas do sistema internacional, por outro, demonstra que

são capazes de influenciar decisivamente seus rumos. De fato, observa-se

uma persistente crise da hegemonia americana que não pode se manter

nos termos vigentes anteriores a década de 70, mas também não se

observa um desafiante à hegemonia global americana.

As relações com a China, a despeito de seus graves pontos de

estrangulamento, não são aquelas características de potências rivais —

como as EUA-URSS durante a Guerra Fria — mas as de economias

profundamente interdependentes. É impossível determinar o quanto o

crescimento produtivo chinês é tributário de capitais e tecnologias

americanos, dada à ausência de um sistema de estatísticas de IED

organizado na China e a prática, comum na Ásia, de triangulação de

investimentos e subcontratação. Ademais, as deficiências estruturais da

China não são muito diferentes das que comprometeram, no passado, o

Page 33: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança dos Estados Unidos

27

Japão como candidato a hegemon21

. Desse modo, não é difícil predizer

que os EUA irão se recuperar da Guerra do Iraque como fizeram frente ao

Vietnã.

O declínio relativo dos EUA, contudo, parece pronunciado suficiente

para que se afaste do horizonte a perspectiva seja de um Império

Universal, seja de um Estado Mundial. Isso, entretanto, já era uma

tendência observável antes da crise mundial de 2007. Como observou

ainda em 2005 o ex-assessor de Segurança Nacional da presidência,

Brzezinski: “Mesmo que o fosse desejável, a humanidade não está sequer

remotamente preparada para o governo mundial, e o povo americano

certamente não o quer”22

. A observação de Brzezinski lamentavelmente

tem sido negligenciada por alguns formuladores de política e estadistas

nos Estados Unidos. E, esta incompreensão, materializada na manutenção

da DAM, mantém em aberto o espectro da guerra mundial.

Do exposto, pode-se concluir que se os Estados Unidos não podem

manter sua hegemonia como era, mas tem capacidade suficiente para

incidir decisivamente sobre qualquer processo de reconstrução

hegemônica. O mais provável é que, qualquer seja o rearranjo, os EUA

permaneçam como potência dirigente — a menos que ela seja operada

através da guerra quando, então, seu desdobramento é imprevisível,

talvez este seja único obstáculo intransponível para um novo século

americano.

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31

Capítulo 2

POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA

REPÚBLICA POPULAR DA CHINA

Giovana Esther Zucatto

João Arthur da Silva Reis

João Gabriel Burmann da Costa

Marília Bernardes Closs

Mirko Levis Gonçalves Pose

Osvaldo Alves Pereira Filho

Renata Schmitt Noronha

Introdução

Este artigo analisa a política externa e de segurança da República

Popular da China, tendo como objetivo central demonstrar como o

comportamento do país, em nível interno e regional, afeta seu

posicionamento no Sistema Internacional. Dessa forma, o foco do

trabalho é na estrutura interna do país e nas suas relações regionais.

A China possui a maior população do mundo, distribuída no quarto

maior território nacional, detém a posição de segunda maior economia do

mundo e o segundo maior gasto em defesa. Seu PIB, de mais de US$ 8

trilhões, é um dos que mais cresce no mundo, tendo alcançado a taxa de

9,3% ao ano em 2011 (CIA, 2013). Essa análise preliminar de suas

capacidades permite classificar o país como um dos polos do Sistema

Internacional

Adota-se, neste trabalho, a hipótese de que a China se debate entre

duas tendências diferentes. Uma é mais voltada à multilateralidade e às

reformas internas, identificada aqui como Mandarinato Meritocrático. A

outra é associada ao reacionarismo e manutenção das instituições do

passado e, no plano externo, ao unilateralismo. Intitula-se essa categoria

de Milenarismo Igualitarista. Essas duas orientações derivam de uma

dualidade intrínseca à identidade coletiva do país. Ambas coexistem nas

ações e na estrutura chinesa, sendo que, em determinados momentos, uma

adquire preponderância sobre a outra.

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

32

Tendo sido explicitado e delimitado o desenho da pesquisa, cabe

demonstrar como esta se estrutura. Primeiramente, será feita uma análise

da estrutura do país, buscando identificar determinantes da política

externa e de segurança nas capacidades e na configuração interna do país.

É nesta seção que será também definida a dualidade da China. Em

seguida, serão delimitadas a situação e a conjuntura do país, explicitando

os condicionantes regionais da atuação chinesa e seu posicionamento no

Sistema. A partir da estrutura, situação e conjuntura, serão estabelecidos

três cenários nos quais são projetados os desdobramentos da dualidade.

Na conclusão preliminar, serão apontados os indicadores que permitirão

um acompanhamento dos cenários projetados.

1. ESTRUTURA

1.1. Esclarecimentos sobre a Dualidade Chinesa

A trajetória chinesa é pautada pela seguinte dualidade: (i) o

Mandarinato Meritocrático; e (ii) o Milenarismo Igualitarista. Ambas

categorias coexistem e possuem implicações para a política interna e

externa chinesa, podendo ser observadas ao longo da história. É

importante mencionar que esses devem ser considerados como categorias

abstratas.

A primeira face da dualidade propõe a organização da sociedade em

hierarquias baseadas no mérito, e tem seu nome derivado dos exames

imperiais chineses, nos quais eram selecionados os mandarins, a

burocracia governamental da época. No campo externo, essa ideia está

relacionada com o conceito de “autoridade humana”, tal como proposto

por Yan Xuetong (2011). De acordo com o autor, esta se pautaria pela

liderança através da moralidade política e da subsequente adesão dos

demais. É reconhecido algum nível de hierarquia entre os Estados,

demandando que os mais fortes assumam responsabilidades maiores que

os mais fracos e, ao mesmo tempo, aceitando regulações discriminatórias.

Assim, a liderança e as normas estabelecidas pelo líder são aceitas de

forma espontânea pelos demais Estados (YAN, 2011). Atualmente, essa

face se expressa através de políticas multilaterais e de reformas

econômicas e políticas internas que democratizam o governo chinês e

aumentam a participação política.

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Política externa e de segurança da República Popular da China

33

Já o milenarismo igualitarista, a segunda face da dualidade, acarreta

a existência de um líder superior, que crê ser incumbido por alguma

determinação divina de liderar os demais. A origem disso remonta ao

“mandato dos céus” na civilização tributária chinesa e à Rebelião

Taiping, tendo encontrado sua expressão moderna em alguns aspectos do

maoismo. O igualitarismo dessa face, apesar de parecer nobre, se levado

ao extremo, pode conduzir à perda da ideia de indivíduo e,

consequentemente, à supressão das liberdades e direitos individuais. Esse

lado da dualidade representa o excepcionalismo chinês e tem como

objetivo reeditar a civilização tributária chinesa, ao mesmo tempo que

mantém a estrutura interna herdada do período maoista. Por esse motivo,

atualmente tal perspectiva justifica o reacionarismo nas instituições

internas e o unilateralismo nas relações internacionais.

1.2. História

A China é originalmente uma civilização tributária, o que significa

dizer que mantinha relações hierárquicas com sua periferia, que lhe

prestava tributo como sinal de submissão. As dinastias alternavam-se em

ciclos: uma dinastia perdia o “mandato dos céus” devido ao mau governo,

derrotas militares ou corrupção generalizada. Seguia-se um momento de

divisão interna e guerra civil até que uma nova dinastia reestabelecesse a

ordem, recebendo um novo “mandato dos céus” (ROBERTS, 2012:12-

14). Verifica-se nessa ideia uma expressão do milenarismo. Por outro

lado, os exames públicos de admissão à burocracia estatal, uma espécie

de concurso público da época, era a materialização original do

mandarinato meritocrático.

Esse sistema se manteve isolado do resto do mundo até a Dinastia

Qing entrar em declínio no século XIX. Isso ocorreu em virtude da

abertura forçada para o exterior, causada por uma série de tratados

desiguais impostos pelas potências europeias. Uma série de rebeliões

causadas pelo declínio do sistema imperial assolou a China, destacando-

se a Rebelião Taiping, movimento de caráter messiânico. A revolta durou

mais de 10 anos e se expandiu para quase metade do território chinês,

distribuiu terras equitativamente e deu papel de igualdade para as

mulheres (SPENCE, 1996). É o milenarismo igualitarista em sua máxima

expressão. A revolução foi derrotada, mas seu legado perdurou. Como

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

34

reação a isso, os funcionários mais progressistas do Império buscaram

restaurar o poder da dinastia através da modernização, no processo

conhecido como Reforma dos Cem Dias. Ou seja, industrializar o país era

a maneira de reafirmar a ordem imperial como condutora do processo de

modernização, garantindo à China um lugar no novo sistema

internacional que lhe era imposto. É o mandarinato meritocrático em sua

expressão mais clara. As reformas foram interrompidas pelos setores mais

conservadores do governo.

A Revolução Republicana de 1911 derrubou o Imperador, mas não

conseguiu unificar o país, divido entre esferas de influência estrangeiras e

senhores locais. Surge, nesse período, o Guomindang, partido

nacionalista que congregava alas de diferentes orientações políticas. Em

1924, com a ajuda da União Soviética, foi fundada a Academia Militar de

Whampoa, que treinava e doutrinava os quadros do Guomindang, criando

um Exército com o intuito de unificar o país. A despeito das diferenças

ideológicas entre eles, todos os oficiais eram subordinados a um projeto

nacional. Com a criação do Partido Comunista Chinês (PCCh), alguns

anos depois, egressos da Academia vieram a integrá-lo (SPENCE, 1996:

331).

Paralelamente ocorria o processo de modernização japonesa,

iniciado pela Restauração Meiji, que incidiu diretamente sobre a trajetória

chinesa. Na década de 1930, o Japão ocupou parte do território chinês e

instaurou o regime fantoche de Manchukuo (1933). A partir de 1937, teve

início a guerra total entre China e Japão, com a conflagração da Segunda

Guerra Sino-Japonesa. Pode-se dizer que este é marco inicial da II Guerra

Mundial para a China. O quadro em que a China encontrava-se àquela

altura era o seguinte: na esfera interna, o país enfrentava uma guerra civil

que opunha o Partido Comunista Chinês (PCCh) e o Guomindang; na

esfera regional, a guerra com o Japão que estava inserida em contexto

geopolítico mais amplo de uma guerra global que envolvia a URSS,

Estados Unidos e Grã-Bretanha.

A guerra se encerrou em 1945, com a rendição do Japão, e teve

como consequências imediatas para a China a ascensão do PCCh ao

poder e a criação de um bloco sino-soviético. Isto se deve a 2 fatores. O

primeiro diz respeito ao uso do anticomunismo como a ideologia de

legitimação do domínio japonês, o que acabou fortalecendo o PCCh

enquanto defensor do nacionalismo. O segundo fator diz respeito aos

Page 41: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança da República Popular da China

35

Estados Unidos, basicamente por terem apostado na vitória do

Guomindang tanto na guerra civil, quanto na resistência ao Japão. Essa

estratégia se demonstrou equivocada, já que, em 1949, o PCCh triunfou

sob a liderança de Mao Zedong. Dessa forma, a China migrou para a

esfera soviética de influência.

A vitória da Revolução se confunde com movimento de Libertação

Nacional, ideal perseguido desde a Rebelião Taiping. Entretanto, o braço

armado comunista, nascido na Academia de Whampoa, precedeu a

própria revolução. Esse fato garantiu um caráter autônomo do Exército

em relação ao Partido nas décadas subsequentes. Isto explica porque, de

maneira diferente de outros países de governo comunista, o Exército não

é um subordinado dócil do Partido e, ainda hoje, atua como árbitro nas

disputas entre as diferentes facções do PCCh.

Apesar da definição dos conflitos na esfera local (guerra civil) e

regional (guerra sino-japonesa), persistiram as disputas no nível global. A

guerra da Coreia (1950-1953), na qual a China entrou em confronto com

os Estados Unidos, foi expressão disto. Como consequência dessa

conflagração para a China, manteve-se o bloco sino-soviético e o país foi

temporariamente excluído do Sistema Internacional, devido à chantagem

nuclear imposta pelos EUA ao governo de Pequim1 (KISSINGER, 2011).

Após um período de consolidação do regime, seguiu-se o “Período

Soviético”, fase que durou até 1958, caracterizado por rápida

industrialização e modernização nos moldes socialistas (ROBERTS,

2012: 364-365). No fim da década de 1950, a radicalização do governo

chinês, expressa no Grande Salto Adiante2, levou ao afastamento da

URSS. Mao se retirou do poder, mas retornou com mais força em meados

da década de 1960, através da Revolução Cultural. As instituições

políticas foram destruídas, devido à estratégia de jogar os partidários mais

fanáticos de Mao contra seus opositores no Partido. O resultado foi a

1 A chantagem nuclear consistia na ameaça de uso direto de armas nucleares contra a

China. Isto ocorreu durante a Guerra da Coreia, bem como durante a Guerra Franco-

Vietnamita, durante as duas primeiras crises do Estreito de Taiwan. Mesmo a URSS

cogitou fazer o uso dessas armas contra os chineses durante o confronto de fronteiras

sino-soviético de 1969 (YAO, 2009: 69). 2 O Grande Salto Adiante (1958-1960) foi uma campanha lançada por Mao Zedong que

visava ao aumento da produção agrícola e industrial em tempo recorde. O deslocamento

forçado de pessoas e a inflexibilidade das metas causaram a morte de mais de 20

milhões de pessoas, em sua maioria por fome.

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

36

imersão do país em um caos que perdurou até meados da década de 1970.

Este período foi a expressão da faceta mais radical do Milenarismo

Igualitarista.

Após o arrefecimento da Revolução Cultural, a China se aproximou

dos Estados Unidos para balancear a União Soviética, que passara a ser

percebida como ameaça por Pequim. O realinhamento estratégico marcou

o retorno chinês ao Sistema Internacional. A Doutrina Nixon3, que

permitiu a aproximação entre os dois países e entre China e Japão, de

certa maneira inaugurando uma nova fase de regionalização nas Relações

Internacionais (KISSINGER, 2011).

Após a morte de Mao Zedong, em 1976, ascendeu ao poder Deng

Xiaoping, que empreendeu uma série de reformas, com a campanha das

“quatro modernizações”: na agricultura, indústria, tecnologia e forças

armadas. Em linhas gerais, foi um processo de abertura econômica

controlada. Essas mudanças retomaram o legado do Mandarinato

Meritocrático, tal qual as “Reformas dos Cem Dias”. Ao enfrentar a

oposição da ala mais conservadora, Deng se utilizou de sua proximidade

com os militares para garantir a continuidade de suas políticas.

A abertura econômica trouxe à tona contradições na ordem

econômica e social, que culminaram nos Protestos na Praça da Paz

Celestial. O movimento cresceu em escala, e passou a ser percebido como

uma ameaça ao regime. O Exército interviu e as manifestações foram

reprimidas ao custo de centenas de vidas. A reação internacional só não

foi mais assertiva devido ao posicionamento do Japão, que se opôs às

sanções baseadas em noções abstratas de direitos humanos.

A década seguinte, sob o governo de Jiang Zemin, viu crescimento

econômico do país, somado ao aprofundamento das desigualdades sociais

(NETO, 2005; NONNENBERG, 2010), especialmente entre cidade e

campo. Seu sucessor, Hu Jintao, deu seguimento às reformas econômicas

e sociais, buscando fortalecer as instituições do país de modo a conciliar a

manutenção do Partido no poder com o crescimento econômico. Foi

durante seu governo que a China se tornou a segunda maior economia do

mundo e empreendeu um processo de modernização militar. Em 2012, Xi

3 Corolário da política externa norte-americana durante o governo de Richard Nixon,

presidente dos Estados Unidos entre 1969 e 1974. Pregava uma aproximação estratégia

e pragmática com a China, de modo a criar um contrapeso estratégico à União

Soviética.

Page 43: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança da República Popular da China

37

Jinping se tornou o novo Secretário-Geral do Partido e Presidente do país.

1.3. Instituições Políticas

O processo decisório chinês dá-se, em última instância, internamente

ao Partido Comunista. O Congresso Nacional do Partido, que se reúne a

cada cinco anos, é o responsável pela indicação do Secretário-Geral do

Partido e do seu vice, os quais exercem as funções de Presidente e de

Primeiro-Ministro, respectivamente. O Congresso Nacional também

elege os 350 membros do Comitê Central do PCCh, que constitui o corpo

executivo do Partido e que elege a composição do Politburo, do seu

Comitê Permanente e da Comissão Militar Central. O Comitê Permanente

do Politburo é o órgão superior na hierarquia do PCCh e seus 7 membros

encabeçam o processo decisório nacional, sendo as decisões do Politburo

e do Comitê Permanente consensuais. Importa, também, o Congresso

Nacional do Povo, órgão unicameral legislativo chinês, que tem 70% de

deputados filiados ao PCCh em sua composição. Cabe apontar, ainda, a

influência dos membros mais antigos — os “anciãos do Partido” — dos

herdeiros dos heróis da revolução e dos militares — os quais ocupam

20% das cadeiras do Comitê Central — no processo decisório do PCCh.

O PCCh possui, majoritariamente, duas grandes facções: o Grupo de

Xangai e a Liga da Juventude Comunista. A primeira possui um viés mais

elitista, preocupando-se em manter um modelo de crescimento

econômico baseado nas exportações, o que privilegia as províncias mais

desenvolvidas do litoral chinês. Esse grupo se considera herdeiro do

legado maoista e é a facção mais conservadora no que se refere à

manutenção das instituições e privilégios instituídos para membros do

Partido. A segunda, por sua vez, é entusiasta da melhor distribuição

interna de renda, através da centralização política e da diminuição das

desigualdades entre cidade e campo. Tem um caráter mais vanguardista e

reformista, representando o ideário de Deng Xiaoping (VISENTINI,

2012). Grosso modo, pode-se associar o Grupo de Xangai às

características do Milenarismo Igualitarista, e a Liga da Juventude

Comunista ao Mandarinato Meritocrático.

Em novembro de 2012, no 18º Congresso Nacional do PCCh, foram

eleitos os membros dos órgãos-chave do Partido. Como Secretário-Geral,

foi nomeado Xi Jinping, integrante do Grupo de Xangai. O restante do

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

38

Comitê Central, majoritariamente, foi composto por membros desta ala.

As exceções são Li Keqiang, que ocupará o cargo de Premiê, e Liu

Yunshan, ambos da facção de Hu. Já o Politburo ficou claramente

bipolarizado, com cerca de metade dos integrantes de cada facção.

Xi não é da facção mais radical e conservadora do Grupo de Xangai.

Seu discurso no Fórum de Boao para a Ásia, em abril de 2013, demonstra

uma apropriação de determinadas plataformas e propostas da ala da Liga

da Juventude Comunista, como a defesa de uma política externa de

concertação e a continuidade das reformas internas (CHINA, 2013).

Dessa maneira, pode-se afirmar que a concertação externa na China

reflete a própria concertação interna, entre as diferentes facções do

Partido.

1.4. Economia

Impulsionada por inúmeras reformas econômicas, a China é hoje a

segunda maior economia do mundo. Baseada no IED e voltada à

exportação, a economia chinesa cresceu a uma taxa média de 10% do PIB

ao ano nas últimas três décadas (IPEA, 2011).

As exportações chinesas possuem como destino, majoritariamente,

países com maior poder econômico, visto que grande parte de sua pauta é

composta por produtos de maior valor agregado: usualmente, o país

importa bens intermediários, principalmente do Japão e da Coreia do Sul,

e exporta o bens finais. Esse aspecto regional do comércio é muito

importante, imprescindível para a integração do Leste Asiático

(ACCIOLY, ALVES, LEAO, 2009).

Além disso, a China não consegue suprir a crescente demanda

energética nacional. Por isso, vem construindo uma nova forma de

relação com países “periféricos” ricos em recursos energéticos, e “tem

adotado uma ênfase [...] na valorização da soberania nacional, bem como

na aproximação das respectivas agendas políticas nos organismos

multilaterais, [...] assumindo déficits econômicos” (PAUTASSO &

OLIVEIRA, 2008: 384). Isso se evidencia no tipo de IED proveniente da

China e nos seus receptores: majoritariamente, países abundantes em

recursos naturais, onde constrói a própria infraestrutura para exploração

destes.

As reformas econômicas, iniciadas no século passado, garantiram

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Política externa e de segurança da República Popular da China

39

um prolongado saldo positivo na balança comercial chinesa, fazendo com

que o país acumulasse enorme quantidade de divisas internacionais:

atualmente, é o maior detentor de reservas do mundo. As divisas

possibilitaram lastrear uma moeda internacional e controlar a taxa de

câmbio, sendo possível notar uma relativa valorização do yuan frente ao

dólar nos últimos anos.

Nos últimos anos, nota-se certa desaceleração no crescimento

econômico chinês, acarretada pelo esgotamento do modelo exportador

empreendido até então. Considerando esse fato, o governo decidiu

implementar uma série de medidas de incentivo ao consumo interno.

Claramente, o governo de Hu Jintao adotou uma postura de reformulação

do modelo econômico chinês, reafirmadas no 18º Congresso Nacional do

Partido. Mesmo com a ascensão de Xi Jinping ao poder — que pertence à

facção do Partido Comunista defensora do modelo exportador — várias

declarações foram feitas afirmando o seguimento dessas políticas (XI,

2013). Resta acompanhar o prosseguimento, ou não, de tais políticas.

1.5. Infraestrutura

As questões de infraestrutura e segurança energética são tidas como

prioritárias para a política externa da China. O país é o maior consumidor

de energia do mundo e precisa garantir seu abastecimento caso pretenda

manter as elevadas taxas de crescimento. Atualmente, o carvão e o

petróleo correspondem a quase 90% de sua matriz energética.

Nos investimentos externos em infraestrutura, destaca-se o projeto

da Nova Rota da Seda, que visa ligar o país, saindo da província de

Xinjiang, ao extremo oeste da Europa. A intenção de se projetar

internacionalmente pela Ásia Central baseia-se num amplo leque de

objetivos: o desenvolvimento econômico de Xinjiang, estabilidade

política interna; segurança energética; e a criação de um corredor

alternativo para a Europa (SWANSTRÖM, NORLING e LI, 2007). É

importante notar aqui a correspondência entre os projetos externos e

internos. A China ainda carece de infraestrutura interna, já que a maior

concentração econômica e populacional, assim como de ferrovias,

rodovias, portos e aeroportos, fica na região leste, enquanto as províncias

mais promissoras em termos energéticos ficam no oeste. Para fomentar a

integração territorial do país, o governo chinês tem promovido um boom

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

40

na construção de dutos, rodovias e aeroportos, que se conectarão com a

infraestrutura externa, podendo vir a garantir estabilidade interna para o

país e desviar o abastecimento de petróleo do Estreito de Malaca.

O escopo da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) também

é utilizado para promover a integração econômica e energética entre os

países-membros. Evidencia-se, assim, os esforços chineses em diminuir a

preponderância dos EUA nas regiões que lhes são estratégicas,

apresentando-se como um parceiro mais propício, ao passo que garante os

recursos para a sua escalada rumo ao posto de potência mundial, ao lado

dos EUA (PAUTASSO & OLIVEIRA, 2008).

2.6. Segurança e Defesa

A doutrina de defesa chinesa de 2010 estabelece como prioridade

para o país a aquisição e o desenvolvimento de capacidades militares que

o possibilite operar guerras locais em ambiente de informatização (IISS,

2012: 211). Esse aspecto da doutrina deixa claro a preocupação chinesa

com a estabilidade do Leste Asiático, com a integridade de seu território e

soberania sobre suas águas territoriais nos Mares do Leste e do Sul

(GLOBAL SECURITY, 2010: online).

Os gastos militares chineses vem em ascensão desde 1989. Hoje, o

país detém o 2º maior orçamento de defesa do mundo, de US$ 129

bilhões em 2011. Isso se deve em grande parte aos esforços do país em

desenvolver internamente tecnologias fundamentais nos conflitos atuais:

satélites de Inteligência Eletrônica e Inteligência de Sinais

(ELINT/SIGINT); Radares de Abertura Sintética (SAR), numa tentativa

de competir pelo comando do espaço; caças de 4ª e 5ª geração (J-10, J-

11B e J-20 e J-31); aeronaves de AEW&C (Alerta e Controle Aéreo

Antecipado), como o KJ-2000; entre outros (CEPIK, 2011).

A China detém em seu arsenal cerca de 240 ogivas nucleares e sua

doutrina nuclear é a de “não uso em primeiro ataque”. Esse aspecto da

doutrina encontra respaldo na composição do seu arsenal, visto que a

China possui uma grande quantidade de mísseis convencionais em seus

sistemas terrestres, marítimos e aéreos, para não precisar fazer uso das

armas nucleares.

Com 2,285 milhões de homens, o efetivo militar ativo da China é o

maior do mundo. De 2000 a 2009, esse número significou um aumento de

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Política externa e de segurança da República Popular da China

41

US$ 20 bilhões em gastos com pessoal. Para diminuir esses custos, tem

se diminuído o efetivo ativo e aumentado a 1ª Milícia (para 10 milhões de

membros), que pode combater em conflitos, e 2ª Milícia (com 100

milhões), responsável pela manutenção da infraestrutura do país em caso

de guerra nuclear. Tais aumentos permitem à China uma maior facilidade

para mobilizar as reservas dentro de uma burocracia militar, sem fazer

uso de poderes políticos regionais ou nacional.

Importa também notar os indícios de A2/AD (anti-acess/area denial)

que aparecem na doutrina chinesa com o conceito de “maça assassina”. A

ideia é simples: em um ambiente de confronto com uma potência de

maiores capacidades militares, a China não buscaria igualar essas

capacidades, mas sim, responder assimetricamente a essa ameaça, a partir

da construção de capacidades que afetem o acesso e a livre-circulação do

inimigo no teatro de operações. Essa doutrina se materializa através de

diversos sistemas, como mísseis anti navio (DF-21), bombardeiros e

caças de interdição, submarinos e navios de minagem, e armas anti

satélite. A saturação destes tornariam proibitivos os custos de uma

invasão ao território chinês.

O perfil das forças e das capacidades chinesas indica um elemento

de duplicidade: se por um lado, a aquisição de capacidades A2/AD indica

o aprimoramento das capacidades defensivas, por outro, o investimento

na modernização de modo mais geral permite ao país atuar em diferentes

teatros de operações na região.

2.7. Transição Tecnológica

A China, apesar de não ter “saído na frente” na disputa pela

primazia do domínio de tecnologias estratégicas da Era Digital, tem se

saído bem em seu intento de diminuir o gap que a separa das Grandes

Potências (SAUNDERS, 2011: 48). O país aproveita-se dos menores

custos de desenvolvimento de tecnologias já dominadas por outros

países, beneficiando-se da distância que ainda possui da fronteira

tecnológica de certas indústrias para realizar sua transição tecnológica.

Dessa maneira, é de grande importância as políticas empreendidas por

Hu Jintao, baseado em sua vertente guia de “sociedade harmônica” e

“desenvolvimento científico”, no sentido de diminuir a dependência de

tecnologias externas e consolidar a China como um polo tecnológico e de

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

42

produção científica de alto nível.

No que tange ao desenvolvimento científico, a China têm investido

maciçamente em P&D — cerca de US$ 154 bilhões em 2009. Da mesma

maneira, foram vertiginosos os aumentos em número de publicações

científicas e registros de patentes, contabilizando, em 2010, 118.108

artigos (MCTI, 2013) e 293.066 pedidos, respectivamente. Já na questão

das tecnologias de ponta, o país possui 4 dos mais rápidos

supercomputadores do mundo. Em 2011, entrou em operação o primeiro

supercomputador de fabricação 100% chinesa — incluindo o

superprocessador ShenWei SW 1600 —, o Sunway Bluelight. Tal fato

marcou um grande salto tecnológico para a inovação nacional em termos

de desenvolvimento e utilização de computadores de alta performance

(CHINA DAILY, 2012).

Com relação a minerais estratégicos, importa notar que a China é

hoje a maior produtora e consumidora mundial de alumínio. Porém, o

país ainda apresenta déficits desse material, necessitando importá-lo. O

grande “trunfo” chinês, em termos de recursos minerais, no entanto, está

no monopólio de 95% da produção de terras raras do planeta, além do

controle de boa parte das outras fases da cadeia de produção e utilização

desses minerais — não sendo majoritária apenas na última delas, a

transformação. Terras raras importam porque são utilizadas em muitos

equipamentos eletrônicos atuais — o que inclui a indústria de defesa. O

reflexo disso aparece nos cortes nas taxas de exportação — o governo

chinês controla a cadeia interna de terras raras, visto que as empresas são

grandes estatais e os fluxos são rigidamente fiscalizados -, e no

direcionamento para o desenvolvimento de um mercado interno mais

forte.

2. SITUAÇÃO E CONJUNTURA

A China passa por um momento de ambiguidade situacional.

Embora os primeiros meses do governo de Xi Jinping tenham sido

marcados pela reafirmação dos canais de diálogo e cooperação

multilaterais, construídos desde o final da década passada, a

(re)emergência de novos focos de tensão tornam o ambiente regional

mais propenso à instabilidade.

Basicamente, a evolução das relações regionais esteve pautada por

Page 49: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança da República Popular da China

43

duas esferas distintas. Na esfera econômica, houve grandes avanços

derivados do aumento da interdependência econômica de todo o Leste e

Sudeste Asiático, representados pela Cúpula Trilateral com Japão e

Coreia do Sul e culminando com o lançamento do projeto da Comunidade

do Leste Asiático em 2009. Ainda nessa esfera, mais recentemente, pode-

se destacar o anúncio das negociações acerca da criação de uma área de

livre comércio entre os países da ASEAN com China, Índia, Coreia do

Sul, Japão, Austrália e Nova Zelândia, excluindo os Estados Unidos

(SPENGLER, 2012).

Porém, na esfera securitária, o ano de 2012 foi marcado por uma

série de disputas territoriais que levaram ao aumento de tensões no Mar

do Leste e Mar do Sul da China. O anúncio de “compra” das ilhas

Diaoyu/Senkaku pelo governo japonês foi recebido com protestos de

massa na China e as relações com o Japão ficaram abaladas. Já no Mar do

Sul da China, região de enorme importância por ser corredor de passagem

de petróleo e bens de exportação, as tensões se elevaram com o Vietnã e

as Filipinas, que disputam a posse de uma série de ilhas com a China.

Mais recentemente, a crise coreana4 evidenciou a fragilidade da

estabilidade regional.

A despeito das aparentes tendências conservadoras do governo

formado no 18º Congresso Nacional do PCCh, o discurso do presidente

Xi Jinping no Fórum de Boao para a Ásia reafirmou a disposição chinesa

em participar de maneira construtiva do estabelecimento de uma ordem

regional pautada na cooperação e concertação (XI, 2013).

Esses acontecimentos mais recentes têm como plano de fundo uma

situação geopolítica mais geral na qual a China se insere. Nesse sentido,

importa o retorno do foco estratégico dos Estados Unidos para o Pacífico,

o que torna incertas as relações entre as duas potências. Soma-se ainda a

atuação de outros atores regionais, como a Índia e a Rússia. A Índia teme

um possível cercamento por parte da China, o que leva a uma estratégia

de balanceamento e à modernização de sua Marinha de águas azuis. No

que concerne às relações com a Rússia, o panorama é de uma

aproximação cautelosa, apesar de essa ser uma tendência da Rússia com

4 A crise coreana teve início após o terceiro teste nuclear norte-coreano, em fevereiro de

2013 que desencadeou um escalonamento das tensões na península. Cabe destacar a

suspensão do armistício entre as duas Coreias e o anúncio de Estado de Guerra da parte

da Coreia do Norte.

Page 50: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Relações internacionais contemporâneas 2012/2

44

todos os principais países da região.

No Mar do Sul da China, a China tem disputas territoriais com uma

série de países da ASEAN, devido à posição estratégica que a posse das

ilhas em litígio tem para a manutenção da segurança das linhas marítimas

de suprimento5. Neste contexto, importa sobremaneira o Vietnã, que tem

se aproximado de outras potências visando a um balanceamento da

China. Para tanto, firmou acordos de cooperação militar com Rússia,

Japão e Coreia do Sul, tratados de comércio com os Estados Unidos e de

exploração conjunta de petróleo em alto-mar com a Índia.

3. CENÁRIOS

A análise da política externa e de segurança da China permite a

elaboração de três cenários distintos. Estes refletem os desdobramentos

que podem advir dos dilemas representados pela dualidade chinesa e suas

implicações para a inserção do país no Sistema Internacional.

No melhor cenário, a China daria continuidade ao processo de

concertação e cooperação regional. Uma maior interdependência

econômica poderia conduzir ao uso das próprias moedas locais para as

transações intrabloco. Ocorreria ainda a definição das questões

securitárias. Uma solução para o problema das Coreias, ou no Mar do Sul

da China e do Leste, passaria necessariamente por uma mediação em

nível regional. A hipótese de guerra seria mais remota.

No caso intermediário, ocorreria um processo de relativa

manutenção do status quo. Isso significa o incremento dos laços

econômicos e comerciais, acompanhada de uma vagarosa concertação nas

disputas territoriais, mas sem definição. Ou seja, as disputas

permaneceriam latentes, originando crises pontuais. Essa ideia se reforça

com recentes anúncios ocorridos na Cúpula do ASEAN +3. Seria mantida

a indefinição na questão das ilhas do Mar do Sul da China, uma vez que

os custos de um confronto seriam muito altos para China, Vietnã ou

Índia.

O terceiro e pior cenário seria o da eclosão de uma guerra local, ou

de uma guerra regional de média intensidade, que poderia ser lutada em

mais de uma frente. O estopim para o início da guerra seria

5 Também conhecidas pelo acrônimo SEALOCs: Sea Lines of Communication.

Page 51: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança da República Popular da China

45

provavelmente uma disputa territorial. Para a compreensão deste cenário,

vale lembrar a existência de vários focos de tensão, como a península

coreana, o Mar do Sul da China, o Mar do Leste e a fronteira com a Índia.

Conclusão

Como conclusão, cabe apontar tendências a serem observadas para

um acompanhamento dos cenários projetados. Se as relações entre a

China e o resto dos países da região retornarem aos termos que deram

início à Cúpula Trilateral é crível que os impulsos integracionistas

retomem força, tal como proposto no primeiro cenário. A depender da

atuação chinesa, ao menos pelo que indicou o discurso de Xi Jinping no

Fórum de Boao, a tendência do governo chinês parece ser essa.

Em contrapartida, as recentes mudanças no cenário político da

Coreia do Sul e do Japão dificultam a viabilidade disso. Ou seja, por mais

que a China busque nuclear esse processo de maior cooperação na região,

a (re)emergência de tensões em algum grau independem da sua atuação.

Em outros termos, ainda não existe um sistema de governança regional

que torne previsíveis ou controláveis as consequências de litígios

pontuais.

Esse panorama de ausência de governança é corroborado pela

percepção de ameaça que permeia as relações regionais. Países como

Índia, Japão, Vietnã, Coreia do Sul e mesmo a Rússia não veem a

ascensão chinesa sem inquietação. Por essa razão, políticas de

balanceamento são uma estratégia recorrente.

O retorno do pivô estratégico dos Estados Unidos para o Pacífico

redimensiona a geopolítica regional e fomenta o surgimento de projetos

concorrentes de integração na região. Cabe observar que a presença dos

Estados Unidos é um fato, e que independentemente do perfil de

polarização regional que venha a prevalecer, será necessário algum nível

de concertação com os EUA. Dessa forma, é fundamental observar se o

comportamento do novo governo Obama com relação à China será

pautado pela busca pela cooperação ou pelo balanceamento.

Para o curto e médio prazo, o cenário intermediário parece ser o

mais provável. Isso porque, por um lado, a China tem buscado evitar uma

escalada nas tensões regionais - como pode ser observado na sua atuação

diante da crise coreana — e, por outro, não parece haver um novo

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

46

impulso integracionista que revolucione as relações na região. Essa

afirmação, contudo, não exclui a possibilidade de concretização dos

outros dois cenários no médio e longo prazo.

A China pode ser considerada hoje uma grande potência, pelo

tamanho de sua população, economia e poderio militar. Se o país

conseguir manter seu crescimento econômico elevado e continuar

investindo no setor de tecnologia, tende a manter essa posição. Nesse

sentido, importa o monopólio de terras raras que o país detém. Porém,

para manter o nível de crescimento, serão necessárias mudanças no

modelo econômico, que trarão modificações como o incentivo ao

consumo interno. Para isso faz-se necessário observar como o governo de

Xi Jinping irá se posicionar no cenário regional e global.

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Política externa e de segurança da República Popular da China

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Page 54: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

48

Capítulo 3

POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA

RÚSSIA

Ana Paula de Mattos Calich

Jéssica da Silva Höring

Klei Medeiros

Leonardo Albarello Weber

Wagner Augusto Silveira

Willian Moraes Roberto

Introdução

O presente trabalho visa a analisar a Política Externa de Segurança

(PES) da Rússia. Parte-se da hipótese de que a Rússia debate-se entre

duas tendências, consideradas tipos puros na denominação de Max

Weber: Europa e Ásia.

No que tange ao tipo puro Europa, a Rússia comporta-se como um

Estado-nação, mais um dentre o cenário europeu; enquanto no tipo puro

Ásia, Moscou constrói-se como um Estado tributário frente aos outros

países, com uma maior capacidade de manobra. Pela Europa, há uma

interdependência complexa, com a Rússia exportando bens primários e

importando bens de capital, enquanto a Ásia é tratada como esfera de

influência, com maior exploração pela Rússia, mas também para onde

pode exportar bens de maior valor agregado. Aplica-se, na Europa, a

teoria da dependência associada, onde seria necessário capital externo

europeu para o desenvolvimento do país, devido à falta de uma burguesia

nacional própria que lidere esse processo. Na Ásia, em contrário, tenta-se

uma integração econômica para fortalecimento das economias nacionais,

principalmente através da formação de cadeias produtivas entre tais

países. Por fim, nota-se que a Europa é sempre o foco de atração primária

para a Rússia, enquanto a Ásia serve de espaço para diversificação de

parceiros.

Para traçar as tendências e indicadores desses dois tipos puros pelos

quais a Rússia manobra sua PES, se fará uma análise estrutural da

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Política externa e de segurança da Rússia

49

formação russa, explorando sua história e suas instituições políticas, bem

como sua economia, infraestrutura, além das questões de segurança e

defesa e de sua posição na atual transição tecnológica. Após, se observará

a situação russa atual, através de um marco por nós definido, construindo

então cenários conclusivos como possíveis tendências que apontem para

qual direção caminha a Rússia.

A Rússia ocupa um lugar de destaque no Sistema Internacional (SI)

atual por diversas de suas características. É o país com o segundo maior

arsenal termonuclear do mundo e o segundo maior comando do espaço,

além de ser o maior produtor mundial de hidrocarbonetos. É o maior

produtor e possui a maior reserva de gás natural do mundo, além de ser o

segundo maior produtor de petróleo do globo, atrás apenas da Arábia

Saudita. Com um PIB de 2,509 trilhões de dólares, é a sétima maior

economia do mundo, com um PIB per capita de 17.700 mil dólares —

ocupando a 71ª posição no ranking mundial. Da composição do PIB, 58%

provêm do setor de serviços, 37,6% do setor industrial, e apenas 4,4% do

setor agrário. É o país com a maior extensão territorial, possuindo

17.098.252 km² de território. Entretanto, apesar de ser populoso, com

142.517.670 milhões de habitantes — a 9ª maior população do mundo —,

é pouco povoado — apenas 8,3 hab/km², o 217º país nesse ranking global

—, havendo grandes vazios demográficos pelo país (EUA, 2013a).

1. ESTRUTURA

1.1. História e Instituições Políticas

Algumas características são recorrentes na história russa. Dentre elas

está: (i) a centralização de poder, que devido à sua geografia e ao seu

território imenso, mostrou-se imperativa em diversos momentos; (ii) a

ideia de cerco, atrelada à ideia de que seu território está cercado por

diversos polos de poder, correndo risco de invasão constante; e (iii) a

busca por autonomia e por consolidar-se como uma grande potência.

O território russo fez parte do Império Mongol ao longo do século

XIII. A expansão deste império, com o intuito de proteger a Antiga Rota

da Seda, ocorreu até o século XIV, quando se fragmenta em quatro

grandes canatos. É interessante notar que cada um desses quatro canatos

pode ser associado aos blocos de poder atuais na região: Rússia, China,

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

50

Ásia Central e Oriente Médio.

No período imperial russo, destacam-se dois czares. O primeiro

deles foi Pedro, o Grande, no século XVIII, que ficou conhecido pela

modernização do Estado russo, baseada no modelo europeu. Ele foi o

responsável pela criação de um exército nacional — não formado por

mercenários; construiu, assim, a ideia de inclusão do indivíduo como

parte do Estado. Pedro também deslocou a capital para São Petersburgo,

lugar de projeção para a Europa, além de ter conquistado o território

adjacente ao Mar Báltico da Suécia, outra potência da época. Com a

conquista, além de projeção na Europa, a Rússia eleva-se ao status de

grande potência. O segundo líder relevante foi Catarina, a Grande, que

conquistou a região da Criméia, obtendo acesso ao Mar Negro. Não

dominou, contudo, os estreitos de Bósforo e Dardanelos, que dariam

passagem ao Mar Mediterrâneo. Os dois czares, então, se enquadram no

viés europeísta da dualidade, e destacam-se pela conquista de territórios

estratégicos à Rússia até hoje.

Em 1917, logo após a Revolução Socialista, Lênin implanta a

Política das Nacionalidades. Esta previa que os povos deveriam escolher

entre a independência completa do Estado russo e a consequente

separação do resto da Rússia, ou se tornar parte de um Estado socialista

unitário que garantiria todos os direitos civis e culturais ao trabalhador

(SUNY, 1998), tendo em vista que uma das principais bandeiras do

socialismo russo era o fim do Estado absolutista do czarismo. Lênin

acreditava que o separatismo seria reduzido pela tolerância russa, o que

não ocorreu de fato, havendo, logo em seguida, as independências da

Polônia, Finlândia e Ucrânia. Fez-se necessário então, tomar as rédeas

novamente e passar a uma recentralização do poder visando à

manutenção da unidade do Estado. Assim, essa política pode ser

considerada paradoxal, uma vez que o objetivo do governo era acabar

com os moldes czaristas de administração, mas é constatada a

necessidade da Rússia de centralização estatal para manter seu território

integrado.

Importa falar na história russa o ano de 1936, quando da assinatura

da Convenção Internacional de Montreux. Essa convenção assegurou a

soberania turca sobre os estratégicos estreitos de Bósforo e Dardanelos1,

1 A importância estratégica dos estreitos à época era inegável. Os britânicos e franceses,

por exemplo, não desejavam navios soviéticos passando por ali porque poderiam cortar

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Política externa e de segurança da Rússia

51

valorizados pelos russos porque garantem a passagem do Mar Negro ao

Mar Egeu e, consequentemente, ao Mediterrâneo. Após a II Guerra

Mundial, Stalin começou a pressionar os Aliados para ter acesso aos

estreitos e pediu a revisão da Convenção em 1947, sob a alegação de que

havia exercido papel fundamental na luta contra o Eixo, sobretudo na

frente oriental. Entretanto, Truman nega a demanda soviética e trás a

Turquia para o lado ocidental, inclusive inserindo-a na OTAN em 1952.

Assim sendo, é possível associar o início da Guerra Fria com a disputa

pelos estreitos no Mediterrâneo2.

Durante o processo de desmantelamento da União Soviética (URSS),

Iéltsin colaborou para o seu fim ao exigir a independência unilateral da

Rússia desta. Nota-se tal ação como mais uma recorrência do tipo puro

Europa em virtude da vontade de Iéltsin de tornar a Rússia um Estado-

nação aos moldes dos europeus. Em seguida, tal presidente promove

reformas liberalizantes, privatizando grandes estatais e cedendo terras aos

oligarcas locais, que ganham grande poder. Em consonância com tal

processo, a Nova Constituição de 1993 garantiu um maior poder às

regiões3. Em termos de política externa, Iéltsin adotou uma postura de

bandwagoning automático com os EUA na esperança de que receberia

uma retribuição por isso. Todos esses fatores somados geraram um

Estado fraco e inoperante, além de uma enorme concentração de renda,

gerando uma crise política e econômica interna que atinge o ápice em

1998.

Dentro dessa conjuntura de crise interna e mudança, começaram a

surgir diversos partidos que se opunham às políticas da Era Iéltsin.

Dentre eles, destacam-se dois partidos: o Pátria Toda a Rússia e o

Unidade,4 que se aglutinaram formando o Rússia Unida em 2001, o qual

rotas para Egito, Índia e Extremo Oriente.

2 Vale ressaltar que atualmente, o Mar Negro perdeu a importância relativa para o Mar

Báltico, e isso explica, em parte, a recente aproximação entre Turquia e Rússia. A

própria construção do gasoduto South Stream, que passa pelo Mar Negro em águas

territoriais turcas, não tem recebido tanta oposição por parte de Istambul. 3 Uma das consequências dessa medida constitucional foi que os entes federados russos

criavam leis próprias, que muitas vezes eram concorrentes às leis nacionais (estima-se

que, à época, 1/3 das leis das regiões eram contraditórias com as leis centrais) (COLIN,

2007). 4 O Partido Unidade foi criado em 1999 pelo próprio Iéltsin para lhe servir de sustentação

no Parlamento. Com o tempo e com os fracassos de Iéltsin, tornou-se também oposição,

fundindo-se com o Pátria Toda Rússia para formar o Rússia Unida em 2001.

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

52

apoiou a candidatura independente de Vladimir Putin à presidência — e

de todos os presidentes eleitos desde então -, sendo maioria no

Parlamento desde 2007. Caracteriza-se como um partido sem uma

plataforma ideológica própria, pois agrupa diversas tendências políticas

— atualmente representadas pelas lideranças de Putin, de um lado, e

Medvedev, de outro —, como se fosse um sistema partidário dentro de

um só partido5.

Em termos de política interna, Putin enfraquece a maioria das

oligarquias locais e promove a recentralização do poder em Moscou.

Exemplo disso foi seu decreto presidencial determinando que os

governadores fossem nomeados pelo presidente e confirmados pelos

parlamentos regionais. Na prática, esse decreto apontava a prevalência de

sua indicação, visto que seu partido, o Rússia Unida, era maioria também

nesses parlamentos6. No âmbito da política externa, o presidente retoma a

ideia de Rússia como Grande Potência. Dentro desse contexto, a busca

pela primazia nuclear por parte de George W. Bush acabou aproximando

Rússia e China, que juntas criaram a Organização de Cooperação de

Xangai (OCX) em 2001, demonstrando o viés mais autônomo da nova

política externa russa7.

Medvedev, seu sucessor, retomou algumas reformas liberais

similares às de Iéltsin e agia de uma forma “esquizofrênica”: ao mesmo

tempo em que buscava se aproximar da OTAN, em uma política

europeísta, atacava a Geórgia em 2008, a contragosto dos EUA e da

China. O conflito no Cáucaso demonstrou que a Rússia possui a última

palavra em termos de infraestrutura energética no âmbito regional.

Através de mísseis balísticos de curto alcance baseados na Ossétia do Sul,

5 Em 2008, três clubes políticos foram oficialmente formados dentro do partido: o Social-

Conservador, o Liberal-Conservador e o Estado-Patriótico. Seu objetivo é funcionar

como uma válvula de segurança para conter a dissidência interna do partido (EILEEN

KUNKLER, 2012). Isso corrobora a ideia de que há sim dentro do Rússia Unida

correntes diferentes e muitas vezes opostas. 6 Após sua eleição em 2012, Putin determinou a retomada das eleições diretas para

Governadores. Entende-se que essa foi uma medida necessária à época, devido à

instabilidade herdada de Iéltsin, e que se torna desnecessária hoje. 7 Vale ressaltar a importância de Primakov, primeiro-ministro russo ao final da Era Iéltsin,

como antecessor à política externa de Putin. Ele procurava fortalecer a imagem da

Rússia no exterior e melhorar seu status no SI — exemplos: II Guerra da Chechênia; o

“não” ao reconhecimento de Kosovo, etc. —, caracterizando um retorno ao

bandwagoning seletivo.

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Política externa e de segurança da Rússia

53

seria possível destruir gasodutos e oleodutos do Cáucaso em direção ao

Mar Negro, mantendo uma margem crível de negabilidade da Rússia. A

Guerra da Geórgia foi um choque na unipolaridade norte-americana. Os

EUA silenciaram durante o conflito e a Rússia agiu de forma

independente, dando o recado de que a expansão da OTAN para o Leste

deveria ter um limite.

Embora Putin e Medvedev pertençam ao mesmo partido, a postura

de Medvedev em seu governo não representou uma continuidade da

política externa de Putin. Medvedev tentou aproximar a Rússia do

Ocidente, embora sem sucesso. Seu fracasso na tarefa o debilitou no

plano doméstico, assim como o fez à corrente mais liberal do Rússia

Unida. Desse modo, possibilitou-se a emergência da figura de Putin como

opção à Presidência, representando a ala mais centrista.

Com essa análise, percebemos a presença da dualidade entre Europa

e Ásia durante toda a história russa. Em sua política externa recente, é

possível percebê-la, sobretudo, nas políticas dos governos de Iéltsin e

Medvedev em contraposição às de Putin. Nesse sentido, as instituições

russas acompanharam e refletiram esse processo. Constata-se ainda a

recorrência de características condicionantes da política externa de

segurança: a centralização de poder e o medo constante devido à ideia de

cerco, além do objetivo russo de manter-se como grande potência.

1.2. Economia

A economia russa, após uma profunda deterioração na Era Iéltsin,

recuperou-se no início do século XXI, acompanhando o boom dos preços

do petróleo e do gás. Esses produtos permanecem como a base de suas

exportações, sendo cerca de dois terços destas (RUSSIA, 2012a).

Atualmente, o PIB da Rússia figura como o sétimo maior do mundo, mas

continua oscilando de acordo com a variação nos preços dos

hidrocarbonetos. Seguindo esse perfil, os principais destinos das

exportações russas são países europeus, com destaque para a Holanda

(12,2%), a Itália (5,6%), a Alemanha (4,6%) e a Polônia (4,2%). A China

é a grande exceção, ocupando a 2ª posição, com 6,4% (EUA, 2013a).

Quanto às importações, a Rússia compra principalmente maquinário,

equipamentos e meios de transporte, totalizando 45% de sua pauta de

importações (RUSSIA, 2012b); os principais parceiros são Alemanha

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

54

(10%), Ucrânia (6,6%) e Itália (4,3%). Neste quesito, também a China

destaca-se, ultrapassando a Alemanha nos últimos anos e atualmente

respondendo por 15,5% das importações russas (EUA, 2013a).

Quanto ao Investimento Externo Direto (IED), segundo a ONU

(2013), a Rússia, que era receptora líquida de investimentos desde 2002,

passa a ter a partir de 2009 um saldo negativo de investimentos. Contudo,

em 2011, a Rússia era a 13ª maior receptora de IED do mundo, ficando

atrás apenas da China dentre os países emergentes (EUA, 2013b). Os

principais países que investem na Rússia são a Suíça, com 48,2% do IED

total em 2011, o Chipre, 10,6%, Holanda, 8,8%, Reino Unido, 6,9% e

Alemanha 5,4%. Percebe-se a presença de paraísos fiscais como os

principais investidores da Rússia, o que possivelmente representa a volta

de investimentos realizados pelos próprios russos de maior poder

financeiro, de forma ilegal (RUSSIA, 2012c). Moscou, por sua vez, tem

como principais destinos de seu IED o Chipre, recebendo 34,6% do seu

total em 2010, seguido pela Holanda, com 13,1% e Luxemburgo, com

5,7%. Como antes, percebe-se a existência de uma triangulação, ou seja,

a utilização de um intermediário para a realização do IED russo em

outros países. Como dito antes, é provável que parte desse dinheiro

investido pela Rússia volte ao país, no que é chamado de round tripping

(ALVES, 2011).

Cabe, por fim, fazer uma breve análise a partir dos investimentos

russos entre a Europa e Ásia. Nota-se que em 2010 a Rússia investia

cerca de 219 milhões de dólares na Europa, medido em estoque, e apenas

5 milhões de dólares na Ásia. A quantidade de investimento na região da

Comunidade de Estados Independentes (CEI) também é baixa, cerca de

15,9 milhões de dólares. Da mesma forma, a região que mais investiu na

Rússia no mesmo período foi a Europa, com um montante de 342,73

milhões de dólares. A Ásia investiu apenas 6 milhões de dólares na

Rússia e a CEI 2 milhões de dólares (KUZNETSOV, 2011). Diante disso,

é válido notar que tanto a Rússia investe bastante na Europa quanto a

Europa investe na Rússia, enquanto a Ásia tem participação baixa nesse

aspecto. Conforme demonstrado anteriormente com as exportações, os

grandes parceiros comerciais russos também estão na Europa, com

exceção da China.

Conclui-se, então, que Moscou possui uma economia fortemente

dependente da exportação de recursos energéticos e que há uma relação

Page 61: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança da Rússia

55

econômica de interdependência complexa entre a Europa e a Rússia, com

a primeira importando matérias-primas russas — energia — e exportando

a ela bens de capital. Entretanto, é possível que esse quadro altere-se.

Caso Moscou passasse a buscar uma reorientação nas relações

econômicas com a Ásia, principalmente através da União Eurasiática,

poderia exportar bens de maior valor agregado, rompendo com a

interdependência complexa europeia e fomentando a construção de uma

economia nacional completa e com setores de manufaturas em grande

escala. Neste terceiro mandato de Putin, deve-se ficar atento se os

investimentos russos passarão a fluir a essa região. Caso ocorra,

demonstrar-se-á que o setor privado acompanha os passos da política

externa do governo. Se não, seguirá sendo uma tentativa de Putin sem

repercussão prática. Deve-se atentar também para o papel ocupado pela

China na economia russa. A aproximação com esse país pode ser

fundamental na determinação do foco de política externa da Rússia. Em

recente visita do presidente chinês Xi Jinping ao país, firmaram-se

acordos em diversos setores da economia, principalmente no setor

energético e bancário (ARIS 2013, online). A principal petrolífera russa

passará a fornecer cerca de um milhão de barris por dia à China. Até 2018

a China deve se tornar o primeiro destino das exportações russas de

hidrocarbonetos.

1.3. Infraestrutura

A análise da infraestrutura energética e logística russas tem especial

importância para a compreensão de sua relação com a Europa e a Ásia, a

integração nacional do território e a manutenção da Rússia como uma das

maiores economias do mundo. A Europa é o principal destino de suas

exportações energéticas. A principal rota dos recursos até os países

receptores é através da Ucrânia, por onde passa 80% do gás da Rússia8.

Desse modo, a instabilidade da política ucraniana é crítica e motiva a

busca por rotas alternativas à União Europeia, destacando-se os

gasodutos Nord Stream e South Stream (PICCOLLI, 2012).

O projeto South Stream teve sua construção iniciada em dezembro

8 Além desse montante de gás, também se localiza na Ucrânia o oleoduto Druzhba que

transporta 30% do petróleo russo à Europa.

Page 62: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Relações internacionais contemporâneas 2012/2

56

de 2012, e rivaliza com o projeto turco-alemão Nabucco, cujo objetivo é

trazer o gás azerbaijano à Europa, para amenizar a dependência

energética que a UE tem da Rússia. Entretanto, as fontes do Azerbaijão

têm capacidade duvidosa e põem em questão o custo-benefício do

projeto. O Turcomenistão é visado como o principal fornecedor

complementar ao Azerbaijão. Entretanto, para conectar o sistema ao

território turcomeno seria necessário atravessar o Mar Cáspio ou usar o

sistema existente entre Irã e Turcomenistão. A primeira ideia é

improvável, pois as águas do Mar Cáspio são disputadas pelos países que

ali têm fronteira, incluindo a Rússia; a segunda possibilidade requereria a

aproximação com o Irã (gerando desgaste com os Estados Unidos) ou a

defesa da mudança no governo iraniano. Importa destacar que,

recentemente, a empresa alemã RWE vendeu suas ações no projeto

Nabucco para uma empresa austríaca. Paralelamente, as obras do South

Stream já foram iniciadas. Em conjunto, os fatos podem significar o

alinhamento de ideias entre a Alemanha, antes o maior defensor do

Nabucco, e a Rússia, que sai beneficiada da disputa. Além disso, cabe

ressaltar que o gasoduto gêmeo Nord Stream vem a corroborar a hipótese

de cooperação russo-alemã, uma vez que o projeto conecta diretamente os

dois países.

Quanto aos projetos existentes na parte asiática do país, as

discussões em torno das versões competidoras da Nova Rota da Seda têm

central importância para o rumo da Ásia e da posição da Rússia no século

XXI. O país tem o plano de fazer a Rota passar integralmente por seu

território, tornando-se a artéria do continente — conectando a costa do

Pacífico à Europa — e deixando a China à margem do trajeto. Para tanto,

é necessário o desenvolvimento dos distritos da Sibéria e do Extremo

Oriente, que fortaleceriam a posição da Rússia na região Ásia-Pacífico,

inserindo-a no redimensionamento político-econômico pelo qual o globo

passa nesse início de século.

Apesar de seu potencial em hidrocarbonetos, minérios e água, o leste

do país é muito pobre, encontrando uma série de obstáculos ao seu

desenvolvimento, como a corrupção do funcionalismo público, que

desfavorece novos investimentos. Além disso, o país como um todo,

desde o fim da Era soviética, apresentou um declínio demográfico

acentuado causado pela deterioração das condições socioeconômicas da

população. Diante destes problemas e da insuficiência de capital, à

Page 63: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança da Rússia

57

primeira vista investimentos chineses seriam bem-vindos para a

industrialização e desenvolvimento da infraestrutura regional. No entanto,

o problema no leste é mais complexo, visto que a região já é

historicamente pouco povoada e contrasta-se com o gigante demográfico

chinês, ameaçador aos olhos russos devido à migração chinesa já

existente na fronteira.

Apesar de todos os desafios do leste, o maior deles é o posto pelo

derretimento do permafrost — solo permanentemente congelado —,

cujas previsões matemáticas apontam até 2050 em uma redução de 13% a

29% deste (SMITH, 2011). Uma vez que dois terços do território russo

estão sobre o permafrost, os riscos subjacentes às mudanças climáticas

dizem respeito ao comprometimento de toda a rede de infraestrutura do

território russo, e, como decorrência disso, o fim da conexão Leste-

Oeste9. Analisar o derretimento do permafrost, por sua vez, não significa

afirmar que até o final do século XXI o território russo afundará. A

construção civil demonstra avanços importantes na área de construção

sobre este tipo de solo, mas com um custo muito elevado, como se vê na

ferrovia chinesa Qinghai-Tibet. Uma vez que a Rússia não detém capital

suficiente para financiar o desenvolvimento da Sibéria e enfrentar o

desafio do permafrost, será necessário o investimento estrangeiro, sendo

a escolha do parceiro fundamental para o futuro do país.

Se por um lado as mudanças climáticas trazem um desafio, há um

reverso através dos ganhos econômicos e regionais que a Rússia

possivelmente adquiriria com o degelo do Oceano Ártico. O potencial

deste em reservas de gás natural pode significar à Rússia o domínio de

três quartos de toda a produção mundial (YENIKEYEFF & KRYSIEK,

2007). Ainda mais relevante vem a ser a abertura da Rota do Mar do

Norte durante alguns meses do ano e a possibilidade de conexão

hidroviária entre o interior do país e o Oceano Ártico graças à abertura

dos rios siberianos à navegação (ANTRIM, 2010). Em especial, destaca-

se a oportunidade única em toda a história russa de, através do Oceano

Ártico, alcançar os mares quentes, evento que significaria o aumento em

importância da Região do Báltico em relação ao Mar Negro.

A principal decorrência das mudanças climáticas e das

9 Isto é, com o derretimento, “o terreno cede, as estradas vergam e os alicerces racham.

Os oleodutos e trilhos de trem [tornam-se] torcidos e ondulados, quando deveriam ser

retos” (SMITH, 2011: 138).

Page 64: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Relações internacionais contemporâneas 2012/2

58

comunicações pelo Ártico seria o surgimento do que Laurence Smith

(2011) denomina NORCs — Países do Anel Setentrional10

—, grupo

composto por Noruega, Suécia, Finlândia, Dinamarca, Islândia, Rússia,

Canadá e EUA. Atualmente esses países já respondem por um PIB de

US$ 20,7 trilhões, o que perfaz 29,5% do PIB mundial em números de

2012 (EUA, 2013a)11

. Para efeitos de comparação deve ter-se presente

que a UE responde por 22,43% (US$ 15,7 trilhões) e os BRICS por 19%

(US$ 13,32 trilhões) do PIB mundial, segundo dados de 2011.

1.4. Segurança e Defesa

O documento que rege a atual política securitária da Federação

Russa é sua Doutrina Militar de 2010, adotada durante a presidência de

Dmitri Medvedev. Diferentemente dos documentos securitários

anteriores, este apresenta um caráter mais brando em relação aos Estados

Unidos, embora os perigos militares à Rússia ainda estejam ligados ao

bloco ocidental, com destaque às ameaças globalizantes da OTAN, em

clara referência à expansão do bloco para países como Geórgia e Ucrânia

(HAAS, 2011). No que diz respeito à Doutrina Nuclear, a política

securitária russa continua voltada para a manutenção de suas capacidades

estratégicas e de um poder de dissuasão nuclear elevado. O que mais se

destaca é o fim do princípio de não realização do primeiro ataque nuclear,

ou seja, a Rússia agora se permite utilizar as armas nucleares em resposta

a possíveis ataques de armas de destruição em massa ou mesmo a ataques

com armas convencionais (RÚSSIA, 2010)12

.

Destaca-se a existência de um escudo antimíssil a serviço do bloco

ocidental, o qual põe em risco a capacidade de dissuasão nuclear russa e

sua própria existência enquanto Grande Potência. O escudo antimíssil, ou

10 Do original em inglês: Northern Rim Countries. 11 PIB dos NORCs: Noruega: US$ 278,1 bilhões; Suécia: US$ 395,8 bilhões; Finlândia:

US$ 198,1 bilhões; Dinamarca: US$ 208,5 bilhões; Islândia: US$ 12,95 bilhões; Rússia:

US$ 2.509 bilhões; Canadá: US$ 1.446 bilhões; EUA: US$ 15.660 bilhões (EUA,

2013a). 12 A possibilidade de uso de armas nucleares como ataque preventivo, algo rumorizado

antes do lançamento da Doutrina em 2010, é silenciada na própria, muito embora em

conjunto à aprovação da Doutrina Militar em 2010 também tenham sido aprovados os

“Principles of State Nuclear Deterrence Policy to 2020” que, em razão de serem

mantidos em segredo, podem conter a cláusula de ataque preventivo (HAAS, 2011).

Page 65: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança da Rússia

59

National Missile Defense (NMD), é uma continuidade da Strategic

Defense Initiative (SDI), proposta pela administração Reagan em 1983.

Seu desenvolvimento significou o rompimento do equilíbrio de

vulnerabilidades mantido até então pela doutrina MAD (do inglês,

Destruição Mútua Assegurada), e pelo Tratado ABM de 1972, com o

objetivo claro de, através da primazia nuclear, tornar a vitória na guerra

termonuclear possível (PICCOLLI, 2012). Apesar de a SDI ter sido

renomeada como NMD em 1999, é somente na administração Bush, após

os atentados de 11/09, que ela começa a ser de fato desenvolvida, sob a

justificativa de contenção do Eixo do Mal (Irã, Iraque e Coreia do Norte),

os quais supostamente estariam fortalecendo suas capacidades

missilísticas a favor do terrorismo internacional. Ainda em 2001, o

governo iniciou o desenvolvimento do projeto para a Europa, que seria

baseado na instalação de 10 bases terrestres com mísseis interceptadores

na Polônia e um radar na República Tcheca, com o suposto objetivo de

conter os mísseis iranianos, embora a capacidade de alcance destes seja

relativamente curta em relação à Europa (PICCOLLI, 2012).

Enquanto a política de Bush era direcionada à primazia nuclear, a

administração Obama modificou linhas centrais do projeto. Em 2009,

adotou o EPAA (European Phased Adpative Approach), o qual estabelece

que seria a Europa, e não mais os Estados Unidos, quem arcaria com os

custos do escudo. Além disso, durante a Cúpula de Lisboa em 2010, o

projeto passou a ser desenvolvido no âmbito da OTAN (BBC, 2010). O

projeto de Obama se baseia no emprego de sistemas Aegis embarcados

em cruzadores Ticonderoga e destróieres Arleigh Burke, e interceptadores

RIM-161 como principal vetor terrestre (BBC, 2012; PICCOLLI, 2012;

THE ECONOMIST, 2012). Até o final de 2012, a maior parte dos cascos

ainda não tinha o sistema RIM-161 capaz de interceptar os mísseis, e a

própria utilização de navios deixa entender que o sistema não será

operacional a toda hora. O escudo antimíssil “passou a andar em passo de

tartaruga” (PICCOLLI, 2012: 31) e, a princípio, as mudanças adotadas

deixam uma lacuna para que a Rússia desenvolva suas capacidades e

possa superar o bloqueio missilístico13

.

13 A crise econômica torna duvidosa a capacidade e a intenção da Europa em financiar o

projeto, sem mencionar o fato que, para a Rússia, as negociações com a Europa são

muito mais fáceis e não carregam consigo todo o peso em se negociar com os Estados

Unidos (PICCOLLI, 2012).

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

60

Frente ao escudo antimíssil europeu, a Rússia respondeu de diversas

formas, algumas mais consistentes e sustentáveis e outras de certa

maneira tomadas por um sentimento de urgência. Primeiramente, houve

um aumento nos gastos de defesa, indo de cerca de pouco mais de 20

bilhões de dólares em 1999 para mais de 60 bilhões hoje em dia14

.

Entretanto, a principal resposta russa seria a criação de uma nova classe

de submarinos, Borei, e de mísseis balísticos intercontinentais lançados

de submarinos, os Bulava (versão para submarinos da classe Topol-M).

Essa seria uma boa e sustentável estratégia à Rússia, visto que com tais

mísseis Moscou poderia manter sua capacidade de segundo ataque

através de submarinos lançadores de mísseis das próprias águas russas.

Outras medidas tomadas, envoltas em um sentimento de urgência e com

certa precariedade de cálculo, envolvem a criação de mísseis balísticos

intercontinentais de combustível líquido — uma tecnologia instável, cara

e de difícil manuseio —, que viria a substituir os mísseis SS-18 (Satan).

Estes, no longo prazo, poderiam pesar no orçamento militar russo, visto

que seriam de valor mais elevado que os mísseis Bulava (PICCOLLI,

2012).

Aqui vale destacar que as forças estratégicas russas estão

concentradas em mísseis balísticos intercontinentais terrestres (ICBMs),

estando quase metade das ogivas estratégicas totais — 1087 — neles

localizados. Cerca de 70% dessas forças terrestres são mais antigas,

sendo grande parte constituída pelos SS-18 — os quais juntos somam

metade das ogivas estratégicas localizadas em ICBMs, visto que cada um

carrega 10 ogivas. Os 28% restantes das forças estratégicas terrestres já

foram modernizados, substituídos pelos mísseis Topol-M (uma ogiva), e

Yars (seis ogivas). Em submarinos, a Rússia possui 528 ogivas

estratégicas, dentro de 6 submarinos Delta IV e 3 submarinos Delta III, os

quais são antigos e estão sendo substituídos pelos Borei — cuja 3ª

unidade está entrando em uso. São os Borei que receberiam os ICBMs

marinhos — SSBMs —, capazes de perpassar o escudo de forma mais

barata que possíveis novos ICBMs terrestres de combustível líquido. Por

fim, cerca de 820 ogivas estratégicas estão em bombardeiros, 59 Tu-95 e

13 Tu-160 (KRISTENSEN & NORRIS, 2012). Porém, esses teriam suas

14 Nota-se que em 2011 a Rússia era o 5º país em gastos militares em números absolutos, e

em 2012, com um aumento no orçamento, alcançou a 3ª posição no ranking mundial.

Page 67: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança da Rússia

61

capacidades anuladas pelo escudo antimíssil15

.

Sob a mesma visão de modernizar suas capacidades estratégicas e de

garantir o controle do espaço, a Rússia construiu seu sistema de satélites

de cobertura mundial, o GLONASS, que é composto de 24 satélites e

operante desde 2011. O GLONASS possui como principal função militar

a orientação e guiagem das armas estratégicas. Em 2011, com a criação

das Forças de Defesa Aeroespaciais, colocaram-se sob o mesmo ramo das

Forças Armadas o controle do espaço e as forças estratégicas russas,

demonstrando a simbiose necessária entre essas duas áreas para a defesa

da Rússia.

No que diz respeito às capacidades convencionais, desde 2008 são

empreendidas reformas militares com intuito de modernizar as Forças

Armadas russas. Essas reformas deram-se pela redução do tamanho do

exército, visto que as unidades foram todas substituídas por brigadas

sempre prontas para o combate. As capacidades terrestres também

decaíram, principalmente os tanques16

. Quanto às capacidades navais

russas, destaca-se a presença de um navio aeródromo (NAe 063), o

Almirante Kuznetsov, já de idade avançada. No que tange às capacidades

aéreas, a Rússia possui o segundo maior número de caças de quarta-

geração, como o Su-35, bem como o segundo maior número de

helicópteros de combate, atrás apenas dos EUA em ambas as categorias.

Destaca-se o processo de desenvolvimento dos caças russos de quinta

geração: o Sukhoi T-50 PAK FA, munido de tecnologia stealth (IISS,

2012).

Apesar de Moscou somar esforços para modernizar suas forças

convencionais em direção à guerra moderna, parece bastante claro que

apresenta uma ambiguidade: busca manter e modernizar,

15 Nota-se a importância das armas estratégicas para a Rússia tanto por uma questão de

sobrevivência do Estado frente à ameaça do escudo europeu quanto para a manutenção

do status de Grande Potência, visto que são nessas capacidades que Moscou se baseia,

agora que suas capacidades convencionais estão enfraquecidas frente a outros países. A

mudança na doutrina militar russa que derrubou o princípio de evitar o primeiro ataque

nuclear demonstra o mesmo. 16 Na época da URSS os tanques de combate passavam de 50.000 unidades e agora

contabilizam pouco mais de 3.000. Isso está em consonância com a vontade de reforma

para guerra moderna, visto que esse grande número de capacidades convencionais era

algo do tempo soviético, quando a URSS estava preparada para travar longas guerras

em grandes extensões territoriais, exposta à intensa e contínua fricção.

Page 68: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Relações internacionais contemporâneas 2012/2

62

simultaneamente, suas capacidades estratégicas. Esse aspecto implica em

uma divisão do orçamento de defesa, fazendo com que mais recursos

venham a ser gastos em todos os planos de defesa. Isto impede a

possibilidade de investimentos em outras áreas necessárias ao

crescimento da Rússia, além de impossibilitar a conclusão de todos os

projetos ligados à segurança.

1.5. Rússia na transição tecnológica

A análise de alguns indicadores permite concluir que em termos de

transição tecnológica, a Rússia encontra-se atrasada em relação a outras

grandes potências, especialmente à China e aos EUA. Segundo o Battelle

Memorial Institute (2010), a Rússia é o 10º país com maiores gastos reais

absolutos em Pesquisa & Desenvolvimento. Em número de pedidos de

patente, o país fica apenas na 7ª posição mundial (WIPO, 2010).

Em termos de recursos minerais estratégicos, os russos possuem

destaque. Seu território abriga a segunda maior reserva de Terras Raras

do mundo, as quais, entretanto, são pouco exploradas e comercializadas

atualmente. Mesmo assim, possuem grande potencial de serem utilizadas

nas próximas décadas. Quanto aos metais importantes no processo de

transição tecnológica destaca-se, primeiramente, o silício, usado na

fabricação de semicondutores e metalurgia e com produção russa atual de

610 mil toneladas. Já o alumínio é de ainda maior importância, não só por

ser essencial para as indústrias aeronáutica e de defesa, mas

especialmente por ser a Rússia detentora da Rusal, maior empresa do

mundo na produção desse metal, com 4,7 milhões de toneladas

produzidas ao ano. Esta é também responsável por 9% da produção

mundial e já busca matéria-prima nos cinco continentes para suprir sua

demanda.

Quanto aos processadores, a Rússia fabrica o Elbrus, que hoje

funciona na velocidade de 300 MHz, enquanto o último processador da

IBM funciona à 5,5 GHz, o que mostra a defasagem russa em relação ao

desenvolvimento de alta tecnologia. Este fato nos leva a questionar se a

Rússia estaria seguindo os mesmo passos da URSS, uma vez que o

colapso desta pode ser atribuído ao não-desenvolvimento de tecnologia

de ponta. A Rússia também possuí um supercomputador, o Lomonosov,

Page 69: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança da Rússia

63

que, todavia, é montado nos EUA17

. Ainda como iniciativa de Medvedev

está a construção do Centro de Inovação de Skolkovo, uma espécie de

“Vale do Silício russo”, que aglutinará investimentos de grandes

empresas europeias (como a EADS, a Siemens e a SAP AG).

Recentemente ressalta-se a iniciativa de Putin de criar a Fundação Russa

para Projetos de Pesquisa Avançada em Defesa da Indústria (apelidada de

“DARPA russa”, em referência à organização similar de pesquisa militar

dos EUA). Tal iniciativa representa uma tentativa de envolver os

parceiros europeus de Skolkovo para cooperação militar e criação de um

clima de maior confiança com a Europa, além de ser fruto da percepção

de que a Rússia carece de um modelo de negócios e serviços no setor de

defesa, o qual é atualmente muito centralizado e pouco competitivo

(PICCOLLI, 2012).

Assim, através de uma análise do momento em que a Rússia

encontra-se em termos de transição tecnológica, nota-se que o atraso

russo é inegável e que isso pode prejudicar seu futuro de inserção no

cenário internacional. Porém, podemos perceber Skolkovo e a “DARPA

russa” como tentativas para superar essa defasagem tecnológica, notando

também que seu potencial de terras raras é ainda subutilizado.

2. SITUAÇÃO

O delimitador de situação é o novo governo de Vladimir Putin,

iniciado em 2012. Primeiramente, é necessário compreender por que não

ocorreu um segundo mandato de Dmitri Medvedev, fato que se explica

através da Cúpula de Lisboa (2010) entre OTAN e Rússia. Nela,

Medvedev propôs que fosse desenvolvido um sistema antimíssil conjunto

(EuroDAM), o que surpreendeu a OTAN. Apesar de promessas de

cooperação durante a Cúpula, meses depois a OTAN negou

categoricamente a possibilidade desta ideia ser realizada. Assim, o projeto

de política externa de Medvedev de aproximação com a Europa

fracassou, juntamente com sua popularidade no país. Essa perda de

popularidade culminou com a retirada de sua candidatura à reeleição.

17 Destaca-se que, em 2009, Medvedev lançou um programa para construir um

supercomputador inteiramente russo, com previsão de início da montagem em 2013,

mesmo não havendo ainda notícias da viabilidade do projeto.

Page 70: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Relações internacionais contemporâneas 2012/2

64

Com isso, Putin concorreu novamente, retornando à presidência em 2012.

Também se faz necessário abordar os recentes desenvolvimentos no

Oriente Médio, particularmente na Síria e no Irã, após o início da

Primavera Árabe. A Rússia deu relativo apoio à Síria durante certo tempo,

pelo fato da base naval russa de Tartus estar localizada em seu território,

sendo esta a única base que a Rússia ainda mantém fora da região da ex-

URSS. Soma-se a isso a possibilidade de uma eventual queda do atual

regime na Síria, com um consequente avanço dos interesses anglo-

franceses na região: um governo favorável à Inglaterra e à França poderia

fornecer petróleo à Europa diretamente pelo Mediterrâneo, prejudicando

as exportações russas de energia. Entretanto, no horizonte predizível de

eventos, Moscou não protegeria a Síria, uma vez que não é de seu

interesse nacional entrar em guerra por este país.

3. CENÁRIOS

Convencionou-se que o melhor cenário para Rússia seria o da

GeRússia, que consistiria de uma aproximação da Rússia com a

Alemanha, possibilitando um sistema de multipolaridade mais

equilibrada. Com um alto grau de aproximação, este cenário possibilitaria

a criação de um novo polo, equivalente a uma nova superpotência. Com

um nível menor de interação, a parceria inter-regional serviria para

atender às dificuldades de curto e médio prazo dos dois países.

A parceria com a Alemanha teria o papel de suprir a Rússia de

capital e tecnologia. Os investimentos alemães são cruciais no setor

energético, como é exemplificado pela participação alemã em 31% do

Nord Stream. Esses investimentos importam também para a transição

tecnológica e para a manutenção da infraestrutura de transportes. Este

último aspecto se torna particularmente relevante dados os problemas

decorrentes do degelo do permafrost. A parte alemã pode beneficiar-se da

interdependência complexa com a Rússia, adquirindo também maior peso

nas decisões acerca da Europa Leste, Oriente Médio e Ásia Central. Além

disso, para a Alemanha importa a disseminação de serviços bancários e

de telecomunicações.

Os aspectos críticos relacionados à possibilidade de configuração do

GeRússia parecem estar relacionados às dificuldades nas relações

bilaterais. Alemanha e Rússia possuem discursos diferentes: o da

Page 71: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança da Rússia

65

Alemanha, universalista, baseado na defesa dos direitos humanos; e o da

Rússia, de tom defensivo reativo utilitário (PICCOLLI, 2012: 52), mais

próximo ao realismo.

Apesar de suas dificuldades, o GeRússia permanece válido: os

problemas alemães no âmbito da UE — Entente Frugale e crise

econômica — a impelem em direção a parcerias inter-regionais. No longo

prazo, o principal benefício do GeRússia para a Rússia é a possibilidade

de que a estabilidade na Europa Leste, Cáucaso e Oriente Médio permita

a realocação de suas forças militares, hoje voltadas para a porção

ocidental do território russo, para então dar maior atenção às

vulnerabilidades da região siberiana.

Mesmo em caso de configuração de tal cenário, de parceria inter-

regional relativamente fluída, entende-se que ele dificilmente se

constituiria em uma união político-econômica. De qualquer modo,

mesmo uma aproximação limitada entre Rússia e Alemanha converge em

direção à multipolaridade no SI. Conforme George Friedman (2011: 156):

Mesmo que a relação [entre Alemanha e Rússia] possa ser

informal no início, ela irá solidificar-se em algo mais

substancial ao longo do tempo, simplesmente porque as partes

se encaixam bem demais para que ocorra de outro modo. Esta

seria uma redefinição histórica das relações EUA-Europa, uma

mudança fundamental não só na balança de poder regional,

mas também na global, com resultados que são altamente

imprevisíveis18

.

Nesta modelagem, considerou-se que o pior cenário para a Rússia

seria o do predomínio dos NORCs e o estabelecimento de uma

unipolaridade. Este cenário representaria o fracasso de qualquer projeto

nacional russo. Os danos decorrentes do derretimento do permafrost

seriam alarmantes para a Rússia. A condição de unipolaridade se deveria

à conjugação da força centrípeta da economia dos NORCs enquanto

bloco, associada ao efeito multiplicador de uma hegemonia, na qual os

18 No original: “However informal the relationship might be at the beginning, it will

solidify into something more substantial over time, because the parts simply fit together

too neatly for it to be otherwise. This would be a historic redefinition of U.S.-European

relations, a fundamental shift not only in the regional but also in the global balance of

power, with outcomes that are highly unpredictable”.

Page 72: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Relações internacionais contemporâneas 2012/2

66

EUA não possuiriam competidores. A parceria com a Alemanha não se

realizaria ou, frente às novas dificuldades, tornar-se-ia insuficiente. A

região siberiana, isolada do resto do país pelo colapso da infraestrutura de

transportes, seria o principal problema de segurança. O bloqueio da

conexão desta região com o resto da Rússia, somado à pressão

demográfica chinesa, levariam o país a crer que está diante do risco de

perder parte significativa de seu território19

. Neste contexto, a OCX torna-

se nula como mecanismo de segurança, e os EUA, através dos NORCs,

convertem-se na única alternativa de segurança, com a Rússia sendo

incorporada na hegemonia norte-americana. Assim, o país passaria a atuar

como um gendarme do capital estadunidense em sua periferia, enquanto

abasteceria os EUA com energia.

Por fim, convencionou-se como cenário intermediário a hipótese da

manutenção da indefinição sobre o tipo de equilíbrio dominante no SI —

se unipolar, bipolar ou multipolar. Neste caso, a OCX se converteria em

uma aliança militar formal, sobretudo em virtude de dois fatores.

Primeiro, fazer frente à primazia nuclear estadunidense — reforçado pelo

fracasso russo no desenvolvimento do míssil Bulava, da qual depende a

capacidade de segundo ataque do país — e ao escudo antimíssil na

Europa Leste e no Japão. Depois, devido à percepção de ameaça iminente

aos interesses da Rússia na Síria20

, Geórgia e Irã, por parte de países-

membros da OTAN.

Conclusão

A Rússia é a mais longeva das Grandes Potências. Desde sua

ascensão em 1721, após a Grande Guerra do Norte, a Rússia atravessou

19 A Sibéria, enquanto região, responde por 58% do território russo. 20 O que poderia vir a acontecer, caso o regime sírio caísse, seria a Rússia responder em

outro lugar mais tarde, conforme já fez em outras ocasiões, como a Guerra da Geórgia

após ingerências na região dos Bálcãs — Bósnia e Kosovo. O local de possível resposta

poderia ser o Irã, que flerta para entrar tanto na OCX quanto na OTSC. É pouco

provável que a OCX faça do Irã um membro, mas a Rússia pode considerar a entrada

dele em sua aliança militar. Caso isso ocorresse e se o Irã viesse a fazer parte dessa

aliança, a Rússia poderia legitimamente desdobrar tropas no território iraniano, o que

lhe daria acesso ao Mar Índico e ao Golfo Pérsico.

Page 73: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança da Rússia

67

quatro “guerras mundiais”21

— além da Guerra Fria — três mudanças de

regime político e diversas alterações na polaridade do Sistema

Internacional, mantendo intacta sua condição. Além disso, suas

capacidades falam por si mesmo: detém a segunda posição mundial em

arsenal termonuclear, Força Terrestre, Força Aérea, e Comando do

Espaço (apenas depois dos EUA); além de ser o maior produtor mundial

de hidrocarbonetos e deter a maior reserva de gás natural e de petróleo do

mundo.

Por certo, a Rússia enfrenta graves problemas resultantes da

transição da era soviética e da mudança climática. Entretanto, cabe

lembrar que o país já atravessou vicissitudes antes: foi arrasado pelas

forças de Napoleão (1812) e Adolf Hitler (1941-45) e dilacerado pela

guerra civil (1918-21), conseguindo recuperar-se vigorosamente.

Contudo, pareceu recuperar-se mais rápido depois da guerra civil e da

invasão alemã do que da transição da era soviética. Em 1925, a Rússia já

era a maior Força Aérea e o maior Exército da Europa, no pós Segunda

Guerra ostentou por 25 anos os maiores índices de crescimento mundiais.

Esse não parece ser o caso atual.

Permanece incerta a inserção russa na transição tecnológica. Em

matéria de defesa, seus principais projetos ainda datam da era soviética,

ainda que tenha que se reconhecer que foram efetivados graças a sua

inserção na economia mundial. Os projetistas russos de processadores são

disputados avidamente pelo Vale do Silício. A Rússia está comprometida

no esforço de produzir supercomputadores — ainda que com êxito

limitado —, e seus softwares tem reconhecimento mundial. Todavia, a

Rússia tem demonstrado extrema dificuldade em empreender a produção

de superprocessadores. Isto tem comprometido a prototipação virtual,

com impacto considerável sobre a capacidade de produção civil, a gestão

do comando do espaço (três satélites GLONASS perdidos) e a guiagem

de armas (parece ser o caso do Bulava). Mesmo seu último litígio com os

EUA, envolvendo a elaboração de “listas negras” de personalidades e

empresas, tem como plano de fundo a produção de supercomputadores e,

portanto, a inserção favorável da Rússia na transição tecnológica. Caso se

21 Para efeitos deste trabalho, consideram-se como guerra mundial aquelas em que se

criam ou se desconstituem polos do Sistema Internacional. O texto refere-se: a Guerra

dos Sete Anos (1756-1763); as Guerras da Revolução Francesa (1792-1815); Primeira

Guerra Mundial (1914-1918); e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Page 74: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Relações internacionais contemporâneas 2012/2

68

considere o que o computador e a rede desempenham para a economia

hoje, na era digital (graças ao papel que desempenham os serviços

bancários e de telecomunicações), o mesmo papel que no fordismo

tiveram a siderurgia do aço e refino do petróleo, as dificuldades da Rússia

em matéria de tecnologia poderiam explicar, ao menos parcialmente, a

lentidão de sua recuperação. Naturalmente, o maior óbice com o qual a

Rússia ainda se depara é a guerra permanente e o terrorismo islâmico, que

podem estar associados à queda da taxa de natalidade: o país ainda não

teve um baby boom, que normalmente se sucede às grandes guerras ou

crises.

A despeito da vitória de Barack Obama nos EUA, as pressões

sistêmicas — dentre as quais se destaca o escudo antimísseis (DAM) —

tem impelido a Rússia em direção à China. A primeira viagem ao exterior

do recém-empossado presidente chinês, Xi Jinping, foi para a Rússia.

Nesta visita, os dois países retomaram a cooperação militar encerrada

desde 2008 (Guerra da Geórgia). Espera-se que em 2018, a China se

torne o principal destino das exportações de hidrocarbonetos da Rússia22

.

Em qualquer caso, como destaca Waltz, as alianças não constituem, por si

mesmas, polaridades. A aproximação entre Rússia e China não parece

ameaçar o processo de triangulação com os EUA. Pelo contrário, parece

refletir a reação desses países ao risco da primazia nuclear. Nem por isso,

entretanto, prenuncia-se a confrontação: o empenho dos três países na

recente crise coreana assim o atesta.

Fica em aberto saber qual será o comportamento da Rússia frente às

ações de países ocidentais feitas à revelia dos EUA, ou mediante seu

consentimento relutante. Este parece ser o caso da Líbia e, agora, da

Síria. Importa destacar que a Rússia tem fortalecido suas posições

militares no Mar Negro e no Mediterrâneo Leste — dispondo-se,

inclusive, a reconstruir a frota do Mediterrâneo (desfeita com o colapso

da URSS). Além disto, estudos futuros deverão monitorar a inserção da

Rússia na transição tecnológica — deve-se acompanhar o processo de

desenvolvimento de supercomputadores e superprocessadores —, além

do status específico dos programas missilísticos e aeroespaciais russos.

22 Em recentes conversas, Rússia e China demonstraram interesse em ampliar o fluxo de

petróleo através do oleoduto Sibéria Oriental-Oceano Pacífico, próximo da fronteira

chinesa (RIA NOVOSTI 2013, online). Isso é um possível indicador que corrobora a

configuração do cenário intermediário.

Page 75: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança da Rússia

69

Aqui, o destaque é a tecnologia hipersônica, que pode confrontar o

mundo com um impacto tão grande quanto aquele suscitado pelo

computador e a rede.

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Page 78: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

72

Capítulo 4

POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA

ÍNDIA

Angela Gallina Brandalise

Helena Marcon Terres

Júlia Simões Tocchetto

Livi Gerbase

Luiza Costa Lima Corrêa

Matheus Machado Hoscheidt

Pedro Felipe da Silva Alt

Introdução

O presente trabalho pretende analisar os principais aspectos da

Política Externa de Segurança (PES) da Índia, respondendo ao problema

de pesquisa — como se estrutura a PES da Índia — a partir da inter-

relação entre as variáveis História, Economia, Infraestrutura, Instituições

Políticas, Segurança e Defesa e Transição Tecnológica. Com isso em

mente, utilizamos o recurso da tipificação de uma dualidade como

ferramenta classificatória e compreensiva. Como hipóteses preliminares,

apontamos que 1) os polos da dualidade indiana são o Universalismo

Comunitário e o Chauvinismo Territorial. Enquanto o primeiro tipo ideal

está baseado na liderança pelo exemplo, no sincretismo e na atuação

como potência amigável; o Chauvinismo Territorial está baseado na

idealização de uma Civilização Hindu folclórica, discurso que possibilita

a atuação como potência territorial expansionista. E, também, 2) cremos

que, nos últimos anos há, na Índia, uma tendência de atuação de acordo

com os atributos do Universalismo Comunitário. Neste estudo, portanto,

pretendemos esboçar: 1) a dualidade que rege a ação indiana na sua PES;

2) possíveis variáveis explicativas dos padrões de oscilação do

comportamento indiano no espectro da dualidade; e, por fim, 3) as

tendências atuais de aproximação com os polos da dualidade.

A dualidade entre o Universalismo Comunitário e o Chauvinismo

Territorial se reflete na formação da identidade indiana e a dicotomia está

Page 79: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança da Índia

73

presente na construção social do indivíduo indiano. Assim, não podemos

afirmar que existe uma divisão entre um grupo social chauvinista e outro

universalista. Pode-se entender, contudo, a partir da conjuntura, qual

posição predominantemente se manifesta. É possível, ainda, relacionar a

dualidade com as diferentes plataformas políticas dos principais partidos

indianos.

Os dados gerais apresentados abaixo evidenciam importantes

aspectos sobre o país e procuram contribuir para avaliação da Política

Externa de Segurança (PES) indiana no cenário atual. A Índia localiza-se

no sul da Ásia, é banhada pelo Oceano Índico e faz fronteira com seis

países: Paquistão, China, Nepal, Butão, Bangladesh e Myanmar. A

população total é de 1,2 bilhões de habitantes, a segunda maior do

mundo, sendo que apenas 30% desta vive na zona urbana. O território do

país é o 7º maior, com 3,3 bilhões de km². Seu exército é o 3º maior do

mundo, com um efetivo de 1,155 milhões. O PIB nominal indiano, de

USD 1,8 trilhão em 2011, é o 10º maior, estando seu valor per capita de

USD 1.514, em 139º lugar no ranking mundial. Os serviços

correspondem a mais de metade do PIB (56,4%), a indústria representa

26,4% e a agricultura, 17,2%. O índice Gini1 de desigualdade de renda é

de 36,8. Seu IDH é baixo, valorando 0,547. A principal e majoritária

religião na Índia é o Hinduísmo (80%); seguida pelo islamismo (13%) e

pelas minorias cristã e sikh.

A Índia é um país em processo de modernização, que busca manter o

crescimento econômico e diminuir seus custos sociais por meio do

avanço no desenvolvimento humano. A natureza e a rapidez das

transformações que ocorrem na Índia são os desafios de uma potência

emergente. Pode-se dizer, portanto, que a Índia concentra, em um espaço

limitado e em tempo relativamente curto, as questões essenciais para um

mundo no qual novos países despontam como polos mundiais e o centro

de poder está se deslocando. Observar a engenharia não-física interna do

país para gerenciar essa realidade, portanto, importa para o Sul

econômico e mesmo para os países desenvolvidos, visto que a maioria da

população mundial habita países da semiperiferia ou periferia. A Índia é,

por fim, esse “microcosmos” que replica as condições mundiais e testa as

soluções para as grandes querelas da humanidade (KAMDAR, 2008).

1 O índice varia de 0, quando não há desigualdade, a 100, quando a desigualdade de renda

é extrema.

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

74

A atuação regional da Índia, por sua vez, também possui implicações

mundiais, dada sua importância no Oceano Índico. Tal oceano, de acordo

com Kaplan (2011), será o grande centro das transformações do Século

XXI, devido à sua nuclearização, às suas sociedades voláteis e à sua

importância comercial e energética.

1. HISTÓRIA

A Índia, como civilização tributária baseada no vale do Indo, teve

seu apogeu sob domínio Mogul e seu auge com o Imperador Akbar que

proporcionara unificação e prosperidade a partir de uma política de

sincretismo. Com o ocaso do Império Mogul e a fragilização do governo

central, o subcontinente tornou-se permeável à Companhia das Índias

Orientais, companhia marítima de comércio britânica que colonizou a

região a partir da costa. O Raj britânico manteve-se sob regime de

colonização direta de 1858 a 1947. A preocupação do Império britânico

com o controle direto e essencialmente estatal da colônia indiana deu-se a

partir à Revolta dos Cipaios, que pode ser considerada a primeira guerra

de independência2.

Durante a Segunda Guerra Mundial, floresceram sentimento

nacionalista e movimentos anticoloniais, os quais evidenciaram

deslealdade à Inglaterra. Um indicador do descontentamento indiano com

a coroa britânica é a formação de um grupo de dissidentes liderados por

Bose, que se autodenominou “Exército Nacional Indiano”. Tal grupo

lutou ao lado dos japoneses contra os britânicos na Birmânia3, território

de extrema importância para os Estados Unidos, já que era a única rota de

acesso à China. Apesar da vitória Aliada na Segunda Guerra, a Inglaterra

2 Os Cipaios eram funcionários da coroa os quais se rebelaram contra a exploração

britânica. Pode-se identificar a atuação da classe dominante local em tal movimento,

uma vez que buscavam retomar maior controle político na região. Podemos, assim,

reconhecê-la como uma Primeira Guerra de Independência, e possível princípio de um

movimento nacionalista indiano. 3 E lutavam também contra os próprios indianos os quais serviam o exército organizado

pela metrópole para lutar ao lado aliado na Segunda Guerra. As batalhas de Impal e

Kohima representaram uma vitória aliada, com destaque para a atuação indiana. Tais

batalhas proporcionaram orgulho à colônia tanto em função do desempenho indiano que

lutava ao lado aliado quanto pelo “Exército Nacional Indiano”.

Page 81: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança da Índia

75

viu-se sem condições de manter seu governo na colônia eficaz. Dá-se

início às negociações relativas à independência, nas quais a Inglaterra

eleva a posição da Liga Muçulmana pelo apoio recebido na guerra. Isso

concedeu à Liga um status sem precedentes, o que possibilitou a

fragmentação do antigo Raj em dois Estados independentes. Nasce,

assim, com a Índia, seu principal rival — o Paquistão. Durante o processo

de independência, crescem sentimentos religiosos extremistas, que

permeiam as interações atuais dos dois países e dificultam a cooperação

regional.

As guerras indo-paquistanesas do Século XX mostram que guerras

convencionais não foram capazes de definir a correlação de forças na

região, principalmente acerca da questão da Caxemira4. Outro importante

condicionamento histórico para a concepção indiana de força foi a Guerra

Sino-indiana de 1962, a qual resultou no entendimento distorcido de que

a China precisa ser vencida para que a Índia se estabeleça como uma

Grande Potência5.

Um primeiro sinal da integração regional, essencial para o

fortalecimento da Índia, verifica-se no acordo Simla, de 1971, firmado

com o Paquistão, como um início de conversas entre agentes locais para

resolverem suas questões. Tais iniciativas preconizam a criação da

SAARC em 1985 (Associação Sul-Asiática para Cooperação Regional).

2. ECONOMIA

A economia da Índia tem como caráter distintivo seu elevado

crescimento, evidente na primeira década deste século, com média de

7,13% de 2000 a 2011 — ainda que já apresentasse taxas razoáveis desde

a década de 1980. A Índia é o segundo país que mais cresceu entre as dez

maiores economias do mundo — perdendo apenas para a China. Importa

salientar que o crescimento ocorreu, principalmente, pelo aumento da

4 A guerra irregular-complexa que incide sobre a região não pode ser combatida com a

força, uma vez que o motor de tal tipo de guerra é o ódio, o qual se mantém após o

conflito e ainda incita movimentos separatistas (Clausewitz, 2003, p.30). 5 Além disso, resultou na percepção de que a derrota se deu em função da impossibilidade

de mobilização da força aérea indiana, o que explica o padrão atual de gastos militares.

Cabe salientar a utilização atual da compra militar como diplomacia dos meios de

pagamento.

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

76

formação bruta de capital fixo e não por um grande superávit de

exportações, uma vez que a Índia tem tido déficit comercial desde a

década de 1990. Assim, seu crescimento é pouco abalado por crises e

recessões globais. Evidência disso é o alto crescimento verificado em

20096, 5,9% (IMF, 2013; SCHATZMANN, 2010). A taxa de investimento

interno também é destacada, tendo sido de 29,5% do PIB em 2011, a 19ª

economia que mais investe (CIA, 2013). O investimento é extremamente

importante para consolidar as taxas de crescimento indianas e criar uma

base concreta para sua indústria e produção.

A partir da análise dos principais parceiros comerciais da Índia,

importa citar as intensas relações comerciais com a China (com a qual

tem déficit comercial no valor de 20% do total de seu déficit de

mercadorias, pois é a principal fonte de suas importações) e com o

Oriente Médio, principalmente os Emirados Árabes Unidos, de onde

advém seu abastecimento de petróleo (EXIM INDIA, 2013).7 Não existe

nenhum acordo de livre-comércio entre eles; têm ocorrido, todavia,

negociações para criar o maior bloco comercial do mundo, o RCEP

(Regional Comprehensive Economic Partnership), com 16 membros,

entre eles os gigantes industriais China, Japão e Coreia do Sul, outros

países da ASEAN, a Austrália e a Nova Zelândia (THE ECONOMIC

TIMES, 2013). A participação das exportações, em relação ao total

exportado, para o Oriente Médio e Norte da África cresceu de 2000 a

2011 (nove pontos percentuais) e decresceu para a Europa e,

principalmente, para a América do Norte (de 22% a 11%), demonstrando

uma mudança nos padrões de amizade e inimizade (DEA, 2012).

A partir da década de 2000, o PIB nominal deu um salto, devido à

maior onda de liberalização interna (maior privatização de empresas

estatais) e externa (redução acentuada das taxas de importação). A

economia só reagiu bem à abertura (lenta e gradual), pois já havia

consolidado boa parte de sua produção durante o período protecionista e

de intervencionismo estatal que vigorou desde a independência. A saída e

entrada de IED aumentaram significativamente, principalmente depois de

2006 (SCHATZMANN, 2010). Os fluxos de IED têm como principais

6 Ano em que muitas economias tiveram baixíssimos crescimentos ou mesmo recessões. 7 As relações econômicas com a China são assimétricas. As importações oriundas do país

são de manufaturados, enquanto as exportações para este são de, principalmente,

algodão e minerais. (THE ECONOMIST, 2013).

Page 83: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança da Índia

77

origens países que fazem triangulação do investimento, seguidos pelo

Japão com 8% e o Reino Unido, a Alemanha e a França somando 11%8

(DIPP, 2012). Metade do investimento indiano no exterior é concentrada

na Europa, praticamente 1/3 na Ásia e aproximadamente 12% na África

(PRADHAN, 2011). Seus investimentos são principalmente em fusões e

aquisições de grandes empresas em países desenvolvidos (os principais

acordos foram de metalurgias, telecomunicações, automotivo, geração de

energia, entre outros) (IPEA, 2012).

Há que se destacar, além do panorama da economia, um fenômeno

sociológico inter-relacionado tanto com o processo de industrialização

inicial indiano, quanto com o seu sucesso. A construção das capacidades

industriais da Índia deveu-se, em certa medida, à subcontratação e à

transnacionalização de capitais de países desenvolvidos. Esse sistema

implicava que a coordenação da “distribuição” de setores e

direcionamento do produto das empresas indianas estava centralizado no

país de origem da empresa que subcontratava, ou seja, no país exportador

de capital. Cabia à elite industrial indiana, nesse sistema, viabilizar

internamente condições burocráticas e materiais para a instalação das

empresas. Decisões centrais de gerenciamento da empresa e de

distribuição do mercado internacional eram, contudo, tomadas pela

empresa estrangeira. Pela característica do sistema de expansão

transacional de redes produtivas, o transbordamento do know-how e a

dinamização da economia nos países subcontratados gerou ambiente

favorável para o florescimento de empresas independentes do capital e

gerenciamento estrangeiro. Tais empresas sustentam novas elites que se

articulam como um novo grupo de pressão político, o qual apresenta nova

agenda para a política doméstica e externa. A nova agenda pode deverá

ser absorvida pela plataforma de partidos já estabelecidos ou engendrará

o surgimento de novas frentes na disputa pelo poder.

O caso das parcerias com o Japão elucida o fenômeno. Tanto Índia

quanto China se beneficiavam da associação com empresas japonesas,

que se expandiram transnacionalmente distribuindo as suas múltiplas

8 Esses fluxos são importantes, pois a entrada de IED tem sido para a infraestrutura e

construção civil, mas também se direcionarem para a indústria manufatureira e serviços.

(DIPP, 2012).

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

78

camadas de produção9. Essas empresas, que antes participavam da mesma

rede de produção na Índia e na China, mas eram “geridas” no Japão,

passaram a agir autonomamente e, muitas vezes, buscar novos mercados

em regiões que se sobrepõem geograficamente. Esse parece ser um dos

fatores que contribui para o acirramento da disputa pela influência no

Sudeste Asiático.

3. INFRAESTRUTURA

O setor energético é, sem dúvida, o mais preocupante para o

desenvolvimento da infraestrutura e da economia indiana. O melhor

exemplo é a sequência de blecautes que dificultam o desenvolvimento de

uma base industrial sólida. A importância da energia hidráulica muitas

vezes condiciona o fornecimento energético interno a períodos de

abundância ou escassez de chuvas. Independente da causa do problema,

entretanto, a ampliação das fontes energéticas é objeto de projetos

governamentais e empresariais (THE NEW YORK TIMES, 2013).

A construção conjunta de infraestrutura energética tem se mostrado

um bom indicador do padrão de alianças na região. Assim, em 23 de maio

de 2012, representantes dos governos turcomeno, afegão, paquistanês e

indiano assinaram acordo para realização do gasoduto TAPI

(Turcomenistão-Afeganistão-Paquistão-Índia), com mais de 1.600

quilômetros de extensão e orçado em R$7,6 bilhões (THE HINDU,

2013). O projeto recebeu forte apoio americano, especialmente por ser a

principal alternativa ao IPI (Irã-Paquistão-Índia), outro projeto de

gasoduto com proporção similar ao TAPI. O apoio americano vai ao

encontro da política de isolamento de Teerã e da estratégia de alienar a

tarefa de estabilizar o Afeganistão. As negociações para dar

prosseguimento ao IPI não parecem avançar, apesar de pressão iraniana

para dar continuidade ao projeto (THE EXPRESS TRIBUNE, 2013).

Independente da escolha ou não pelo IPI, a construção do TAPI já

9 Cabe apontar aqui, que pela extensão das linhas de subcontratação, nem sempre se pode

identificar nos dados oficiais acerca da economia a participação japonesa na

industrialização indiana. A característica do sistema permite que o capital ou associação

do Japão com empresas indianas, por exemplo, apareça como investimento advindo de

Cingapura ou Malásia.

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Política externa e de segurança da Índia

79

demonstra um maior grau de confiança e disposição cooperativa entre a

Índia, seu vizinho paquistanês e os EUA.

4. INSTITUIÇÕES POLÍTICAS

A República da Índia possui um regime parlamentarista bicameral

onde a Câmara Baixa, eleita diretamente, tem muito mais poderes do que

a Alta. O Presidente, ao contrário do Primeiro-Ministro e de seu gabinete,

é meramente formal e eleito de forma indireta, embora seja legalmente o

Comandante em Chefe e assine tratados mesmo antes de serem

ratificados pelo Parlamento. O Comando da Autoridade Nuclear é

majoritariamente civil e subordinado ao premiê, e o Gabinete pode

solicitar um Estado de Emergência, quando o Primeiro-Ministro governa

por decreto. A dualidade indiana reflete-se muito bem na política, opondo

os dois maiores partidos: Congresso Nacional Indiano (CNI) e Bharatiya

Janata Party (BJP), representando o Universalismo Comunitário e o

Chauvinismo Territorialista, respectivamente. No entanto, principalmente

através da lógica do “partido antissistema” e do uso massivo da mídia por

parte do BJP — além de Bollywood —, muitas vezes há um intercâmbio

pontual de características entre os dois lados da política10

. O CNI prioriza

o consenso e foi criado como um movimento de libertação nacional,

sendo confundido com a própria independência da Índia, além de ter

governado por maior parte de sua história. O BJP, por sua vez, foi o único

partido, excetuando-se o CNI, a conseguir consolidar uma maioria

parlamentar e completar o governo (1999-2004). Este possui um discurso

reacionário e defensor da hindutva11

.

A peculiaridade do sistema eleitoral indiano é a importância dos

partidos regionais. Oriundos da reforma constitucional de 1956 — o

10 Por exemplo, quando o CNI iniciou gradualmente a abertura econômica no início dos

anos 1990, ou, atualmente, ao aumentar a compra de artefatos militares. Cabe definir

aqui a estratégia denominada triangulação, utilizada pela situação que, para manter-se

no poder, incorpora em seus discursos a plataforma da oposição. 11 Hindutva é a corrente de pensamento (principalmente de revisionismo historiográfico)

que apresenta a Índia como uma nação fundamentalmente hindu, com um passado

civilizacional de glória, prosperidade e isolamento. Essa interpretação contamina o

sentimento anticolonialista com nacionalismo exacerbado terminando por suscitar

xenofobia, principalmente em relação aos muçulmanos (METCALF, 2006: 301).

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

80

chamado “Federalismo Linguístico”, que dividiu a Índia em províncias e

territórios de próprias culturas ou idiomas —, os partidos regionais têm

agendas muito específicas e, ao obter cadeiras no Parlamento, têm voz

nacional (LIJPHART, 1996). Estes partidos têm de ser cooptados pelas

alianças nacionais para maioria parlamentar, emperrando um projeto

nacional devido aos seus vetos de minoria. O apoio da elite indiana é

majoritariamente do CNI, principalmente pela manutenção de um

“estamento burocrático”12

e de práticas clientelistas. Tais práticas

perpetuam a corrupção endêmica que assola o partido. O histórico

político indiano nos permite observar que mudanças no partido central se

dão após campanhas que, de alguma forma, se fixaram fortemente na

questão moral. Atualmente, três escândalos são utilizados massivamente

pelo BJP como plataforma para as eleições de 2014: o Coalgate, o 3G

Telecom e, mais recentemente, os crimes sexuais ocorridos nos últimos

meses. No entanto, pesquisas apontam tendência de queda ou estagnação

de CNI e BJP, acompanhadas de ascensão de partidos regionais (GUHA,

2012). O Primeiro-Ministro é Manmohan Singh e o Presidente é Pranab

Mukherjee, ambos do CNI.

5. SEGURANÇA E DEFESA

O Livro Branco (INDIA, 2004) enfatiza os esforços internos

militares ainda necessários para a Índia em caso de confrontos. Apoiados

no histórico de guerras com Paquistão e China, a doutrina presente no

documento a necessidade de uma mudança estrutural nas Forças Armadas

a partir: 1) da melhoria da mobilização indiana, que demorou 27 dias para

se realizar na Operação Parakram; 2) da importância de melhor vigiar

suas fronteiras, que são vastas e porosas; 3) da percepção das forças

aéreas como de grande importância para a definição de uma guerra,

legado principal das guerras de 1962 e Kargil. A partir desses pontos

principais, é possível perceber que os grandes potenciais de conflito estão

definidos em China e Paquistão, ambos países nuclearizados. Em relação

à doutrina nuclear, sua posição é de “somente retaliação” (No First Use).

O Paquistão, por outro lado, afirma que responderia nuclearmente a um

12 Oriundo de uma lógica patrimonialista agrária, o estamento se caracteriza por conseguir

fazer seguir dentro da burocracia estatal as antigas lógicas de poder (FAORO, 2001).

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Política externa e de segurança da Índia

81

ataque convencional indiano, com o propósito de dissuadir as

capacidades extremamente superiores das Forças Armadas indianas

(FEDERATION OF AMERICAN SCIENTISTS — FAS, 2012). Com

relação às capacidades nucleares, o relatório de 2012 da FAS indica de 30

a 35 ogivas indianas, 30 a 55 paquistanesas e 145 chinesas.

É possível identificar a Dualidade nas estratégias indianas recentes a

partir das ações governamentais da última década. De um lado, o

Chauvinismo Territorial pode ser mais bem exemplificado através da

Doutrina Cold Start, uma doutrina que mistura mito com realidade, pois

nunca fora confirmada nem pelo BJP (suposto arquiteto da doutrina) nem

pelo CNI. De acordo com essa doutrina, a Índia responderia a um ataque

terrorista com inserções rápidas (de apenas 48 horas) e sistemáticas ao

território paquistanês, com uma mobilização de 72 horas. Essa doutrina

não propõe maneira de resolução do conflito Índia-Paquistão, mas sim

retaliação à Guerra Irregular Complexa paquistanesa. Em relação ao

Universalismo Comunitário, este propõe a melhora das relações bilaterais

com China e Paquistão, conquistada e sustentada em longo prazo. Para

isso, teria de existir um esforço consciente por parte do Estado visando o

projeto de desenvolvimento para a região de fronteira que integre as

populações locais ao arcabouço nacional através da presença estatal com:

infraestrutura de uso dual (militar e civil) nas áreas de risco, projetos de

infraestrutura em geral, incentivos à produção militar interna e programas

que fomentem o crescimento econômico. Estas ações criariam uma força

dissuasória que ponderariam tanto o uso de poder duro — presença

militar, construção de capacidades — quanto poder brando — melhora

dos índices de desenvolvimento humano, promoção do nacionalismo.

Iremos, agora, comparar a doutrina e a dualidade com uma rápida

exposição dos gastos militares e do inventário indiano. A Índia afirmou-se

nas últimas décadas como um dos líderes do Terceiro Mundo em

capacidades militares, podendo atualmente ser comparada a potências

militares tradicionais, como Grã-Bretanha e França. Como principais

triunfos do inventário tem-se a frota aérea, o porta-aviões (INSS Virat, de

28.700 toneladas), o maior exército voluntário do mundo e a iminente

tríade de sistema de entrega nuclear com o lançamento do INS Airhant,

de produção própria. Em relação aos seus principais rivais em potencial,

suas capacidades são muito inferiores à da China e muito superiores às do

Paquistão. Os principais investimentos indianos recentes vêm ocorrendo

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

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na Força Aérea, a partir da fabricação conjunta do avião de quarta

geração Sukhoi Su-S30MKI com a Rússia, e em compras multivetoriais,

visando estreitamento das relações com diversos países. Essa tentativa de

barganha dos meios de pagamento (VISENTINI, 2011) também se reflete

em outros setores militares: radares israelenses, treinamentos militares

com a China e o com IBAS, tanques e aviões russos, aviões

estadunidenses e europeus, entre outros. Esses esforços multilaterais são

importantes para a manutenção da Índia como potência regional e para a

consolidação da doutrina militar direcionada ao Universalismo

Comunitário.

Existem, contudo, entraves internos à consolidação de uma política

externa de segurança que tenda ao Universalismo Comunitário. O mais

importante é a falta de investimento em P&D militar e produção nacional

de inventário (e na manutenção do inventário existente) cujo resultado é

ainda incerto (o avião Tejas e o tanque Arjun são os melhores exemplos).

Essas debilidades das Forças Armadas podem fazer as decisões

estratégicas penderem para o lado dos ataques rápidos, como os propostos

pela Doutrina Cold Start. Os líderes políticos, no entanto, já perceberam a

necessidade de aumentar a produção interna e estão propondo esforços de

modernização (INDIAN DEPARTMENT OF DEFENCE, 2011).

6. TRANSIÇÃO TECNOLÓGICA

A Índia é internacionalmente reconhecida como país inovador líder

na produção de Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC). No

quesito posse de recursos naturais, embora a Índia possua a 5ª maior

reserva mundial de terras raras, isso pouco representa na condição

extremamente concentrada de distribuição desse composto pelo mundo (a

China possui 98% de todas as reservas). A atual política chinesa de

restrição das exportações, no entanto, ao subir o preço internacional das

terras raras, viabilizou a exploração de algumas reservas na Índia. Além

de terras raras, a Índia possui poucas ou inviáveis reservas dos outros

minérios e compostos estratégicos. Apesar de tardiamente ter reconhecido

a importância da questão, o governo indiano, no último plano quinquenal,

criou um grupo de estudos acerca do tema. O grupo destacou os minerais

estratégicos dos quais a Índia é dependente de importações e apontou

possíveis relações bilaterais que devem ser fortalecidas para que o

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Política externa e de segurança da Índia

83

fornecimento dos minérios seja assegurado. Destacam-se, nesse contexto,

a importância das relações com os países vizinhos e com a África13

. A

Índia se destaca na produção de alumínio. Atualmente é a quinta

produtora mundial de óxido de alumínio e pretende expandir sua

produção para chegar ao terceiro lugar em 2015 (SATCHITANANDA,

2012).

Nas análises dos índices utilizados para mensurar as capacidades de

produção de alta tecnologia e do capital humano indiano, o país se

destacou quando comparado com países da região e do Sul econômico

(excetuando-se a China), mas tem desempenho baixo quando equiparada

com países que tradicionalmente detém esses conhecimentos (EUA,

Japão, UE). Onde está, então, a posição internacional de vantagem

tecnológica indiana que o senso comum atesta? O vale do silício indiano

existe. A cidade de Bangalore está entre as dez cidades do mundo mais

atrativas para empreendimentos e concentra as empresas que lideram o

setor de tecnologia da informação e comunicação na Índia e no mundo,

tendo um PIB que cresce 10,3% ao ano (THE ECONOMIC TIMES,

2012). Os indianos, portanto, inovam, mas em um setor específico,

descolado do resto da economia do país e, mais importante, dentro de

empresas estrangeiras. O aumento da subcontratação, no entanto, é tão

grande que certos autores (NIRMALAYA KUMAR, 2012) afirmam que,

cedo ou tarde, as grandes empresas como a IBM terão diretores indianos,

e essa capacitação interna às empresas se tornará um ativo baseado em

conhecimento a serviço do país. Em suma, a Índia pode estar pronta para

a transição tecnológica, mas só usufruirá dela plenamente se conseguir

que a dinâmica desses setores-ilha de alta tecnologia transborde para toda

a economia e se transformem em capacidades a serviço do Estado e do

povo indiano.

7. SITUAÇÃO E CONJUNTURA

O marco de Situação aqui utilizado são as eleições para a Câmara

Baixa de 2009. Nessas eleições, o Partido do Congresso confirmou a

reeleição e o apoio popular a seu projeto para Índia. O BJP manteve-se

13 Fosforite e Carvão Metalúrgico (Bangladesh e Nepal) e Cobalto (Congo, Zaire, África

do Sul) (GOVERNMENT OF INDIA, 2012

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

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como principal oposição dentro da câmara. Ocorreu, portanto, a

conquista, pelo Partido do Congresso, de maioria confortável e

marginalização relativa do BJP. Em relação ao cenário externo, cabe fazer

uma breve análise das relações bilaterais e multilaterais indianas que

permitem a identificação de tendências na PES. Para tal, estruturamos

nossa apreciação a partir da classificação das Ordens Securitárias de

Beukel (2008). A Primeira Ordem Securitária compreende as relações

Estados Unidos-Índia. Os EUA ainda enxergam a Índia como principal

candidato ao “buckpassing” na região, seja tanto para permanecer como

contrabalanceadora do controle chinês na Ásia (CLINTON, 2011: 56-63),

quanto desempenhar possível papel estabilizador no Sul da Ásia e na Ásia

Central.14

Contudo, a Índia mantém seu discurso de não-alinhamento

aproximando-se, por exemplo, do Irã em projetos energéticos e de

infraestrutura. Na Segunda Ordem Securitária, as relações analisadas são

Índia-Paquistão e Índia-China, relações que definem, em grande parte, a

estabilidade na Ásia. No que toca o Paquistão, as relações, embora

tenham melhorado significativamente, avançam em aspectos não

controversos, visto que os dois países dependem, de certa forma, da

existência do inimigo externo para a manutenção da integração nacional.

Pode-se conjecturar que, num contexto de avanço na integração regional

(SAARC), os problemas dos dois países seriam relegados a segundo

plano, na medida em que um projeto de desenvolvimento conjunto se

viabilizasse. No que toca as relações sino-indianas há a possibilidade de

hostilidade ou do estabelecimento de uma rivalidade amigável. Tanto o

projeto indiano quanto o chinês de estabelecimento como Grande

Potência, quando interpretados pelos países pela perspectiva

essencialmente territorialista, esbarram na soberania um do outro, e

alimentam as hostilidades dessa relação bilateral. Já sob a óptica que

percebe a posição de Grandes Potências emergentes como importante ao

equilíbrio internacional, o papel de estabilização da região se desvela

essencial e a colaboração torna-se necessária e, conforme os esforços dos

dois países para a criação de confiança mútua, possível.

Recentes episódios15

indicam maior comprometimento da Índia com

14 Além disso, a partir do apoio ao projeto TAPI, evidencia-se a tentativa norte-americana

de passar à Índia a função de estabilizar o Afeganistão com sua retirada do país. 15 Em quatro de dezembro de 2012, o Vietnã denuncia a ação de navios pesqueiros

chineses nas ilhas disputadas no Mar do Sul da China, Segundo a acusação, os navios

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Política externa e de segurança da Índia

85

o Sudeste Asiático. A natureza dos episódios desvela uma estratégia

territorialista de expansão para essa região, que se direciona, ao que tudo

indica, à confrontação com a China. Tais atitudes podem suscitar um

escalonamento da tensão entre os países e deflagrar grave conflito. A

posição da Índia é arriscada, na medida em que ela disputa uma região

que já é de grande controvérsia entre os países do Sudeste Asiático. Essa

parece, no entanto, ser a forma indiana de sustentar a política de “Olhar

para o Leste”16

. O reforço dessa política pode ser relacionado com o

surgimento da nova burguesia indiana, a qual detém, atualmente, posição

de comando de suas empresas e direciona, de certa forma, o país para a

busca de mercados no Sudeste Asiático. A Índia, ao manter tal política,

também desempenha o papel de contrabalança regional almejado pelos

EUA. Não há garantia, no entanto, de que a execução dessa função

indique um comprometimento incondicional estadunidense com os

interesses da Índia na região. Um conflito direto com a China não parece

ser um cenário interessante aos EUA e, caso as pretensões indianas

extrapolem o limite tênue entre a contrabalança e a confrontação, a Índia

corre o risco de se encontrar desamparada. Os setores de direita (centro

nacionalista hindutva), no entanto, parecem estar dispostos a arriscar a

estabilidade na região, caso isso mantenha os EUA do lado indiano,

mesmo que em médio prazo.

A possibilidade do alinhamento indo-estadunidense torna-se mais

crível no cenário atual devido a um fenômeno que pode ser caracterizado

como a erosão dos princípios da Conferência de Bandung. A vocação

indiana para o não-alinhamento, para a associação com os países do sul e

perseguição de uma via nacional-socialista de desenvolvimento, arrefeceu

na medida em que esse país se consolidava como uma Grande Potência.17

teriam cortado cabos de embarcações vietnamitas que faziam pesquisas sísmicas na

região. A Índia afirmou, após o ocorrido, estar comprometida militarmente com a

proteção do direito de extração de petróleo nas ilhas detido pela estatal indiana e por

uma empresa vietnamita. O chefe da marinha indiana, almirante D.K.Joshi, declarou

que a força indiana tem a obrigação de defender os interesses soberanos da Índia caso

estejam ameaçados e que está disposto e preparado para intervir na região 16 Enunciada pelo primeiro ministro Narashimha Rao (1991) a política de Look East

representa um esforço indiano para o cultivo de relações econômicas e estratégicas com

o Sudeste Asiático a fim de beneficiar-se com o crescimento da região e, além disso,

contrabalançar a influencia da China. 17 Enquanto o país cresce economicamente e começa a agir como uma potência os novos

desafios que surgem no horizonte não necessariamente mantém o clima de solidariedade

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

86

As questões relacionadas ao passado colonialista e à necessidade de

construção da unidade nacional parecem ter sido resolvidas mais ou

menos satisfatoriamente pelos “ex- não-alinhados”. Dentro desse novo

momento de desenvolvimento indiano é que se estabelecem dilemas para

a formulação da PES, dentre os quais podemos salientar. (i) o fim do

sistema de subcontratação japonês18

; (ii) a força centrípeta do mercado

estadunidense, que, pela sua robustez e disponibilidade de créditos para

importação, facilita a busca por parte das novas empresas nacionais

indianas de um destino à sua produção, o que condiciona a PES à posição

favorável a maior alinhamento com os EUA; (iii) o novo mercado

africano, uma nova fronteira de competição entre Índia e China, que,

diferentemente do Sudeste Asiático ou Ásia Central, não pertenceu

historicamente à esfera de influência de nenhum dos dois países.

Tais fatores constrangem as forças políticas internas a procurarem

novas formas de interação no cenário internacional. O BJP sustenta a

agenda de liberalização e relacionamento mais estreito com as potências

tradicionais e o Partido do Congresso, se quiser continuar sendo o partido

que viabiliza uma política nacional integrada e um plano de

desenvolvimento de longo prazo, terá que lidar com atitudes que

acomodem o país na sua nova posição. Há possibilidade de uma transição

mais atenuada da política externa indiana, que se processa de forma mais

lenta, porém não rompe com os laços tradicionais e importantes com os

países da periferia e semi-periferia. A opinião pública, no entanto, parece

não estar plenamente ciente da necessidade do estabelecimento indiano

como “potência amigável” e pressiona os formuladores a soluções mais

drásticas. Por esse motivo, parece viável que o Partido do Congresso seja

condescendente com atitudes territorialistas. Mesmo percebendo o risco

do enfrentamento, talvez a experiência seja necessária para que se

dissolva a ideia de solução através da força (que seria rápida e efetiva,

hipoteticamente) para problemas que essencialmente tratam de política e

da construção intrincada de uma PES condizente com a atual posição

indiana. Essa estratégia de aceitação da perspectiva Chauvinista é uma

e cooperação que existia quando os países emergentes ainda processavam suas

revoluções nacionais. 18 Como já abordado, mantinha as empresas subcontratadas num esquema garantido de

oferta e demanda que se desfez e pôs em competição fornecedores dos mesmos serviços

e produtos.

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Política externa e de segurança da Índia

87

solução contingencial para a manutenção de governabilidade e

estabilidade interna. Contingencial, pois ainda percebe-se — através da

iniciativa do Partido do Congresso de criar um programa de

redistribuição de renda unificado e eficaz, por exemplo — que a

perspectiva do Universalismo Comunitário permanece vigente.

Por não ser um projeto estatal plenamente articulado e

autoconsciente, no entanto, o Universalismo Comunitário avança sob

constantes percalços. Os crimes sexuais recorrentes19

, os quais provocam

a mobilização nacional e, mais recentemente, internacional, são uma

amostra dessas dificuldades. Os acontecimentos chamam a atenção do

país e da opinião pública internacional a se questionarem acerca das

incongruências da modernização indiana, que, apesar de sustentar índices

altos de crescimento econômico e uma melhora relativamente

significativa nos índices de desenvolvimento, ainda mantém regras de

conduta antiquadas e julgamentos morais que atentam à dignidade

humana. O desempenho da burocracia e lideranças indianas, no entanto,

não tem se mostrado satisfatório para solucionar essas importantes

questões internas20

. A resolução dessas questões é pre-requisito para o

desempenho legítimo da liderança através do exemplo, tanto na região,

quanto no âmbito internacional.

8. CENÁRIOS

A análise dos elementos estruturais, situacionais e conjunturais nos

permite especular acerca de três cenários possíveis para o futuro da PES

indiana. O exercício de formulação de cenários, e especificamente do

melhor e o pior cenário, serve para que enxerguemos com mais clareza

quais variáveis identificadas na PES influenciam positivamente ou

negativamente a condição do país como Grande Potência. Seguem,

portanto, as três construções hipotéticas. (1) No melhor cenário,

19 Uma das notícias diz respeito ao estupro ocorrido em Déli, dia 16 de dezembro, no qual

uma moça de 23 anos foi violentada por 6 homens e, devido a complicações causadas

pela violência, faleceu dias depois. 20 Os nacionalistas hinduístas tentam relacionar a violência sexual com a

“ocidentalização” do país e sugerem que o casamento seja permitido a partir de 15 ou

16 anos da mulher, ao invés dos 18 anos hoje estabelecidos. Já a aliança do partido do

congresso (UPA) mobilizou uma comissão legislativa para revisar leis criminais que

dispõe sobre crimes sexuais.

Page 94: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Relações internacionais contemporâneas 2012/2

88

estabelecer-se-ia uma pentarquia de relação multilateral com Estados

Unidos, China, Rússia e Turquia. Tal panorama é mais provável com o

Partido do Congresso no poder e com esforços internos indianos para a

melhoria das condições institucionais e sociais. Algo que tornaria tal

cenário crível seria o avanço da Área de Livre Comércio do Sul da Ásia,

a qual viabilizaria à Índia maior acesso aos mercados desses países,

diminuiria a tensão com a China pelos mercados do Sudeste Asiático e

facilitaria relações comerciais com a ECO (sendo o Paquistão elo das

duas zonas econômicas). Por esse percurso, haveria fortalecimento da

posição indiana também no Oriente Médio. (2) No cenário intermediário,

analisando primeiramente o aspecto doméstico, o crescimento da terceira

e da quarta frente se efetivaria, mas como uma é a exacerbação à

esquerda e outra à direita do Partido do congresso, o peso de suas

votações se neutralizaria e as decisões da Aliança Unida continuarão

sendo implementadas. Em relação ao aspecto externo, no entanto, haverá,

por parte do sistema político, maiores constrangimentos à formulação de

uma PES que assegure a continuidade de um projeto de desenvolvimento

nacional. A PES indiana, portanto, continuaria a alternar atitudes que

reforçam o multilateralismo e a regionalização com ações unilaterais que

comprometem a estabilidade regional e internacional. (3) O pior cenário,

por fim, seria decorrente do direcionamento da PES indiana ao

contrabalanceamento da China de acordo com os propósitos

estadunidenses, o que poderia provocar inimizades na região e promover

uma resposta chinesa agressiva. Esse cenário é extremamente arriscado

para a Índia uma vez que o confronto Sino-indiano pode não implicar

definição de uma posição dos EUA pró-Índia. Em uma contingência

extrema, o pior cenário poderia evoluir para uma guerra em duas frentes:

guerra irregular complexa com Paquistão e guerra convencional com a

China. Os cenários podem acontecer com os dois partidos no poder,

porém o alinhamento com os Estados Unidos com o BJP na situação (ou

mesmo com um partido que responda aos anseios territorialistas da nova

elite indiana, como a Quarta Frente) configuraria um contexto mais

propenso à guerra.

Conclusões

Após todas as apreciações feitas, acreditamos que a Índia pode ser

considerada uma Grande Potência. Possui capacidade militar comparável

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Política externa e de segurança da Índia

89

com o primeiro mundo, posição geoestratégica relevante, a segunda

maior população do mundo e crescimento econômico robusto. Ademais,

sustenta a legitimidade como líder do terceiro mundo e exemplo para a

semiperiferia.

Por ter alcançado tal posição, a Índia é impelida interna e

externamente a tomar atitudes condizentes com esse novo estágio. Ela é

hoje um ator computado no cálculo de política internacional e seus atos

de política externa interferem no equilíbrio do SI como nunca antes.

Apesar de sua proeminência, a Índia ainda se vê arcando com os custos

da modernização (urbanização, industrialização) e da ocidentalização

(valores seculares, instituições políticas estáveis). A PES indiana se

tornará coerente na medida em que as prioridades do desenvolvimento

social e do comprometimento com o equilíbrio forem incorporadas ao

projeto de nação e articuladas com seu desempenho externo.

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93

Capítulo 5

POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DO

JAPÃO

Eric Feddersen

Lucas da Rocha Rodrigues

Victor Merola

Vinícius Lanzarini

Introdução

Este capítulo tem como objetivo central analisar a Política Externa e

de Segurança do Japão. Para tanto, busca-se verificar os principais

indicadores que pautam a inserção internacional do país no Sistema

Internacional. Basicamente, pretende-se analisar como as dinâmicas

internas e as dinâmicas regionais influenciam na trajetória histórica do

país, especialmente, no Leste Asiático.

O Japão destaca-se por ter a terceira maior economia no mundo,

possuindo um PIB de US$ 5.850.000 milhões em 2011 — composto em

71,6% por serviços, 27,3% pela indústria e 1,2% pela agricultura — e

PIB per capita de US$ 0,034 milhões (estando em 37º no ranking

mundial). Possui 62,5% da população em áreas urbanas (conforme dados

de 2010; logo, 37,5% estão no meio rural), a 10ª maior população

absoluta (127.368.088 pessoas, segundo estimativa de julho de 2012), um

IDH de 0,901 (13º na lista) e um índice GINI de 37,6% (sendo o 75º país

no ano de 2008). Apesar disso, seu déficit público só não é maior que o

dos Estados Unidos, sendo de 205,5% do PIB. Por ser uma ilha, o país

possui pouco território (377,9 km², o 62º colocado). Possui um

contingente ativo nas Forças de Autodefesa de 247.746, tendo o 29º

maior efetivo do mundo.

A partir da identificação dos princípios norteadores da Política

Externa de Segurança (PES), serão estabelecidos três cenários que visam

sumarizar os dilemas que o Japão enfrentará nos próximos anos. Por fim,

conclui-se que o Japão enfrenta uma dualidade que opõe polarizados

perfis de inserção internacional: um ligado a uma visão regionalista (que

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

94

visa o fortalecimento dos laços econômicos e políticos com os vizinhos);

e outro de viés globalista-liberal (que prioriza o reforço da aliança com os

Estados Unidos). Nesse contexto, os principais indicadores que permitem

que se avalie qual dos perfis prevalecerá são a inserção econômica

internacional do país, a definição do debate político interno e o

equacionamento das carências energéticas.

1. DESENVOLVIMENTO

1.1. O problema da dualidade

A análise da Política Externa e de Segurança do Japão indica que,

basicamente, a inserção internacional do país é pautada por uma

dualidade. Essa dualidade consiste na oposição entre a opção regionalista

e a opção globalista. A primeira traduz os planos de inserção

internacional baseados na integração regional da Ásia; ou seja, visa à

ascensão coletiva. Para tanto, o Japão não competiria comercialmente

com a China pela liderança em exportações, optando por um sistema

associado de gestão de marcas e patentes — através da transferência de

tecnologia nipônica aos seus vizinhos. Já, o globalismo é o ímpeto de

inserir-se como potência a nível global e manter sua posição de

plataforma exportadora, aproximando-se dos Estados Unidos. Neste

último caso, seus vizinhos passariam a ser competidores.

A origem dessa dualidade está na Restauração Meiji, de 1868, e na

Rebelião de Satsuma, de 1877. O legado social dos samurais, baseado na

honra e tradição, ainda manteve-se muito presente após a Restauração.

Em termos políticos, ele gerava uma ética colonialista e retrógrada. Com

o fim dos Samurais, seu legado se une ao Exército, que o perpetua através

da autonomia militar. Assim, dois planos de inserção internacional

passam a se chocar: um baseado na Democracia Taisho, que lançava

bases para a inserção pacífica com seus vizinhos, e outro, baseado no

legado de Satsuma, que pretendia a ascensão pela conquista. Essa

polarização histórica, pode-se dizer, encontra respaldo nos dilemas atuais,

contrapondo o regionalismo, herdeiro da integração de Taisho, e o

globalismo, herdeiro da competição de Satsuma.

Page 101: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança do Japão

95

1.2. Histórico

Desde cedo, o Japão focou-se no papel das potências estrangeiras,

pois conhecia as consequências dos interesses de tais nações

(PANIKKAR, 1965: 214). O Japão do século XIX já se dividia entre o

progresso e aproximação com o Ocidente, e o isolacionismo e conflito

com o estrangeiro, posição essa representada pela classe de samurais. A

Restauração Meiji demarcou o fim do isolacionismo, mas não dos ideais

feudais e da ética colonialista, pois as bases sociais do Estado não se

transformaram por completo. Esta transformação somente prosseguiria

com a vitória contra os samurais na Rebelião de Satsuma, abrindo

caminho para a Democracia Taisho. Contudo, o exército absorveu os

valores dos samurais de Satsuma, e se constituiu como instituição de

grande força política no Japão (WOLFEREN, 1989). Por resultado, a

Restauração não estabeleceu uma vitória de um projeto sobre o outro,

nem definiu a postura do Japão na Ásia, que passará a oscilar entre a

competição e a cooperação regional.

Desde o final do século XIX, o Japão buscou ordenar o sistema

regional asiático. Esse processo estava intimamente ligado à

modernização econômico-industrial que era empreendida pelo país àquela

altura. A guerra russo-japonesa (1904-5) estava claramente associada à

busca por liderança regional. Já nesse período, fica clara a importância da

questão de escassez de recursos para estratégia regional do país, já que

essas disputas com China e Rússia tinham como plano de fundo a busca

por controle dos recursos da região da Manchúria e culminariam tanto na

ascendência e posterior colonização da Coreia, quanto na ocupação da

China em 1931. Esses desdobramentos no âmbito regional corroboram a

ideia de que o Japão, a partir desse período, consolida-se como Estado-

Região. E que, nesse contexto, os desenvolvimentos regionais estão

intrinsecamente ligados à evolução dos processos internos do país.

Na década de 1910 e 1920, grosso modo, o Japão passou por um

realinhamento da sua esfera política. Huntington (1997) define esse

modelo como “ocidentalização” da política. Esse período, conhecido

como democracia Taisho, marcou a busca pela ampliação de direitos, de

criação de instituições similares às do ocidente. Entretanto, esse projeto

foi fortemente antagonizado pelo exército japonês. A principal razão era o

revanchismo em relação ao fracasso da intervenção na Sibéria (1918-25)

e o corte de gastos militares previstos nesse período. Essa disputa acabou

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

96

por culminar na militarização da política externa japonesa, que resultou

na segunda Guerra Sino-japonesa (1937) e leva o país a entrar na II

Guerra Mundial.

Após a rendição japonesa na Segunda Guerra Mundial, Shigeru

Yoshida foi nomeado Primeiro-ministro. O seu governo caracterizou-se

por uma administração pragmática, que acabou viabilizando a

manutenção da soberania no pós-guerra. Essa manutenção foi

conquistada, essencialmente, ao evitar um processo de

desindustrialização que era defendido pelo Comandante Supremo das

Forças Aliadas que ocupavam o Japão, o General estadunidense Douglas

por MacArthur. A aliança securitária com os Estados Unidos levou o país

a direcionar sua atenção à reestruturação da sua economia e à

reconstrução do país (WOLFEREN, 1989: 41). Para tanto, o Japão torna-

se uma plataforma exportadora associada aos EUA, que compete

regionalmente. Pode-se dizer que essas são as bases do modelo

globalista-liberal que é defendido atualmente.

Porém, foi nesta época, a partir de 1950, que começaram a se criar as

condições para o que vai ser o principal motor do regionalismo japonês a

partir da década de 70: a subcontratação transfronteiriça e a transferência

de capital regionalmente. O Plano Colombo, equivalente ao Plano

Marshall na Ásia, iniciou uma transferência de patentes e licenças dos

EUA para empresas japonesas, além do estímulo a exportação japonesas

ao seu mercado (ARRIGHI, 1996: 76). O alto valor agregado das

exportações intensivas em tecnologia passaram a financiar o surgimento

do Japão como novo fenômeno econômico. A estrutura política,

denominada como “Triângulo de Ferro” (partidos, corporações e

burocracia) criava a governança necessária para administrar o

crescimento econômico incentivado pelo parceiro americano (UEHARA,

2003: 31). No final da década de 60, já se dava a regionalização do

milagre japonês e a transferência de indústrias de menor valor agregado.

A década de 1970 representou uma inflexão no relacionamento

japonês com seus vizinhos, especialmente, a China. A atuação

estadunidense na região, que delimitava o centro gravitacional regional,

alterou-se significativamente. Nesse período, paulatinamente, os EUA

foram afastando-se de uma posição assertiva no Leste Asiático. Isso

permitiu que China e Japão iniciassem um processo de reaproximação,

emblematizado pelo Comunicado Conjunto de 1972 e pelo Tratado de

Page 103: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança do Japão

97

Paz de 1978.

A década de 1980 sugeria o Japão como o principal desafiante à

hegemonia estadunidense (ARRIGHI, 1996). Entretanto, a crise de 1987

foi um baque na ascensão japonesa. Os acordos de Plaza criam um grande

fluxo de investimentos japoneses para os EUA com a compra de dólares,

criando uma bolha de investimentos, de forma a contaminar o mercado

imobiliário em ambos os países, e fazendo subir astronomicamente o

preço dos terrenos japoneses. A solução à vista seria investir na China,

apesar de acentuar o crescimento do competidor (VISENTINI, 2012:

190).

No final da Guerra Fria, o Japão, por um lado, buscou reforçar os

laços regionais econômicos e políticos e, de outro, renovar sua parceria

estratégica com os Estados Unidos. Cabe destacar que essa parceria era a

fiadora da manutenção das linhas de comunicação e de suprimento do

país. Na Guerra do Golfo (1991), quando da instauração do mandato das

Nações Unidas, o Japão buscou fornecer apoio aos Estados Unidos.

Todavia, isso gerou um grande debate interno e limitou-se à esfera

financeira. Em linhas gerais, pode-se afirmar que esse debate remete ao

dilema regionalista versus globalista que permeia a história japonesa.

A década de 1990 representou o início do desgaste do sistema de

governança que geriu o país desde a década de 1950, o Triângulo de

Ferro. A formação de gabinete anti-PLD (1993) exemplifica essa fase de

reacomodação das forças internas e do nascimento do embrião do PDJ

(Partido Democrático do Japão), partido que viria a ser central para a

inflexão política ocorrida na década seguinte. Porém, foi com a ascensão

de Junichiro Koizumi que o Triângulo de Ferro foi definitivamente

enterrado. A agenda neoconservadora, o programa neoliberal, de

alinhamento automático com os Estados Unidos e a adesão à Guerra ao

Terror levaram o país a se afastar dos vizinhos, a piorar seus índices

socioeconômicos e comprometer a sua soberania, processos que

permitiram ao PDJ chegar ao poder.

O governo de Yukio Hatoyama (2009) chegou ao governo com uma

plataforma de revisão da parceria com os Estados Unidos, de

revitalização dos laços regionais e distribuição equilibrada de renda.

Nesse sentido, uma divisão do capital seria feita regionalmente, onde o

Japão seria responsável pela produção de P&D (pesquisa e

desenvolvimento) e administração de marcas e patentes, enquanto seus

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

98

vizinhos ganhariam pela produção e montagem dos produtos de alta

tecnologia em larga escala. Esse panorama levaram aos acordos de 2009

com China e Coreia do Sul, e o aumento da institucionalização das

relações no Leste Asiático. Entretanto, com a queda de Hatoyama (2010)

e o incidente de Fukushima (2011) a capacidade de governança do PDJ,

bem como seu projeto regionalista, acabaram sendo enfraquecidos. Esse

processo teve dois efeitos significativos: por um lado, gerou relativa

desaceleração no processo de aumento da cooperação regional, marcado

pelo acirramento das tensões com a China, sobre a posse das ilhas

Senkaku/Diaoyu; e, por outro, internamente propiciou o retorno do PLD

ao poder. Com a chegada de Shinzo Abe ao governo, no final de 2012, as

dúvidas acerca do futuro das relações sino-japonesas ganharam nova

dimensão, já que, apesar da filiação partidária, Abe não pertence à ala

mais radical do PLD.

1.3. Economia

Os aspectos econômicos vêm a reforçar as evidências quanto ao

dilema japonês entre o Globalismo e o Regionalismo. Se por um lado o

Japão tem sua balança comercial fortemente atrelada à China, por outro

pesa o histórico da parceria nipo-americana com décadas e bilhões

investidos nos Estados Unidos. Apesar de sustentar o posto de terceira

maior economia do planeta, o Japão possui o segundo maior deficit

público — que atingiu a marca de 205,5% do PIB em 2011 (CIA, 2012).

Muito disso se deve à questão energética que assola o país, assim como

aos gastos crescentes com a previdência por conta da população

envelhecida.

Os principais parceiros comerciais do Japão são a China e os Estados

Unidos, com grande destaque para a China que no ano de 2011 foi o

destino de 25% (somando Hong Kong) do total das exportações nipônicas

e origem de 22% das importações, contra 15% e 9%, respectivamente,

dos Estados Unidos (JETRO, 2012). A alta dependência japonesa de

recursos naturais oriundos do exterior, que correspondem a 49% das suas

importações (Ibidem), aliada à extrema importância que o gigantesco

mercado interno chinês representa para os produtos japoneses são

indícios de uma relação de forte interdependência entre os dois países

asiáticos.

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Política externa e de segurança do Japão

99

Já se levarmos em consideração o Investimento Externo Direto

(IED), verificamos que o Japão faz altos investimentos nas principais

potências mundiais e possui um saldo bastante positivo na relação de

fluxos de investimentos, fato que lhe confere grande influência

econômica em nível global. O Japão possui um estoque de IED com saldo

na casa de US$200 bilhões em relação aos Estados Unidos e na casa de

US$82 bilhões em relação à China, sendo os Estados Unidos o principal

destino do IED japonês, com montante próximo a US$275,5 bilhões em

estoque acumulado até 2011 (Ibidem). Tal fato sugere uma sólida

estabilidade dos laços entre japoneses e estadunidenses.

1.4. Infraestrutura

Em relação à infraestrutura japonesa, cabe realizar as seguintes

perguntas: Que impactos a dependência de recursos naturais estrangeiros

causa no país? Como a administração da infraestrutura pode ter reflexos

nas políticas Globalistas ou Regionalistas? Como resultado desta

administração, para que viés estará voltada a transição tecnológica

japonesa?

Anteriormente ao desastre nuclear de Fukushima, uma parcela de

mais de 80% da matriz energética era composta de queima de

combustíveis fósseis. Entretanto, os recursos escassos exigiam a

importação destes, grande parte vinda de países do Oriente Médio. Os

altos custos para a realização destas compras levam o Japão a procurar

por parceiros mais próximos, notavelmente a Rússia. O governo japonês

tem se mostrado interessado na construção do oleoduto russo ESPO, que

vai da Sibéria Oriental até o Oceano Pacífico, bem como nas obras da

GAZPROM que desenvolve planos de construção de um gasoduto de

Sakhalin até o porto de Vladivostok. Todavia, a questão das Kurilas é um

grande obstáculo para essa aproximação entre os dois países.

A energia nuclear é para o Japão uma alternativa para a diminuição

dos custos energéticos, e, antes de Fukushima, havia planos para sua

expansão para até metade da composição da matriz energética. Todavia, o

incidente resultou em pressão da opinião pública acerca do investimento

na matriz nuclear. O fato de o Japão estar na vanguarda do processo de

transição tecnológica tem feito o país em investir em Pesquisa e

Desenvolvimento (P &D) na busca por avanços na aquisição de

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

100

capacidades energéticas de próxima geração. A busca por materiais

supercondutores, fontes de energia renováveis, estão no centro da procura

por autonomia energética e por diminuição da dependência externa de

suprimento energético.

A logística interna do país encontra-se em ótima situação, com

rodovias expressas eficientes e trens-bala em suas ferrovias. A logística

externa conta com aeroportos e portos em excelentes condições e

posicionamento para projeções externas. Outros grandes planos de

integração regional incluem a construção de túneis submarinos com

ligação aos projetos da Rota da Seda russos e chineses.

Pelo caráter insular do Japão, suas rotas marítimas (SLOCs, no

acrônimo em inglês) possuem uma importância vital para as linhas de

logística externas. A comunicação pelo Pacífico e Índico garante o

fornecimento de recursos naturais, a realização do comércio marítimo e

as linhas de suprimentos em caso de guerras no Leste. Sobre a segurança

das SLOCs, os estreitos servem como ponto de estrangulamento,

principalmente o de Malacca.

1.5. Instituições Políticas

O Triângulo de Ferro, que durou praticamente cinquenta anos, dava

ao país um sistema de governança equilibrado, e que permitia uma gestão

amparada no partido, burocracia e empresariado. A Dieta Japonesa que é

composta pela Câmara dos Representantes (baixa) e a Câmara dos

Conciliadores (alta) serviu como um referendador das decisões tomadas

no âmbito do Triângulo de Ferro. Ainda que as duas sejam importantes, a

que ganha destaque é a primeira — o partido que obtiver a maioria das

300 vagas em disputa (em um total de 480) ganha o direito de indicar o

primeiro-ministro, o qual tem liberdade total para a constituição de seu

Gabinete. Para que leis sejam instituídas, devem ser aprovadas por

maioria nas duas câmaras. Um desafio que se percebe desde 2007 é que o

partido vencedor das eleições gerais (Câmara Baixa) não costuma atingir

escore similar na Câmara Alta, ficando, assim, sem obter a maioria nas

duas casas da Dieta, o que compromete a governabilidade.

A dificuldade de consolidar uma oposição ao PLD, deriva da

destituição do Triângulo de Ferro e da transição política por que passa o

país internamente. A oposição, hoje é constituída pelo PDJ, nascido do

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Política externa e de segurança do Japão

101

Gabinete anti-PLD, que passa gradualmente a definir uma postura

política própria, mas ainda não tem popularidade considerável. A outra

força que emerge no cenário político japonês é o Partido da Restauração

Nacional, cujos principais líderes são Shintaro Ichihara e Toru

Hashimoto. Esse partido representa em linhas gerais, um reavivamento

dos princípios defendidos pela via militarista no período da II GM.

1.6. Segurança e Defesa

A constituição pacifista implementada após a Segunda Guerra rege

as diretrizes das Forças de Autodefesa do Japão — segmentadas em

Terrestre, Marinha e Aérea. Por meio desta, ficou definido que o

orçamento destinado aos gastos militares ficaria limitado a 1% do PIB do

país, com o objetivo de compor uma modesta força de defesa que não se

constituísse em ameaça aos países vizinhos. No entanto, esse dispositivo

se mostrou ineficaz devido ao elevado PIB japonês — 1% deste

representou cerca de US$54 bilhões, 5º maior orçamento mundial em

2011 (SIPRI, 2012). A Doutrina determina ainda uma política

exclusivamente defensiva, bem como um forte posicionamento contrário

aos armamentos nucleares e ressalta a importância da cooperação com os

Estados Unidos.

Em 2010, foi publicada uma revisão do Guia do Programa Nacional

de Defesa (GPND), documento chave que revela uma forte tendência de

reforma da doutrina e normalização das forças armadas japonesas no

médio prazo. O GPND traz ainda o conceito de forças de defesa

dinâmicas com maior capacidade para uma resposta rápida, explicitando

a preocupação japonesa com a questão das ilhas mais afastadas da costa,

que são motivo de litígios com a China e com a Coréia do Sul (IISS,

2012: p. 220).

Por tratar-se de um país insular, as forças de autodefesa marítima e a

força aérea a serviço da marinha são de fundamental importância para a

política externa e de segurança do Japão. Analisando o inventário

japonês, fica evidente uma configuração voltada para complementar as

forças armadas dos Estados Unidos buscando um contrabalanceamento

em relação à marinha chinesa, que adota a estratégia de negação de área

(A2/AD — baseada na utilização de minas e submarinos táticos), que

representa uma grande vantagem chinesa (IISS, 2012: p. 235-236).

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

102

As Forças de Autodefesa do Japão possuem um contingente total de

aproximadamente 248 mil ativos e em torno de 56 mil reservistas. O

inventário militar da marinha é composto por: 18 submarinos táticos, 2

porta-aviões, 6 cruzadores, 25 destróieres, 15 fragatas e 33 vasos anti-

minas. A força aérea possui um total de 551 helicópteros e 525 aviões —

os principais destaques são os helicópteros SH-60J (antissubmarino) com

86 unidades e MH-53E (caça minas) com 7 unidades a serviço da

marinha. Já as forças terrestres possuem 980 blindados e 760 tanques

(IISS, 2012: p. 251-254).

A configuração de forças apresentadas combinada com uma forte

tendência à modernização das forças militares nipônicas caracteriza um

viés claramente globalista das Forças de Autodefesa do Japão que

funcionam, na prática, como uma extensão das forças armadas

estadunidenses, defendendo seus interesses na região. Além de sabotar

qualquer projeto de integração asiático, esse posicionamento militar entra

em contradição com a doutrina pacifista japonesa, de modo que sua

reforma parece iminente e inevitável. Apesar de esse perfil militar estar

consolidado, no curto prazo, isso poderia ser alterado. Caso o Japão

revisasse as limitações internas em direção à aquisição de forças militares

autônomas, evitando manter-se apenas como um apêndice das forças

militares estadunidenses na região, isso fortaleceria o projeto de

integração regional. Portanto, não há uma oposição entre autonomização

da SDJF e o processo de aprofundamento das relações regionais.

1.7. Transição Tecnológica

A indústria japonesa conta com um maquinário excepcionalmente

avançado e com a utilização de tecnologia de ponta. O Japão é líder

absoluto em robótica, tendo metade dos robôs industriais do mundo.

Tendo tais condições em vista, suas exportações possuem um alto valor

agregado. Ademais, o caráter especial do país o torna um dos principais

produtores e exportadores de semicondutores.

O Japão possui a segunda maior siderurgia do mundo, com destaque

para as empresas Nippon Steel e JFE. O aço é utilizado principalmente na

indústria de maquinário, naval e automobilística — esta última se

destaca, como é observado no poder econômico das gigantes Toyota,

Mitsubishi, Honda e Nissan. Para a produção de bens de alta tecnologia,

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Política externa e de segurança do Japão

103

porém, o país é dependente da China para o fornecimento de terras-raras.

Diversos indicadores demonstram o avanço da transição tecnológica

japonesa. O país investe fortemente em pesquisa e desenvolvimento,

tendo gasto na última década entre 15 e 17 trilhões de ienes (em torno de

3,5% do PIB). Dois dos 20 supercomputadores mais potentes do mundo

possuem processadores japoneses e foram montados em solo local. O país

está muito bem inserido em uma vasta rede de conexão de fibra ótica, que

permite que metade dos internautas navegue com banda-larga proveniente

desta, acesso cinco vezes maior que a média da OCDE.

Nesse sentido, uma parceria sólida com a China torna-se central sob

vários aspectos. Primeiro, porque a importação de materiais terras-raras

seria altamente benéfica para o país. Além disso, as regiões do Leste e

Sudeste Asiático possibilitariam um extenso mercado consumidor para as

exportações japonesas de alto valor agregado. Além disso, permitiria ao

país, em caso de uma conflagração, unir o fornecimento em larga escala

de aço para a produção de armamentos pesados, com constantes

inovações tecnológicas derivadas do alto nível de P&D. O uso dos

supercomputadores também traria vantagens ao Japão no advento de uma

guerra cibernética.

1.8. Situação e Conjuntura

A partir do choque entre um barco chinês e um japonês no entorno

das ilhas Senkaku/Diaoyu, modifica-se a situação do país. A postura

negativa de Seiji Maehara, então Ministro de Infraestrutura (2010), sobre

um conflito pela posse das ilhas provocou um boicote aos produtos

japoneses e grandes prejuízos financeiros, pois a China e o Japão estão

entre os principais parceiros comerciais entre si.

A presença crescente de patrulheiros chineses na região faz com que

os japoneses recorram ao tratado de segurança mútuo assinado com os

Estados Unidos, em 1960, para a defesa do seu território. Isso permite

uma maior interação com os norte-americanos, desde a possível entrada

na Aliança Transpacífica (TPP), até a possível aquisição de aeronaves

como o Osprey MV-22. O afastamento gradual dos países asiáticos

tornaria plausível a reutilização dos reatores de energia nuclear — que

estão parcialmente desligados desde o incidente de Fukushima, em 2011

— demonstrando o caráter de isolamento e globalismo da dualidade.

Page 110: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Relações internacionais contemporâneas 2012/2

104

Por outro lado, a atual situação energética do país o empele à

integração regional. Com o desativamento da planta energética nuclear, o

governo viu-se obrigado a buscar novas fontes de energia em países da

Ásia Central. A decorrência de maior relevância para a integração

regional é a possibilidade de transferência das indústrias japonesas para a

região, de forma análoga ao que já fora feito na transferência tecnológica

para os Tigres Asiáticos nos anos 70, além da busca por terras-raras.

Assim, os conflitos acerca das ilhas ficam, em parte, subjacentes à

política energética dos países da região: Kurilas, com os russos

(culminando no Tratado de Paz, que não foi assinado desde a Segunda

Guerra Mundial e com aberto desejo de resolver o impasse pelos países),

e Dokdo/Takeshima, com os sul-coreanos (através do bom

relacionamento entre os seus representantes diplomáticos).

A situação com a China também se reflete na política interna do

Japão. O incidente de Fukushima, somando-se às tensões com os vizinhos

e a dificuldade em recompor uma economia de grande déficit público e

que caminha a passos lentos, fez com que a popularidade de Naoto Kan e

Yoshihiko Noda — dois dos primeiros-ministros do PDJ que assumiram o

país após meio século ininterrupto de governo pelo PLD — decaísse. Isso

culminou na volta de Shinzo Abe (PLD) ao poder. Entretanto, desde sua

posse é possível notar algumas mudanças na política externa e de

segurança do país. Em dezembro de 2012, uma disposição a solucionar o

problema com os russos, oposição à Aliança Transpacífica e cobranças

aos chineses por estarem ultrapassando os limites de seu território de

forma desautorizada.

2. CENÁRIOS

A análise da Política Externa e de Segurança do Japão (PES) permite

a projeção de três possíveis cenários para a inserção internacional do país.

No melhor cenário a tendência de cooperação e concertação regional

prevalece. Em um cenário intermediário persiste a competição, porém

apenas no nível econômico. O terceiro cenário consiste em uma possível

escalada da competição que resultaria em guerra.

A melhor projeção se centra no cenário de melhores relações com a

região, dentro das possibilidades atuais. O mandato de Shinzo Abe

mantém-se em bases estáveis, garantindo estabilidade política ao Japão.

Page 111: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança do Japão

105

Embora a plataforma do PLD seja pautada por um globalismo liberal, o

atual governo tem mantido as iniciativas de cooperação defendidas pelo

governo anterior do PDJ. Isto pode ser dar por vários motivos, a começar

com a herança de três anos consecutivos de governos regionalistas, do

PDJ. Contudo, o fator mais proeminente é o gargalo energético, agravado

pelo incidente de Fukushima que resultou no desativamento das usinas

nucleares japonesas, causando um grande baque à capacidade industrial

do país. Neste sentido, a cooperação e a integração econômica regional

aparecem como alternativas para a manutenção da indústria japonesa,

criando cadeias de off-shoring e integração produtiva. Além disso, torna-

se viável a integração energética e infraestrutural que pode ser central

para amenizar a vulnerabilidade energética do país. No médio longo

prazo, este cenário permitiria o Japão alterar seu perfil industrial:

migrando dos modelos fordista/toyotista, baseado no uso intensivo de

hidrocarbonetos, para o modelo voltado para a produção de informação,

tecnologia e conhecimento, baseado no uso de energias renováveis.

No cenário intermediário, a competição econômica regional

persistiria, porém não transbordaria para outras esferas. Este cenário

somente é crível se a dependência energética japonesa de fornecedores

externos não aumentar. Com isto, o Japão retoma o modelo globalista

liberal, baseado na plataforma de exportação, defendido pela ala mais

conservadora o PLD e da extrema-direita. Dessa forma, caso se

intensifique a competição com a Coreia do Sul e China, em termos

empíricos isto representaria uma adesão à Parceria Trans-Pacífica (TPP).

Entretanto, mesmo neste cenário, seria pouco provável um rompimento

completo com a China e demais vizinhos no Leste asiático.

No cenário mais extremo, o partido de extrema-direita, Partido da

Restauração do Japão de Shintaro Ishihara, assume o governo do país e

abre caminho para um globalismo de veia militarista. A competição seria

o traço marcante da PES japonesa, o que poderia tornar qualquer

incidente passível de escalada. Neste contexto, empiricamente, este

cenário seria representado pela eclosão de uma guerra local, que

comprometeria as linhas de comunicação e suprimentos (SLOCs).

Considerações Finais

Projetar o futuro da PES do Japão indica que as possibilidades

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

106

limites são bastante amplas, posto que variam desde a cooperação até a

conflagração regional. Resumidamente, os grandes dilemas que balizam a

política externa do país são decorrentes da inserção econômica

internacional, da definição do debate político interno e do

equacionamento das carências energéticas.

O Japão sempre foi, historicamente, um país fundamental para o

equilíbrio regional. Desde a Restauração Meiji, em meados do século

XIX, o Japão sempre se viu como Estado-Região, e sua ascensão no

sistema internacional esteve umbilicalmente ligada à dinâmica regional.

Nesse sentido, parece pouco provável que a capacidade do país de

manter-se como uma grande potência, seja por sua pujante economia, por

possuir vantagem na transição tecnológica e por suas capacidades

militares, independa dos vizinhos. Apesar de anti-intuitivo, a autonomia

japonesa, hoje, parece passar mais pela capacidade de lidar com as

dinâmicas asiáticas do que, simplesmente, afastar-se delas.

O debate entre a via regionalista e a via globalista, que se verifica na

polarização política interna, reflete assim a dicotomia que se apresenta

para o futuro da trajetória internacional do país. Nesse sentido, as

respostas que o Japão buscará para retomar o crescimento econômico e

reformular sua matrize energética podem arrastar o país tanto para a

competição desmedida com os vizinhos, quanto para o aprofundamento

do processo de aproximação com os vizinhos. Em termos econômicos, o

Japão, hoje, não pode abdicar da China. Em termos energéticos, o país

busca, no longo prazo, uma transição que lhe permita diminuir sua

vulnerabilidade externa; entretanto, no curto e médio prazo a solução para

isso parece estar no aumento da competição por recursos ou na integração

infraestrutural regional. A resolução da questão energética não é um

problema exclusivo do Japão e por isso incide diretamente sobre o perfil

de interação regional que prevalecerá. Afinal, os mesmos dilemas por que

passa o país, são enfrentados por China e Coreia do Sul.

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109

Capítulo 6

POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA

ALEMANHA

Laís Helena Andreis Trizotto

Mariele Laís Christ

Patrícia Assoni Grechi

Luísa Saraiva Bento

Introdução

A Alemanha importa para o estudo da política internacional dada a

sua Capacidade Estatal individual e, principalmente, como esteio da

União Europeia. Suas decisões diante dos avanços e retrocessos da

integração servem como condicionantes para a viabilidade da Europa

enquanto grande potência.

O objetivo deste estudo é analisar em que direção aponta a Política

Externa e de Segurança (PES) da Alemanha. A principal questão da

pesquisa é saber qual será a PES da Alemanha, visto os impactos da crise

de 2008. A pergunta é relevante dado que, desde 1951, a integração

europeia tem sido o principal motor da política externa alemã e, em

virtude da crise econômica, a própria integração da Europa está em

questão.

Isso pode ser facilmente verificado considerando-se os problemas

que a União Europeia recentemente vem enfrentando: a gestão da crise

econômica e a ausência de mecanismos institucionais europeus —

realçada pelo fracasso na aprovação da Constituição em 2005 e posterior

instituição do Tratado de Lisboa e da PESC em 2009 e, não menos

importante, a criação de uma aliança militar entre a Inglaterra e a França

(Entente Frugale, 2010)1.

Para responder provisoriamente o problema da pesquisa, os cenários

1 Para além dos marcos securitários comuns existentes — a OTAN (à qual a Alemanha

aderiu em 1955) e o Eurocorps, criado em 1992 e declarado operacional em 1995, do

qual a Alemanha é um dos fundadores —, a Entente Frugale é a única aliança militar

europeia da qual a Alemanha não participa.

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

110

que seguem foram elaborados: (1) manutenção do contorno básico da

União Europeia (U.E), baseado no eixo franco-alemão; (2) reconstrução

hegemônica: a manutenção da U.E debilitada pela afirmação de parcerias

bilaterais inter-regionais da Alemanha; (3) retorno à forma de soberania

do tipo Independência (WATSON, 2004).

Tendo em vista os cenários, o ponto de partida do trabalho foi

estabelecer uma tipologia acerca da dualidade básica da PES da

Alemanha enquanto Estado nação, aqui caracterizada nos termos de uma

tensão entre o que denominamos vocação atlantista e vocação eurasiana.

A isso se segue um breve histórico e um estudo sobre a economia, a

infraestrutura, a política, e a segurança e defesa. Agregou-se uma análise

sobre o posicionamento da Alemanha frente à transição tecnológica rumo

à digitalização e à crise econômica de 2008 (situação e conjuntura). Por

fim, sistematizam-se três cenários (melhor, intermediário e pior) e uma

breve conclusão.

Importa destacar que a República Federal da Alemanha possui uma

área de 357.022 km² (63º maior do mundo), povoada por,

aproximadamente, 81.305.856 habitantes. A segunda maior população do

continente, de maioria étnica germânica (91%), possui atualmente uma

taxa de crescimento de -0,2% ao ano e situa-se em grande parte nas zonas

urbanas (75%). O PIB alemão é de U$3.577 trilhões (em 2011, e

considerando a taxa real de conversão) e seu PIB per capta é de

U$38.400, o 26º país no ranking mundial. A economia está baseada

principalmente no setor de serviços (70,6%). A atividade industrial vem

em segundo lugar, representando 28,6% do PIB nacional e a agricultura

representa apenas 0,8%. Em termos de qualidade de vida, a Alemanha

está muito bem colocada, com o 9º melhor IDH do mundo.

1. A DUALIDADE ALEMÃ

A localização da Alemanha na Europa central, fazendo fronteira com

um número maior de países do que qualquer outro do continente,

permitiu que, no curso de sua história, sua diplomacia oscilasse entre dois

grandes eixos, o atlântico e o eurasiano, nos quais reside a dualidade

básica alemã.

A centralidade geográfica da Alemanha, por outro lado, também é

uma das maiores vulnerabilidades do país. A Alemanha viu-se, desde

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Política externa e de segurança da Alemanha

111

sempre, diante da contingência de relacionar-se com grandes potências a

leste e a oeste e do pesadelo da guerra em duas frentes, ilustrado pela

Guerra dos Sete Anos (1756-1763). Doravante, para elidir esta

perspectiva, sempre que a Alemanha se projetou em uma direção,

procurou previamente assegurar-se da estabilidade na outra. O seu

próprio surgimento resultou desse aprendizado: obteve a neutralidade da

Rússia para vencer a Áustria (1866) e a França (1871) e passar a existir

enquanto país. Trata-se de uma clara ilustração da vocação eurasiana —

estabilizar-se no leste e projetar-se em direção ao oeste. Por outro lado, a

aliança da Alemanha com a Inglaterra que vigorou até 1914, quando os

capitais ingleses financiaram a construção do Império Alemão, representa

a vocação atlantista, que consiste em se estabilizar no ocidente para

projetar-se ao oriente. Nas duas ocasiões em que a Alemanha não pôde ou

não quis aplicar o aprendizado de evitar a guerra em duas frentes, foi

derrotada ou destruída, como ilustram as duas guerras mundiais.

Naturalmente, alianças implicam valores. A vocação eurasiana,

caracterizada na diplomacia de Bismark, relaciona-se mais aos aspectos

do poder duro e à perspectiva realista, na qual importa a correlação de

forças. Por sua vez, o atlantismo baseia-se no idealismo, no liberalismo e

na ideia de comunhão de valores ocidentais — o que vai desde o “fardo

do homem branco” no século XIX até os direitos humanos no século

XXI.

Entre as duas vocações surgiu o integracionismo. Inicialmente como

perspectiva subalterna, quase marginal, materializada na obra de Eduard

Bernstein (1850-1932), defensor das “colônias civilizatórias”, e Conde

Richard Eijiro Coudenhove-Kalergi (1894-1972), criador do europeísmo,

ambos complementados por Victor Hugo (1802-1885), proponente dos

“Estados Unidos da Europa”. As duas guerras mundiais que conduziram a

Alemanha à miséria e à destruição encarregaram-se de converter o que

antes era uma tendência improvável em principal política de Estado: a

integração europeia, que teve início com a Comunidade Europeia do

Carvão e do Aço (Tratado de Paris, 1951).

Qual é, pois, o sentido atual da dualidade alemã representada pelas

vocações atlantista e eurasiana? Ele é dado pela crise econômica, iniciada

em 2008, e que hoje se apresenta como uma ameaça existencial à União

Europeia.

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

112

2. HISTÓRICO

O território da atual Alemanha era composto, até o século XIX, por

diversos pequenos reinos. O nacionalismo prussiano foi instigado na

Guerra dos Sete Anos, na qual a futura potência alemã do século XX

começou a ser forjada pelos ingleses, como forma de contenção da

França. No Congresso de Viena, em 1815, a fragmentação do território

foi deliberadamente mantida pelas potências, com a criação da

Confederação Germânica. A Unificação alemã só veio a ocorrer em 1871,

quando a política externa do país passou a ser conduzida pelo chanceler

Otto von Bismarck, de uma visão mais eurasiana, voltada para o

equilíbrio entre diversos polos de poder e com ênfase nas relações com a

Rússia e a China.

Em 1890, Guilherme II, o último Kaiser alemão, demitiu Bismarck e

não soube dar continuidade ao seu complexo sistema de alianças, criando

animosidades que contribuíram para a Primeira Guerra Mundial. Hitler

radicalizou essa tendência com o estabelecimento de áreas de influência e

domínios nos países fronteiriços. Vencida na Segunda Guerra Mundial, a

Alemanha foi dividida em quatro setores de ocupação pelos Aliados e, em

1949, dividida em dois países: Alemanha Ocidental, de cunho capitalista,

e Alemanha Oriental, socialista. Nesse período, a política externa da

Alemanha Ocidental foi de alinhamento com as potências ocidentais

como forma de readquirir a confiança dos Aliados. A reunificação ocorreu

em 1990, e o Chanceler da Alemanha Ocidental, Helmut Kohl, assumiu o

poder com uma política híbrida, que envolveu tanto o apoio aos

separatismos nos Bálcãs — procurando aumentar sua influência entre os

países recém-independentes e favorecendo o atlantismo —, como

também uma visão eurasiana, estreitando relações no Oriente. A

integração europeia sintetizou o atlantismo e o eurasianismo. Como

expressou o próprio Kohl, “a integração alemã e a integração europeia

passaram a ser duas faces de uma mesma moeda”.

A Alemanha foi um dos artífices de primeira ordem na União

Europeia. Em 1951, assinou o Tratado de Paris, criando, em conjunto

com a França e outros países, a Comunidade Europeia do Carvão e do

Aço (CECA). A partir de 1962, suas instituições fundiram-se com as da

Comunidade Econômica Europeia (CEE), criada em 1957, consolidando

uma ambição continental de integração. Ainda em 1955, a Alemanha

tornou-se membro pleno da OTAN e o principal pilar terrestre de defesa

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Política externa e de segurança da Alemanha

113

do hemisfério ocidental. Do mesmo modo, junto à França, foi pioneira no

processo de transformação da CEE em União Europeia, com o Tratado de

Maastricht, em 1992.

Em Maastricht, dentre outras coisas, foi expressa a ambição da

criação de um aspecto de defesa para a União Europeia — a Política

Externa de Segurança Comum (PESC), uma ideia que já havia sido

debatida quando da tentativa de estabelecimento da Comunidade

Europeia de Defesa, em 1952. Em 2005, o fracasso da Constituição

Europeia, rejeitada pelas populações de França e Holanda em plebiscitos,

colocou a criação do Estado Europeu em cheque e foi considerado uma

derrota para o processo de integração pela Alemanha, já que Merkel se

empenhou muito para que ela fosse aprovada. Como alternativa à

Constituição, surge o Tratado de Lisboa, em 2007, que, com um caráter

mais técnico, conseguiu a institucionalização da PESC através da criação

do cargo de Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e

a Política de Segurança, uma espécie de "Ministro dos Negócios

Estrangeiros da União Europeia”, com responsabilidade em assuntos

militares. Em vigor desde 2009, o Tratado também institui a Política de

Defesa e Segurança Comum (PDSC): um organismo intergovernamental,

ou seja, no qual os Estados-membros são representados, que abrange a

defesa e os aspectos militares. Assim, pelo menos teoricamente, a União

Europeia tem sua própria política externa e de segurança, que a permite

falar e agir em uníssono em questões mundiais.

É importante mencionar aqui a criação da Entente Frugale, em 2010,

para o desenrolar dos acontecimentos da situação europeia atual, pois

acredita-se que o veto alemão à proposta de fusão das duas maiores

fornecedoras de material bélico da Europa — a BAE (inglesa) e a

EADS/Airbus (majoritariamente francesa e alemã) —, em 2012, tenha

relação com a criação dessa aliança militar estabelecida entre Inglaterra e

França.

O papel de liderança que a Alemanha tem exercido na União

Europeia, desde a crise internacional de 2008 e, especialmente, desde que

a zona do Euro entrou em recessão, vem sendo exercido principalmente

através da proposição das chamadas políticas de austeridade fiscal, a

serem abordadas quando tratarmos da situação alemã propriamente dita.

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

114

3. ECONOMIA

Desde o século XIX, a economia da Alemanha já demonstrava seu

potencial de crescimento e competitividade. A expansão econômica e

financeira mudou seu status de nação devedora para uma nação credora

das dívidas de países da América Latina e Europa. O protecionismo,

marca desse século segundo Hilferding, ao favorecer economias

desenvolvidas, também contribuiu para o crescimento alemão, garantindo

maior poder de competição e escala de produção. O Zollverein, aliança

aduaneira que precedeu a unificação alemã, foi forjado com o intuito de

fortalecer o mercado interno da região e torná-lo um impulso para o

desenvolvimento. Com a tática econômica de proteger o mercado interno

e conquistar o mercado europeu, que continua sendo aplicada até hoje, a

Alemanha foi capaz de, no século XIX, adentrar o mercado europeu a

ponto de rivalizar com a Inglaterra, hegemonia da época, e, junto aos

EUA, subjugá-la.

Esse pequeno recorte da história alemã permite compreender o papel

de liderança econômica desempenhado atualmente na União Europeia e a

solidez de sua economia, se comparada com as demais do continente.

Após derrotas nas duas Guerras Mundiais, a Alemanha conseguiu, e até

com certa rapidez, reconstruir sua economia, que hoje é a maior da

Europa. Em 2011, foi o segundo país em volume de exportações

mundiais, perdendo apenas para a China. Devido à existência da União

Europeia e suas facilidades de comércio intra-bloco, muitos dos dez

principais parceiros comerciais da Alemanha são europeus e alguns países

como a Áustria possuem uma pauta de importação com 42% de

dependência dos produtos alemães. É válido destacar a importância das

exportações para a França, que representam 10,2% do total exportado,

figurando como principal parceira da Alemanha nesse quesito. (World

Bank; 2012)

Em relação às importações, a Alemanha detém a quarta posição no

mundo, atrás de Estados Unidos, União Europeia e China. Assim como

nas exportações, o padrão de importação alemã é majoritariamente intra-

bloco, mas países como Rússia e China também aparecem em posição de

destaque. As importações da Rússia são majoritariamente de

combustíveis e demonstram uma relação de dependência alemã,

especialmente no setor energético, que é reforçada pela construção de

oleodutos e gasodutos entre os dois países.

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Política externa e de segurança da Alemanha

115

O Investimento Externo Direto é um indicativo do padrão de

dependência entre países; no caso alemão, esse padrão novamente se

mostra mais voltado para a Europa. Os principais investidores no país são

membros da União Europeia e os Estados Unidos aparecem apenas em

sétimo lugar. Os investimentos alemães também tendem a se concentrar

no bloco, com Estados Unidos e China como terceiro e sétimo lugares em

2009. O fato de grande parte desses investimentos se darem em um

contexto intra-bloco mostra certa interdependência, o que tornaria uma

possível ruptura do bloco ainda mais improvável.

4. INFRAESTRUTURA

A Alemanha dispõe de uma excelente infraestrutura, com todas as

regiões do país interligadas e portos modernos, facilitando o escoamento

da produção industrial. O Vale do Ruhr é a região industrial mais

importante, base da forte indústria automobilística — maior produtora do

mercado europeu, encabeçada pelas gigantes BMW e Mercedes Benz —

e da siderúrgica, responsável por mais de 50% das importações de aço da

União Europeia. Embora haja forte concentração nas cidades do norte, o

parque industrial alemão está bastante espalhado pelo território e abriga

indústrias líderes em diversos segmentos, como a Bayer e a BASF, líder

do mercado mundial na indústria química, na qual a Alemanha é a maior

produtora e exportadora do mundo.

Mas o que vem se mostrando de crucial importância nos últimos

tempos é a questão energética, em duas frentes principais: o crescimento

das energias renováveis em substituição ao uso de energia nuclear e a

grande dependência alemã em relação à Rússia para a obtenção de

petróleo e gás natural. A Alemanha é o país que mais importa e consome

petróleo e gás natural em toda a Europa, além de ser o 7º importador de

petróleo no mundo todo. Estimativas do ano de 2005 mostraram que

essas importações vêm majoritariamente da Rússia (34%), seguida pela

Noruega (15%), Reino Unido (13%) e Líbia (12%). A partir,

principalmente, do oleoduto Druhzba — também conhecido como

“oleoduto da amizade”, por ter sido construído para ligar leste e oeste da

Europa em meio à Guerra Fria — a Rússia fornece aproximadamente

32% do consumo total da União Europeia.

A questão de maior destaque atualmente, no entanto, tem sido a dos

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

116

gasodutos. Em 2012, passou a funcionar o segundo ramal do gasoduto

Nord Stream, construído em parceria com a Rússia (principalmente, mas

com capitais de outros países também). Ligando os dois países através do

Mar Báltico, o Nord Stream veio a reforçar ainda mais a dependência em

relação à Rússia, que fornece cerca de 40% do consumo da União

Europeia; uma única companhia russa, a Gazprom, fornece cerca de 25%

desse total.

A Alemanha vem percebendo a necessidade de diminuir essa

dependência e demonstrou isso ao apoiar a construção de gasodutos

alternativos ao fornecimento russo, em especial o projeto Nabucco que,

desde a concepção de sua ideia, foi também apoiado pela União Europeia

e Estados Unidos. Esse gasoduto passaria pela Turquia, Áustria,

Romênia, Bulgária e Hungria e, a partir daí, o gás seria redistribuído pela

Europa. Porém, problemas com atrasos (a ideia surgiu ainda em 2002),

falta de recursos, dificuldades em estabelecer acordos com os possíveis

fornecedores (Azerbaijão, Turcomenistão, Iraque e Egito) e até mesmo a

concorrência com outros projetos parecem ter ajudado a estagnar o

andamento do Nabucco, de certa forma.

Possivelmente por esses motivos, ao final de 2012, perto da data do

início da construção do gasoduto South Stream, a Alemanha

surpreendentemente anunciou que apoiaria este projeto em detrimento ao

“rival” Nabucco, já que o primeiro é liderado pela Gazprom e será

abastecido pela Rússia, aumentando ainda mais sua projeção e

diversificando suas rotas. Desta forma, o objetivo alemão de não ficar

totalmente dependente da Rússia no suprimento energético mostra-se

cada vez mais distante, apontando para um possível reforço nas relações

entre os dois países. Essa mudança também pode representar um pequeno

afastamento da Turquia, com a qual a Alemanha teria uma oportunidade

de aproximação através do Nabucco.

5. INSTITUIÇÕES POLÍTICAS

Uma vez que a política externa é também reflexo da política interna

de um determinado país, é de fundamental importância analisar a

estrutura do sistema político alemão e quais são os critérios e os

personagens que influenciam nas decisões de política externa. A

Alemanha é uma república parlamentar federal composta por 16 estados

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Política externa e de segurança da Alemanha

117

que possuem grande autonomia decisória. O poder de iniciativa na

política externa é exercido pelo chanceler, atualmente Angela Merkel, no

cargo desde 2005 com mandato até 2013, junto ao Ministério das

Relações Exteriores, que atualmente é comandado por Guido

Westerwelle, no cargo desde 2009.

A Constituição em vigor na Alemanha (Grundgesetz) foi aprovada

em 1949, logo após a II Guerra Mundial. Tal Constituição institui os

direitos fundamentais do ser humano, o regime democrático, o

federalismo e o Estado social como os princípios constitucionais básicos,

de caráter permanente. No que tange ao exercício da política externa,

destacamos três artigos constitucionais que vigoram a respeito. O artigo

24 trata sobre a transferência de direitos de soberania, o qual assegura que

a Federação pode transferir esses direitos para organizações interestatais,

bem como legalmente permite a adesão da Federação em um sistema de

segurança coletiva mútua. O Artigo 25 destaca a preeminência do direito

internacional, ou seja, as regras gerais do direito internacional estão

automaticamente vinculadas ao direito federal. Por fim, o artigo 26 preza

pela paz, aceitando apenas guerras com objetivos pacíficos e regulando o

porte de armas.

A Alemanha possui grande representação de seis partidos, sendo

basicamente três de direita e três de esquerda. Os partidos social-

democratas cristãos de cunho conservador são os mais representativos,

embora atualmente partidos alternativos tenham crescido

substancialmente, como o Partido Pirata e o Partido Verde. Ligada a esta

última ascensão, possivelmente está uma recente e polêmica decisão do

Parlamento alemão de fechar as usinas nucleares da Alemanha até 2022 e

estabelecer o suprimento energético alemão com 80% de participação das

energias renováveis até 2050. Esta crítica decisão do Parlamento pode

estar vinculada às eleições que ocorrerão em 2013 e foi apontada como

uma “manobra política” de Merkel para favorecer os representantes dos

partidos emergentes, uma vez que é o Parlamento quem elege o

chanceler.

Apesar disso, Angela Merkel possui 66% de popularidade entre os

alemães e, nas pesquisas presidenciais, quase 50% da população votaria

em seu partido. Isto indica que Merkel possivelmente permanecerá no

poder e que a população tem apoiado sua política externa de maior

integração regional e de preocupação com a zona do Euro, apontando

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

118

para uma proeminência da vocação atlantista nas questões políticas.

6. SEGURANÇA E DEFESA

Como potência, a Alemanha utiliza-se mais de liderança política e

econômica do que de seus recursos duros como modo de efetivar sua

posição dominante dentro da União Europeia. O que, em parte, serve para

justificar sua menor ênfase na preparação militar. O panorama atual deve-

se, em grande medida, à situação estabelecida após a Segunda Guerra

Mundial, quando a Alemanha foi dividida e completamente

desmilitarizada. Mesmo após o ingresso da parte Ocidental na OTAN em

1955 e da grande responsabilidade que adquiriu sediando quatro de um

total de 14 comandos da OTAN2, o país nunca mais recuperou a

proeminência militar de outrora. Atualmente, suas capacidades militares

não se destacam em comparação com outros países do continente, como

França e Inglaterra e, pelo contrário, muitas vezes seu inventário fica

aquém desses em números. A diferença aumenta se a compararmos com

outras potências europeias como a Rússia, e até mesmo com a Turquia,

também membro da OTAN. Entretanto, os gastos militares alemães

servem para ilustrar a posição de proeminência do país: estão entre os dez

maiores de 2011, representando 46,7 bilhões de dólares (SIPRI Database,

2012).

A Alemanha, em seu Livro Branco, dá ênfase à cooperação em

segurança e segurança coletiva, sendo que parte da missão do

Bundeswehr — as forças armadas alemãs — diz respeito ao auxílio aos

aliados (Germany’s Federal Minister of Defense, 2006). Isso se faz

evidenciar pela participação alemã em organismos internacionais que

enfatizam a cooperação em segurança e defesa, como o Eurocorps e a

Organização do Tratado do Atlântico Norte. Como já mencionado, a

Alemanha tem sua entrada na OTAN concomitante à remilitarização da

Alemanha Ocidental, em 1955. Posteriormente, quando da reunificação

pelos Tratados Dois Mais Quatro, a Alemanha reunificada escolhe

2 Comando do Grupo de Exércitos do Norte (NORTHAG, acrônimo em inglês);

Comando do Grupo de Exércitos Central (CENTAG, acrônimo em inglês); Comando

das Forças Aéreas Aliadas na Europa Central; e Comando Europeu das Forças Aliadas

de Pronto Emprego (ACE Mobile Force, acrônimo em inglês).

Page 125: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança da Alemanha

119

permanecer em tal organização. Já em 1992, uma iniciativa franco-alemã

cria os Eurocorps, corpos de exército multinacionais de cinco países:

Alemanha, França, Bélgica, Luxemburgo e Espanha (além disso, Turquia,

Grécia, Itália, Polônia e Áustria são membros associados). Esses corpos

de exército estão à disposição da União Europeia e da OTAN, e sua base

principal está localizada na cidade francesa de Strasburgo. (Eurocorps

Website, acessado em janeiro de 2013).

De relevância também é a atual reestruturação das forças armadas

alemãs. Além de objetivar cortes orçamentais, essa reestruturação

pretende transformar o Bundeswehr em uma entidade altamente

capacitada, flexível e de grande mobilidade. A reforma trouxe novas

estruturas ao exército, que supostamente aumentariam sua flexibilidade e

capacitação. Além disso, o serviço militar obrigatório foi suspenso em

julho de 2011, embora ainda seja aceito o alistamento voluntário (IISS,

2012).

Entretanto, pode-se dizer que o inventário germânico não condiz

com os objetivos expressos de sua reestruturação, notadamente nos

objetivos de mobilidade e flexibilidade. Excetuando-se o exército, as

outras forças armadas (marinha e força aérea) perdem em inventário para

as principais potências. A marinha alemã não possui de facto navios do

tipo destroyer; os que classifica como destroyer são, na realidade,

fragatas. Também não possui porta-aviões ou submarinos nucleares,

apenas submarinos convencionais. Além disso, em uma comparação com

França, Reino Unido, Turquia e Rússia, tem o menor número de caças de

4ª geração e de aviões sisterna, embora tenha um número razoável de

aviões de transporte quando comparada ao Reino Unido, Turquia e

França. A maior vantagem alemã sobre França e Reino Unido se dá em

relação a tanques de ataque (MBT’s), tendo em vista que possui o melhor

modelo de MBT, o Leopard, em quantidades maiores que as possuídas

pelas duas outras nações (IISS, 2012).

Pode-se dizer, após uma análise de sua preparação militar, que a

Alemanha não apresenta capacidade de intervir além-teatro sem se

associar a outros países, visto que suas forças armadas, hoje, conseguem

sustentar apenas 7.000 soldados no exterior. Além disso, a ênfase dada à

cooperação em segurança sugere uma preferência pela integração

europeia a um possível domínio de outros territórios fora do continente.

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

120

7. TRANSIÇÃO TECNOLÓGICA

A transição tecnológica representa um grande desafio aos países que

almejam se estabelecer como potência ou se manter como tal. A

Alemanha é conhecida por ser uma grande investidora em pesquisa e

desenvolvimento, perdendo apenas para Japão e EUA (gastos em relação

ao PIB). Isso possibilita que seja líder em inovação e pesquisa:

atualmente, é o país que mais registra patentes na Europa; outro indicador

disso é o alto número de publicações de artigos científicos e técnicos.

O retorno desse investimento em capacitação aparece ao

observarmos os avanços em tecnologia. A Alemanha possui o seu próprio

“Vale do Silício”, especializado em microeletrônica e setores

relacionados, onde cerca de 300 companhias atuam — entre elas a AMD

e a Siemens. Também é a maior produtora de alumínio da União

Europeia, apesar da grande dependência de importações de minerais

metálicos. A rede europeia de fibra óptica de alta capacidade, uma espécie

de espinha dorsal das comunicações, mostra que há uma grande

concentração daquilo que podemos chamar de “estradas eletrônicas” na

Alemanha, ligando tanto as cidades entre si quanto o país ao resto do

continente. O sistema de navegação Galileo vem sendo desenvolvido pela

União Europeia com efetiva participação alemã: o projeto inclui a

instalação de 30 satélites até 2020. Atualmente, está em fase de testes e

quatro já foram lançados. A expectativa é de serviços iniciais a partir de

2014 e de que o sistema tenha interoperabilidade com o GPS e o

GLONASS.

A Alemanha possui o quarto supercomputador mais veloz do mundo,

e outros três entre os 25 mais velozes, mas todos eles foram montados

nos EUA, com processadores americanos. Empresas como a Siemens têm

priorizado muito mais o campo energético em detrimento à

microeletrônica. Fatos como esses podem ser encarados como

indicadores de defasagem no campo tecnológico; por mais que seja um

grande investidor dentre os europeus, o país parece estar ficando para trás

em relação a outras potências, especialmente Estados Unidos e China.

Para manter-se com o status de potência, estar entre as líderes nesse

aspecto mostra-se fundamental.

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Política externa e de segurança da Alemanha

121

8. SITUAÇÃO E CONJUNTURA

Nosso Marco de Situação é a crise econômica iniciada em 2008, a

qual gerou grandes mudanças no continente europeu, principalmente no

que se refere à posição ocupada pela Alemanha na região. O país assumiu

uma notável posição de liderança na União Europeia, devido ao tamanho

e à força de sua economia, destacando-se como principal credor para a

reconstrução e reestruturação econômica do bloco. Devido à crise, muitos

países com uma fraca base econômica (turismo, por exemplo)

encontraram dificuldades com a recessão e o endividamento

governamental; Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha, conhecidos

como PIIGS, foram os principais afetados.

Ademais, devido à sua economia sutilmente abalada pela crise, se

comparada às de outros países, a Alemanha estabeleceu para o bloco

medidas de austeridade fiscal, que determinavam cortes nos gastos

governamentais dos países mais afetados. Essas medidas são defendidas

pela Alemanha como a única saída para a salvação das economias em

crise, e devem ser largamente aplicadas.

O ano de 2012 para a Alemanha foi marcado, principalmente, pela

afirmação dessa liderança econômica no âmbito da União Europeia,

destacando-se a ajuda econômica aos PIIGS (notadamente a Grécia) e

pela insistência na manutenção e acirramento das medidas de austeridade

fiscal. Ainda no âmbito da União Europeia, é digno de menção que,

durante as reuniões de Cúpula, muitos dos países se recusaram a ampliar

o orçamento do bloco e procuraram adiar decisões importantes,

demonstrando falta de vontade estatal em investir no mesmo. Também se

destacou uma política alemã mais independente, que pode ser

representada pela abstenção de voto na ONU sobre a questão Palestina.

Além disso, foi relevante a provável desistência alemã do projeto do

gasoduto Nabucco3 e a repentina mudança em relação ao financiamento

do gasoduto South Stream, no final do ano. Por fim, o apoio militar

alemão à Turquia, no tocante à defesa do país contra ameaças da Síria,

com o envio de mísseis Patriot e de uma equipe técnica alemã para sua

instalação na fronteira com o vizinho em conflito, assinala o início de

uma possível cooperação futura maior entre os dois países.

3 Em dezembro de 2012, a segunda maior empresa de energia alemã RWE decidiu

abandonar o projeto de construção do gasoduto Nabucco.

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

122

9. CENÁRIOS

Existem três possíveis rumos para a Alemanha nos próximos anos. O

melhor deles, para o qual as decisões referentes à política externa

demonstram preferência, é a continuidade da integração europeia, nos

moldes atuais, baseada no eixo Berlim-Paris-Londres. Os outros cenários

possíveis são de parcerias inter-regionais com Rússia e Turquia. O último

e pior cenário é a volta à forma de soberania do tipo Independência

(Watson: 2004).

A primeira alternativa é a melhor para o país, tendo em vista que o

mesmo permanece como a nação-líder de um bloco que hoje se apresenta

como uma virtual grande potência. A vontade nacional de persistir nesse

projeto é demonstrada pela busca de uma crescente integração

econômica, mesmo em tempos de crise. Os investimentos feitos pela

Alemanha na União Europeia e na recuperação dos países da Zona do

Euro após a crise mundial apenas reforçam uma tendência integracionista

do país, que unifica tanto a vocação atlantista quanto a eurasiana. Em

resumo, neste cenário a União Europeia se mantém como ator político e

econômico forte no sistema internacional.

O cenário intermediário pode ser descrito como um esforço de

reconstrução hegemônica. Seu fundamento são parcerias inter-regionais,

seja com a Rússia e Turquia — vocação eurasiana — ou com os Estados

Unidos — perspectiva atlantista. A ideia básica é a da Alemanha se

fortalecer no âmbito da U.E através de parcerias inter-regionais na esfera

bilateral. Apesar disso não significar uma ruptura formal de

compromissos com a U.E, muito menos o fim da zona do Euro, há um

enfraquecimento visível da capacidade negociadora da U.E como um

todo, já que a Alemanha passa de fato a responder pela região. No âmbito

das parcerias inter-regionais, pode-se destacar as relações bilaterais da

Alemanha com Estados Unidos, Rússia, China e Turquia. Em meados de

2013, por iniciativa alemã, a União Europeia irá negociar uma Zona de

Livre Comércio com os Estados Unidos. No âmbito das relações

estritamente bilaterais, a Rússia assoma-se como forte parceiro, dada a

interdependência recíproca envolvendo, de um lado, capitais e energia e,

de outro, os hidrocarbonetos. Além disso, a China já é, fora da U.E, o

segundo maior parceiro comercial da Alemanha, com um valor anual de

negócios superior a USD150 bilhões. Mesmo a Turquia — que pertence à

OTAN, mas não à U.E — adquire importância tanto na esfera da

Page 129: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança da Alemanha

123

transnacionalização de empresas quanto no âmbito securitário. De fato,

apesar das restrições constitucionais, a Alemanha passa a cooperar em

matéria de segurança de forma crescente com países extra-regionais: com

os Estados Unidos na África, com a Rússia na Ásia Central e com a

Turquia no Oriente Médio. Contudo, é ingênuo supor que as parcerias

bilaterais são uma alternativa à U.E; trata-se de fortalecer a posição

negociadora da Alemanha no próprio bloco, para que também, a partir da

proeminência internacional, fortaleça-se a posição alemã no âmbito da

zona do Euro. Entretanto, em política, muitas vezes expedientes

transitórios acabam por resultar em soluções permanentes. Deve-se

reconhecer a existência de uma transição hegemônica, caracterizada pela

ação parcial da Alemanha como Independência (âmbito bilateral) e que

isso acarretaria o enfraquecimento da U.E. Neste cenário, em seu limite

extremo, EUA, Rússia e China tornam-se tão importantes para a

Alemanha quanto seus parceiros da União Europeia.

O pior cenário proposto é o retorno à forma de Soberania

Independência (Watson; 2004). A Alemanha se vê abandonada pela

França e, uma vez que a Inglaterra nunca fez parte da zona do Euro,

impossibilitada de manter as três âncoras do Euro (fiscal, cambial e

monetária). Diante disso, encontra-se na contingência de relançar o

Marco alemão e construir ou disputar uma área de influência própria na

Europa. Isso parece possível, a princípio, dado o seu potencial econômico

— a Alemanha continuaria como centro dinâmico da região formada por

países economicamente mais fracos, com poder de influência sobre os

mesmos. Entretanto, esta seria uma influência limitada, e ocorreria um

“rebaixamento” do patamar de grande potência mundial (pela sua

liderança no âmbito europeu) para potência regional. Por hora, contudo,

essa perspectiva parece improvável.

Conclusão

Ao final deste estudo, podemos concluir que a Alemanha possui as

condições necessárias para ser considerada uma grande potência, ainda

que, em alguns quesitos, esteja a uma distância significativa das outras.

Apesar de suas evidentes limitações em matéria de defesa, ela é o carro-

chefe da integração europeia. Seu grande trunfo é ser a mantenedora da

União Europeia, seu suporte econômico, diplomático e político, atuando,

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

124

desde sempre, entre os artífices intelectuais e materiais da integração. Ela

continuará uma grande potência enquanto o bloco permanecer nos moldes

atuais, baseado no eixo franco-germano-britânico.

Resta saber se a União Europeia se manterá na configuração atual.

Em caso negativo, merecem atenção duas hipóteses: uma aproximação da

Alemanha com a Rússia, dada a interdependência comum e o interesse

em reduzir a influência estadunidense na Europa leste. Merece igual

atenção a possibilidade, hoje anti-intuitiva — recentemente a Alemanha

barrou mais uma vez a entrada da Turquia na U.E — de uma

aproximação econômica e política com a Turquia. Naturalmente, essas

possibilidades só fazem sentido em um caso intermediário entre o

segundo cenário e o terceiro ou na configuração do pior cenário

propriamente dito, o de soberania Independência.

Em qualquer hipótese, ainda há muito que estudar acerca da Política

Externa e de Segurança (PES) da Alemanha. Para além de possíveis

insuficiências ou equívocos deste trabalho, permanece o fato de que a

política externa alemã encontra-se em uma fase de transição. Os custos da

recente reunificação ainda não haviam sido integralmente absorvidos

quando eclodiu a crise econômica de 2008. Esta, por sua vez, colocou em

questão o fundamento da PES estabelecida desde o pós-guerra: a

integração. E, a crise da integração europeia recoloca a dualidade entre

atlantismo e eurasianismo, que caracterizaram o Estado nacional.

Permanece em aberto saber qual será o contorno final da PES da

Alemanha, mas, qualquer que seja seu desdobramento, terá importantes

repercussões para a política internacional como um todo.

Referências

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Page 132: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

126

Capítulo 7

POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA

FRANÇA

Andressa Cristina Gerlach Borba

Luciana Costa Brandão

Maximilian Dante Barone Bullerjahn

Marina Soares Scomazzon

Natasha Pergher Silva

Valentina Assis Arnt Andreazza Rossi

Introdução

O presente estudo tem como foco de análise o atual posicionamento

da República Francesa no sistema internacional, atentando para sua

atuação na Europa, no continente africano e no Oceano Índico. Para

tanto, elegemos o seguinte problema como norteador da nossa pesquisa: a

França tem capacidade — militar, econômica e política — para manter-se

como uma das potências do sistema interestatal? Em função da sua

influência no mundo ocidental, parte-se do diagnóstico de que o país

ainda se mantém como uma das potências do século XXI.

O presente artigo instrumentaliza sua análise a partir de uma

dualidade histórica da política externa francesa entre uma vocação ora

direcionada para o Império, ora voltada para a Integração. A dualidade

estará presente em todas as esferas de nossa análise daqui para frente e

configura um elemento chave para os possíveis cenários que

apresentaremos no final do artigo.

1. A DUALIDADE FRANCESA: FRANÇA IMPÉRIO E FRANÇA

INTEGRACIONISTA

O exame da história francesa permite-nos identificar uma dualidade

na essência da atuação do país no cenário internacional, manifestada por

meio de uma política externa que, ora se direciona a uma posição

imperial — de modo a se impor por meio da força e da coerção —, e ora

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Política externa e de segurança da França

127

projeta-se através de posições integracionistas — marcadas pelo

compartilhamento de soberania. Tal dualidade pendula entre esses dois

polos sem chegar aos seus extremos, o que significa que, mesmo quando

há preponderância de um, manifestam-se traços do outro.

Para melhor ilustrar essa dualidade recorremos a dois personagens

importantes da história francesa: Napoleão Bonaparte e Charles De

Gaulle. O Império Napoleônico foi um dos momentos em que a França se

expandiu sobre grande parte da Europa, assegurando o controle e a

organização política e militar dos territórios sobre os quais se projetava.

Assentamentos temporários do Império Francês em outros continentes e

os territórios dominados pela França na África e no Índico são exemplos

do polo França-Império.

Já a França-Integracionista se expressa na tentativa de criação de

instituições econômicas e políticas e no estabelecimento de uma liderança

sob os moldes franceses para a Europa, manifestada com clareza durante

a administração de De Gaulle e mantida nos governos posteriores. Cabe

ressaltar, porém, que o conceito aqui utilizado de Integracionismo tem

suas raízes em um momento histórico anterior com a ideia de Federação

exposta no livro O Espírito das Leis (1748), de Montesquieu

(MONTESQUIEU, 1973). A obra trata da construção de uma República

Federativa, como forma de as cidades-Estado unirem-se para resistir ao

controle imperial externo. Para o estudo do caso francês, a noção de

Federação é trazida para o cenário contemporâneo inserida nas ações

políticas de integração europeia desde a década de 1950. Ao longo da

análise histórica, portanto, elementos desta dualidade dialogam com

eventos e tendências políticas adotadas pelo país.

2. HISTÓRICO: RETOMADA DE FATOS E ILUSTRAÇÃO DA DUALIDADE

No início dos anos 50, as lutas por independência, em especial nos

domínios franceses e britânicos, demonstram o esgotamento do modelo

imperial assumido até então pelos países do velho continente e a

necessidade de alteração na política externa do país. A Crise da Argélia

culmina com a independência da colônia francesa em 1954. Em 1956, o

movimento nacionalista anti-imperialista egípcio, comandado por Nasser,

promove a nacionalização do Canal de Suez, construído em meados do

século XIX e ainda sob controle francês e britânico.

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

128

A intervenção Franco-Britânica na Crise de Suez é combatida pelos

EUA, que defendem a retirada das tropas destes países da região. Como

resultado da Crise, ocorre o afastamento da França em relação aos EUA e

um esfriamento das relações Franco-Britânicas, desde que a Inglaterra

havia decidido fortalecer seus laços com os EUA (MAIOR, 2003: p.213).

A partir daí, a Inglaterra e os EUA deixam de ser vistos pela França como

aliados genuínos e esta se volta para a busca de uma unidade europeia

como caminho para recobrar sua projeção internacional abalada após a

Crise. Este processo culmina em 1966 com a saída da França da OTAN,

durante o governo de Charles DeGaulle.

Durante a administração gaullista percebe-se que uma alternativa

para que a França desempenhasse um papel importante no cenário

internacional seria abandonar o seu compromisso moral com o "Império",

em busca de um modelo mais voltado para a Europa (WERTH, 1967:

p.315). O projeto de integração europeia baseava-se nas ideias de assumir

uma autonomia frente aos Estados Unidos e reconciliar-se com a

Alemanha Ocidental, buscando um projeto conjunto liderado pela França.

Ao sair da OTAN, desativar as bases aéreas da organização localizadas

em seu território e desenvolver um programa nuclear autônomo, a França

busca afirmar sua grandeza nacional e independência. A criação da

Comunidade Econômica Europeia (CEE), assim como o veto da França

ao pedido de participação da Grã-Bretanha no Mercado Comum Europeu,

é outro lado da expressão iniciada no governo De Gaulle, voltada para a

integração europeia e comprometida com o afastamento da influência

estadunidense na região. O Tratado de Maastricht, de 1992, é o

documento que consolidará os esforços de integração iniciados com De

Gaulle.

A institucionalização da integração europeia se dá a partir de dois

modelos: o ideal de uma comunidade europeia, expressão de um método

de tomada de decisões supranacional que abrange assuntos referentes à

política comunitária; em oposição ao mecanismo intergovernamental de

decisões referentes à Política Externa de Segurança Comum (PESC) e aos

assuntos internos, mantendo a soberania dos Estados-membros quanto a

aspectos estratégicos. Em 2005 propõe-se uma Constituição Europeia —

uma instituição que seria o passo decisivo para a consolidação da

integração europeia nos termos clássicos do federalismo: a formação de

um "Estado Europeu". A medida não foi posta em prática depois da sua

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Política externa e de segurança da França

129

rejeição pelas populações da França e dos Países Baixos. No sentido

oposto, o Tratado de Lisboa de 2007 apenas reafirma o mecanismo de

decisão intergovernamental já estabelecido em Maastricht, não agindo

como real fortalecedor do processo de integração. A Política Externa de

Segurança e Defesa falha, portanto, na capacidade real de atuação, pois a

criação de um acordo de defesa e segurança comuns mantém-se

condicionado ao plano de decisão doméstico.

O direcionamento da política externa francesa para o polo

imperialista ocorre a partir do governo de Jaques Chirac. Nele, há um

endurecimento político francês no cenário internacional principalmente

quanto à administração de suas esferas de influência, aumentando a

projeção de forças para o Índico e instituindo-se a Doutrina Chirac, a qual

permite a utilização de armas nucleares mesmo contra países que não as

possuem. Em paralelo a isto, houve o retorno à OTAN, concluído em

2009 no governo de Sarkozy.

A análise destes eventos históricos evidencia que o padrão de

alinhamento francês convive com um desejo de estabelecer-se enquanto

polo do sistema internacional, mantendo as bases para sua projeção de

força.

3. A ECONOMIA COMO VARIÁVEL INTERPRETATIVA DA DUALIDADE

FRANCESA

A França sempre foi fundamental para o continente europeu, pois,

como polo industrial consolidado, atrai investimentos estrangeiros

independentemente de flutuações econômicas ou políticas. Em 2011, o

PIB do país chegou a 2,7 trilhões de dólares, tornando-se a 10ª economia

do mundo e 3ª na Europa — atrás da Alemanha e do Reino Unido (CIA,

2012). Para o presente trabalho, a relação econômica com esses dois

países é encarada como uma chave de interpretação da dualidade

anteriormente exposta. Por um lado, a aproximação com a Alemanha no

âmbito econômico caracteriza uma postura mais integracionista pela

necessidade de simbiose entre ambos para o êxito da União Europeia. Por

outro lado, o estreitamento dos laços com a Inglaterra configura a

afirmação da autonomia francesa, pautada em uma política externa mais

independente e de expansão da sua área de influência para fora do

continente europeu.

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

130

A Alemanha, principal parceira comercial da França, é responsável

por 16,7% das exportações e 19,1% das importações do país, sendo o

comércio entre eles quase duas vezes maior do que com a Bélgica e com

a Itália (segundos colocados na relação de parceiros comerciais), o que

confirma a interdependência econômica de ambos. A participação do

Reino Unido corresponde a 6,7% das exportações, e 5,1% das

importações francesas, o que demonstra que a França mantém uma

relação mais estreita com a Alemanha do que com o Reino Unido

(BRIDGAT, 2008).

Em 2011 o relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI)

diagnosticou deterioração das finanças públicas francesas causadas por

fatores estruturais e pelo impacto da crise financeira de 2008,

demonstrando os efeitos negativos do aprofundamento da integração.

Além de desequilíbrios fiscais, a perda de competitividade da economia,

as dificuldades estruturais no mercado de trabalho e os gastos com

seguridade social também foram mencionados. As medidas

recomendadas pelo FMI não previam alinhamento no âmbito da UE,

deduzindo que as dificuldades econômicas só seriam convertidas através

de medidas governamentais (IMF, 2011a).

As dificuldades econômicas enfrentadas pela França são um

elemento chave para a compreensão da política externa do país nos

próximos anos. A rejeição da Constituição Europeia se deu, em grande

parte, por fatores econômicos, de modo que uma economia frágil pode

impedir o fortalecimento da parceria franco-alemã e da União Europeia.

A alternativa, nesse caso, seria a busca de parceiros extracontinentais,

seja entre os países em desenvolvimento, seja com os EUA. A partir desta

análise, então, reconhecemos a presença de condicionantes econômicos

na dualidade francesa.

4. INSTITUIÇÕES POLÍTICAS:

A política francesa possui uma característica determinante: a

autoridade reforçada do executivo em relação ao parlamento. O executivo

é de regime semi-presidencialista, composto pelo presidente da República

e pelo primeiro-ministro. O Parlamento auxilia o Presidente na definição

da estratégia de segurança nacional e autoriza o envio das forças armadas

para o exterior.

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Política externa e de segurança da França

131

Duas ideologias divergentes dominam o cenário político francês,

com confrontos que variam ao longo da história. Atualmente, esta

divergência se efetiva por meio de dois grupos políticos opostos: um de

esquerda, centrado no Partido Socialista Francês, e outro de direita,

centrado na União por um Movimento Popular (UMP). Ao analisar os

períodos nos quais a França esteve sob comando de partidos de esquerda

percebe-se uma tendência integracionista européia, através de uma

liderança franco-alemã, e um alinhamento com o terceiro-mundo. Em

governos nos quais a Direita ocupa o poder executivo, existe uma

projeção mais ofensiva da França buscando uma reafirmação do poder e

do status quo nacional francês.

Esta característica da política externa francesa é salientada em

períodos de coabitação, quando o poder executivo é dividido por dois

partidos de oposição, sendo o primeiro-ministro responsável pelas ações

de governo, enquanto cabe ao presidente a política externa. Isto ocorreu

três vezes na história da França, sendo o período de governo Mitterrand-

Chirrac (1986-1988) o mais exemplar.

5. SEGURANÇA E DEFESA: ENTRE A HEGEMONIA COLETIVA E O

IMPÉRIO NEOCOLONIAL

A doutrina de segurança e defesa que orienta a política externa da

França pauta-se no Livro Branco de Defesa francês de 2008, o qual

tenciona garantir a posição de potência militar e diplomática da França,

assegurando a independência do país e a proteção de seus cidadãos

(FRANÇA, 2008). Tal doutrina foi elaborada dentro de um contexto

internacional que, segundo seus idealizadores, exige capacidades de

antecipação, de adaptação rápida e de resposta por parte de seus agentes.

Partindo desse novo contexto, o Livro mostra que os desafios à

segurança francesa se assemelham àqueles presentes na Estratégia de

Segurança Europeia, divulgada em 2003, a qual buscava um

enfrentamento conjunto dos riscos à segurança dos Estados europeus e

pretendia, como parte dos objetivos estratégicos, garantir uma ordem

internacional baseada no multilateralismo. É importante lembrar que,

embora haja uma Estratégia de Segurança Europeia e uma Política

Externa de Segurança Comum (PESC) as decisões a respeito do assunto

continuam sendo, em última instância, governamentais e não

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

132

supranacionais.

A Estratégia de Segurança da França ainda enfatiza os desequilíbrios

securitários do norte da África, da Ásia Central e do Oriente Médio,

região denominada como “Arco de Crise”. A presença francesa no Índico

e na África remonta ao período do colonialismo e da partilha da África no

século XIX e faz parte da história política francesa dentro da busca pelo

seu status de hegemonia e reconhecimento como potência. Atualmente o

país tem bases militares permanentes na região do Oceano Índico - nas

ilhas de La Réunion e Mayotte -, nos Territórios Franceses Austrais e

Antárticos, bem como em Abu Dhabi. A localização estratégica na região

possibilita o acesso tanto ao Oriente Médio como à África e o

acompanhamento das rotas de comércio existentes na região,

principalmente de armas, matérias-primas e petróleo. Ademais, cada um

dos territórios franceses no Índico ainda proporciona uma extensão de 11

milhões de km² de Zonas Econômicas Exclusivas, permitindo a

exploração e uso de recursos marítimos, inclusive para produção de

energia.

No continente africano, a França possui bases permanentes apenas

em Djibouti e no Gabão (ZOUBIR; DEGANG, 2011: 101), mas atua em

missões de paz na Costa do Marfim e no Chade, bem como em operações

para conter a pirataria na costa da Somália e auxiliando através de

missões da ONU a reforma no sistema de segurança da República

Democrática do Congo. Apesar de dados apontarem que quase metade

das tropas francesas fora do continente europeu está na África,

argumenta-se sobre uma mudança da mentalidade da ocupação francesa

em direção a uma “europeização” das missões através da cooperação

militar com outros países (ZOUBIR; DEGANG, 2011). Mudança essa

que pode ser compreendida tanto como uma alteração da postura

francesa, ou como uma necessidade estrutural própria.

O foco da política de defesa da França enfatiza as capacidades

móveis, bem como a redução do contingente, do número de aviões de

combate, e do número de estabelecimentos de serviços, com vistas a gerar

recursos para investimento em capacidades (IISS, 2012). Busca-se, com

isso, garantir resultados mais eficientes e racionalizar custos, sem

comprometer o rendimento das forças armadas. Esse esforço de

modernização, através de investimentos em tecnologia e redução dos

gastos em custeio configura um elemento essencial para essa análise, uma

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Política externa e de segurança da França

133

vez que é um dos condicionantes da perda de competitividade militar da

França em relação às demais grandes potências.

Em concordância com a proposta de racionalização de custos em

defesa, um acordo de cooperação militar foi firmado entre França e Grã-

Bretanha em 2010. Conhecido como Entente Frugale, visa à coordenação

das forças armadas de ambos os países nos seus diversos níveis de

atuação (exército, marinha, aeronáutica). O desenvolvimento de uma

sólida base industrial de defesa, bem como a consolidação de uma

doutrina militar conjunta, configuraram os eixos norteadores da

aproximação franco-britânica, resultando no estabelecimento de uma

força conjunta expedicionária combinada (CJEF). Programas de

treinamento conjunto, como o Exercise Flandres 2011, foram criados com

vistas a testar os níveis de interoperabilidade entre os exércitos. Esses

acordos militares indicam que o país tem buscado criar sinergias de

projeção, em especial na África Setentrional e Oriente Médio.

A arquitetura marítima da Entente Frugale é formada por três porta-

aviões: o Charles de Gaulle, francês, e os Queen Elizabeth I e II,

britânicos — estes últimos ainda em fase de construção, com previsão de

entrega para 2016. A cooperação conta com pesquisas conjuntas para

promover avanços tecnológicos, assim como a utilização compartilhada

dos porta-aviões por ambos os países. Finalmente, o acordo previa na

esfera aeronáutica a aquisição de equipamentos, o aprimoramento

tecnológico de sistemas aéreos não tripulados, o desenvolvimento de

armas complexas e de comunicação via satélites, a fabricação de mísseis

(SCALP-EG/Storm Shadow) e o suporte logístico para a aeronave de

transporte A400M, visando ao compartilhamento de gastos de custeio.

Outros projetos colaborativos da França incluem ainda a venda de 4

navios da classe Mistral para a Rússia e a participação em projetos

desenvolvidos no âmbito da OTAN, como o Projeto SCORPION . Cabe

salientar que, a despeito dos múltiplos acordos na esfera militar, há um

esforço por parte do governo francês em fortalecer as empresas militares

nacionais, sendo o principal exemplo a Dassault, de quem o governo se

comprometeu a comprar 11 aeronaves por ano, de 2011 a 2013, para

garantir a linha de produção do Rafale.

Finalmente, o que se pode perceber em termos de cooperação

militar, condizente com a dualidade que norteia o presente estudo, é que a

França tem buscado se consolidar militarmente através desses projetos

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

134

colaborativos, desde que esses garantam o acesso à capacidade e à

tecnologia, como uma maneira de superar o atraso em relação às demais

potências mundiais, a fim de recompor suas capacidades e efetivar a

transição tecnológica.

Se comparada aos Estados Unidos, à Rússia, à China e à Índia as

forças de manobra terrestre francesas são pouco significativas, sendo

similares às do Reino Unido. Tal debilidade, no entanto, não se faz

presente quando se trata de forças aéreas. França e Reino Unido possuem,

conjuntamente, 95 unidades de aviões de transporte pesado (56 e 39,

respectivamente), o que lhes confere ampla capacidade de aerotransporte

inter-regional se comparada com Índia (24) e China (57). Esses números

colocam a Entente Frugale em posição relevante no que tange à

mobilidade estratégica. Em se tratando de aviões de combate, a França

possui 263 aviões de quarta geração. Segundo a RIA Novosti, no entanto,

a França tem acompanhado o movimento da Rússia, dos Estados Unidos

e da China no sentido de produzir um novo complexo de aviação militar.

Os esforços em desenvolver novos aviões de combates, mais modernos e

com tecnologia avançada, são evidentes e configuram a tentativa de

chegar à sexta geração de aviões de combate.

Já em termos de projeção marítima, a França pode ser considerada

uma potência relevante. O porta-aviões Charles De Gaulle, além de ser

um elemento essencial para a arquitetura da Entente Frugale, é capaz de

carregar até 40 aviões de combate, sendo fundamental para a projeção

francesa no Índico e para a consecução da prioridade estratégica

materializada no “Arco de Crise”. Em 2011, o Charles De Gaulle

participou da operação no Mediterrâneo que deu suporte à invasão da

Líbia por parte da OTAN. Cinco meses após o início da missão, o porta-

aviões teve de abandonar a operação devido à necessidade de

manutenção.

A partir dos dados expostos acima, nota-se que a França possui

capacidade para projeção de forças fora do continente quando focada em

apenas um local. O envio de forças para mais de uma região inviabilizaria

a estratégia francesa e não seria eficaz, dada a desvantagem numérica e

tecnológica de seu efetivo frente ao de outros países que emergem como

potências regionais. Entretanto, também é possível ver que, através de

seus acordos de cooperação com a Inglaterra, o país reforça e moderniza

seu contingente, possibilitando uma estratégia de projeção em mais de um

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Política externa e de segurança da França

135

continente.

6. INFRAESTRUTURA E TRANSIÇÃO TECNOLÓGICA: O FORTALE-

CIMENTO DO PILAR INTEGRACIONISTA

A dependência do petróleo e do gás natural estrangeiro é o elemento

essencial para a análise da PES da França no que tange à infraestrutura,

justificando a intensa rede de oleodutos e gasodutos compartilhados com

seus vizinhos europeus, e o apoio francês a projetos como o gasoduto no

Mar Báltico, o Nord Stream. Atualmente, a França apoia o projeto South

Stream, que parte da mesma origem - a Rússia - porém atravessando o

Mar Negro e fornecendo gás para o centro da Europa.

Devido a essa dependência, a energia nuclear foi a alternativa

adotada pela França. Hoje o país conta com um total de 59 reatores e

administra por volta de 20 usinas nucleares, produzindo cerca de 80% da

eletricidade na França. A sustentabilidade deste modelo no século de

transição para as energias renováveis é, no entanto, questionável.

Os investimentos em infraestrutura de transporte também atuam

como elemento edificador do processo de integração europeu. Dentre os

principais projetos ferroviários, destacam-se o Eurostar e o TGV. O país

tem dado preferência a projetos europeus, a exemplo do Connecting

Europe Facility, que prevê 40 bilhões de euros investidos nas áreas de

transporte, telecomunicações e energia nos países do bloco. Outro caso de

cooperação intraeuropeia é o sistema de navegação por satélite da União

Europeia, o Galileo (ESA, 2012).

A capacidade em realizar a transição tecnológica para a Terceira

Revolução Industrial depende de investimentos na área de Pesquisa e

Desenvolvimento (P&D). Os gastos do governo francês com P&D são da

ordem de 2,1% do PIB - em torno de 43 milhões de dólares (UNESCO,

2010: 166; R&DMAGAZINE, 2011). Estes valores perdem força quando

comparados às economias asiáticas como o Japão e China, e aos próprios

EUA. Em termos de capacidade de inovação, a França é considerada um

"seguidor de inovações" (EUROPEAN COMISSION, 2009: 10),

enquanto Alemanha e Reino Unido ocupam posições de liderança. No

entanto, entre os supercomputadores mais velozes do mundo, a França é o

único país europeu que realiza a montagem dos equipamentos (TOP500,

2012), ao passo que os demais importam seus modelos dos Estados

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

136

Unidos, o que evidencia sua posição de potência.

Quanto às matérias primas primordiais para a Terceira Revolução

industrial, como alumínio, silício e terras raras, nota-se uma preocupação

do governo francês em aperfeiçoar as técnicas de extração e produção,

muito embora, o país não possua em quantidades significativas tais

elementos em seu território. Pode-se dizer que a França possui as

capacidades necessárias para se estabelecer enquanto potência

tecnológica e como uma das líderes ocidentais nesta nova etapa da

produção, desde que sua projeção global seja feita em conjunto com a

União Europeia. Por fim, o continente africano apresenta-se como

elemento chave para que a França lidere o processo de transição

tecnológica, e a manutenção da esfera de influência francesa sobre

Estados africanos que possuem recursos estratégicos é vital.

7. SITUAÇÃO E CONJUNTURA

O marco da situação é a eleição de François Hollande para a

Presidência da França. Hollande concorreu pelo Partido Socialista e

derrotou o então presidente Nicolas Sarkozy, candidato pela UMP.

O novo presidente socialista tem se deparado com desafios tanto no

âmbito doméstico, com o agravamento da crise econômica, como no

âmbito europeu, com os desentendimentos em relação às políticas fiscal e

monetária promovidas pela Alemanha. Outra questão polêmica gira em

torno do Banco Central Europeu, o qual, na visão francesa, deve ser

utilizado como um órgão promotor de políticas macroeconômicas, ao

passo que os alemães defendem a sua neutralidade, elemento que dificulta

o pilar integracionista da PES da França.

A despeito de constituir, em conjunto com a Alemanha, o principal

pilar da integração regional, a França tem projetado sua influência além

da Europa. Como antiga potência colonial, fazem parte da República

Francesa uma série de territórios ultramarinos e, além disso, há um vasto

leque de países — como as ex-colônias situadas no “Arco da Crise” —

que mantêm laços estreitos com a antiga metrópole e dela permanecem

dependentes. A instabilidade na política interna de alguns destes países

tem servido de justificativa para ações militares francesas. São os casos

da Costa do Marfim, do Mali e da República Centro-Africana, que

receberam tropas francesas nos últimos meses. Esses eventos servem para

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Política externa e de segurança da França

137

ilustrar que a manutenção da zona de influência francesa extrarregional

está relacionada à sua capacidade de projeção de força além teatro.

A França vive um dilema: por um lado, parece depender das

intervenções para manter sua influência mundial; por outro, isto tem

dificultado o entendimento com a Alemanha no que diz respeito ao futuro

da integração e o rumo dos gastos militares europeus. Assim, cabe à

República Francesa avaliar com precisão as medidas que devem ser

adotadas para que sua condição de grande potência se coadune com seus

propósitos de integração na União Europeia.

8. CENÁRIOS

Nesta modelagem considerou-se que o melhor cenário para a França

seria o fortalecimento da integração europeia, reafirmando sua economia

como um dos sustentáculos do Euro. Deste modo, seria possível alcançar

um consenso quanto ao futuro da União Europeia e superar a crise

juntamente aos outros países europeus. Resta saber o efeito que isso teria

sobre a PES da França, pois a esfera de decisão nacional seria transferida

para uma nova unidade política maior. Igualmente, ficaria em aberto o

caráter da interação francesa com a África. Qualquer que seja o caso, em

um horizonte predizível de eventos, parece que as ex-colônias francesas

permanecerão dependentes de capitais, tecnologia, mercadorias e serviços

da França.

Convencionou-se que o pior cenário seria a retomada do

imperialismo. A Entente Frugale encarrega-se de conferir estatuto de

realidade a essa especulação. Isso traduziria o reforço das ações típicas da

França-Império, emulando o chauvinismo e transmitindo a impressão

dúbia de um poderio ampliado. As capacidades francesas no âmbito da

Entente Frugale autorizam a pensar que sua influência poderá ser

exercida de modo efetivo, simultaneamente, no Oceano Índico e na

África - o “Arco da Crise”. Nesta hipótese resta saber, como esta postura

refletiria na integração europeia. Ademais, fica em aberto os efeitos sobre

o aumento dos gastos com custeio militar e os investimentos necessários

para a transição tecnológica.

Por fim, convencionou-se como o cenário intermediário a hipótese

da França conciliar sua projeção global com o financiamento da transição

tecnológica através do incremento de parcerias interregionais com a semi-

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

138

periferia. Essa configuração coloca os mercados da semi-periferia como

potenciais parceiros para a França. A principal diferença para o segundo

cenário é que a França procuraria beneficiar-se da exportação de bens e

serviços de alto valor agregado. Desse modo, Brasil, Rússia, Índia, e

China se tornariam os principais focos da PES da França. Caso o esforço

seja bem-sucedido, a França poderia, simultaneamente, reter seu papel de

grande potência e otimizar sua economia como alavanca do Euro,

fornecendo a esses países tecnologia, bens de capital e material bélico.

Conclusão

Indubitavelmente, a França é uma grande potência. Qualquer que

seja o critério (econômico, político e militar) é difícil de colocar em

questão o status internacional da República Francesa. A França possui um

respeitável arsenal nuclear, termo-nuclear, submarinos lançadores de

mísseis balísticos intercontinentais e compartilha com os EUA a condição

única de deter capacidade de projetar forças convencionais em qualquer

recanto do planeta — prerrogativa que nem mesmo a Rússia ou a China

possuem. Trata-se do único país da Europa que produz

supercomputadores, o que, associado ao seu domínio aeroespacial, lhe

insere favoravelmente na transição tecnológica.

Percebe-se que o país vive um dilema entre o integracionismo e o

império. A escala de sua economia é portentosa e, apesar de seu déficit

(comercial e fiscal), bem como da crise econômica europeia, a condição

de país enquanto exportador de capitais e tecnologia se mantém até o

presente. Desse modo, a reestruturação da sua inserção internacional

parece possível. Em estudos futuros, portanto, importa observar a

correlação entre os gastos com custeio e os investimentos de capital.

Talvez, este se constitua em um dos principais indicadores acerca do

status da França na transição tecnológica e de sua manutenção como

grande potência ao longo do século XXI.

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Page 148: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

142

Capítulo 8

POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DO

REINO UNIDO

Glaúcia de Siqueira Noronha

Jéssica Delabari de Lima

Marina Lua Vieira dos Santos

Matheus Schneider Gebhardt

Introdução

O Reino Unido, junto com França e Alemanha, compõe o tripé que

comanda os destinos da União Europeia (UE). A aliança com os Estados

Unidos permitiu que o país se mantivesse no centro da governança

global, e consistiu em apoio fundamental à liderança americana em nível

global. Por último, constitui por si só uma força política-econômica-

financeira de relevo, com forças armadas modernas e capacidade

dissuasória nuclear consolidada. Neste sentido, buscamos aqui apontar os

principais eixos da Política Externa e de Segurança (PES) britânica,

elencando seus constrangimentos externos e internos, suas possibilidades

e os recursos que se colocam à disposição do país.

O Reino Unido é a unidade política que congrega os Estados da

Inglaterra, Escócia, Irlanda do Norte e País de Gales, estendendo-se sobre

243.610 km2 e organizado sob um sistema parlamentarista comandado

por um monarca (chefe de Estado) e um primeiro-ministro (chefe de

Governo). Hoje, ocupam os cargos a Rainha Elizabeth II e David Donald

Cameron, respectivamente. O Reino Unido está entre as principais

economias do globo, ostentando um Produto Interno Bruto (PIB) de US$

2,3 trilhões (7º) e um PIB per capita de US$ 36.728 (21º). A população

de 61 milhões se concentra basicamente nas cidades (89,9%) em

detrimento do campo (10,1%), o que reflete bem a economia baseada na

atividade de serviços (73%, contra 16,7% da indústria e 10,3% da

agricultura).

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Política externa e de segurança do Reino Unido

143

1. HISTÓRICO

1.1. A Aliança Anglo-Americana

A relação especial construída entre Inglaterra e Estados Unidos tem

seu embrião no contexto de II Guerra Mundial, sendo particularmente

sintomáticos a ocorrência da Missão Tizard e seus desfechos: a cessão de

tecnologias britânicas vitais em favor do poderoso complexo industrial

americano; e a "divisão de trabalho" que cedeu aos EUA os louros da

aviação civil-comercial, a qual se desenvolveria amplamente na segunda

metade do século XX (ENGEL, 2005). No período de Guerra Fria, o

Reino Unido apresentou-se como principal aliado norte-americano,

agindo como base avançada na Europa e fazendo uso de suas porções

extraterritoriais em benefício do projeto de "cercamento" da URSS

(ELLIS, 2009, p.34). É nesse contexto que EUA e Reino Unido avançam

também na constituição de uma rede compartilhada de inteligência

(Acordo UKUSA, 1946), que abarcaria mais tarde Canadá, Austrália e

Nova Zelândia, constituindo o grupo dos Five Eyes. Outrossim, faz-se

necessário destacar o crescimento da importância dos Estados Unidos da

América (em oposição ao declínio relativo do RU) para a política externa

e de segurança dos países da Commonwealth, que historicamente tinham

na Inglaterra o seu aliado mais eminente (GARDHAM, 2010)

Findo o período de Guerra Fria, pouco mudou nas relações EUA-

Reino Unido. Já em 1991, George Bush (republicano) e John Major

(conservador) empreenderam a primeira intervenção conjunta no Iraque

de Sadam Hussein. Em 2001, a invasão do Afeganistão contou com apoio

irredutível britânico, apesar do ineditismo da Guerra ao Terror enquanto

conflito não-interestatal. Finalmente, a segunda guerra no Iraque (2003)

reforçou a ideia de relação especial entre EUA e RU face à voz solitária

— mas irredutível — de Tony Blair no suporte à invasão americana. Fato

curioso, mas não menos revelador da hipótese de relação especial, foi a

sinergia verificada entre os governos de Tony Blair (trabalhista) e de

George Walter Bush (republicano), que ocorreu à revelia das

incongruências político-ideológicas: intuitivamente, esperar-se-ia maior

cooperação nos períodos que sobrepuseram democratas e trabalhistas ou

republicanos e conservadores no poder dos Estados americano e

britânico, respectivamente. Verificar que isso não é necessariamente

verdade, no entanto, revela uma disposição institucional e fortemente

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

144

arraigada em torno da cooperação e coordenação (hierarquizada) das

políticas empreendidas pelos Estados americano e britânico.

1.2. O Reino Unido e a Política Externa e de Segurança Comum (UE)

O Tratado de Lisboa, que entra em vigor em 2009, teve como

objetivo reformular o funcionamento da União Europeia. Entre as

reformulações, está a mudança da Política Externa e de Segurança

Comum (PESC) para a Política de Defesa e de Segurança Comum

(PDSC), que engendrou a criação de um acordo de defesa comum da UE.

O Reino Unido, diante das mudanças, preferiu optar por ter direito de

exceção em relação a asilos, vistos e imigração. Nesse âmbito, há apenas

um cargo para os assuntos exteriores, o Alto Representante da União para

os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, representado por

Catherine Ashton, que é britânica. Porém, é o Conselho da UE que aprova

as decisões necessárias à definição e à execução da política externa e de

segurança. De acordo com a pesquisa encomendada pela Comissão

Europeia, feita em 2012, o Eurobarômetro, o Reino Unido tem o menor

índice de confiança na UE (16% da população confiam e 75% não

confiam). Vários partidos apresentam, no mínimo, algum grau de

euroceticismo. O Partido Conservador, por exemplo, fez campanha contra

a adesão à União Monetária, enquanto o Partido Trabalhista já se

apresenta mais dividido internamente nessa questão. É importante

ressaltar que 47% da população apoiam a saída do país da UE e 33%

apoiam a permanência.

1.3. A Aliança Franco-Britânica

Ainda que construída sobre uma base de rivalidades e embates

frequentes, as relações entre os Estados britânico e francês nos últimos

cem anos esboçam um quadro de íntima coordenação das políticas dos

dois países. O marco inicial que permitiu o avanço do diálogo entre

franceses e britânicos foi a instituição da Entente Cordiale (1904), que se

não criou mecanismos profundos de cooperação, logrou antes a

estabilização das relações binacionais, marcadas historicamente pela

guerra. Para além disso, os eventos das duas guerras mundiais fizeram

aprofundar os laços entre França e Reino Unido, que a partir do acordo de

Page 151: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança do Reino Unido

145

Sykes-Picot (1916) buscariam em conjunto afirmar-se em regiões

estratégicas como o Oriente Médio (SYKES-PICOT AGREEMENT,

1916). Quase como reeditando Sykes-Picot, franceses e britânicos

negociaram com Israel, em 1956, o estopim da Crise de Suez em uma

sequência de eventos previamente planejados. O acordo, conhecido como

Protocolo de Sèvres, previa uma invasão israelense sobre o Egito,

seguido de uma contra-intervenção franco-britânica expressa por meio de

uma Força-Tarefa composta por militares das duas nacionalidades. O

objetivo, finalmente, seria retomar das mãos de Nasser o controle sobre o

Canal de Suez, reafirmando a presença franco-britânica no Oriente

Médio.

Ainda sobre 1956, especula-se acerca de um pedido de inclusão da

França ao Reino Unido, ocorrido no contexto da Crise de Suez, em

conversas entre o Primeiro-Ministro francês Mollet e seu colega

britânico, Eden. Revelada em 2007 pela British Broadcast Corporation

(BBC), a informação sobre uma "União Franco-Britânica" deriva

alegadamente de documentos secretos recentemente desclassificados, e

aos quais a BBC logrou acesso (THOMPSON, 2007). Como exposto, o

conteúdo do documento não traz à tona fatos novos à historiografia; antes

disso, revela uma disposição maior do que a conhecida para que França e

Reino Unido enveredassem por uma alternativa de aliança especial — ou

mesmo federalismo — contrapondo-se ao projeto europeu e

contrabalanceando a pujança crescente da Alemanha Federal. Mais

recentemente, a parceria entre britânicos e franceses retomou sua

importância a partir do seu Tratado de Cooperação em Defesa e

Segurança (2010), apelidado Entente Frugale, que institucionaliza a

integração das operações militares de França e Reino Unido em áreas

diversas de Defesa e Segurança. Na sessão "Segurança e Defesa",

destacaremos o papel conjunto das capacidades britânicas e francesas

somadas, visto os acordos binacionais entre Reino Unido e França, que

estabeleceram a interoperabilidade de parte importante de seus recursos

de Defesa. Porém, em benefício do rigor metodológico e do corte

temporal que adotamos, o acordo da Entente Frugale em si será

aprofundado na sessão “Situação”.

Page 152: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Relações internacionais contemporâneas 2012/2

146

2. INSTITUIÇÕES POLÍTICAS

Sendo o Reino Unido um país baseado no Parlamentarismo como

sistema político, quem possui o Poder Executivo realmente é o Chefe de

Governo, que é o Primeiro Ministro, David Cameron. Os principais

partidos políticos do sistema britânico são o Partido Conservador, com

tendências pró livre-comércio e relação especial com os EUA; o Partido

Trabalhista, que inicialmente se apresentava como de esquerda, mas a

partir dos anos 1980 se tornaram adeptos ao livre-mercado, e atualmente

defendem políticas mais conservadoras para ganhar mais votos; e os

Liberais Democratas, que são pró União Europeia.

O órgão responsável pela implementação das relações internacionais

do Reino Unido é o Foreign and Commonwealth Office, chefiado pelo

secretário de Estado William Hague. Entre as suas atribuições estão as

relações com outros países, os assuntos pertinentes à Commonwealth e

aos territórios ultramarinos, a promoção dos interesses britânicos no

exterior e a responsabilidade pelo Serviço Secreto de Inteligência. O

Ministério apresenta quatro objetivos principais: (i) o combate ao

terrorismo e à proliferação de armas; (ii) a prevenção e resolução de

conflitos; (iii) a promoção de uma economia global com diminuição do

uso de carbono e alto crescimento; e (iv) o desenvolvimento efetivo de

instituições internacionais, especialmente a ONU e a UE.

Há, ainda, o Department for International Development, responsável

pelas questões de desenvolvimento internacional. A chefe do DFID é a

Secretária de Estado do Desenvolvimento Internacional, Justine

Greening. Os objetivos do órgão são promover o desenvolvimento

sustentável, eliminar a pobreza mundial, ajudar em desastres naturais,

emergências e apoiar os Objetivos do Milênio da ONU.

A Commonwealth (Comunidade das Nações) é uma organização

intergovernamental composta por 54 países-membros, todos ex-colônias

do Reino Unido, menos Ruanda e Moçambique. Nem todas as ex-

colônias fazem parte, como o Zimbábue e os Estados Unidos. A

organização compartilha valores e objetivos comuns, como a promoção

da democracia, dos direitos humanos, da boa governança, do Estado de

direito, da liberdade individual, da igualdade, do livre comércio, do

multilateralismo e da paz mundial. A Rainha Elizabeth II é a chefe da

Comunidade das Nações e chefe de Estado de todas as monarquias nela

presentes, os “16 Reinos da Commonwealth”.

Page 153: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança do Reino Unido

147

3. ECONOMIA

A economia britânica baseia-se, principalmente, no setor de serviços,

que corresponde a 73% do PIB do país, e no setor financeiro. A indústria

ainda é parte significativa da economia do país, tendo destaque a

indústria automobilística, aeroespacial e farmacêutica. As grandes

multinacionais britânicas são principalmente do setor petrolífero, de

extração mineral, bancos e telecomunicações. Constituem-se, portanto,

em companhias de importante peso político e estratégico.

O principal parceiro econômico, em termos de comércio e

investimento, do Reino Unido é os Estados Unidos. Existe entre eles uma

relação desigual de maior dependência por parte do Reino Unido. A

União Europeia, se considerada em seu agregado, possui maior peso

econômico do que os Estados Unidos. Contudo, após a crise de 2008,

observa-se uma tendência declinante dos fluxos de negociação do país

com o Bloco, aumentando a relevância das negociações bilaterais —

tendência também observada nas relações políticas do Reino Unido com

o resto da Europa.

4. INFRAESTRUTURA

A constituição de infraestrutura assume papel fundamental para o

Reino Unido, em especial a partir de sua condição geográfica básica:

insularidade. Neste sentido, grande parte de sua integração comercial

depende do transporte marítimo, tanto de curta, quanto de longa distância.

Em 2011, 730 cargueiros de grande porte estavam registrados sob

bandeira britânica, sendo: 162 cargueiros-tanque; 140 cargueiros Roll On-

Roll Off; 114 cargueiros de container; e 78 graneleiros. Os principais

portos do Reino Unido estão localizados em Felixstowe (3,4 milhões de

contêineres/2010) e Southampton (1,54 milhões de contêineres/2010),

respectivamente na costa leste e sul da Inglaterra.

Quanto aos meios ferroviários, o mesmo assume papel relevante,

mas não determinante: atualmente, a principal empresa de transporte

ferroviário de carga no Reino Unido é a alemã DB Schenker. A recente

política de priorização do método rodoviário vem reduzindo a quantidade

de estradas de ferro disponíveis no país (em 2004, eram 17,3 mil

kilômetros (km); em 2010, 16,5 mil) em favor das rodovias. Estas

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

148

últimas, subiram de 371 mil km em 1998, para 395 mil km em 2009,

assumindo maior relevância no transporte da produção britânica.

5. SEGURANÇA E DEFESA

A Política de Defesa britânica sofreu importante revés a partir da

crise econômica que atingiu o país, levando à contenção do orçamento

militar em até 30% para os próximos anos. Atualmente, o orçamento da

pasta é de US$ 62,7 bilhões, representando 2,6% do PIB britânico. O

investimento reflete em um efetivo de 174 mil militares na Ativa

(Exército: 100 mil; Marinha: 34,6 mil; e Aeronáutica: 39,4 mil) e 82 mil

na Reserva, constituindo capacidade expressiva de segundo ataque. Ainda

no contexto de racionalização do orçamento, o Strategic Defence and

Security Review de 2010 estabelece o incremento das Forças Especiais e

do Grupo de Operações Cibernéticas, apontando para um esforço de

modernização das atividades militares. O plano Future Force 2020 inclui,

ainda, o rearranjo das estruturas de comando e da distribuição de oficiais

entre as Forças Armadas, devendo o Exército ceder pessoal em favor da

Marinha e Aeronáutica, que ganharão ainda mais destaque.

MBT Blindados

Reino Unido 227 526

França 254 232

Entente Frugale 481 758

Índia 568 1.105

China 2.800 2.390

Rússia 1.300 4.960

Estados Unidos 6.302 6.452

Page 155: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança do Reino Unido

149

Caças de 4ª

Geração

Helicópteros

(Ataque)

Helicópteros

(Transporte)

Reino Unido 220 66 183

França 263 36 162

Entente Frugale 483 102 345

Índia 280 20 117

China 747 16 294

Rússia 916 355 638

Estados Unidos 3.029 862 2.809

Porta-

aviões

Submarinos

Táticos

Submarinos

Estratégicos

Cruzadores,

Destróieres e

Fragatas

Reino Unido - 7 4 18

França 1 6 4 24

Entente Frugale 1 13 8 42

Índia 1 1 - 21

China - 5 3 78

Rússia 1 25 12 32

Estados Unidos 11 57 14 111

Tabelas elaboradas pelos autores. Fonte: IISS Military Balance 2012.

Ainda no tocante às capacidades navais, dois projetos britânicos

merecem destaque. O primeiro, dos porta-aviões classe Queen Elizabeth,

entregará duas unidades de 65 mil toneladas, comportando até 40

aeronaves: os novíssimos F-35 britânicos (48 unidades foram

encomendadas), além de caças Rafale franceses e helicópteros Chinook,

Apache, Merlin e outros. Cada um dos navios deverá entrar em atividade

em 2016 e 2018, respectivamente. Sob uma perspectiva comparada, a

Entente Frugale passaria a ter 3 porta-aviões, podendo disputar projeção

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

150

de poder contra todas as demais potências, à exceção dos Estados Unidos.

O segundo projeto em execução promete renovar a frota de submarinos

táticos a partir da geração Astute, que já tem uma unidade em operação, e

deverá entregar mais seis para os próximos anos.

Não obstante os investimentos crescentes em recursos para projeção

de poder, a capacidade dissuasória nuclear britânica vem sofrendo cortes

à medida em que se restringe também o orçamento das pastas de Defesa.

O plano de constituir um arsenal mínimo à manutenção da capacidade

dissuasória prevê um máximo de 180 ogivas até 2025, constituindo o

menor arsenal do P5 (EUA, Rússia, China, Reino Unido e França), atrás

inclusive do Paquistão. Atualmente, todo o arsenal nuclear britânico está

vinculado a um único sistema de entrega — mísseis balísticos SLBM

Trident II de fabricação americana — lançados a partir dos quatro

submarinos estratégicos da classe Vanguard à disposição da Marinha

Real.

6. TRANSIÇÃO TECNOLÓGICA

Quanto à transição tecnológica produtiva, pode-se dizer que o Reino

Unido já alcançou o seu auge. O país liderou as duas primeiras ondas da

Revolução Industrial e hoje tem seu PIB basicamente composto pelo

setor de serviços, principalmente os financeiros. Quanto à transição

tecnológica referente à inovação, considerando os índices que podem ser

usados para sua determinação, o Reino Unido possui um alto número de

artigos científicos publicados, estando na média ou acima das maiores

economias europeias. A indústria de defesa concentra 24% dos gastos em

pesquisa e desenvolvimento, segundo dados da Organisation for

Economic Co-operation and Development (2009), valor próximo ao da

França e menor do que a metade da cota norte americana. O país investe

menos em P&D em relação ao PIB do que grande parte das economias de

mesmo porte, o que diminui o valor efetivo da parcela destinada ao P&D

na área de segurança e defesa.

7. SITUAÇÃO

Arbitrou-se a crise econômica de 2008 como marco da situação do

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Política externa e de segurança do Reino Unido

151

Reino Unido. Esta delimitação foi empreendida na medida em que: (i) a

crise econômica fragilizou o principal eixo de política externa para o

Reino Unido, os Estados Unidos da América; (ii) desviou o esforço

europeu para o combate à crise, agindo em detrimento do projeto de uma

política externa e de segurança comum à UE; (iii) fez crescer a distância

entre Reino Unido e o "projeto europeu", visto que a crise do bloco fez

reacender nacionalismos e discursos eurocéticos no país1; e finalmente,

(iv) provou necessária a racionalização das capacidades militares de

França e Reino Unido a partir da contenção dos orçamentos de defesa e

do objetivo de manter o status de potência, o que, em última análise,

levou à construção e efetivação da Entente Frugale como alternativa aos

projetos nacionais individuais.

A Entente Frugale

O Tratado de Cooperação em Defesa e Segurança, assinado entre

França e Reino Unido em 2010, nasce da percepção de que ambos

Estados devem buscar simultaneamente políticas que assegurem seu

status de potência nos anos a seguir, e ainda que se adequem à nova

realidade de corte de orçamento público, em especial nas atividade

militares. Face a isto, os acordos da Entente Frugale preveem: (i) a

interoperabilidade entre porta-aviões franceses e britânicos (um Charles

de Gaulle, francês e já em operação, e outros dois Queen Elizabeth,

britânicos e que operarão a partir de 2016 e 2018); (ii) o gerenciamento

conjunto dos arsenais nucleares, incluindo a construção de plantas

conjuntas para armazenamento e manutenção das ogivas francesas e

britânicas; e (iii) a criação de uma Força Militar Conjunta, que conta com

oficiais das duas nacionalidades e que deverá atuar em situações que

constranjam os dois Estados.

Paralelo ao Tratado, observou-se recentemente a negociação que

envolvia a fusão entre a franco-alemã EADS e a britânica BAE, duas

gigantes da indústria de defesa europeia com atuação no ramo da aviação.

Caso lograsse sucesso, a fusão significaria a criação de uma terceira

empresa planejada para concorrer no mesmo nível da americana Boeing.

1 Em pesquisa de novembro/2012 encomendada pelo jornal The Independent, 54% da

população alegou preferir a saída britânica do bloco.

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

152

Ambicionada por britânicos e franceses, a fusão só não ocorreu devido ao

veto empreendido pelo governo alemão, que controla fatia importante do

grupo EADS. Entre as hipóteses mais prováveis do veto, estaria a

possibilidade de patentes europeias vazarem para o controle americano, o

que poderia ocorrer caso os contratos entre a BAE e o governo dos

Estados Unidos continuassem vigorando com cláusulas de transferência

de tecnologia. Já no campo da suposição, pode-se interpretar o veto como

uma negativa ao plano de aprofundamento da Entente Frugale enquanto

projeto paralelo e excludente, na medida em que desloca a poderosa

Alemanha da liderança do processo de integração.

Como última hipótese a ser verificada, supomos a aliança franco-

britânica como a "via possível" para a integração das políticas de defesa e

segurança europeias. Se considerarmos a pujança das capacidades

militares de Reino Unido e França comparativamente com as dos demais

países europeus, perceberemos que a Entente Frugale representa unificar

100% das capacidades nucleares da UE, bem como parte muito

expressiva de suas forças convencionais. Contribui para a última hipótese

a análise do discurso de Nicolas Sarkozy ao Parlamento Britânico

(honraria incomum para chefes de Estado estrangeiros), em 2008, quando

da articulação do acordo, e que esclarece a ideia de França e Reino Unido

coordenarem políticas em favor do projeto de integração europeia:

Nunca antes na História, França e Reino Unido mantiveram

relações tão próximas. [...mas,] se quisermos mudar a Europa

— e nós, franceses, queremos —, nós precisaremos da ajuda de

vocês dentro da Europa.

8. CENÁRIOS

Nesta modelagem, considerou-se que o melhor cenário para o Reino

Unido seria o da consolidação de uma PES Europeia. Isto significaria

instituir a Europa como novo polo no sistema de Estados, dado que

conferiria contornos de federalismo ao bloco, pelo menos no tocante à

PES. Nesse horizonte, a Entente Frugale poderia eventualmente assumir

papel de laboratório para coordenação das ações de política externa. Ao

unificar 100% das capacidades nucleares europeias, bem como porção

relevante de suas forças convencionais, a aliança franco-britânica serviria

Page 159: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança do Reino Unido

153

como experiência empírica preliminar, sendo o sucesso da coordenação

entre França e Reino Unido absolutamente determinante para a ampliação

do processo para o nível regional.

Convencionou-se que o pior cenário ao Reino Unido seria uma

condição de Soberania Tutelada aos Estados Unidos. Na eventualidade de

falha no projeto da aliança equânime entre Reino Unido e França, e na

ocasião do fracasso do projeto de fortalecimento da União Europeia com

o consequente afastamento do país do bloco, a única alternativa ao Reino

Unido que possibilitasse inserção no SI, seria a tutela dos EUA. Devido

aos relacionamentos históricos na área econômica e de desenvolvimento

de tecnologia, os EUA manteriam o Reino Unido sob sua tutela, provendo

em algum grau a manutenção de suas capacidades no SI.

Por fim, convencionou-se como cenário intermediário a hipótese de

uma aliança franco-britânica. Dados o afastamento crescente dos países

dentro da União Europeia, a posição cada vez mais isolada do Reino

Unido no bloco, e o plano frustrado de construção de uma gigante

europeia da aviação militar — a pretendida fusão entre EADS e BAE —,

a principal alternativa ao Reino Unido surge na figura da Entente

Frugale. Nesta hipótese, Reino Unido e França ainda não se afirmariam

como um polo por si só, mas avançariam em termos de defesa e

segurança de seus Estados, mantendo a condição atual de ambos como

grandes potências do Sistema Internacional.

Conclusão

A Inglaterra pode ser considerada polo do até então incipiente

sistema internacional desde 1588 (Batalha de Gravelines), quando

derrotou a potência dominante da época, a Espanha. Graças às reformas

dos Tudors (religiosa, política, tributária, produtiva e marítima), a

Inglaterra possuía uma diplomacia independente do Vaticano e relações

que seriam aquelas características de um Estado soberano. Passados

apenas três anos após o estabelecimento do SI (em 1648), em 1651 o Ato

de Navegação serve de moldura a uma economia madura que através do

livre comércio e da exportação de capitais erigiu o que, mais tarde,

seriam as denominadas relações centro-periferia ou divisão internacional

do trabalho. Em 1689, a Bill of Rights projetou, mais uma vez, a

Inglaterra e o constitucionalismo inglês como marco e modelo ideal que

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

154

todos os povos do planeta passariam a perseguir até o presente. Nesse

sentido, a Pax Britânica estabelecida após a vitória em Trafalgar em

1805, apenas confirma o percurso de uma grande potência que já tinha

deixado a marca indelével de sua trajetória no SI.

A Independência dos EUA (1776) representou a única derrota militar

de toda a longa história do Império Britânico. Nem por isso o Reino

Unido entrou em declínio, pelo contrário, sobreviveu até mesmo à

ascensão dos EUA à condição de potência industrial. A

transnacionalização de empresas da Inglaterra foi, em grande medida, a

responsável pelo processo. O crescimento estadunidense, antes de

representar um desafio, representava complementaridade, dada a

voracidade do consumo da indústria americana em matérias-primas

industriais, dinheiro e bens de capital. Pode-se até mesmo estabelecer um

paralelo entre a relação mantida entre a Inglaterra e os americanos e dos

EUA com a China, nos dias de hoje. As duas Guerras Mundiais,

sobretudo a segunda, alteraram esse panorama. Dado o que parecia ser

uma invasão das ilhas metropolitanas, em 1940 a missão Tizard

inaugurou um processo maciço de transferência de tecnologia (planos,

projetos e protótipos). Esse processo proveu aos EUA desde a bomba

atômica até o radar de micro-ondas, passando pelo domínio das

supercargas, motores a pistão e turbinas à gás. Desde cedo a Inglaterra

percebeu as consequências dessa transferência. Ainda em 1942, a

comissão Brabazon procurou estabelecer as diretrizes da economia

britânica no que seria o pós-guerra: um mundo dominado pelas

portentosas capacidades industriais dos EUA e da URSS. Contudo, a

atitude britânica reticente em relação à descolonização trouxe a

dependência da logística estadunidense — sobretudo de sua capacidade

naval. Isso permitiu o exercício de veto player da diplomacia dos EUA

sobre as estratégias corporativas de empresas britânicas, dificultando o

processo de transnacionalização das empresas e a transferência de

capitais a outros países. Resultado disso é o aprofundamento das relações

entre Reino Unido e EUA, que se transformaram desde então em

principais parceiros de transferência de capitais e trocas de produtos de

alta tecnologia.

A Inglaterra ainda possui atributos clássicos de uma grande potência

— retaguarda financeira industrial, população ativa e capacidades

militares convencionais e nucleares. Contudo, o Reino Unido parece

Page 161: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança do Reino Unido

155

carecer de recursos para que mantenha sua PES plenamente

independente. Talvez seja justamente por isso que o país valha-se da

Entente Frugale para empreender ações em política externa que o

configurem como polo do sistema internacional. A Entente pode ser o

marco da oportunidade da Inglaterra reerguer-se enquanto potência global

e não apenas regional. A despeito do afastamento atualmente existente

entre UE e o governo conservador britânico, a possibilidade de sucesso

da Entente Frugale poderá, na opinião dos autores, agir futuramente

como catalisador do processo de integração regional.

Em estudos futuros deve-se aprofundar a análise sobre a situação da

transição tecnológica na Inglaterra, bem como o comportamento de seu

polo bancário, sobretudo no que tange à sua inserção na Ásia. Também

merecem atenção as relações anglo estadunidenses no que tange à seus

benefícios para o Reino Unido. De qualquer modo, o Reino Unido deverá

continuar sendo objeto privilegiado de atenção em um horizonte

predizível de eventos.

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Page 163: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

157

Capítulo 9

POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA

TURQUIA

Aércio Artur Mateus

Anaís Brum Medeiros

Bernardo Rolim Soares

Gustavo Hack de Moura

Maud Trutta

Pedro Perfeito da Silva

Pedro Hercz Merlo

Introdução

O presente artigo pretende tratar da política externa e de segurança

da Turquia através de seus indicadores em termos de instituições

políticas, economia, capacidades militares, infraestrutura e transição

tecnológica. O problema é entender em que medida a sua atuação externa

a qualifica enquanto potência regional ou Grande Potência. A hipótese

assumida é que o país, a fim de se qualificar enquanto Grande Potência,

precisa aprofundar sua atuação na Ásia Central e no Oriente Médio. São

elaborados três cenários possíveis: (i) integração a partir da Organização

para a Cooperação Econômica (ECO, em inglês), (ii) intervencionismo e

(iii) manutenção da ambiguidade entre ECO e União Europeia (UE),

todos eles baseados em condicionantes internos e externos.

A política externa turca apresenta uma dualidade no seu modo de

atuação. Por um lado, o kemalismo compreende a modernização como

adoção de valores e instituições tipicamente ocidentais. Por outro, a

vertente neo-otomana aceita a modernização e alguns aspectos ocidentais,

mas visa conciliá-los com a percepção de que a Turquia é herdeira do

Império Turco-Otomano, portanto, um corredor entre Europa e Ásia.

Para compreender o país, é preciso ter em mente alguns dados gerais

que permitam a comparação com outros Estados. Desse modo, o PIB

turco alcança os 773 bilhões de dólares, o que a torna a 17ª economia

mundial. O setor de serviços é o responsável por 64% da economia do

Page 164: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Relações internacionais contemporâneas 2012/2

158

país, a indústria responde por 27% e a agricultura por 9%. O PIB per

capita alcança de 10.498 dólares e o IDH é 0,699 (92º do mundo). Sua

população é 70% urbana e 30% rural. Seu território é o 37ª em extensão e

suas forças armadas possuem o 6º maior contingente do mundo

(TURKSTATS, online) e (TCMB, online).

1. DUALIDADE

A Turquia está localizada em uma área responsável por conectar a

Europa à Ásia. Isso se reflete na política externa do país, já que esta ora

atua mais voltada e preocupada com a sua conexão com o Ocidente, ora

tende a priorizar sua atuação no Oriente Médio e Ásia Central. A

dualidade alterna-se na sua influência sobre a política turca. Isso significa

que o país em nenhum momento apresenta total sobreposição de uma

visão sobre a outra. Pelo contrário, as duas se complementam e dialogam

constantemente na formulação da política externa e de segurança. Ambas

as visões apresentam um ponto de vista modernizante, ou seja, não há

dicotomia entre o moderno e o tradicional, apenas em como deve se dar a

modernização e como ela deve influenciar a política.

O kemalismo remonta ao processo de independência turco no

imediato pós-Primeira Guerra. Os líderes da época associaram a condição

de não independência com as instituições do próprio Império Otomano:

assim, Kemal Ataturk iniciou um processo de modernização que buscou,

no Ocidente, as bases para a constituição do Estado nacional turco.

Deixou de haver uma preponderância da Turquia enquanto império na sua

região para focar-se no interior de suas fronteiras. A modernização

ocidentalizante é vista pelos seus idealizadores como um processo, cujo

momento culminante de incorporação no mundo ocidental seria a entrada

na União Europeia (UE).

A percepção neo-otomana remonta ao domínio que a Turquia

possuía sobre a região da Rota da Seda na época do Império Turco-

Otomano. Para os apoiadores dessa visão, o controle de seu país sobre a

região é antes resultado da legitimidade que o país possui diante dos

demais Estados da região, do que de uma condição gerada pela sua

proximidade aos países ocidentais. Então, a manifestação mais expressiva

desse propósito é a busca pela liderança da ECO e do mundo muçulmano.

Page 165: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança da Turquia

159

1.1. História

A formação do Império Turco-Otomano se dá a partir da decadência

do Império Mogol e da herança das rotas de comércio controladas por

este. Durante a Primeira Guerra, os turcos se aliam às potências centrais,

após estes garantirem a integridade dos otomanos depois da guerra. Os

conflitos pelo controle da Rota da Seda com as cidades-estados italianas,

a Questão Oriental durante o Concerto Europeu e a gradual integração ao

sistema capitalista contribuíram para o processo de desintegração do

Império Otomano, que se consumou ao final da Primeira Guerra Mundial.

Com a proclamação da República em 1923, ocorre a revolução

kemalista, que traz uma agenda de modernização altamente

ocidentalizada e secular, com a construção do Estado Nacional a partir da

supressão da herança otomana. Na Segunda Guerra Mundial, o país se

manteve neutro. O alinhamento da política externa turca com o Ocidente

e o objetivo comum de conter a URSS — que disputava com a Turquia o

controle dos estreitos de Bósforo e Dardanelos — resultaram na entrada

do país na OTAN. Neste período, formou-se o Estado Profundo1, que se

utilizava de táticas clandestinas de contraguerrilha e de ramificações do

poder dos militares em diversos setores e instituições nacionais.

A ascensão do AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento), em

2002, em meio a uma grave crise financeira, remonta à evolução do

islamismo político desde a década de 1980. Tal partido se apresenta como

moderado e nacionalista, capaz de resgatar valores muçulmanos e

otomanos e concluir a ocidentalização através da democratização. De

certo modo, pode-se afirmar que o AKP incorporou o projeto

modernizante kemalista, ou seja, é sua continuação. Ademais, o partido é

resultado da globalização: congrega seus vencedores, os capitalistas

muçulmanos, e seus perdedores, a massa muçulmana de baixa renda. No

plano externo, o AKP estabelece a política de zero problemas com os

vizinhos, uma postura de retomada, ou melhora, das relações com os

países próximos à Turquia, e a diminuição do peso relativo do acesso à

UE na agenda externa turca permitiu um maior interesse na ECO e no

papel de líder regional.

1 Grupo civil-militar, de viés anticomunista, surgido no período da Guerra Fria, que

atuava influenciando a alta política turca de modo não oficial

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

160

1.2. Economia

Para a compreensão de como variáveis econômicas condicionam a

política externa de segurança é necessário aliar a evolução de dados

gerais (como PIB, inflação e etc.) a uma análise das relações econômicas

com o resto do mundo. A economia turca foi seriamente afetada pela crise

econômica de 2008/2009. Isso fica claro na redução do PIB nominal e

dos valores tanto na conta-corrente quanto na conta capital do balanço de

pagamentos, além disso, ressalta-se que as reduções verificadas em 2009

mantiveram-se dois anos ou ainda não foram recuperadas.

Quanto à balança comercial (integrante da conta-corrente), observa-

se que sua natureza estruturalmente deficitária aprofundou-se a partir de

2009. Como é indicado em Röhn (2012, p. 10), o déficit em conta-

corrente do país é da ordem de um décimo do PIB (dado semelhante ao

verificado na Grécia) e metade desse montante diz respeito a importações

energéticas. As exportações e importações, segundo o Turkstats

(TURKSTATS, online), indicam um padrão de dependência frente a

União Europeia, ainda que se deva destacar o peso das relações com a

Organização do Mar Negro para Cooperação Econômica (BSEC —

destaque para Rússia), com a Organização para Cooperação Econômica

(ECO — destaque para o Irã), com a Organização para Cooperação

Islâmica (OIC — destaque para Arábia Saudita e para os Emirados

Árabes) e com os EUA.

Quanto ao fluxo de investimentos diretos, tanto a entrada quanto a

saída de capitais é fortemente concentrada na Europa (mais de três

quartos) o que fica evidente nos principais destinos e origens (com

exceção para Rússia, Azerbaijão, EUA, Cazaquistão e Macedônia)

(TCMB, online). A composição dos investimentos feitos na Turquia é

hegemonizada por serviços financeiros e de seguros, enquanto que os

investimentos turcos ao redor do mundo são liderados pelo setor

comercial e pelo setor manufatureiro.

O conteúdo exposto nos parágrafos anteriores é o retrato de uma

economia que condiciona a política externa turca à manutenção da

ambiguidade entre a União Europeia (UE) e a Organização para

Cooperação Econômica (ECO). A opção por uma maior atuação regional

(seja pela via diplomática multilateral, seja pela intervenção militar)

esbarra: (i) nos laços comerciais e financeiros com a UE; (ii) na

incapacidade turca de atuar como centro contracíclico regional para

Page 167: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança da Turquia

161

momentos de crise; e (iii) nos desequilíbrios verificados na conta-

corrente2.

1.3. Infraestrutura

A localização geográfica da Turquia a coloca em uma posição

especial no que se refere à infraestrutura. Ela é a ponte entre a Europa e a

Ásia, o que a torna relevante no contexto da Nova Rota da Seda (NRS),

uma rede de infraestrutura que pode ligar a Europa ao Leste Asiático,

cujos projetos concorrentes são liderados por países como China, EUA e

Rússia.

A Turquia enfrenta a necessidade de diversificar sua fonte de

suprimentos energéticos: é dependente de gás e petróleo russos e

iranianos. Os diversos oleodutos e gasodutos projetados para atravessar

seu território podem cumprir esta tarefa. O oleoduto BTC inicia-se na

capital azeri, Baku, atravessa a Geórgia (Tbilisi) e vai até o porto de

Ceyhan na Turquia. Questões securitárias tornam este um oleoduto não

confiável. O gasoduto BTE é paralelo ao BTC e funciona para alimentar

exclusivamente Turquia e Geórgia. O gasoduto Blue Stream vai da Rússia

à Turquia sem passar por terceiros países. O projeto TANAP, idealizado

por Azerbaijão e Turquia, tem o objetivo de ser uma rota alternativa aos

oleodutos russos: levaria gás natural da Ásia Central até a Europa,

atravessando a Turquia e os Bálcãs. Inicialmente o gasoduto carregaria 16

bilhões de metros cúbicos de gás, dos quais 6 bilhões ficariam com a

Turquia (OIL PRICE, online). Seus acionistas são a azeri SOCAR (80%)

e as turcas BOTAS (15%) e TPAO (5%) (SOCCOR, 2012).

A Turquia participa do Projeto da Ferrovia Transasiática, que seria

uma importante conexão de transporte da NRS. A Turquia trabalha no

Projeto Marmaray, importante por ligar a Europa pelo Bósforo. A

Ferrovia Baku-Tbilisi-Kars liga a Turquia à região do Mar Cáspio, rica

em petróleo. A ferrovia Islamabad-Teerã-Istambul é um dos projetos mais

importantes da ECO, uma vez que liga três de seus principais países, e

pode produzir maior aprofundamento de suas relações. Quanto aos

2 Os desequilíbrios são potencializados pela memória inflacionária do país e pelo

conteúdo inerentemente instável da principal pauta de entrada de capitais — serviços

financeiros e de seguros.

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

162

portos, é significativo o fato de que, em 2006, 87,4% do comércio

exterior turco se deu pelo mar (IFEA, online). A siderurgia do país é a 10ª

maior produtora do mundo e a 3ª da Europa (ISPAT, 2010). Sua principal

indústria é a automotiva, que responde por boa parte das exportações do

país.

Nota-se que em 2012 a Turquia foi considerada o 7º país em termos

de penetração de fios de internet de fibra óptica em lares (TURKCELL,

online). O país participa do Projeto Regional Cable Network que visa

melhorar a qualidade da conexão de internet do Oriente Médio. Participa

também do Projeto JADI Link, que visa a ser uma alternativa a cabos que

passam sob os mares Mediterrâneo e Vermelho.

1.4. Transição Tecnológica

A Turquia está construindo um parque tecnológico para pesquisas de

ponta. O objetivo principal do projeto é a transformação da Turquia em

um dos polos de pesquisa e desenvolvimento da Europa: visa a atrair

empresas e universidades, de modo que trabalhem juntas em projetos de

inovação. As tecnologias prioritárias são a aeroespacial, de defesa, naval,

de eletrônica avançada, de automação industrial e de materiais avançados.

Os primeiros prédios devem ser entregues em 2013.

Quanto à existência de elementos químicos estratégicos em solo

turco, ressalta-se que há minas de elementos de terras raras, alumínio,

antimônio (semicondutores e baterias), níquel, (baterias e ligas metálicas)

e tungstênio (ligas e armamentos). Porém, ainda não há exploração

significativa destes elementos.

Apenas uma pequena parcela do PIB turco é destinada à área de

pesquisa e desenvolvimento, comparativamente a outros países e regiões.

No entanto, a Turquia mais do que triplicou seu valor, passando de 2

bilhões, em 1998, para 9 bilhões em 2009. O número de patentes

multiplicou-se em aproximadamente dez vezes, alcançando 5.430. As

publicações científicas multiplicaram-se, aproximadamente, quatro vezes

entre 1998 e 2009. (CONSELHO DE PESQUISA CIENTÍFICA E

TECNOLÓGICA DA TURQUIA, online)

A transição tecnológica na Turquia é mais lenta que em alguns países

emergentes, mas tem sido ampliada nas indústrias pesadas, cujo maior

expoente é a indústria naval, uma das mais importantes do mundo. Cresce

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Política externa e de segurança da Turquia

163

no país o número de empresas ativas na área de tecnologia militar. Os

caças F-16, por exemplo, são produzidos pela TAI, estatal de acionistas

turcos e americanos. A empresa foi a responsável pela modernização de

caças F-16 paquistaneses. Os tanques Altay são desenvolvidos pela

empresa turca Otokar. Há também forte cooperação entre empresas turcas

e estrangeiras (a empresa Raytheon participa dos projetos Genesis e TF-

2000). Desse modo, o gasto em P&D no setor de defesa passou de 58

milhões em 2003 para 672 milhões em 2011 (SSM, online).

Nota-se que o florescimento tecnológico de empresas turcas no setor

militar tem potencial para ser um dos motores da inserção regional turca,

através da cooperação econômica e militar. É possível antecipar que o

desenvolvimento tecnológico turco fará com que os demais países se

aproximem da Turquia com o intento de se modernizarem. Egito e

Paquistão, por exemplo, já buscaram uma abordagem de parceria ou

busca de novos produtos. A tecnologia pode contribuir para sua ascensão

como Grande Potência, já que suas forças armadas estariam entre as mais

bem preparadas do mundo e suas empresas estariam na vanguarda da

inovação.

1.5. Instituições Políticas

A tomada de decisões na Grande Assembleia Nacional determina

oficialmente a política externa. O presidente é o comandante-em-chefe

das Forças Armadas; o primeiro-ministro, o responsável pela

implementação da política externa e o Conselho de Segurança Nacional,

órgão consultivo para o Conselho de Ministros. Os determinantes de facto

da política externa são o equilíbrio de forças no parlamento, a questão

curda e a questão militar e sua relação com a transição democrática. O

AKP não possui a maioria parlamentar qualificada (2/3) para impor

determinadas opções, de modo que a oposição kemalista mantém algum

poder de barganha. Isso favorece a ambiguidade entre voltar-se para a

União Europeia e para o ativismo regional (ECO). O combate ao PKK é

articulado com o discurso de unidade nacional turca, representado

politicamente na elevada cláusula de barreira que limita a participação

institucional da minoria curda (a partir do BDP). A questão curda também

influencia profundamente nas relações dos Estados do Oriente Médio.

Os militares mantêm relevância, ainda que ocorra um processo de

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

164

transição que está em vias de colocar tal grupo sob hegemonia ética e

estrutural da coalizão articulada em torno do AKP. Segundo Arturi

(2001), os processos de transição democrática têm três etapas: i) os

partidos relevantes reconhecem a disputa democrática; ii) não há poder de

veto; iii) não existem instituições autônomas independentes. Entre 2002 e

2007, a eleição e a postura de conciliação do AKP permitiram a

conclusão da primeira etapa. Em 2007, a reeleição do AKP e a eleição do

presidente Gül alteraram a correlação de forças permitindo uma série de

reformas constitucionais que envolvem a eleição presidencial direta, a

possibilidade de processar os militares e o direito ao parlamento e ao

presidente de intervir na Suprema Corte — avanços na segunda e terceira

etapa da transição. Os casos Ergenekon (2008) e Sledgehammer (2012)

são processos-símbolo na diminuição do poder de veto e insularidade dos

militares pelo fato de que lideranças desse grupo foram acusadas de

tentativas de golpe; observa-se que a mudança de postura do AKP entre

os dois processos, oscilando de uma postura demarcatória para uma

postura de conciliação, é um indício da inclusão dos militares no

conteúdo ético da hegemonia do AKP (KARAVELI, 2012).

Por fim, é preciso tratar do Movimento Gullen, organização da

sociedade civil com atuação nacional e internacional nos negócios, nas

comunicações e nas escolas que pode significar um novo Estado

Profundo a partir da decadência relativa dos militares (VELA, 2012;

STELLER, 2010 & ÇAKIR, 2012). Tal organização seria capaz de

influenciar o governo e permitiria que, mesmo em uma democracia

estável e secular, a religião não ficasse à margem da política. Além disso,

ela pode ser um elemento de poder brando capaz de estimular países da

região a adotarem o modelo político-econômico turco. Conclui-se que a

dimensão das instituições políticas traz informações que atestam um

fortalecimento do polo neo-otomano da dualidade e, consequentemente,

da busca por uma maior atuação regional, ainda que haja poder de

barganha kemalista e que a viabilidade de uma democracia estabilizada

resida na possibilidade de superação das oscilações econômicas.

1.6. Defesa e Segurança

Sobre as capacidades do país, importa observar que há uma

crescente indústria bélica e que sua expansão faz parte dos planos do

Page 171: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança da Turquia

165

governo turco de tornar o país uma referência na exportação de

equipamentos militares. Não apenas o desenvolvimento militar, como

também a ênfase em produtos de alta tecnologia, abrem a possibilidade

de que suas forças armadas se tornem uma das mais bem preparadas do

mundo em um futuro próximo.

Atualmente, mesmo que a Turquia, por sua localização, seja uma

ponte entre diversas regiões importantes, o Oriente Médio se destaca. Isso

se deve principalmente ao problema interno turco relacionado ao PKK e

questões geopolíticas atuais. Isso se confirma pela mudança de foco do

AKP que passou a explorar mais os possíveis benefícios econômicos e

políticos de sua presença no Oriente Médio.

As forças armadas turcas possuem cerca de 510 mil pessoas a seu

serviço (IISS, 2012:160). A marinha do país é hoje considerada a 8ª maior

do mundo e a 3ª maior da Europa (TURKEY DEFENCE, online). Não

possui nem porta-aviões, nem navios-aeródromo, mas o projeto para a

obtenção de um navio aeródromo está em andamento. A indústria

nacional abastece 80% de suas necessidades (TR DEFENCE, online).

Possui 4 fragatas que apresentam o sistema de lançamento vertical

(vertical launch system, VLS), o qual permite resposta mais rápida,

concentrada e contínua a ataques. A marinha turca também possui os

mísseis cruzadores SOM, além de 14 submarinos táticos, 7 corvetas, 17

fragatas e 108 fast attack ships (TURKEY DEFENCE, online). A força

aérea turca é a 3ª maior da OTAN. O país possui aviões de 4ª geração: os

caças F-16. Em números totais, o país possui 410 aviões de combate. O

exército possui uma grande quantidade de tanques blindados e de armas

de artilharia (4.503 daqueles e pelo menos 7.787 destas)(IISS, 2012:161).

Atualmente, o exército desenvolve o projeto Altay: tanques

blindados de fabricação quase exclusivamente nacional. Na marinha,

merecem destaque os projetos MILGEM e TF-2000. O primeiro promove

a fabricação de oito corvetas e quatro fragatas. O segundo projeto prevê a

construção de seis fragatas com defesa antiaérea e antimíssil. As forças

aéreas, por seu turno, participam do programa internacional que visa a

desenvolver o caça F-35, de quinta geração.

O forte desenvolvimento das forças armadas tem relação direta com

o desejo turco de se firmar como potência regional. A partir disso, ela

poderá afiançar a segurança da região contra ameaças externas,

garantindo a liderança do processo de integração.

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

166

2. SITUAÇÃO

Em fevereiro de 2008, a Turquia lançou uma ofensiva ao PKK. As

forças armadas turcas invadiram o Norte do Iraque, região autônoma

controlada pelo KRG (governo regional do Curdistão, em inglês). O

objetivo alegado pela Turquia era o desmantelamento do grupo terrorista,

o qual visa à formação do Estado curdo. A partir daí, pode-se observar

que a Turquia alterou sua PES para um posicionamento mais assertivo

com relação ao território que, no passado, foi parte do Império Otomano.

A Organização para Cooperação Econômica (ECO) foi fundada em

1985 por Turquia, Irã e Paquistão. É composta atualmente por dez países

da Ásia Central e Oriente Médio. A consolidação desse bloco fortalece a

alternativa neo-otomana de inserção internacional da Turquia como hub

entre Europa e Ásia. Além disso, viabiliza-a como potência regional

fortalecida no mundo árabe e na disputa por mais espaço na antiga área

de influência russa na Ásia Central. A partir de 2008, a ECO avançou ao

ratificar o Acordo de Livre-Comércio com a meta de eliminar barreiras

não-comerciais e reduzir tarifas comerciais para um máximo de 15% até

2015, e ao fundar o Banco de Comércio e Desenvolvimento da ECO.

Em 2012, a Turquia foi aceita como Parceira de Diálogo da OCX.

Essa entrada está inserida no contexto da OCX como organização

provedora de segurança para a Ásia Central, a qual é fundamental para a

Nova Rota da Seda. A Turquia é um forte candidato a exercer esse papel,

visto que possui uma relação estável e crescentes investimentos nos

países da região. A atuação da Turquia já se verifica na intensificação das

suas relações com Afeganistão e Paquistão, relacionada à futura saída dos

EUA do território afegão.

Recentemente, a Turquia aceitou que o projeto South Stream russo

passasse pelas suas águas territoriais. Isso permite a manutenção da

ambiguidade turca em relação a UE e na atuação turca na Ásia Central,

uma vez que diminui as desavenças com a Rússia. A colocação de mísseis

Patriots na Turquia pela OTAN reverberam uma possível postura

intervencionista para acabar com a guerra civil síria, podendo se tornar

modo de atuação padrão da Turquia na região. Memorandos de

entendimento assinados nos últimos meses entre Turquia, Paquistão e

Afeganistão e Turquia e Irã, bem como a aproximação turco-egípia

(empréstimo turco ao Egito e visita de Erdogan), reforçam a possibilidade

Page 173: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança da Turquia

167

de que o cenário de integração em torno da ECO ocorra. Importante notar

que o Egito torna-se membro em potencial ao aproximar-se da Turquia.

3. CENÁRIOS

A dualidade turca mostra que o país ora tende a se inclinar para um

modelo mais próximo ao ocidental, ora incorpora a esse modelo

elementos culturais próprios de sua herança otomana. A formulação de

cenários para o país, portanto, deve usar como base tais elementos,

mostrando como as diferentes inclinações alteram a política externa. Não

se deve esquecer, porém, dos indicadores e de como eles influenciam a

política externa do país.

O melhor cenário traz a Turquia como polo de integração da ECO. A

integração de 10 unidades soberanas, com uma população de 416 milhões

de habitantes em uma área de 7.937.197 km² — superior à superfície

contígua dos EUA (7.663.941.7 km²) — é, virtualmente, uma Grande

Potência em gestação. Esta possibilidade não contradiz nem o domínio

otomano de outrora, nem o presente, da moderna Turquia integrada à

OTAN. As dificuldades para consecução deste propósito são, contudo, de

monta considerável. Em princípio, a integração só seria possível graças à

conjugação improvável de três fatores: i) a anuência das Grandes

Potências, ii) a disponibilidade de crédito, e iii) a unanimidade entre os

países da região. A integração afigura-se menos impossível, no entanto, se

considerar-se que a região arca com os custos de três processos: i) da

modernização, ii) da globalização, e iii) do fundamentalismo religioso.

Os problemas sociais gerados por esses fenômenos seriam amenizados

pela integração, uma vez que a Turquia tem a base político-social para

evitar a deterioração interna dos demais países da região.

Os levantes ocorridos entre 2010 e 2012 impactaram a região. A

conjunção dos custos da globalização e da Guerra ao Terror afeta também

a Turquia, que por ora permaneceu fora do mapa das rebeliões. Foi

impossível para a pesquisa dimensionar o impacto dos levantes somado

aos efeitos da crise econômica. Se comparada ao Paquistão e ao Irã, os

outros dois eixos da ECO, a Turquia é uma ilha de estabilidade. Dois dos

maiores dilemas de segurança internacional estão em meio à estruturação

da ECO: a conclusão da Guerra ao Terror e a questão nuclear iraniana. Os

povos da região terão de encontrar um modo de viver; os governantes, um

Page 174: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Relações internacionais contemporâneas 2012/2

168

novo modo de governar. Em qualquer caso, dificilmente a região poderá

permanecer nos marcos atuais. Excluído o impossível — a manutenção

indeterminada da tensão, da violência e da escassez —, o improvável, por

menos plausível que pareça, torna-se possível. Por isso, a improvável

integração há que ser considerada.

Escolheu-se um hipotético intervencionismo turco para modelar o

segundo e pior cenário. O critério norteador da escolha foram os efeitos

de longo prazo que o intervencionismo pode ter sobre as relações civil-

militares e o próprio tecido social turco. Entretanto, existem indicadores

que tornam o cenário bastante plausível, alguns já referidos no primeiro

cenário acima. O principal deles está relacionado à conclusão da guerra

ao terror e à questão nuclear iraniana. Em virtude de seus problemas

orçamentários, os EUA estão adotando uma PES que pode ser

caracterizada como de burdensharing ou buckpassing3. Em qualquer dos

casos, a política externa estadunidense implica em reduzir os custos de

engajamento no exterior com o mínimo de perda de sua influência. Da

parte turca isso importa (ver cenário acima) para obter o consentimento

para a estruturação da ECO enquanto união aduaneira e atrair capitais de

tecnologia que alicercem o desenvolvimento. O alargamento da demanda,

no caso do intervencionismo, alicerçado também em gastos de custeio,

pode fazer as vezes de um keynesianismo militar perverso — visto que é

baseado na guerra e não na mera competição militar — que pode

mascarar a tendência de ciclos econômicos de curto prazo que

caracterizam a economia turca. Além disso, como descrito no tópico

Situação, a própria Turquia tem revelado disposição de intervir

unilateralmente quando julga que seus interesses estão em jogo — no

caso descrito, tratou-se dos curdos do Iraque. Mais recentemente,

insinuou a possibilidade de intervir na guerra civil síria. De qualquer

modo, a Turquia tem sido essencial para os EUA na manutenção da

estabilidade regional. Esse é o caso de Egito, Paquistão e Afeganistão em

que, seja através de seu poder brando, seja através de seu poder duro, a

Turquia tem algum grau de influência. Quanto ao Irã, em caso de

intervenção da OTAN neste país, os turcos possuem credenciais junto a

ambas as partes para uma solução intermediária de manutenção de paz.

Como se depreende, mesmo em um cenário de intervencionismo, a

3 Para maiores informações sobre esses conceitos, veja o capítulo sobre a Política Externa

e de Segurança dos Estados Unidos da América.

Page 175: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Política externa e de segurança da Turquia

169

Turquia não abdica da manutenção de suas parcerias no âmbito da ECO

(no caso do Irã, fortalecidas pela questão comum curda) e do

consentimento expresso ou tácito da comunidade internacional. Trata-se,

pois, de uma modelagem plausível, conquanto, conforme referido, seus

efeitos de longo prazo sejam imprevisíveis e eventualmente deletérios. A

Turquia possui as credenciais mínimas necessárias no âmbito da ECO

para dar suporte ao intervencionismo caso seja este seu desejo. Além

disso, possui capacidades para tanto (ver tópico Defesa e Segurança).

O cenário intermediário tem maior probabilidade de acontecer.

Nesse caso, a Turquia manteria sua ambiguidade na atuação externa, ou

seja, ora agiria conforme o kemalismo, mais voltada ao Ocidente, ora

incorporaria o neo-otomanismo, priorizando o Oriente Médio. Logo,

haveria uma política semelhante à atual, em que o país mantém as

esperanças de entrar na União Europeia e se relaciona bilateralmente com

os países da ECO. Ademais, o relacionamento das elites internas não se

alteraria: os capitalistas muçulmanos, a elite política secular e os militares

continuariam se opondo mutuamente, sem que um grupo se sobrepusesse

ao outro. Para este cenário se efetivar contam condições internas e

externas. Do ponto de vista interno, a estabilidade econômica deveria

condicionar a manutenção da estabilidade política — sem maiores crises,

o risco de golpes ou mudanças abruptas de governo seria mínimo. Do

ponto de vista externo, seria preciso contar que Israel não ataque o Irã,

que a transição no Egito se dê a contento e que a crise síria permita, senão

um desfecho negociado, ao menos uma intervenção de baixo perfil e

curta duração. Mesmo que se mantenha como predominante o cenário

intermediário, a Turquia permanece como séria candidata, através da

ECO, a constituir-se enquanto Grande Potência. Nesse caso, importa

permanecer estudando e observando tanto os indicadores internos e

externos do país quanto, sobretudo, as pressões sistêmicas em seu entorno

local e regional que podem condicionar, de fora para dentro, o status do

país na hierarquia internacional.

Conclusão

Do exposto, pode-se concluir que a ascensão da Turquia depende de

condicionantes internos e externos. O principal condicionante interno da

Política Externa e de Segurança (PES) turca é sua situação econômica. A

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

170

capacidade de pagamento, os investimentos na região, a modernização

militar e o próprio investimento em P&D dependem da manutenção do

crescimento do PIB e da conquista da estabilidade econômica. O

principal condicionante externo da PES reside na dificuldade da Turquia

em manter a delicada barganha diplomática que tem sustentado entre

EUA, Rússia, China e UE.

Naturalmente, os condicionantes externos e internos atuam

simultaneamente. A construção de cenários feita acima foi uma tentativa

de simular seu desdobramento. Assim, no melhor cenário, o do

multilateralismo presidido pela construção da Economic Cooperation

Organization (ECO), se supõe um posicionamento ótimo tanto em termos

de capacidade de pagamento quanto de relacionamento com as Grandes

Potências e a UE. O pior caso, o intervencionismo, reflete a incapacidade

da Turquia em adquirir poder de alavancagem através dos meios de

pagamento tradicionais, além do reconhecimento tácito da

impossibilidade em manter sua barganha diplomática com os quatro

principais polos do SI. Por fim o terceiro cenário assume a manutenção

da capacidade de pagamento da Turquia e de sua relação com as Grandes

Potencias. Esta última perspectiva, por ora, parece afigurar-se como a

mais plausível.

Ainda que a Turquia possa estar longe de se configurar enquanto

uma Grande Potência, parece forçoso reconhecer que seu papel nos

assuntos internacionais aumentou exponencialmente. A partir de 2008, o

papel da PES turca ganha relevância tornando-se mais que um apêndice

da PESC europeia. Desde o segundo mandato de Erdogan e da invasão do

Iraque, a Turquia adquiriu um papel próprio e autônomo no SI. Em

termos sistêmicos, a disposição turca vem ao encontro das demandas

sistêmicas, caracterizadas pela demanda estadunidense de desonerar-se

de responsabilidades de proteção no âmbito regional. Caso os EUA

adotem o buckpassing ou o burdensharing, a perspectiva estadunidense

vai ao encontro das ambições turcas de um maior papel regional e global.

A recente parceria da Turquia com o Brasil, tendo em vista solucionar a

questão nuclear iraniana, ilustra claramente essa realidade. Em qualquer

hipótese, a PES da Turquia merece, cada vez mais, a atenção acurada de

pesquisadores e analistas.

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Política externa e de segurança da Turquia

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Page 180: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

174

Capítulo 10

CONSIDERAÇÕES FINAIS: RECOMPOSIÇÃO

HEGEMÔNICA E INSERÇÃO INTERNACIONAL

DO BRASIL

José Miguel Quedi Martins

Como conclusão se fará um breve balanço dos estudos de caso,

considerações acerca da guerra no equilíbrio internacional, do papel

cumprido pela diplomacia no período compreendido entre as guerras

mundiais de 1914-18 e 1939-45, por fim, trata-se do processo da

triangulação entre EUA, Rússia e China e da inserção internacional do

Brasil. No decorrer destes temas aborda-se o problema das transições

tecnológicas, da tendência do sistema internacional ao desequilíbrio

(entropia), das soluções simplificadores e da alternativa anti intuitiva do

aumento da complexidade.

BALANÇO ESTUDOS DE CASO

Como se pode depreender da conclusão do último estudo de caso, a

inclusão da Turquia na categoria de Grande Potência só seria válida

mediante o cumprimento de condições que ainda não se realizaram,

dentre elas a constituição da ECO como um efetivo processo de

integração da Ásia Central. Apenas com grandes reservas, portanto,

poderíamos considerar a Turquia uma Grande Potência. De fato, se

levarmos em conta seu posicionamento regional e apenas suas próprias

forças — veja, no capítulo anterior, papel cumprido pelos EUA na

hipótese de sua assunção — a situação da Turquia parece mais próxima a

de uma potência regional.

Embora em situação nitidamente superior à da Turquia — a julgar

pelas conclusões do estudo de caso — a Alemanha só reterá sua condição

de grande potência caso seja capaz de ancorar o Euro e, a partir de suas

parcerias inter-regionais, manter-se como esteio da União Europeia. Em

Page 181: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Considerações finais

175

todo caso, o estudo não parece vislumbrar a possibilidade de uma ação

independente envolvendo projeção de força além teatro por parte da

Alemanha. Parece, antes, estreitar laços com os EUA na África, com a

Rússia na Ásia Central e com a China no Extremo Oriente. Tratam-se de

concertações mais características de uma potência regional que de uma

Grande Potência — da qual a ação militar extrarregional independente é

uma das características. Ainda que sua inserção na atual transição

tecnológica exija estudos mais acurados, chama atenção a ausência da

produção de supercomputadores. Por outro lado, parece igualmente

prematuro retirar a Alemanha do rol das Grandes Potências: ela é o esteio

de uma região que tem o poder dos meios de pagamentos equivalente a

17 trilhões de dólares.

Já no caso do Japão, que, juntamente a EUA e China, está entre os

três produtores mundiais de supercomputadores e superprocessadores, a

inserção favorável na transição tecnológica parece assegurada. No quesito

dos superprocessadores, o Japão tem se revelado especialmente hábil na

inovação, introduzindo novos conceitos de construção e de

processamento dos núcleos. A partir de 2009, na esteira do estreitamento

de relações com a China — fortalecido pela criação da Comunidade do

Leste Asiático — o país retomou o crescimento econômico. Só com a

China seu fluxo comercial chegou a quase USD 400 bilhões (2011), com

superávit de quase USD 20 bilhões1, tendo substituído os EUA como

maior fornecedor da China. Em 2010, esse superávit chegou a USD 37,1

bilhões, constituindo-se no segundo maior da Ásia (perdendo apenas para

a China com os EUA, de USD 273 bilhões). Contudo, em 2012, fez-se

sentir o efeito da tragédia de Fukushima (2011) e o superávit converteu-

se em déficit (USD 4,4 bilhões) (JETRO e US Census Bureau). Fica em

aberto saber qual será o efeito do litígio em torno das Diaoyu/Senkaku

(2012) sobre as relações bilaterais nos números de 2013. A princípio, a

sorte da economia japonesa parece estar associada ao destino da China, o

que não chega a ser uma tragédia, afinal, o mesmo ocorre com outras

economias da OCDE (EUA e Alemanha) e, obviamente, com a América

Latina. De qualquer modo, a ideia do Japão como superpotência

econômica parece estar superada.

Quanto às suas capacidades militares, as forças terrestres japonesas

se destacam pelo seu notável grau de mobilidade tática e estratégica.

1 Os valores consideram a República Popular da China, Hong Kong e Macau.

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

176

Sobressai-se o aerotransporte, o que é de suma importância para que se

leve em conta o efetivo terrestre de uma potência naval. O que dá

efetividade à capacidade aeroterrestre japonesa é a Marinha (JMSDF),

que possui capacidade anfíbia considerável, associada à competente força

de submarinos e à poderosa força de guerra de minas. Em seu conjunto, o

componente de superfície é portentoso, constituído por vasos de

fabricação própria que perfazem o efetivo de dois porta-aviões, dois

cruzadores e vinte e oito destróieres lançadores de mísseis. Porém, carece

de capacidade de ataque à terra: apesar de aptos, os vasos não carregam

míssil cruzador de longa distância (e.g.: Tomahawk) e o navio aeródromo

não possui aeronaves de asas fixas.

Entretanto, essas limitações podem ser elididas no curto prazo.

Afinal, o Japão investe apenas 1% do seu PIB em defesa, e em caso de

necessidade, esse montante pode ser elevado e adquiridas capacidades

adicionais. Apesar de avançadas, com efetivo de 151.641 homens, 32

combatentes de superfície capazes de lançar mísseis e 374 aviões com

capacidade de combate além do alcance visual (BVR) as SDFJ são

suficientes apenas para seu propósito constitucional. Contudo, talvez

sejam insuficientes para projeção de força na Ásia. Além disso,

evidencia-se que, atualmente, as forças de autodefesa do Japão só

poderiam empreender ações além teatro associadas à outra potência, ou

coalizão, para que suas deficiências sejam compensadas. Ainda assim, o

Japão possui capacidade para, após uma preparação de curto prazo,

empreender ações independentes no Sistema Internacional. Em suma, a

despeito de não se configurar como uma superpotência econômica, o

Japão ainda pode ser considerado uma grande potência por suas demais

capacidades.

Inglaterra e França podem, com maior facilidade, ser classificadas

como grandes potências. Ambas possuem capacidade nuclear e de

projeção de força extrarregional. Este último atributo, no caso da França,

é exercido rotineiramente. As potencialidades da Inglaterra no último

quesito, por sua vez, não são tão claras. Desde 1982, no entanto, ninguém

ousou desafiar suas possessões no Atlântico Sul. Além de bases insulares

através do Atlântico e de boa parte do mundo, a Inglaterra pretende

assegurar sua capacidade de operação independente além teatro com a

entrada em serviço dos porta-aviões da classe Queen Elizabeth, que já

conta com pelo menos duas unidades encomendadas, com entrega

Page 183: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Considerações finais

177

prevista para os anos de 2016 e 2020. Ademais, Inglaterra e França

robusteceram sua capacidade de intervenção por meio da afirmação da

Entente Frugale — basicamente um acordo para ações militares fora da

Europa.

A Inglaterra parece conservar uma capacidade considerável de

exportação de capitais e tecnologia, ainda que restrita predominantemente

aos Estados Unidos: a BAE Systems se mantém entre os seis maiores

fornecedores do complexo militar estadunidense. A França, por sua vez,

tem demonstrado capacidade de inserção favorável na Transição

Tecnológica, destacando-se como único país europeu capaz de produzir

supercomputadores — ainda que com componentes importados dos EUA.

Quaisquer que sejam as limitações do poderio anglo-francês, dificilmente

poder-se-á cogitar retirá-las do rol das Grandes Potências.

A Índia é o único país do mundo que empresta seu nome a um

oceano. No curso da história, o Oceano Índico revelou-se decisivo para a

sorte das hegemonias no Sistema Internacional. Foi assim em 1509,

quando, após a Batalha de Diu, a frota portuguesa destruiu a turca e abriu

o caminho do Pacífico para a Europa. Nas Guerras de Sucessão Austríaca

e dos Sete Anos, o controle do Índico mostrou-se crucial para a

supremacia naval inglesa e a própria conquista da Índia. Nas duas guerras

mundiais, o Oceano Índico foi decisivo para manter as rotas de

suprimento estadunidenses para os beligerantes: a Inglaterra na Austrália,

a URSS através do Irã e a China por intermédio da Birmânia. Sendo

assim, a proeminência internacional da Índia, diferentemente do que se dá

com as demais potências, está assegurada apenas por sua capacidade de

interferência na região, já que sua projeção de poder marítimo domina o

Oceano Índico.

Naturalmente, a Índia possui outros recursos de poder: trata-se de

uma potência termonuclear, dotada de moderna força aérea e um

comando do espaço em construção (65 satélites lançados, 7 de uso militar

exclusivo). Diferentemente do que se dá com suas outras capacidades

(e.g.: aeroespacial, nuclear), contudo, a projeção naval de forças não pode

ser contrarrestada por seus vizinhos no sul da Ásia. A PES na Índia

parece depender de três aspectos críticos: (a) o processo da integração do

sul da Ásia; (b) o caráter da competição militar com a China e (c) o

modelo de negócio e serviços.

Mesmo sendo Grande Potência sem ter previamente concluído um

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

178

processo de integração regional, a Índia depende de seus vizinhos do Sul

da Ásia para não ter suas capacidades comprometidas. Isso se aplica

mesmo em relação ao domínio do mar: Bangladesh domina o vértice do

Golfo de Bengala, e Paquistão o acesso ao Golfo Pérsico. Alianças desses

países com potências extrarregionais podem limitar consideravelmente a

ação da marinha indiana.

Ainda que suas capacidades militares sejam suficientes para

projeção defensiva de forças no âmbito regional, demonstram-se

deficitárias para servir como contrabalança inter-regional, no caso, do

Leste Asiático. Neste caso, o desfecho mais provável seria uma corrida

armamentista com a China. A dificuldade reside em compreender que, a

aquisição adicional de capacidades para cumprir a função de

contrabalança, tem resultado duvidoso e pode ser claramente

contraproducente. O sistema de vasos comunicantes entre o leste e o sul

da Ásia se encarregam de dificultar o gerenciamento da dimensão e do

perfil das capacidades. Ainda não está claro se a Índia seria capaz de

vencer a China em uma a competição militar, mas certamente ela drenaria

recursos tão necessários em outras áreas. O país não pode abrir mão de

investimentos em infraestrutura (energia e capacidade produtiva) para

alavancar sua atração de IED. Isso inviabilizaria o uso de seus meios de

pagamento para integração, um elemento necessário para sua política de

defesa, já que evita o estabelecimento de bases militares extrarregionais

permanentes no sul da Ásia.

Além disso, importa entender o papel da governança corporativa. Há

pouco mais de uma década atrás, uma conflagração envolvendo Índia e

China afigurava-se muito improvável, dado que ambos dependiam dos

mesmos parceiros de subcontratação e partilhavam dos mesmos

mercados. Na medida em que ambos países passaram a operar a fusão

entre o capital bancário e industrial e configuraram-se como exportadores

de capitais, a tendência à cooperação deixou de estar condicionada

favoravelmente pela economia. A interferência da diplomacia na gestão

da infraestrutura inter-regional parece ser o modo de delimitação de áreas

de influência tácitas e o caminho possível para os governos incidirem

sobre os respectivos modelos de negócios e serviços. Nesse sentido, a

governança corporativa permite a interferência política no modelo de

negócios e serviços de modo a configurar uma gestão cooperativa e

associada de fontes de energia extrarregionais e algum tipo de divisão de

Page 185: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Considerações finais

179

mercados.

Sem dúvida, a Índia ainda possui grandes obstáculos em seu

caminho, mas a gestão desses empecilhos pode ser realizada em

conformidade com o status de grande potência.

Considerou-se que China, Rússia e Estados Unidos são claramente

grandes potências. Tampouco cabe aqui ir além do disposto nos estudos

de caso. Deste modo se tratará deles em conjunto, na abordagem acerca

do papel triangulação como mecanismo de governança do SI, o que é

feito adiante, ao fim deste texto.

GUERRA E EQUILÍBRIO

Caso se dê algum crédito ao presente estudo, entre suas conclusões

mais relevantes está a constatação de que o Sistema Internacional atual

possui entre sete e oito grandes potências2. O Sistema Internacional já

possuiu quantidade semelhante de grandes potências em pelo menos duas

ocasiões: entre 1700 e 17633 e entre 1914 e 1945

4. Ambos os períodos

foram marcados por confrontações militares que podem ser consideradas

guerras centrais ou mundiais. Usualmente, acredita-se que, nestes dois

momentos a governança do SI foi dificultada, senão impossibilitada, pelo

elevado montante de grandes potências em ascensão ou declínio. A

funcionalidade da guerra central seria justamente a de restabelecer a

governança do SI (equilíbrio estável).

Em oposição, o período mais pacífico da existência do SI,

compreendido entre os anos 1815 e 1914 é caracterizado pelo domínio de

apenas cinco grandes potências — a pentarquia de Kissinger e, de resto,

da teoria clássica do equilíbrio na multipolaridade (Edward Carr, Hans

2 Cumpre lembrar, concluiu-se que a Turquia ainda não é uma grande potência e que a

Alemanha depende do status futuro da União Europeia. 3 Entre 1700 e 1721 deram-se duas conflagrações simultâneas que alteraram o status da

polaridade. A Grande Guerra do Norte (1700-1721) que retirou da Suécia a condição de

grande potência e que constituiu a Rússia enquanto tal. E a Guerra da sucessão

espanhola (1702-1714) que marcou o declínio da Espanha e Holanda enquanto grandes

potências. A Guerra dos Sete Anos (1756-1763) marcou a ascensão da Prússia enquanto

grande potência na Europa. 4 Período correspondente às duas guerras mundiais: a 1ª Guerra Mundial (1914-1918) e a

2ª Guerra Mundial (1939-1945).

Page 186: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Relações internacionais contemporâneas 2012/2

180

Morgenthau, Raymond Aron, Samuel Huntington, entre outros).

Usualmente, considera-se que esta forma de equilíbrio multipolar, quatro

potências e uma quinta com o papel de balanceador, é a forma de

multipolaridade mais estável5. Note-se que a ideia de associar a

estabilidade do SI a um número determinado de grandes potências, está

relacionada à expectativa de governança dos assuntos internacionais.

Contudo, é a noção de governança, de decisão baseada no consenso, que

alicerça a noção de equilíbrio e não a quantidade de polos (grandes

potências). Abstraída esta ressalva, a sugestão subjacente — e, na

literatura de RI, não raro, este argumento assume sua forma explícita — é

a de que, na experiência do SI, tanto na paz quanto na guerra, sete ou oito

potências desequilibram o SI, impedindo sua governança. Nesta linha de

raciocínio, seria forçoso reconhecer que o atual SI traz consigo a

possibilidade da guerra central.

Todavia, nem sempre guerras centrais alteram o número de polos do

SI (polaridade). Este parece ser o caso das guerras da Revolução Francesa

(1792-1815) que, segundo Clausewitz, inauguraram a guerra total ou

absoluta na Europa6. As guerras napoleônicas produziram uma profunda

modificação no conteúdo ético do continente e do próprio SI. Para além

da hegemonia inglesa, importa o registro do papel cumprido pelo

Congresso de Viena: a primeira oposição séria ao sistema anárquico de

Estados soberanos estabelecidos em Vestfália (1648). Ao menos entre

1818 e 1848, o Congresso comportou-se mais como um sistema de

governo mundial do que, propriamente, de governança e concertação do

SI. Para além das mudanças institucionais, veio a Revolução Industrial, o

emprego do vapor de alta pressão (1815), a produção em série de Eli

Whithney (1851) e o processo Bessemer de siderurgia (1855). Mas, a

despeito de todo o seu impacto sobre os valores, o Estado, a sociedade e o

processo produtivo, nem por isso, as guerras da Revolução Francesa

alteraram a polaridade do SI.

Por outro lado, no chamado “século de paz” (1815-1914), houve

uma alteração significativa na polaridade, que, a princípio, parece estar

mais diretamente associada ao Congresso de Viena que à Revolução

5 Na época este papel era cumprido pela Inglaterra que geralmente balanceava as tensões

entre as potências continentais (França, Rússia, Prússia e Áustria). WALTZ, Kenneth.

Theory of International Politics. EUA: Waveland Press, 2010. pp 163-164. 6 CLAUSEWITZ, Carl von. Da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. pp 831

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Considerações finais

181

Francesa e às suas guerras. As guerras de Independência da Grécia (1821-

1832) e a Primeira Guerra Egípcio Otomana (1831-1833) retiraram a

Turquia (Império Otomano) do rol das grandes potências. Mesmo

considerando-se a magnitude das forças reunidas pelas potências de

Viena na batalha de Navarino (1827) para destruir a esquadra turca; ou a

escala da guerra egípcio turca — 100 mil por parte do Egito e 147 mil por

parte da Turquia — não parece razoável supor que se tratou de uma

guerra central7.

A Independência da Grécia, ao contrário, parece se ajustar ao que

atualmente se convenciona chamar de guerra local8. Isso porque a

despeito de relativamente confinada em termos geográficos, mobilizou e

esgotou os recursos do Império Otomano. Igualmente, a Primeira Guerra

Egípcio-Otomana, na melhor hipótese, pode ser considerada uma guerra

regional, dada a participação oficiosa da Rússia, que ironicamente apoiou

a Turquia. A Independência Grega parece ilustrar precocemente (antes do

advento das armas nucleares) o papel da guerra local no equilíbrio

internacional.

Importa notar que as alterações na polaridade do SI ao longo do

“século de paz" são fruto de confrontações ainda menos prolongadas ou

intensas daquelas que ocasionaram a derrocada da Turquia como grande

potência. O surgimento da Itália como grande potência em 18759, foi

precedido pelas Revoluções de 1848, que propiciaram a união das

Repúblicas italianas contra o domínio da Áustria. Mesmo o malogro do

movimento foi suficiente para retirar a Áustria da Santa Aliança e, por

fim, do Congresso de Viena, doravante sucedido pelo Concerto Europeu.

De qualquer modo, em 1859, os italianos, desta feita em aliança com a

França, desafiaram o domínio austríaco, no episódio conhecido como a

segunda guerra de independência italiana. Esta igualmente não foi

coroada de êxito, mas permitiu que o Piemonte se fortalecesse,

constituindo-se como o esteio de unificação da península. Isso acabou por

ocorrer na Terceira Guerra de Independência da Itália em 1866 (parte da

7 Guerra Central é uma conflagração que ocorre entre as grandes potências, os polos do

Sistema Internacional. 8 Guerra local é uma conflagração delimitada geograficamente e de intensidade variável. 9 O ano de 1875, já após a unificação, marca a expansão da influência italiana para os

Bálcãs, evento que demonstrou a maioridade da Itália como uma grande potência.

TERZUOLO, Eric R. The International History Review. Vol. 4, nº 1. Fevereiro de 1982.

Págs 111-126.

Page 188: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Relações internacionais contemporâneas 2012/2

182

guerra Austro-Prussiana), quando os italianos, desta vez aliados aos

prussianos, conseguiram obter a vitória. Contudo, convenciona-se a data

da Unificação Italiana como 1870, quando em virtude da guerra franco-

prussiana, os italianos conseguem recuperar Roma10

.

Em resumo, o surgimento de duas grandes potências (Itália 1870 e

Alemanha 1871) deveu-se a uma sucessão de conflagrações de curta

duração que, na melhor hipótese, constituem episódios de guerra

limitada11

. Dentre as revoluções de 1848, a guerra franco-austríaca de

1859, a guerra austro-prussiana de 1866 e a franco-prussiana de 1871,

apenas esta última pode ser considerada de proporção significativa. O

papel que estes países desempenhariam nas duas guerras mundiais,

sobretudo na segunda, deve ser o suficiente para ilustrar o significado da

alteração da polaridade ocorrida durante a vigência do “século de paz”.

De fato, ambas as guerras mundiais podem ser consideradas como a

soma de duas guerras locais que escalaram no âmbito vertical e

horizontal12

, produzindo uma conflagração generalizada. Na Primeira

Guerra temos, de um lado, a confrontação entre a Rússia e a Áustria-

Hungria, naquilo que poderia ter sido a Terceira Guerra Balcânica e que,

devido ao sistema de alianças paradoxalmente construído para deter a

guerra, produziu sua generalização. O mesmo pode ser dito sobre a

confrontação entre Alemanha e França envolvendo a região da Alsácia-

Lorena, uma sequela da guerra limitada de 1871. De modo análogo, a

Segunda Guerra Mundial pode ser considerada a soma da guerra sino-

japonesa (1931-1945) e da ocupação da França pela Alemanha —

consumando as guerras de 1871 e de 1914-1918. A diferença neste caso,

foi, de um lado, o ataque japonês a Pearl Harbor, que tornou a guerra

sino-japonesa uma conflagração regional e, de outro, a invasão da URSS

10 Anteriormente, em 1867 as tropas francesas, haviam apoiado os Estados Papais,

impedindo que Roma fosse capturada. Foi só em 1918, já sob os auspícios da Liga das

Nações, que a Itália logrou recuperar os últimos territórios sob o domínio austríaco a

Veneza, Júlia e Trentino. 11 Guerra limitada consiste em uma conflagração confinada não só na geografia, mas

também na duração e na escala. 12 Escalada: o aumento no grau do conflito em situações internacionais. Escalada Vertical:

aumento da intensidade da guerra pelo emprego de mais tropas ou de armamento de

maior poder destrutivo. Escalada Horizontal: aumento da intensidade da guerra em

virtude do concurso de novos beligerantes. KAHN, Hermann. A Escalada. Rio de

Janeiro: Bloch, 1969. pp 23.

Page 189: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Considerações finais

183

e a declaração de guerra aos Estados Unidos feitas pela Alemanha, o que

mundializou a confrontação militar.

DIPLOMACIA E ECONOMIA NO ENTRE-GUERRAS

Costuma-se atribuir a II GM ao fracasso da Liga das Nações (LDN)

em evitar a conflagração devido à ausência dos EUA e da URSS entre os

seus membros13

. Este fato, aliado ao discurso do nacionalismo autárquico

e do capitalismo de estado — partilhado tanto pelos regimes corporativos

quanto pelo soviético — alimentam a ideia de que nas décadas de 30 e

40, não havia interdependência e, tampouco, diplomacia multilateral.

Embora a ideia seja confortável, nos dá a sensação de segurança de que a

guerra mundial é impossível em um mundo interdependente e sob os

auspícios do sistema ONU, trata-se de uma simplificação excessiva da

realidade

Os principais beligerantes mantinham relações significativas de

interdependência. As mais conhecidas são as existentes entre o Japão e os

EUA, manifestas na cadeia de eventos que conduziram à Pearl Harbor. O

caso da Alemanha e da Inglaterra é bem conhecido — foi levado às telas

no filme Vestígios do Dia, de James Ivory (1993) —, além de

devidamente abordado na literatura de RI14

.Dentre estas relações, talvez a

menos conhecida seja entre os Estados Unidos e a Alemanha. Desde o

período do entre-guerras, o governo alemão se utilizava amplamente da

praça de Wall Street para financiar os seus empreendimentos. As grandes

corporações americanas possuíam participações em empresas como a

Krupp e ainda, empresas como a Standard Oil, General Eletric, AT&T

13 A Liga das Nações foi criada pela Conferência de Paris de 1919, teve entre os seus

principais proponentes o presidente estadunidense Woodrow Wilson, sua primeira

sessão teve lugar em janeiro de 1920. Devido a não ratificação do tratado pelo senado

americano — o senador Henry Cabot-Lodge se opunha ao envio de tropas ao exterior

sem o aval do Congresso —, os EUA não ingressaram na LDN. A Rússia, por sua vez,

estava em guerra civil e viu-se invadida pelas grandes potências da época, os membros

mais proeminentes da LDN, de 1918 à 1925. Em virtude disso, a URSS só pode

ingressar na Liga em 1934, contudo, acabou sendo expulsa em 1939. 14 O filme retrata o círculo de aristocratas que formavam o Grupo de Cliveden: cartel

anglo-francês do carvão e do aço, que buscavam evitar a guerra através de negócios

com os industriais alemães. Cf. VIZENTINI, Paulo Fagundes. História do Século XX.

Porto Alegre: Novo Século, 1998.pp.75, 77, 78, 82 e 84.

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

184

Communications e Ford. Além de fornecer produtos, também

transferirem tecnologias para o país, como a do combustível e da

borracha sintética15

.Os Tratados de Rapallo (1922) e Berlim (1926)

documentam a cooperação tecnológica e militar entre a Alemanha e a

URSS. Naturalmente, a interdependência era mais intensa entre os polos

que comporiam o campo aliado na II GM16

.

O capitalismo de estado, em suas diferentes matizes e feições, foi a

resposta ao desafio colocado pela transição tecnológica da primeira para a

segunda fase da Revolução Industrial — correspondeu ao período da

aliança dos monopólios com o Estado para custear o processo de

transição tecnológica.17

Desse modo, a despeito dos Estados corporativos

frequentemente valerem-se de um discurso centrado no nacionalismo e na

15 SUTTON, Antony C. The Wall Street and the Rise of Hitler. Nova York: Buccaneer

Books. 2000. 16 Ainda em 1913, a criação do FED nos EUA sob os auspícios do banco N M Rothschild

& Sons Limited da Inglaterra, demonstra a interação anglo-estadunidense devido ao

processo de transnacionalização de empresas britânicas. Tratou-se da materialização do

Pacto de Elites anglo-estadunidense iniciado ainda no século XIX, e que vigorou até o

New Deal e a II GM, quando Roosevelt tentou substituí-lo pelo Pacto Social Mundial.

O tema dos Pactos de Elite e Pactos Sociais Mundiais foi desenvolvido em BUENO,

Eduardo Urbanski. Paradigmas Técnico-Econômicos, Pactos de Elites e o Sistema

Monetário Internacional. Trabalho de Conclusão de Curso de Relações Internacionais,

Faculdade de Ciências Econômicas, UFRGS. Porto Alegre, 2009. A cooperação

estadunidense-soviética antes da Segunda Guerra tornou-se um tema bem conhecido,

sobretudo, após a queda do Muro de Berlim. Contudo, ainda antes do fim da Guerra

Fria, Louis Fischer e Armand Hammer encarregaram-se de remontar as relações russo-

estadunidenses desde a retirada das tropas estadunidenses da Sibéria em 1920 (chegada

de Hammer em Moscou ), passando pelas relações com Lênin (documentada por

Fischer desde 1922), até a amizade de Stálin com Henry Ford. Ainda à época da

perestroika, publicizou-se a importância da cooperação bilateral durante a II GM:

embora se trata-se de pouco mais de 5% do aportado ela se deu em um momento crítico

de transferência das fábricas para além dos Urais. Sobre as relações EUA e URSS no

pré-II GM ver: FISCHER, Louis. A Vida de Lênin. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 1967; HAMMER, Armand. Hammer, um Capitalista em Moscou. São Paulo:

Editora Nova Cultural, 1989; e SUTTON, Antony C. Wall Street and the Bolshevik

Revolution. New York: Buccaneer Books. 2001. 17 Pode-se comparar a primeira e a segunda fase da Revolução Industrial a partir de três

fatores: processo produtivo, geração de energia e o domínio da metalurgia. Na Primeira

Revolução Industrial as inovações foram pautadas pela produção manufatureira

mecanizada, pela energia à vapor e pelas melhorias na produção do ferro. Já na Segunda

Revolução Industrial o progresso foi capitaneado pela produção em série, pelo motor à

explosão e pela produção em escala do aço a partir do advento do processo Bessemer.

Page 191: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Considerações finais

185

ideia de um desenvolvimento autárquico, no mundo real, em seus

fundamentos econômicos (transferência de tecnologia, patentes, capitais)

o capitalismo monopolista de Estado mantinha relações de

interdependência.

A ideia de que a guerra foi causada pela ausência de instituições

multilaterais, igualmente, não é de todo exata: toma a diplomacia por sua

forma e abstrai seu conteúdo. Os fundamentos do Internacionalismo

Conservador18

do entre-guerras foram lançados ainda no século XIX, no

afã de conter a ascensão da Rússia (Crimeia 1853-1856) e de estabelecer

uma governança sobre a China após a Revolta dos Boxers (1900).

A Partilha da China deu-se desde o Tratado de Nanjing (1842),

contudo a decadência da dinastia Qing precipitou-se após a Guerra Sino-

Japonesa de 1894-1895 — a guerra limitada que converteu o Japão em

potência regional — após a qual aconteceu a Revolta dos Boxers (1900).

Então, graças aos erros de cálculo da Imperatriz Cixi, o exército imperial

foi destruído pelas potências ocidentais. Esse episódio — a destruição do

Exército chinês — estabelece um novo umbral nas relações das potências

ocidentais com a China. Mais que dividir áreas de influência, tratava-se

agora de governá-la. A garantia de lei e ordem passou a depender

fundamentalmente do Ocidente: foi firmado o Tratado das Oito

Potências19

, fundamento mediato do Internacionalismo Conservador. Em

sua esteira veio o Tratado Anglo-Japonês de 1902, explicitamente

dirigido contra a presença russa na Manchúria. A Guerra Russo-Japonesa

de 1905 — guerra local que converteu o Japão em Grande Potência — foi

a consequência lógica da gestação do Internacionalismo Conservador,

cujo marco remoto é a Guerra da Crimeia; mediato, o Acordo Anglo-

Japonês; e imediato, a Revolução Russa, cujo embrião também está

associado à Guerra Russo-Japonesa. O Tratado Lansing-Ishii

(02/11/1917) firmado entre Japão e EUA é a continuidade lógica do

Tratado das Oito Potências e o espelho americano do Tratado Anglo-

Japonês. Cinco dias depois (07/11/1917) deu-se a Revolução de Outubro,

18 Internacionalismo Conservador — Categoria utilizada por Robert Schulzinger para

caracterizar o conteúdo da diplomacia do entre-guerras. Neste trabalho, conforme se

explica no texto, o termo é operacionalizado em um contexto mais amplo, procura-se

enfatizar as raízes desta política, lançada ainda no anos anteriores à I GM.

SCHULZINGER, Robert. American diplomacy in the twentieth century. New York:

Oxford University Press, 1990. 19 Inglaterra, EUA, Rússia, França, Alemanha, Áustria, Itália e Japão.

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

186

e já no ano seguinte (11/08/1918) americanos e japoneses invadiram a

Sibéria para combater os bolcheviques. A intervenção dos EUA e do

Japão tipifica o conteúdo programático do consenso existente: manter a

China ocupada e a Rússia (agora soviética) fora dos assuntos

internacionais.

Assim, a despeito dos EUA ficarem à margem da Liga das Nações,

permaneceram no centro da concertação internacional. O fato de

sediarem a Conferência de Washington de 192220

ilustra claramente a

proeminência estadunidense e a capacidade da diplomacia em exercer a

governança do SI. De modo ímpar, o Tratado Naval firmado para limitar

a quantidade de couraçados e a tonelagem das Marinhas — precursor

multilateral dos SALT e START —, denominou e hierarquizou as grandes

potências através da discriminação do perfil de força de suas frotas de

superfície21

. Pode-se considerar que a Conferência de Washington foi a

prefiguração do que, após a fundação da ONU, seriam os denominados

regimes internacionais. Além disso, foi precursora do Pacto Kellogg-

Briand de 1928.

20 A Conferência de Washington foi concluída com a assinatura de três tratados. O Tratado

das Quatro Potências, das Cinco Potências e das Nove Potências. Tratado das Quatro

Potências — estipulava a manutenção do status quo na Ásia. Assinado por EUA,

Inglaterra, França e Japão. Considerado uma extensão do Tratado Lansing-Ishii (1917) e

precursor do Tratado Kellogg-Briand (1928). Tratado das Cinco Potências (Tratado

Naval) — estipulava o perfil de forças e a tonelagem de cada frota. Signatários:

Inglaterra, EUA, Japão, França e Itália. Tratado das Nove Potências — garantia a

integridade da China e a continuidade da política de Portas Abertas. Signatários: EUA,

Inglaterra, Japão, China, França, Itália, Bélgica, Holanda e Portugal. 21 Tratado Naval de Washington — estipulou a nomenclatura e a tonelagem máxima por

país dos principais combatentes de superfície: couraçados, cruzadores e porta-aviões.

Foi dividido em duas partes. A que dispunha sobre couraçados e cruzadores e a que

tratava dos porta-aviões — seu conteúdo é de prenhe significado, daí a importância de

sua descrição. Couraçados e Cruzadores — equiparou os EUA à Inglaterra,

distinguindo a ambos com 525 mil toneladas. Colocou o Japão em posição de

proeminência sobre a França e a Itália, com 315 mil toneladas. Por fim, equiparou a

Itália à França, permitindo que ambos construíssem até 175 mil toneladas. Vigorava

para todos o limite máximo de tonelagem por vaso de 35 mil toneladas, e que seu

armamento principal não poderia exceder o calibre de 406 milímetros.(16 polegadas).

Japão e Inglaterra já possuíam canhões navais de calibre superior. Porta-aviões — mais

uma vez se distingue EUA e Inglaterra com 135 mil toneladas. Concede-se ao Japão

construir até 81 mil toneladas. E, por fim procura-se compensar a França e a Itália com

a autorização de construir até 60 mil toneladas. Para todos signatários ficou estipulado

que a tonelagem máxima por casco ficasse limitada a 27 mil toneladas.

Page 193: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Considerações finais

187

Proposto pelos EUA e a França, o Pacto Kellogg-Briand estipulava a

renúncia à guerra como instrumento legítimo de política nacional. Foi

assinado por 55 países — todos os membros da LDN, além de EUA e

URSS. Na ocasião, Alemanha, Itália e Japão ainda faziam parte da LDN.

Portanto, todas as Grandes Potências da época assinaram o Pacto

Kellogg-Briand. Foi a governança das disputas da Ásia, materializada na

Conferência de Washington, que permitiu sua assinatura. Ele antecipa o

artigo 2, parágrafo 4 da Carta da ONU que proscreve a guerra de

conquista como instrumento legítimo de política internacional. A adesão

soviética aos termos do Pacto abriu as portas da LDN ao seu ingresso,

que se efetivou em 1934.

Nesse sentido, pode-se dizer que se a Conferência de Washington

prefigurou os regimes internacionais, o Pacto Kellogg-Briand, por seu

turno, antecipou os instrumentos de governança do sistema ONU22

. Nem

o Congresso de Viena (1815), nem a LDN — a despeito de seus feitos na

governança internacional —, haviam ousado ir tão longe. O Congresso de

Viena não dispunha de nenhum mecanismo formal para evitar

conflagrações. Com exceção de tratados territoriais, todas as disputas

eram solucionadas através de mediações informais ou tratados secretos. A

LDN, por sua vez, apesar do objetivo final de promover a paz apenas

requeria de seus membros que recorressem às instâncias de arbitragem,

sem explicitamente proscrever a guerra como instrumento de política

externa. Do exposto, emerge uma imagem diferente da que usualmente

temos acerca do papel da diplomacia no entre-guerras. Percebe-se o quão

precária é a imagem de que foi a ausência dos EUA e da URSS na LDN o

que inviabilizou a governança do SI, levando à guerra.

Em 1929 veio a crise econômica — que já foi comparada com a de

2008 — e então todas as declarações altissonantes da diplomacia acerca

da proscrição da guerra se desfizeram. Nem mesmo a interdependência

monopolística — acerba nos casos da interação entre EUA e Japão —

cumpriram o papel de contrapeso eficiente à confrontação. Ainda em

1929 foi publicado o Memorando Tanaka que preconizava a conquista da

22 De fato, sua formulação foi ainda mais ousada: pretendeu abolir todo tipo de guerra e

substituí-la por mecanismos de solução de controvérsias. Isso fica claro na rejeição da

emenda francesa que propunha salvaguardar o direito do uso da guerra em legítima

defesa ou em cumprimento das disposições da LDN. Cf. KISSINGER, Henry.

Diplomacia. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1999. p.301.

Page 194: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Relações internacionais contemporâneas 2012/2

188

China para o êxito do Japão no Leste Asiático. Em 1931 teve início a

invasão da China e a guerra que se prolongaria até 1945. Nos EUA, que

já eram um Estado Região, a crise foi contornada pelo New Deal que

efetivou a expansão para dentro, através de frentes de trabalho, obras de

infraestrutura, e não menos importante, a construção naval. A Alemanha,

mais semelhante ao Japão que aos EUA, também expandiu-se na região.

Em 1936 remilitarizou a Renânia, em março de 1938 anexou a Áustria,

em setembro os Sudetos. Em 1939 invadiu a Polônia e em 1940, a

França.

Como referiu-se anteriormente, caso Hitler não invadisse a URSS ou

declarasse guerra aos EUA em 1941 a II GM poderia ter se apresentado

como duas guerras regionais simultâneas, mas desconectadas entre si.

Como, por exemplo, se deu com a Sucessão Espanhola (1702-1714) e a

Grande Guerra do Norte (1700-1721). Possivelmente, em todo caso,

haveria guerra central. Pouco importa se sincronizada ou desconectada.

Importa pois, saber porque se deu a guerra.

Impossível pretender uma resposta cabal. Contudo, parece legítimo

supor que a guerra está relacionada aos desafios envolvendo a passagem

da primeira para a segunda Revolução Industrial. No caso, aos recursos

para custear essa transição tecnológica, mormente de economia de escala.

Em suma, da capacidade da URSS e dos EUA em constituírem-se

enquanto Estado Região e da dificuldade da Alemanha e do Japão em

fazerem o mesmo. Neste caso, os contrapesos representados pelas

instituições (do mundo da política) e a interdependência (do mundo da

economia) não foram suficientes para conter a determinação sistêmica

que impelia os Estados rumo ao aço e ao petróleo (competição militar e

guerra). Nesta linha de raciocínio, não se trata de desconstruir a

importância da interdependência, mas simplesmente reconhecer a

importância da terceira imagem de Waltz (a guerra) sobre as demais

determinações. Ato contínuo, identificar a transição tecnológica entre os

principais fatores de desequilíbrio, isto é, que criam demandas antes

inexistentes e impelem os Estados a erigirem novas capacidades.

Desta perspectiva há pouca diferença entre a interdependência

liberal e a monopolista, ou ainda entre a diplomacia do Congresso de

Washington e do Pacto Kellogg-Briand com o sistema ONU. E uma

semelhança perturbadora: estamos diante de uma nova transição

tecnológica, desta feita da segunda para a terceira Revolução Industrial.

Page 195: Relações Internacionais Contemporâneas 2012/2

Considerações finais

189

Entretanto, antes de se vaticinar acerca da suposta inevitabilidade de uma

nova guerra central (que, por certo, pode ocorrer), importa perguntar-se

como se dá o sociometabolismo entre os três mundos: o da política

(instituições/diplomacia); o da economia (mercadoria/dinheiro); e o da

guerra (ou competição militar). Pode-se adotar como ponto de partida a

abordagem de Karl Deutsch23

e propor-se uma interpretação cibernética: a

eclosão ou não da conflagração depende mais do gerenciamento do

sistema do que da diplomacia, da economia, ou mesmo, do número de

polos.

TRIANGULAÇÃO E LIÇÕES PARA O BRASIL

Conquanto, o Sistema Internacional seja fechado, composto por

número limitado e definido de Estados, sua governança é um sistema

aberto, definido pela oscilação do número de grandes potências, isto é,

daqueles Estados cujas capacidades devem ser levadas em conta. Um

problema envolvendo a análise ou o cálculo em política externa, é saber

quem são essas potências e em que medida suas posições devem ser

consideradas.

Esta incerteza deriva, entre outros fatores, do dinamismo

característico do sociometabolismo da política, da economia e da guerra.

Estes três aspectos podem ser considerados como subsistemas com seus

próprios inputs, processamento autônomo e retroalimentação

independentes. Assim, o Sistema Internacional sofre oscilações tanto em

virtude das revoluções de 1848 ou da Primavera Árabe — para efeitos do

subsistema político — das variações demográficas, mudanças climáticas,

da oferta de matérias-primas ou commodities — no que tange ao

subsistema econômico — ou ainda, das transições tecnológicas, no caso

da guerra.

Dada sua extrema complexidade, número de inputs e outputs,

processamento simultâneo de subsistemas, assimetrias (e.g.: sistema

aberto governando sistema fechado), entre outros, a tendência natural é

23 A referência à Karl Deutsch é um tributo ao seu pioneirismo no emprego da teoria da

comunicação para a análise do Sistema Internacional. Isto não significa cingir-se ao seu

enfoque, ou estabelecer qualquer compromisso de sinonímia com a taxionomia, muito

menos no que tange ao conteúdo normativo.

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

190

procurar respostas na simplificação. No caso, a estrutura mais simples de

governança do SI seria a unipolaridade. Com uma única potência ditando

as regras do sistema, sua governança afigura-se como mais exequível.

Contudo, a simplicidade pode ser enganosa: a tarefa de governar todo o

sistema pode converter-se em um fardo insuportável, fazendo com que

todo o peso de suas tensões se façam sentir sobre o polo dirigente. Ilustra

esta perspectiva a crise estadunidense que se seguiu ao momento unipolar

do SI. A bipolaridade contém a mesma estratégia de gestão, procura

governar a complexidade através da simplificação. A partir da ótica dos

dois enfoques precedentes a multipolaridade seria a forma menos estável

de governança, posto que trata-se de muitos, simultaneamente,

pretendendo escrever as regras do sistema. Sem dúvida, o sistema

multipolar é mais propenso a instabilidade. Contudo, não existe evidência

de que esta não seja uma tendência aplicável tanto aos equilíbrios do SI

quanto aos sistemas em geral.

Aqui cabe lembrar que a plausibilidade da pretensão de um Estado

em escrever regras está relacionada às suas capacidades e ao

reconhecimento destas por parte dos demais. Ainda que não se possa

pretender reduzir a política internacional à nenhum dos três campos

(político, econômico e militar) e, muito menos aos particularismos de

cada um deles, pode-se distinguir na projeção de força um fator que com

maior facilidade permite o reconhecimento por parte dos demais Estados

como algo que deve ser levado em conta no seu cálculo. Em suma, o

medo pode não ser o motor da política externa, como pretende o realismo

ofensivo, mas se dissemina com maior facilidade do que a suscetibilidade

à imitação a partir da liderança.

Isto se dá na medida em que o SI não tem uma autoridade central, a

coerção é indireta, baseada no cálculo de interações, feito a partir da

correlação de forças. Portanto, a capacidade de prevenir a guerra, isto é

de dissuadir, pode estar relacionada diretamente com as promessas de

recompensa ou punição. Neste caso, importam as grandes potências,

posto que apenas estas podem ser computadas fora de seu âmbito regional

— estando aptas a aplicar punições. Então, a capacidade de gestão de

crise em um sistema de poder, pode ser legitimamente relacionada às suas

forças navais, já que é por mar que se desloca a tonelagem da guerra.

Considerando-se que o que distingue uma potência regional de uma

Grande Potência é que a esfera de influência da primeira é a região e da

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Considerações finais

191

segunda, o mundo, pode-se concluir que a distinção básica entre ambas

reside na capacidade de projeção de força militar além da região (além

teatro). Como a maior parte das interações inter-regionais — mesmo

tratando-se de regiões contíguas — se dão através do mar, parece também

razoável supor que as capacidades navais estão no âmago da distinção

entre a potência regional e a grande potência. Portanto, o inventário

acerca das capacidades navais importa duplamente: (I) para tentar

identificar quem são as Grandes Potências; e (II) para prospectar sua

capacidade em administrar uma crise. Parece, pois, válido comparar:(1)

as capacidades navais da pentarquia do século XIX; (2) das potências do

entre-guerras e (3) das atuais. O que é feito a seguir.

Em 1880, o ranking das frotas das potências expresso em toneladas,

era: (1) Grã-Bretanha, com 650 mil; (2) França com 271 mil; (3) Rússia

com 200 mil;(4) Itália com 100; (5) Alemanha com 88; e (6) Áustria-

Hungria com 6024

. Tomando-se estes dados fica mais fácil entender a

estabilidade da pentarquia no século de paz. A Inglaterra possuía mais

que o dobro da tonelagem da França e da Rússia, que por sua vez,

guardavam proporção semelhante à Itália, Alemanha e Áustria-Hungria.

A hierarquia de capacidades, expressa neste sistema piramidal, serve para

ilustrar os jogos envolvendo a oscilação de alinhamentos e a formação de

alianças flexíveis que caracterizaram o Concerto Europeu. O líder

encontra-se em posição confortável, há pelo menos duas potências em

situação intermediária e três grandes potências em situação precária. Na

verdade cinco, se considerarmos que na época, Japão e EUA já tinham

forças navais consideráveis, apesar de serem mantidos aparte do Concerto

Europeu.

No argumento anterior, vimos como era a distribuição da tonelagem

por frota na década de 1880. Em 1922 o Congresso de Washington

desenhou um quadro de como o mundo deveria ser: EUA e Inglaterra

com 660 mil toneladas cada; Japão com 396 mil toneladas; e França e

Itália com 235 mil toneladas cada uma. O que chama a atenção no

desenho do Congresso de Washington é que ele não traduz a realidade no

inventário, mas projeção daquilo que os diplomatas consideravam

idealmente possível. Em suma, daquilo que consideravam ser a própria

essência do SI em sua época. A imagem que brota, desta feita, é de uma

24 KENNEDY, Paul. Ascensão e queda das grandes potências. Rio de Janeiro: Campus,

1989. p. 200.

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

192

ampulheta. Com duas grandes potências no topo (EUA e Inglaterra),

Japão em uma situação intermediária e França e Itália em uma terceira

posição. O desenho facilita a compreensão do internacionalismo

conservador, a semelhança de capacidades no topo e na base das grandes

potências dificulta qualquer hierarquia e, portanto, a percepção de quem

tem legitimidade para escrever regras. Desta perspectiva fica mais fácil

compreender porque o consenso possível no internacionalismo

conservador era baseado na exclusão da Rússia e da China — de certo

modo, esta atitude era preexistente em relação à própria Revolução

Russa. A saída voluntária do Japão da LDN em 1933 e o ingresso da

URSS no ano seguinte, eliminou o único fundamento de consenso

possível para se escrever regras: a exclusão. Desta ótica não é de admirar

que com a crise de 1929 tenha vindo a guerra.

O panorama atual das forças navais das principais grandes potências

é: EUA com 445 navios e 3.416 mil toneladas; a Rússia com 283 navios e

1.261 mil toneladas; China com 275 navios e 834 mil toneladas; Japão

com 99 navios e 340 mil toneladas; Inglaterra com 82 navios e 335 mil

toneladas; França com 72 navios e 330 mil toneladas; e Índia com 118

navios e 283 mil toneladas25

. Este desenho de capacidades é claramente

triangular. Há um líder inconteste, seguido por duas grandes potências

que se distinguem o suficiente das demais para constituir-se em uma

classe à parte. A China, situada no vértice mais baixo deste triângulo

escaleno, possui o dobro da tonelagem das grandes potências que podem

ser classificadas em uma terceira posição. Abaixo da Índia vem a Coreia

do Sul, uma potência regional, mas contando com 177 mil toneladas, a

Índia possui aproximadamente 40% de tonelagem acima dela. Este talvez

seja o problema deste terceiro grupo, sua distância para as potências

regionais não é tão clara e pronunciada do que separa o segundo do

terceiro grupo de grandes potências.

De qualquer forma, o SI atual parece ser mais governável do que o

estabelecido no entre-guerras. Talvez por isso, o seu conteúdo ético seja

distinto, possui uma lógica inclusiva. Estados, adotam um

comportamento semelhante ao das empresas e formam conglomerados

(os grupos da OMC) para negociar coletivamente. A agenda varia desde

questões trabalhistas até as mudanças climáticas, passando pelo tráfico de

25 Cf. Total Naval Ship Strength by Country. Disponível em: www.globalfirepower.com .

Dezembro de 2012.

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Considerações finais

193

armas leves, proliferação nuclear, terrorismo, separatismo, em suma, há

um processo imperfeito, porém efetivo de governança, o que se dá

também através dos regimes internacionais. Trata-se de responder à

complexidade de processamento de sistema, sem procurar a

simplificação, pelo contrário, aumentando a complexidade dos

mecanismos e processos de gestão e de controle. Conquanto seja anti-

intuitivo, talvez seja o único equacionamento possível em termos

humanistas — a alternativa é a de acelerar-se a entropia já existente no

sistema através da guerra, mas esta opção não pode ser qualificada deste

modo (ver capítulo sobre os EUA).

Porém, talvez o mais importante, seja o processo de triangulação

estabelecido entre EUA, Rússia e China. A triangulação praticada por

estes países permite que as regras sejam escritas de forma coletiva: O que

é obtido pelo alinhamento de dois destes três polos contra o terceiro.

Quando após a Guerra do Vietnã a URSS pareceu estar ganhando a

guerra fria, e prestes a tornar-se o polo dominante no Sistema

Internacional, os EUA aproximaram-se da China para balanceá-la.

Quando, por sua vez, estabeleceu-se o momento unipolar estadunidense,

Rússia e China deixaram suas diferenças de lado e aproximaram-se

através da criação da Organização de Cooperação de Xangai (OCX). Em

grande medida, a amizade entre os dois países é custeada pelo receio dos

efeitos da defesa antimíssil (DAM) estadunidense e de que estes sejam

capazes de estabelecer a primazia nuclear. Permitindo aos EUA poder

atacá-las nuclearmente sem o receio de que um contragolpe nuclear possa

acarretar a destruição mútua.

Contudo, as assimetrias nos vértices do triângulo talvez sejam

pronunciadas demais. Os EUA possuem em suas forças navais, em

termos de tonelagem, quase o dobro de Rússia e China somados.

Contudo, a perspectiva é enganosa. Do ponto de vista qualitativo a

diferença ainda é maior: Rússia e China possuem apenas um porta-aviões

contra dez estadunidenses e, ainda assim, inferiores à este. Apenas os

EUA possuem aeronaves de 5ª geração e mais aeronaves de 4ª geração do

que ambas somadas. Estas assimetrias dificultam a percepção pela parte

estadunidense de que, conquanto sejam muito mais fortes que Rússia e

China, por outro lado a diferença não justifica a pretensão de que possam

ditar regras nas regiões de suas competidoras. Quando então, as

portentosas capacidades do inventário estadunidense são reduzidas pelas

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

194

possibilidades reais da cadeia de logística e pelo número limitado de

linhas de abordagem. Ademais, os números ficam sujeitos aos azares da

imponderabilidade da guerra, que por esta razão, costuma beneficiar os

defensores. Os que lutam em casa, estão mais aptos a empregar a

plenitude de seu potencial. Nem sempre estas considerações parecem

claras à opinião pública e ao congresso americano. Há uma perigosa

tendência de que possam, a partir apenas dos números do inventário,

exigir de suas forças armadas mais do que elas podem realmente oferecer.

Existem elementos de entropia e entalpia no sistema. Conta à favor

de uma recomposição hegemônica o fato de que a mudança não implica

na troca do hegêmona, mas apenas de seu conteúdo ético, no que tange ao

papel conferido às regiões e ao multilateralismo. Importa também

constatar que a triangulação seja praticada desde 1971, portanto há 42

anos, mais que uma geração bíblica. Ela iniciou-se à época da

bipolaridade, informou a transição que redundou na unipolaridade e, por

fim, tem sido o esteio da atual multipolaridade assimétrica. Contudo,

permanece desejável encontrar meios para reduzir a extensão das

assimetrias na multipolaridade (por definição esta forma de equilíbrio é

assimétrica) ao menos para tornar mais claro quem escreve as regras do

jogo e onde sua opinião não deve ser contestada.

Existem inúmeras razões que conduzem ao aumento da incerteza e

disseminam a insegurança. Entre eles, o elevado número de grandes

potências e a situação incerta de algumas delas, que parecem estar em

trajetória declinante. A ascensão da Índia como grande potência e a do

Brasil como líder inconteste da América do Sul. A emergência dos

Próximos 11 (N-11)26

, dentre estes, quatro com perspectivas de liderança

regional (Egito, Indonésia, México e Nigéria) e dois com interesses que

vão além de suas regiões (Turquia e Coreia do Sul). Tudo isto associado a

uma crise econômica prolongada multiplica a percepção acerca do papel

cumprido pelo papel da guerra limitada e da guerra local na definição da

polaridade internacional. Se sua efetividade já revelou-se durante o

século XIX, que dizer do presente quando, graças à digitalização

horizontalizam-se as capacidades militares, disseminam-se equipamentos

de alta tecnologia e multiplicam-se as possibilidades de emprego da

guerra assimétrica.

26 Grupo de países composto por: Bangladesh, Egito, Indonésia, Irã, México, Nigéria,

Paquistão, Filipinas, Coreia do Sul, Turquia e Vietnã.

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Considerações finais

195

Para o interesse nacional, importa atentar para uma dupla

possibilidade (1) de que a recomposição hegemônica se dê sem guerra

central, mas definida por guerras limitadas e locais, feitas por intermédio

de proxies, mais com o intuito de arruinar economias do que com o

propósito de violar fronteiras. (2) A possibilidade da guerra central se dar

sem a confrontação direta entre as três principais potências, por

intermédio de guerras locais, mais ou menos intensas, mas prolongadas

(e.g.: EUA vs Irã, China vs Vietnã).

Trata-se de situações que não justifiquem a confrontação direta, mas

que acarretem prolongada mobilização de recursos nacionais, a ponto de

comprometer a posição do país na hierarquia internacional. Em qualquer

casos, importa a capacidade produtiva seja para dissuadir a potência

extrarregional ou para travar a guerra limitada ou local sem colapsar

economicamente.

No passado o impasse colocado para o Brasil era justificar

investimentos em defesa em um país que se considerava isento de

ameaças externas. Este dilema não faz mais sentido. Temos de deter

capacidades à altura de nossas responsabilidades diante da ordem

internacional. O Brasil ainda está longe de constituir-se enquanto grande

potência, mas tampouco é apenas uma potência regional. No exterior

poucos duvidam de que o Brasil é um sério postulante a condição de

grande potência. A liderança do Brasil na América do Sul consolidou-se,

sua voz tem peso nos fóruns internacionais, sua influência política e

econômica projeta-se claramente além da região. O Brasil tem acertado

em decisões estratégicas cruciais. Recusou-se a responder à intensificação

da complexidade com a simplificação, ao protelar diplomaticamente o

seu ingresso na ALCA, enquanto discretamente construía o seu próprio

bloco regional. O Brasil acerta no método: responde aos novos e

crescentes desafios da governança, multiplicando os instrumentos de

interferência nas Relações Internacionais. Na esfera regional criou a

ALCSA (1993), a IIRSA (2000) a CASA (2004) e a UNASUL (2008). No

âmbito inter-regional ingressou no IBAS em 2003 e compôs o BRIC em

2009.

O Brasil diversificou seus parceiros comerciais e, sem prejuízo de

suas relações sul-norte, solidificou seus laços sul-sul, sobretudo na Ásia,

estreitando sua parceria com a China. Em grande medida a posição

privilegiada do Brasil no contexto da crise internacional, espelha o

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

196

crescimento chinês. É graças à elevada demanda por matérias-primas e

produtos agrícolas que os preços destas commodities se mantém elevados

no mercado internacional e o PIB de nosso país se mantém crescendo.

Contudo, os fundamentos deste crescimento são incertos, o Brasil precisa

qualificar suas exportações e inserir-se favoravelmente na transição

tecnológica.

Neste ponto, as demandas políticas e econômicas encontram-se com

as militares. Para preservar sua influência política local o Brasil precisa

ser capaz de honrar os compromissos assumidos no âmbito da UNASUL:

afiançar a proteção no processo de integração. O mesmo vale para o

reconhecimento de sua influência no âmbito inter-regional. Na esfera

econômica, a qualificação das exportações, a geração de emprego e

renda, dependem da aquisição de alta tecnologia. No centro da equação

está a aquisição de capacidades militares. Mais uma vez, o Brasil tem

demonstrado acertar no aspecto conceitual, forjou uma sólida base

legislativa que constitui arcabouço normativo de defesa no Brasil. As

diretrizes para o emprego das Forças Armadas (Decreto 3897/2001), a

Política Nacional de Defesa (Decreto 5484/2005), que pavimentou o

caminho para o acordo militar Brasil-França (Decreto 6011/2007), o mais

ambicioso plano de modernização das Forças Armadas brasileiras.

Contudo, os fundamentos doutrinários que interligam a preparação

militar, a sustentação do processo de integração e o desenvolvimento

econômico, valendo-se das políticas de defesa para a geração de emprego

e renda, vieram com a estruturação do Sistema Nacional de Mobilização

(Decreto 6592/2008), que foi seguido pela Estratégia Nacional de Defesa

(Decreto 6703/2008), onde explicitam-se as diretrizes citadas. Ambos

foram sucedidos pela Política de Mobilização Nacional (Decreto

7294/2010) e, por fim, em 2011 o Brasil publicou seu primeiro exemplar

do Livro Branco de Defesa (Decreto 7438/2011).

O Brasil possui a visão estratégica precisa, equacionamento de

meios adequados e a agenda compatível com as demandas sistêmicas,

impostas pela transição tecnológica. Possui planos de modernização das

três armas e de estruturação do comando do espaço, onde destaca-se a

aquisição de satélite geoestacionário. A Marinha planeja a duplicação da

frota, a aquisição e construção de vasos de superfície, a construção de

submarinos e já goza do domínio da propulsão nuclear. A Força Aérea

Brasileira possui capacitação doutrinária e tecnológica para o combate

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Considerações finais

197

além do alcance visual (BVR) e há previsão de modernização da frota,

mediante o programa FX-2. A Força Terrestre opera intenso processo de

modernização, capacitação, informatização, intensificando sua

preocupação com o teatro sintético de guerra, a defesa antiaérea, a

aquisição e produção de blindados e veículos automotores de emprego

militar.

Contudo, à despeito de toda a base legislativa, do planejamento de

modernização das forças e do mérito das conquistas já obtidas, o

projetado ainda está por realizar-se. Em grande medida, trata-se de um

problema de gestão: inexistem especialistas civis versados em assuntos

militares em número suficiente junto ao Ministério da Defesa,

Planejamento, Fazenda, etc. Também fazem falta no do Congresso

Nacional, como assessores do Poder Legislativo, informando,

esclarecendo, disseminado informações da Defesa Nacional. Neste

sentido urge a criação de uma carreira civil que assuma e leve a cabo ao

menos os programas já aprovados — alguns há mais de uma década. Que

possa manifestar-se livremente e fazer ecoar junto a imprensa e a opinião

pública a agenda da Defesa Nacional.

Além disso, é preciso reter o aprendizado de que o aumento da

complexidade dos mecanismos de controle é a resposta possível frente ao

incremento dos desafios. O modelo de integração baseado

exclusivamente no Estado, no empregos de meios de pagamento ligados

aos bancos de fomento e alicerçado na infraestrutura, chegou ao seu

limite. O risco presente de crises, políticas ou sociais, eclodirem em

países sócios do Mercosul, demonstra a necessidade de estender a

integração para a esfera da governança corporativa. Urge o

estabelecimento de um modelo de negócios e serviços em defesa. Que se

articule à um programa de fusões e incorporações de empresas dos mais

diversos ramos. Sem uma burguesia sul-americana, que resulte desse

processo, a integração pode oscilar ao sabor do ritmo plebiscitário da

eleições — que podem trazer surpresas desagradáveis ao Mercosul e a

UNASUL. O processo de articulação da governança corporativa no

âmbito da América do Sul exige marco regulatório comum, fusões e

incorporações, mecanismos de coordenação macroeconômica e crédito. O

processo de integração fica sem defesas profundas diante de inputs

deletérios no âmbito dos subsistemas político e econômico. O

estabelecimento de políticas de governança corporativa pode permitir

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Relações internacionais contemporâneas 2012/2

198

negociações sérias no âmbito da liberalização de serviços e compras de

governo no âmbito do Mercosul. Isso pode ampliar exponencialmente o

mercado de serviços bancários e de telecomunicações, criando uma

retroalimentação virtuosa entre bancos e processo produtivo, serviço e

indústria. Mas, esta é apenas uma das tarefas que os internacionalistas

têm para o século XXI.