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2014 Curitiba Coleção CONPEDI/UNICURITIBA Organizadores PROF. DR. ORIDES MEZZAROBA PROF. DR. RAYMUNDO JULIANO REGO FEITOSA PROF. DR. VLADMIR OLIVEIRA DA SILVEIRA PROFª. DRª. VIVIANE COÊLHO DE SÉLLOS-KNOERR Vol. 33 RELAÇÕES PRIVADAS E DEMOCRACIA Coordenadores PROF. DR. ILTON GARCIA DA COSTA 2014 Curitiba

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2014 Curitiba

Coleção CONPEDI/UNICURITIBA

Organizadores

Prof. Dr. oriDes Mezzaroba

Prof. Dr. rayMunDo Juliano rego feitosa

Prof. Dr. VlaDMir oliVeira Da silVeira

Profª. Drª. ViViane Coêlho De séllos-Knoerr

Vol. 33

RELAÇÕES PRIVADAS E DEMOCRACIA

Coordenadores

Prof. Dr. ilton garcia Da costa

2014 Curitiba

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Nossos Contatos

São Paulo Rua José Bonifácio, n. 209, cj. 603, Centro, São Paulo – SP CEP: 01.003-001 Acesse: www. editoraclassica.com.brRedes Sociais Facebook: http://www.facebook.com/EditoraClassica Twittter: https://twitter.com/EditoraClassica

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

Equipe Editorial

EDITORA CLÁSSICA

Allessandra Neves FerreiraAlexandre Walmott Borges Daniel Ferreira Elizabeth Accioly Everton Gonçalves Fernando Knoerr Francisco Cardozo de Oliveira Francisval Mendes Ilton Garcia da Costa Ivan Motta Ivo Dantas Jonathan Barros VitaJosé Edmilson Lima Juliana Cristina Busnardo de Araujo Lafayete PozzoliLeonardo Rabelo Lívia Gaigher Bósio Campello Lucimeiry Galvão

Luiz Eduardo GuntherLuisa Moura Mara Darcanchy Massako Shirai Mateus Eduardo Nunes Bertoncini Nilson Araújo de Souza Norma Padilha Paulo Ricardo Opuszka Roberto Genofre Salim Reis Valesca Raizer Borges Moschen Vanessa Caporlingua Viviane Coelho de Séllos-Knoerr Vladmir Silveira Wagner Ginotti Wagner Menezes Willians Franklin Lira dos Santos

Conselho Editorial

R382Relações privadas e democracia

Coleção Conpedi/Unicuritiba.Organizadores : Orides Mezzaroba / Raymundo Juliano Rego Feitosa / Vladmir Oliveira da Silveira/ Viviane Coêlho Séllos-Knoerr.Coordenador : Ilton Garcia da Costa.Título independente - Curitiba - PR . : vol.33 - 1ª ed. Clássica Editora, 2014.435p. :

ISBN 978-85-8433-021-8

1. Direito constitucional.I. Título. CDD 341

Editora Responsável: Verônica GottgtroyCapa: Editora Clássica

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MEMBROS DA DIRETORIA Vladmir Oliveira da Silveira

Presidente Cesar Augusto de Castro Fiuza

Vice-Presidente Aires José Rover

Secretário Executivo Gina Vidal Marcílio Pompeu

Secretário-Adjunto

Conselho Fiscal Valesca Borges Raizer Moschen

Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa João Marcelo Assafim

Antonio Carlos Diniz Murta (suplente) Felipe Chiarello de Souza Pinto (suplente)

Representante Discente Ilton Norberto Robl Filho (titular)

Pablo Malheiros da Cunha Frota (suplente)

Colaboradores

Elisangela Pruencio Graduanda em Administração - Faculdade Decisão

Maria Eduarda Basilio de Araujo Oliveira Graduada em Administração - UFSC

Rafaela Goulart de Andrade Graduanda em Ciências da Computação – UFSC

DiagramadorMarcus Souza Rodrigues

XXII ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI/ UNICURITIBACentro Universitário Curitiba / Curitiba – PR

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Sumário

APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................................

FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE COMO FORMA DE ACESSO À JUSTIÇA SOCIAL (Enoque Feitosa e Lorena Freitas) ........................................................................................................................................

INTRODUÇÃO: DIREITO DE PROPRIEDADE X FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE ...............................

FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NA CONSTITUIÇÃO DE 88: COMO INTERPRETAR E COMPATI-BILIZAR AS DUAS CLÁUSULAS? ...............................................................................................................

A REFORMA AGRÁRIA COMO INSTRUMENTO DE GARANTIA DA EXIGÊNCIA CONSTITUCIONAL DE FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE .........................................................................................................

CONCLUSÃO: OS LIMITES À PROPRIEDADE PRIVADA NÃO PRODUTIVA DA TERRA COMO OPÇÃO DO LEGISLADOR CONSTITUINTE ..............................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO NO SISTEMA DO CÓDIGO CIVIL: UMA NOVA VISÃO DO DIREITO CIVIL CONTRATUAL (Renata Poloni Sanches) ...........................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS COMO INSTRUMENTO PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL (Luciana Costa Poli e Bruno Ferraz Hazan) .........................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

O CONTRATO CONTEMPORÂNEO: UMA VISÃO FUNCIONAL .................................................................

FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO: VISÃO GERAL .....................................................................................

BUSCANDO UM HORIZONTE INTERPRETATIVO PARA A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS .................

MEIO AMBIENTE E FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS: INTERFACE NECESSÁRIA ...............................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

A FUNÇÃO SOCIAL NO DIREITO PRIVADO: UMA ANÁLISE CRÍTICA ACERCA DAS EMPRESAS INDIVIDUAIS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA (César Fiuza e Thiago Penido Martins) ....................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE .........................................................................................................

FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE ......................................................................................................................

FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS E OBRIGAÇÕES ................................................................................

FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA: UMA ANÁLISE CRÍTICA ACERCA DAS EMPRESAS INDIVIDUAIS DE

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RESPONSABILIDADE LIMITADA ...............................................................................................................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

BIBLIOGRAFIA ...........................................................................................................................................

A RELAÇÃO ENTRE A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA, A LIVRE INICIATIVA ECONÔMICA E A PROPRIEDADE PRIVADA (Kátia Lima Sales Leite) .....................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

A PROPRIEDADE EMPRESARIAL: A EMPRESA COMO EXPRESSÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE .....

A LIVRE INICIATIVA ECONÔMICA PRIVADA .............................................................................................

A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE .....................................................................................................

A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA ..............................................................................................................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

O DIREITO (FUNDAMENTAL) À PROPRIEDADE NO ÂMBITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO E A SUA RELATIVIZAÇÃO PELO INSTITUTO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE (Samantha Ribas Teixeira) ......................................................................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

BREVE HISTÓRICO SOBRE A PROPRIEDADE PRIVADA – UMA INTRODUÇÃO NECESSÁRIA .....................

A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO CAPITALISMO: O DIREITO (FUNDAMENTAL) À PROPRIEDADE NO BRASIL ........................................................................................................................................................

FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE - RELATIVIZAÇÃO DO DIREITO (FUNDAMENTAL) À PROPRIEDADE? .........................................................................................................................................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

A SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA PÚBLICO-PRIVADO SOB O ENFOQUE DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE (Cristina Malaski Almendanha) .........................................................................................

O CONCEITO E A FUNÇÃO DO ESTADO ....................................................................................................

O MOVIMENTO DE CODIFICAÇÃO ...........................................................................................................

A DICOTOMIA PÚBLICO – PRIVADO .........................................................................................................

A PROPRIEDADE NO ESTADO MODERNO ................................................................................................

PROPRIEDADE: UM DIREITO SUBJETIVO? ...............................................................................................

O ESTADO CONSTITUCIONAL E A SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA ............................................................

A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL ......................................................................................

O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ...............................................................................

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FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE: CONTEÚDO OU LIMITE? ..............................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, PROTEÇÃO JURÍDICA DO EMBRIÃO E O DIREITO À VIDA (Cyntia Brandalize Fendrich e Miguel Kfouri Neto) .........................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

APONTAMENTOS CONCEITUAIS SOBRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS ...............................................

A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS .........................................

O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ...............................................................................

O VALOR DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO PROTEÇÃO JURÍDICA DO EMBRIÃO E O DIREITO À VIDA .........................................................................................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

ANÁLISE DO REGIME DAS INCAPACIDADES NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO APLICADO ÀS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL SOB A ÓTICA CIVIL-CONSTITUCIONAL: INSUFICIÊNCIA ÀS SITUAÇÕES JURÍDICAS EXISTENCIAIS (Ana Vládia Martins Feitosa e Olívia Marcelo Pinto de Oliveira) ..

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

O TRADICIONAL REGIME DAS INCAPACIDADES NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO ..................................

A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E A FUNCIONALIZAÇÃO DO REGIME DAS INCAPACIDADES .......

NOVOS RUMOS PARA A PROTEÇÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL ..............................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

DA AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE NO CONTEXTO DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE (Jussara Schmitt Sandri e Patricia Machado Dias Olders) ............................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

DA AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE ......................................................................................

DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE ........................................................................................................

CONFLITOS DE VALORES CONSTITUCIONAIS: DIREITO À IDENTIDADE PESSOAL VERSUS DIREITO À INTEGRIDADE PSICOFÍSICA ......................................................................................................................

DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA ............................................................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

DAS UNIÕES POLIAFETIVAS HOJE: UMA ANÁLISE À LUZ DA PUBLICIZAÇÃO DO PRIVADO E DO

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ACESSO À JUSTIÇA (Luis Gustavo Liberato Tizzo e Priscila Caroline Gomes Bertolini) ...............................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO SOCIAL: UMA BREVE PONDERAÇÃO HISTÓRICA ...............................

A QUESTÃO DA PUBLICIZAÇÃO DO PRIVADO ..........................................................................................

DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E DA PERSONALIDADE .........................................................................

O AFETO E A SITUAÇÃO ATUAL DO DIREITO DE FAMÍLIA ........................................................................

DAS UNIÕES POLIAFETIVAS ......................................................................................................................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

DIREITO À CONTINUIDADE DO TRATAMENTO MÉDICO EM CASO DE DESLIGAMENTO DO PROFISSIONAL JUNTO AO PLANO DE SAÚDE (Antônio Carlos Efing e Silvio Alexandre Fazolli) ................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

A CONFIANÇA ENQUANTO OBJETO ESSENCIAL E IMPLÍCITO DAS RELAÇÕES CONTRATUAIS ...............

CONTRATOS DE PLANO DE SAÚDE E O DESCREDENCIAMENTO DE PROFISSIONAIS ...............................

SITUAÇÃO DE DESCREDENCIAMENTO REQUERIDA PELO PRÓPRIO MÉDICO ......................................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 61, § 2º, DA LEI 11.101/2005: AFRONTA AO ATO JURÍDICO PERFEITO E À COISA JULGADA (Giovani Bruno Albertoni e Sandro Mansur Gibran) ...............................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL À SEGURANÇA JURÍDICA ....................................................................

O ATO JURÍDICO PERFEITO .......................................................................................................................

O DOLO E A BOA-FÉ NO NEGÓCIO JURÍDICO ...........................................................................................

A COISA JULGADA .....................................................................................................................................

O PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO ................................................................................

A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 61, § 2º DA LEI 11.101/2005 – PREJUÍZO À SEGURANÇA JURÍDICA ....................................................................................................................................................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

O PODER MIDIÁTICO E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS (Dagmar José Belotto e Matheus Felipe de Castro) ........................................................................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

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PODER MIDIÁTICO E DIREITOS FUNDAMENTAIS ....................................................................................

O PODER PRIVADO DA MÍDIA E A COMUNICAÇÃO SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 .........................

A EXPLORAÇÃO DA ATIVIDADE MIDIÁTICA .............................................................................................

DIREITOS FUNDAMENTAIS ENVOLVIDOS NA RELAÇÃO MÍDIA-CIDADÃO ............................................

CONFLITOS ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS .......................................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

DEMOCRACIA, AUTONOMIA E AÇÃO COMUNICATIVA: A TEORIA DO DISCURSO DE JÜRGEN HABERMAS E A TUTELA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA (Kenza Borges Sengike José Roberto Tiossi Junior) ...............................................................................................................................................

NOTAS INTRODUTÓRIAS ..........................................................................................................................

TEORIA DO DISCURSO: O AGIR COMUNICATIVO DE HABERMAS ..........................................................

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ........................................................................................................

NOTAS CONCLUSIVAS ...............................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

DIREITOS DA PERSONALIDADE E LESÃO EM FACE DA AUTOEXPOSIÇÃO NEGOCIADA (Paulo Henrique Silveira Robert) ............................................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

DOS DIREITOS DO HOMEM AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS .................................................................

O ELEMENTO VOLITIVO NA AUTONOMIA PRIVADA LIGADA AOS CONTRATOS E A POSSIBILIDADE DA RENÚNCIA ............................................................................................................................................

DA PERDA DE VALORES NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA .................................................................

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ........................................................................................................

DO DIREITO À DISPOSIÇAO DA PRÓPRIA IMAGEM E DO PRÓPRIO CORPO ..........................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS .........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

LIBERDADE DE IMPRENSA E INVIOLABILIDADE DA INTIMIDADE DA PESSOA HUMANA: NECESSIDADE DE HARMONIZAÇÃO NO CASO CONCRETO (Ana Sylvia da Fonseca Pinto Coelho e Cristiane Rêgo) ........

INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................

DIREITOS A PERSONALIDADE - BREVES CONSIDERAÇÕES .....................................................................

A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DE INFORMAÇÃO ..................................................................................

PRIVACIDADE - A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA INTIMIDADE ........................................................

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CONFLITO EXISTENTE ENTRE A PRESERVAÇÃO DA INTIMIDADE E A LIBERDADE DE IMPRENSA .........

A POSIÇÃO DO STF: UMA BREVE ANÁLISE DO JULGAMENTO DA ADPF N. 130 .....................................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

O DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE CONTRATUAL E O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE À LUZ DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES PRIVADAS (Tainah Simões Sales) .....

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

A TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ..............................................................................................

O DIREITO À LIBERDADE ...........................................................................................................................

A LIBERDADE CONTRATUAL E O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE ........................................

CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL .........................................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

DIREITO E GLOBALIZAÇÃO: A CRISE DA DEMOCRACIA E SEUS SISTEMAS DE DIREITO (Ana Laura Teixeira Martelli e Elve Miguel Cenci) ..........................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

GLOBALIZAÇÃO: O ENCOLHIMENTO DA TERRA ......................................................................................

GLOBALIZAÇÃO, DEMOCRACIA E CIDADANIA ........................................................................................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

BIBLIOGRAFIA ...........................................................................................................................................

A CRISE DO ESTADO MODERNO E AS AGÊNCIAS REGULADORAS (Clodomiro José Bannwart Júnior e Diogo Diniz Lopes Sola) ...............................................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

DA FORMAÇÃO À CRISE DO ESTADO MODERNO ....................................................................................

AS AGÊNCIAS REGULADORAS ..................................................................................................................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

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Caríssimo(a) Associado(a),

Apresento o livro do Grupo de Trabalho Relações Privadas e Democracia, do XXII

Encontro Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito

(CONPEDI), realizado no Centro Universitário Curitiba (UNICURUTIBA/PR), entre os dias

29 de maio e 1º de junho de 2013.

O evento propôs uma análise da atual Constituição brasileira e ocorreu num ambiente

de balanço dos programas, dada a iminência da trienal CAPES-MEC. Passados quase 25 anos

da promulgação da Carta Magna de 1988, a chamada Constituição Cidadã necessita uma

reavaliação. Desde seus objetivos e desafios até novos mecanismos e concepções do direito,

nossa Constituição demanda reflexões. Se o acesso à Justiça foi conquistado por parcela

tradicionalmente excluída da cidadania, esses e outros brasileiros exigem hoje o ponto final do

processo. Para tanto, basta observar as recorrentes emendas e consequentes novos

parcelamentos das dívidas dos entes federativos, bem como o julgamento da chamada ADIN

do calote dos precatórios. Cito apenas um dentre inúmeros casos que expõem os limites da

Constituição de 1988. Sem dúvida, muitos debates e mesas realizados no XXII Encontro

Nacional já antecipavam demandas que semanas mais tarde levariam milhões às ruas.

Com relação ao CONPEDI, consolidamos a marca de mais de 1.500 artigos submetidos,

tanto nos encontros como em nossos congressos. Nesse sentido é evidente o aumento da

produção na área, comprovável inclusive por outros indicadores. Vale salientar que apenas no

âmbito desse encontro serão publicados 36 livros, num total de 784 artigos. Definimos a

mudança dos Anais do CONPEDI para os atuais livros dos GTs – o que tem contribuído não

apenas para o propósito de aumentar a pontuação dos programas, mas de reforçar as

especificidades de nossa área, conforme amplamente debatido nos eventos.

Por outro lado, com o crescimento do número de artigos, surgem novos desafios a

enfrentar, como o de (1) estudar novos modelos de apresentação dos trabalhos e o de (2)

aumentar o número de avaliadores, comprometidos e pontuais. Nesse passo, quero agradecer a

todos os 186 avaliadores que participaram deste processo e que, com competência, permitiram-

nos entregar no prazo a avaliação aos associados. Também gostaria de parabenizar os autores

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 33 - Relações Privadas e Democracia

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selecionados para apresentar seus trabalhos nos 36 GTs, pois a cada evento a escolha tem sido

mais difícil.

Nosso PUBLICA DIREITO é uma ferramenta importante que vem sendo aperfeiçoada

em pleno funcionamento, haja vista os raros momentos de que dispomos, ao longo do ano, para

seu desenvolvimento. Não obstante, já está em fase de testes uma nova versão, melhorada, e

que possibilitará sua utilização por nossos associados institucionais, tanto para revistas quanto

para eventos.

O INDEXA é outra solução que será muito útil no futuro, na medida em que nosso

comitê de área na CAPES/MEC já sinaliza a relevância do impacto nos critérios da trienal de

2016, assim como do Qualis 2013/2015. Sendo assim, seus benefícios para os programas serão

sentidos já nesta avaliação, uma vez que implicará maior pontuação aos programas que

inserirem seus dados.

Futuramente, o INDEXA permitirá estudos próprios e comparativos entre os

programas, garantindo maior transparência e previsibilidade – em resumo, uma melhor

fotografia da área do Direito. Destarte, tenho certeza de que será compensador o amplo esforço

no preenchimento dos dados dos últimos três anos – principalmente dos grandes programas –,

mesmo porque as falhas já foram catalogadas e sua correção será fundamental na elaboração da

segunda versão, disponível em 2014.

Com relação ao segundo balanço, após inúmeras viagens e visitas a dezenas de

programas neste triênio, estou convicto de que o expressivo resultado alcançado trará

importantes conquistas. Dentre elas pode-se citar o aumento de programas com nota 04 e 05,

além da grande possibilidade dos primeiros programas com nota 07. Em que pese as

dificuldades, não é possível imaginar outro cenário que não o da valorização dos programas do

Direito. Nesse sentido, importa registrar a grande liderança do professor Martônio, que soube

conduzir a área com grande competência, diálogo, presença e honestidade. Com tal conjunto de

elementos, já podemos comparar nossos números e critérios aos das demais áreas, o que será

fundamental para a avaliação dos programas 06 e 07.

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 33 - Relações Privadas e Democracia

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Com relação ao IPEA, cumpre ainda ressaltar que participamos, em Brasília, da III

Conferência do Desenvolvimento (CODE), na qual o CONPEDI promoveu uma Mesa sobre o

estado da arte do Direito e Desenvolvimento, além da apresentação de artigos de pesquisadores

do Direito, criteriosamente selecionados. Sendo assim, em São Paulo lançaremos um novo

livro com o resultado deste projeto, além de prosseguir o diálogo com o IPEA para futuras

parcerias e editais para a área do Direito.

Não poderia concluir sem destacar o grande esforço da professora Viviane Coêlho de

Séllos Knoerr e da equipe de organização do programa de Mestrado em Direito do

UNICURITIBA, que por mais de um ano planejaram e executaram um grandioso encontro.

Não foram poucos os desafios enfrentados e vencidos para a realização de um evento que

agregou tantas pessoas em um cenário de tão elevado padrão de qualidade e sofisticada

logística – e isso tudo sempre com enorme simpatia e procurando avançar ainda mais.

Curitiba, inverno de 2013.

Vladmir Oliveira da Silveira

Presidente do CONPEDI

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Apresentação

Muito me honrou ser convidado para coordenar o grupo de trabalho Relações Privadas

e Democracia do XXII Conpedi – Unicuritiba e por conseqüência vir a apresentar este livro

resultante dos trabalhos selecionados pelo critério “duplo cego” e apresentados pelos autores

em Curitiba.

O primoroso conjunto de trabalhos resultante de pesquisas e estudos elaborados por

pesquisadores e estudiosos ligadas diversas instituições de ensino superior também de diversas

regiões do Brasil e selecionados para serem apresentados neste evento que se propõe a discutir

o Direito em suas diversas dimensões, que é o CONPEDI, um fórum para apresentação de

trabalhos sempre instigantes e de profundidade acadêmica.

O livro Relações Privadas e Democracia para melhor espelhar e aproximar os temas

apresentados teve seus artigos divididos em três partes com concentração temáticas, sendo que,

a primeira partes compreendendo os artigos de um a sete, a segunda parte considerando os

artigos de oito a treze e a ultima parte do artigo quatorze ate o vinte.

Deste forma, na primeira parte os artigos são os seguintes: Função Social da

Propriedade como Forma de Acesso à Justiça Social; A Função Social do Contrato no Sistema

do Código Civil: Uma Nova Visão do Direito Civil Contratual; A Função Social dos Contratos

como Instrumento para o Desenvolvimento Sustentável; A Função Social no Direito Privado:

Uma Análise Crítica Acerca das Empresas Individuais de Responsabilidade Limitada: A

Relação entre a Função Social da Empresa, a Livre Iniciativa Econômica e a Propriedade

Privada; O Direito (fundamental) à Propriedade no Âmbito Constitucional Brasileiro e a sua

Relativização pelo Instituto da Função Social da Propriedade; A Superação da Dicotomia

Público-Privado sob o Enfoque da Função Social da Propriedade.

Neste primeiro bloco a função social que permeia as relações privadas foi a linha

mestre para a aglutinação dos artigos, passando pela questão da propriedade, dos contratos, das

empresas, do público-privado, sempre em consonância com a Constituição.

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 33 - Relações Privadas e Democracia

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Na segunda parte os artigos são: Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, Proteção

Jurídica do Embrião e o Direito à Vida; Análise do Regime das Incapacidades no Código Civil

Brasileiro Aplicado às Pessoas com Deficiência Intelectual sob a Ótica Civil-Constitucional:

Insuficiência às Situações Jurídicas Existenciais; Da Ação de Investigação de Paternidade no

Contexto dos Direitos da Personalidade; Das Uniões Poliafetivas Hoje: Uma Análise à Luz da

Publicização do Privado e do Acesso à Justiça; Direito à Continuidade do Tratamento Médico

em Caso de Desligamento do Profissional junto ao Plano de Saúde; A Inconstitucionalidade

do art. 61, § 2º, da lei 11.101/2005: Afronta ao Ato Jurídico Perfeito e à Coisa Julgada.

Este segundo bloco relaciona a pessoa humana, no prisma das relações privadas e

democracia com questões de dignidade da pessoa humana, direito a vida, direitos da pessoa

deficientes, questões de paternidade, união poliafetiva, continuidade de tratamento médico e

por fim a pessoa jurídica frente à recuperação judicial.

Na terceira e ultima parte, os artigos apresentam a seguinte sequencia: O Poder

Midiático e os Direitos Fundamentais; Democracia, Autonomia e Ação Comunicativa: a

Teoria do Discurso de Jürgen Habermas e a Tutela da Dignidade da Pessoa Humana; Direitos

da Personalidade e Lesão em Face da Autoexposição Negociada; Liberdade de Imprensa e

Inviolabilidade da Intimidade da Pessoa Humana: Necessidade de Harmonização no Caso

Concreto; O Direito Fundamental à Liberdade Contratual e o Princípio da Autonomia da

Vontade à Luz da Constitucionalização das Relações Privadas; Direito e Globalização: A Crise

da Democracia e seus Sistemas de Direito; A Crise do Estado Moderno e as Agências

Reguladoras.

Neste ultimo bloco a democracia e as relações privadas são abordadas, com vista,

principalmente às questões de autonomia, comunicação, discurso, mídia, liberdade contratual,

globalização e agencias reguladoras, fechando assim uma analise sobre ângulos diversos a

proposta estabelecida para o livro e para o grupo de trabalho.

Destaco a dedicação e o esforço para tratar de cada tema eu os autores tiveram e da

importância para o direito de cada conjunto de reflexões.

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A atualidade dos temas e a abordagem magistral de cada artigo no tangem aos assuntos

tratados denotam a profundidade dos estudos elaborados que com certeza agrega valor aos

estudos semelhantes nestas temáticas.

Apresentar este texto é um privilégio acadêmico e uma oportunidade, pois pela

qualidade da obra e artigos possibilita recomendar a todos estudiosos e interessados no Direito

em especial daqueles focados nas relações privadas e democracia.

Coordenador do Grupo de Trabalho

Professor Doutor Ilton Garcia da Costa – UENP

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FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

COMO FORMA DE ACESSO À JUSTIÇA SOCIAL

SOCIAL FUNCTION OF PROPRIETY

AS A MEANS OF ACCESS TO SOCIAL JUSTICE

Enoque Feitosa1

Lorena Freitas2

RESUMO

O trabalho tem por objetivo debater a concepção de acesso à justiça num sentido mais

amplo do que o sentido comumente usado. Assim, o assunto não se restringe apenas aos

aspectos do acesso à justiça como sendo as formas ou meios de alcançar a jurisdição. É

óbvio que o principal significado de acesso à justiça se liga aos instrumentos legais de

garantia de obtenção de uma resposta judicial do Estado. Todavia, é fundamental para se

conceber uma efetiva justiça social que se perceba o sentido proposto pelo próprio

Ministério da Justiça do Brasil (no seu site oficial). Ali define como sendo um direito

humano e um caminho para a redução da pobreza, por meio da promoção da equidade

econômica e social. Pensar este objetivo não pode se dar se furtando de analisar a questão

agrária brasileira.

PALAVRAS-CHAVE

Questão agrária. Função social da propriedade. Propriedade privada.

ABSTRACT

1

1

Professor Adjunto IV – CCJ/ UFPB. Coordenador do Programa de pós-graduação em Ciências Jurídicas. Líder do Grupo de pesquisa UFPB/CNPq: Marxismo e direito.

2

2

Professora Adjunta II – CCJ/ UFPB. Coordenadora da Área de Direitos humanos do Programa de pós-graduação em Ciências Jurídicas. Líder do Grupo de pesquisa UFPB/CNPq: Realismo Jurídico.

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The paper aims to discuss the concept of access to justice in a broader sense than the

commonly used sense. Then, the question is not restricted only to the aspects of access to

justice as the ways and means of attaining jurisdiction. It is obvious that the main

significance of access to justice is bound by legal instruments to guarantee obtaining a

judicial response of the State. However, it is essential to understand the way proposed by

the Ministry of Justice of Brazil (on their official website) when explain this theme. It

shows a definition as a human right and a path to poverty reduction through the promotion

of economic and social equity. This goal can’t give up without analyzing the agrarian issue.

KEY WORDS

Agrarian justice. Social function of propriety. Private propriety.

SUMÁRIO:

1. Introdução: Direito de propriedade x função social da Propriedade; 2. Função social da

propriedade na Constituição de 88: Como interpretar e compatibilizar as duas cláusulas?; 3.

A reforma agrária como instrumento de garantia da exigência constitucional de função

social da propriedade; 3.1. A reforma agrária como instrumento de desenvolvimento

nacional; 3.2. O caráter da agricultura moderna para a compreensão da função social da

propriedade; 4. Conclusão: Os limites à propriedade privada não produtiva da terra como

opção do legislador constituinte; Referências

1. INTRODUÇÃO: DIREITO DE PROPRIEDADE x FUNÇÃO SOCIAL DA

PROPRIEDADE

Desde as antigas civilizações ficaram estabelecidos, em uma de suas variadas

formas, determinados regimes de apropriação de bens, desde a sua forma mais antiga, a

chamada propriedade da coletividade gentílica (ENGELS, 1979, p. 7-19; BOBBIO,

PASQUINO, MATEUCCI, 2001, p. 1021 ss.).

Nas formas coletivas de propriedade, como reconhece Martignetti, o que conta

prioritariamente é a comunidade, constituída então como verdadeira unidade social, por

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conseguinte a terra pertence ao grupo social em sua totalidade e a propriedade privada se

limita aos bens de uso pessoal.

Acerca dessas sociedades Marx já assinalava em O Capital, Livro III, Secção VI,

que nas sociedades antigas não existia a propriedade privada da terra embora fosse

reconhecido e aceito sua posse e uso, tanto privado quanto comum (MARX, 1983, passim)

Entre os gregos a propriedade privada se impõe lentamente e como conseqüência do

surgimento da economia monetária, como atesta Aristóteles em “A política”, quando aborda

a questão da troca de equivalentes, antes a propriedade tinha um caráter familiar.

Anteriormente a proibição de testar havia sido abolida por Sólon já no inicio do século VI

AC.

O uso da moeda teve efeitos antes inimaginados: a desigualdade na distribuição de

riquezas aumentou imensamente, difundiu-se a hipoteca, a usura e a escravidão por dividas.

Em Roma embora não se tenha noticias de propriedade coletiva, sabe-se que o

território de uma gens (ou tribo) era indiviso e a propriedade de coisas admitida tão

somente para bens moveis e estava ligada a posse, sem a qual todo o direito a coisa

desaparecia. Só no período de Justiniano se consolida o direito de propriedade enquanto jus

utendi et abutendi re sua, direito de uso e abuso de coisa própria, conforme as Pandectas

(FREITAS; FEITOSA,2011, p. 326).

Jurisdicizada plenamente a sociedade e institucionalizada a partir da idade média

com o surgimento do comércio e da atividade bancária, do completo regramento do direito

de herança, o que demanda segurança jurídica e, posteriormente, com a institucionalização

política e espiritual do pleno de direito de propriedade voltado para os indivíduos e não

mais para a coletividade, as formas de apropriação privada tornaram-se parte do senso

comum e a defesa da propriedade coletiva algo estranho e herança bárbara.

Só com os iluministas, no século XVIII e a ascensão das lutas sociais é que, tanto no

âmbito jurídico como na história das ideias, a propriedade privada tende a começar a perder

a condição de privilegio especial e da exclusiva e especial proteção que gozava no século

XIX. Com isso começa a se impor o conceito de que a propriedade de um bem será

legitima tão somente se cumprir função social.

Assim, a propriedade sempre se constituiu num foco de tensões sociais,

instabilizando relações jurídicas e acirrando conflitos entre os indivíduos e entre estes e o

Estado.

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Como a legislação deriva das pressões e conquistas sociais o que o Direito fez foi

procurar criar instrumentos que regulassem o limite de tais direitos visando defender a (s)

forma(s) de propriedade reconhecidas no meio social e pacificar o conflito existente em

torno delas.

De forma clara, nosso ordenamento jurídico só trata explicitamente da exigência de

uma função social, a fim de legitimar o direito de propriedade, com a Constituição de 1988.

Tal instrumento visava, fundamentalmente, tanto ao enfrentamento do problema de

extensas áreas urbanas sem uso algum e com finalidade apenas de formar estoques de

terrenos com fins especulativos, mas, pelas características que conformaram a propriedade

rural em nosso país, acabou por ter uma repercussão maior na discussão do direito de

propriedade no campo.

Assim, o que se trata eh que a sociedade edificou, indiscutivelmente, um novo ponto

de partida para o trato da dogmática jurídica no que concerne a edificação de uma nova

concepção de propriedade que não pode mais ser vista separada de sua finalidade social.

Como reconhecem boa parte dos estudiosos, existe no arsenal jurídico pátrio todo

um conjunto de regras – materiais e processuais – para a garantia e defesa da propriedade

privada, que tem regime jurídico legal e constitucional que a defende plenamente, nunca

ressentindo o direito de meios para garanti-la e efetivá-la.

O que mudou após 1988 – como resultados das lutas sociais que se materializaram

em instrumentos como o Estatuto da terra, as leis sobre usucapião urbano e rural e a luta

por dentro de órgãos institucionais como o próprio INCRA - foi a institucionalização de

uma antiga reivindicação social no sentido de regulação e solução legal para a posse e

propriedade social, o que torna inafastavel o reconhecimento do caráter claramente

constitucional da propriedade e sua submissão incondicional ao principio maior que

estabelece sua obrigatória função social.

Por isso que a tese especifica aqui defendida é que o problema da propriedade

adquiriu um novo perfil e o campo de embate passou para a interpretação e aplicação de tal

comando constitucional, tratando-se então de definir se havia uma prioridade hermenêutica

de um dos dois comandos e qual e também de saber como harmonizar os dois, já que

ambos insertos na Constituição e qual leitura poderia extrair mais adequadamente a

intenção social que presidiu a elaboração da norma.

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2. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NA CONSTITUIÇÃO DE 88: COMO

INTERPRETAR E COMPATIBILIZAR AS DUAS CLÁUSULAS?

A inserção da regulação do direito de propriedade no artigo 5º da CF – 88 deve ser

analisada com rigor sob pena de desvirtuar a intenção do legislador visto que o que houve

naquela Assembléia Nacional Constituinte foi uma disputa política que reflete os vários

modos de conceber a questão.

Ao se estabelecer no caput do artigo quinto, em sua parte final, ultima figura, que a

propriedade constitui uma garantia individual inviolável o legislador elevou o instituto da

propriedade (propriedade como gênero, frise-se, já que ali não se estabelece proteção

especifica a esse ou aquele tipo de propriedade) ao status de garantia fundamental.

O erro das interpretações conservadoras – não por ignorância, mas por um ato de

interpretação interessada – é que, para eles, essa elevação à garantia fundamental deve ser

necessariamente interpretada como protegendo restritamente as formas privadas de

propriedade.

Entretanto o inciso XXII do mesmo artigo 5º da CF estabelece a garantia à

propriedade para, logo seguida, no inciso XXIII, afirmar que a mesma deve atender a sua

função social.

Assim, após 88 a propriedade – a não ser por ignorância ou má-fé – não pode mais

ser vista nem como direito estritamente individual e nem mais como uma instituição

puramente de direito privado.

Ademais, corroborando nosso ponto de vista, quando dispõe sobre os princípios

gerais da atividade econômica, a CF-88, em seu artigo 170, reitera a interpretação aqui

defendida ao definir que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e

na livre iniciativa deve assegurar a todos existência digna, observados os princípios da

propriedade privada, inciso II, e sua função social, inciso III.

O direito de propriedade configurado no artigo 5º da CF, inciso XXII, estabelece um

direito individual (e não um principio constitucional). Tal direito confere uma soberania

relativa do individuo usar, fruir e dispor das comodidades e bens que legitimamente

possuir. Por isso o entendimento mais consentâneo com a nova realidade estabelecida pela

CF – 88 é aquele que advoga a inexistência de uma inviolabilidade quase que sagrada do

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direito de propriedade privada e por isto as limitações que ela sofre, inclusive por

dispositivos infraconstitucionais.

Já o inciso XXIII do artigo 5º declara – e aqui de forma expressa – a existência de

um principio constitucional fundamental: o da função social da propriedade (que se

encontra, como vimos, também previsto no artigo 170, III, como principio da ordem

econômica).

E quando se fala em princípios constitucionais expostos no artigo 5º não se pode

declinar que está se referindo a princípios constitucionais fundamentais, plenamente

eficazes e vinculantes, tanto da conduta do individuo quanto da conduta dos entes estatais.

Assim, esses dois dispositivos constitucionais hão de ser pensados conjuntamente.

Mas aí pode se erguer a questão seguinte: Considerando que a hermenêutica destes

dispositivos há de ser tomada nesse sentido conjunto, como acima exposto, mas o que lhes

confere um condão pragmático de utilidade no debate da questão agrária?

Bem, a temática tributária, em especial, o Imposto Territorial Rural (ITR) pode ser

pensada como uma salutar forma de viabilizar a desagregação da propriedade improdutiva,

de forma a não elidir a propriedade privada, mas ao mesmo tempo relendo-a

valorativamente na intrínseca relação que há de ter com sua função social.

Veja-se que se mudado o tratamento atual, em que o referido imposto é praticamente

irrisório, seria uma forma de aliar a política fiscal à política agrária. Sobremaneira esta

questão interessa se observadas a extensão territorial e a parcela agrícola na economia

nacional. Um feliz exemplo de aproveitamento deste viés econômico e ao mesmo tempo de

controle na extensão das propriedades privadas foi o Japão (que é praticamente uma ilha

em comparação com a extensão territorial do Brasil) já no fim do século XIX cerca de 60%

de sua arrecadação provinha de imposto territorial equivlente ao ITR pátrio (FERREIRA,

1998, p.61). Estratégia fiscal e político-econômica que promoveu indiretamente o que se

poderia chamar de uma reforma agrária.

3. A REFORMA AGRÁRIA COMO INSTRUMENTO DE GARANTIA DA

EXIGÊNCIA CONSTITUCIONAL DE FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

Na sua concepção originaria, sob influencia das revoluções burguesas, o direito de

propriedade (sob um enfoque privatista) foi concebido como direito absoluto, erga

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ommnes, imprescritível e, para boa parte dos juristas, ate como um direito natural, isto é,

supra-humano. Tal o enfoque, por exemplo, da Declaração dos direitos do homem e do

cidadão de 1789.

Por isso Marx assinalaria, na esteira da tradição iluminista de Rousseau, que os

direitos humanos, em oposição aos direitos do cidadão, são os direitos do homem

individualista e egoísta e que a sociedade civil em que tais indivíduos viviam era o espaço

do individuo egoísta (MARX, 1995, p.17).

Para ele, o direito a apropriação privada tido como um direito que se opunha contra

todos era um erro absurdo, político e lógico, pois na medida em que meu direito a algo se

opõe contra qualquer um, eu estarei subtraindo desse algo a que ele tem também o direito

de ter acesso (MARX, 1958, p. 37-52).

Por isso a oposição ao direito de propriedade privada foi intuída por Rousseau no

seu tratado sobre a origem das desigualdades quando ele afirma que aquele que teve

primeiro que todos a idéia de cercar um lugar e dizer isto é meu, foi este individuo o

verdadeiro inventor da sociedade civil (ROUSSEAU, 1983, p. 89).

3.1. A REFORMA AGRARIA COMO INSTRUMENTO DE DESENVOLVIMENTO

NACIONAL

No caso da questão agrária, e mais especialmente no nordeste, o problema sempre

consistiu em buscar decifrar, por trás da aparência de uma suposta manutenção de formas e

relações de produções tidas como resquícios feudais, o movimento mais geral de

reprodução e ampliação da exploração capitalista.

Ou seja, mesmo as formas aparentemente feudais com que se revestiu a exploração

da terra serviram também, mesmo com sua forma arcaica (embora o conteúdo fosse

nitidamente capitalista), para incrementar – e fazer crescer como mostram estudos da época

– a produção agrícola, visto que, especialmente no nordeste, laboratório da tese de um

“Brasil feudal” (GUIMARÃES, 2008,p. 284), a região comportou sempre duas agriculturas

distintas, uma de subsistência e outra comercial.

Quem quiser defender a reforma agrária não pode se limitar a argumentos

econômicos, tais como rentabilidade da reforma por via do aumento da produtividade do

trabalho pelo parcelamento dos latifúndios improdutivos, mas há que se lidar com critérios

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sociais e políticos e, dentre eles, fundamentalmente, a democratização ao acesso da terra, o

que não se pode fazer sem uma reforma agrária que garanta não apenas a terra a quem nela

trabalha, mas fundamentalmente créditos, assistência técnica e medidas de política jurídica

notadamente o fim à violência no campo.

O fato, constatável já no século XIX, pelo mais renomado estudo da questão, de que

a grande exploração agrícola é mais rentável que a pequena, não é argumento contra a

reforma agrária visto que, com políticas públicas claras, os beneficiários da reforma agrária

podem trabalhar de forma associada e isto pode se dar mesmo nos marcos de uma reforma

agrária de caráter capitalista.

Note-se que a admissão genérica de que a grande exploração é mais rentável que a

pequena não a torna exemplo a ser seguido acriticamente.

A isto devemos acrescer outra diferença entre o empreendimento industrial e a

agricultura (notadamente a pequena): Na primeira, a grande exploração, em condições

normais, será sempre superior à pequena exploração. Evidente que isso não funciona como

uma regra infalível: cada empresa, conforme suas circunstancias, tem limites determinados

que não podem ser ultrapassados sob pena de tornar-se improdutiva. Mas não há como

negar que, respeitados tais limites, no âmbito da indústria, a grande empresa será sempre

mais eficaz que a pequena.

Já na agricultura isso só é verdadeiro até certo ponto, visto que na indústria a

produtividade deriva também – e pode se dizer que principalmente – da concentração das

forças produtivas e as vantagens quês são inerentes como economia de tempo, de gastos e

de materiais.

Na agricultura, ao contrario, tal verdade só é aplicável em determinados limites,

visto que nem sempre o crescimento do empreendimento vem associado num aumento de

terreno explorado e nem (sempre) de inovações nos métodos, dado o seu caráter extensivo.

Não se pode, em geral, fazer com exatidão a determinação desses limites. Eles

diferirão segundo a região, a produção, a natureza do solo e o mercado-alvo, fatores que na

indústria se apresentam em menor quantidade e mais controláveis.

Os economistas conservadores ocupam-se apenas das relações entre grandes e

pequenas propriedades do ponto de vista da superfície e com tal instrumento simplificador

atribuem a agricultura um caráter conservador se comparado à industria.

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Ignoram por completo o potencial transformador que a reivindicação por terra tem

porque ignoram a agiotagem bancaria, o endividamento e péssimas condições de preços no

mercado aos quais estão submetidos os pequenos proprietários, com conseqüência na perda

de propriedade, na expulsão da terra e no engrossamento dos bolsões de miséria nas

grandes cidades.

Tais fatores introduzem um potencial positivamente transformador na questão

agrária. Mas, se não deve se dar credito a concepção conservadora, não se deve

superestimar os elementos positivos da questão agrária.

O modo de exploração da terra no Brasil, herdeiro direto do modelo de capitanias

adotado pela coroa portuguesa influiu de forma perversa na concepção da propriedade

rural. E por isso tal modelo se ainda não se esgotou plenamente tem, como tendência, a

entrada numa encruzilhada, qual seja, a crescente industrialização acabou por criar os

elementos necessários, técnicos e científicos, para uma agricultura racional – que não pode

prescindir por muito tempo, do enfrentamento da questão da terra.

Não há prognostico mais contraditório e absurdo para a sociedade moderna do que a

dos chamados “analistas desiludidos”, que ainda que admitam que o desenvolvimento da

indústria pode, em tese, levar ao socialismo, propagam, inversamente, que o

desenvolvimento da agricultura levaria, inevitavelmente, como num fatalismo, ao mais

reles individualismo.

Tal estado de coisa se fosse verdade, não seria um elemento positivo, mas de

retrocesso para a vida social, pois conduziria cidade e campo, a um estado de guerra civil e

conflito permanente.

O desenvolvimento social segue no campo o mesmo caminho que na produção

industrial, ainda que com ritmos diversos: as necessidades e as condições sociais apontam,

tanto numa como noutra, para formas cada vez mais sociais de produção e apropriação,

cuja forma mais avançada, as experiências dos movimentos sociais assim tem o mostrado,

para a conjugação da agricultura e indústria como aspectos de uma solida unidade

econômica cuja construção depende dos atores sociais nela diretamente envolvidos como

também de políticas públicas que atuem nessa direção, através de instrumentos técnicos,

sociais e legislativos adequados, pelo qual o direito cumpre função chave e pelo trato de

questões tecnológicas que a comunidade cientifica, no qual a universidade se insere, tem

dado contribuições relevantes.

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A constituição pátria preceitua o direito de propriedade desde que sua finalidade

social seja respeitada. E a finalidade social da terra é produzir.

Mas tal finalidade fica prejudicada com o dado elementar pelo qual existem em

nosso país 350 milhões de hectares de terras ociosas, terras próprias para a agricultura, mas

que nada produzem.

Enquanto isso cerca de 12 milhões de trabalhadores rurais não possuem terra para

plantar, parte do qual perambulam pelas cidades e compõem o cenário das lonas e barracas

nas beiras das rodovias e nas periferias das cidades: um mundo de terra sem gente e um

mundo de gente sem terra (ARAÚJO, 2004, p. 736-737).

Embora a questão da terra tenha avançado no país há que se notar que para liberar o

imenso potencial reprimido uma das alternativas a ser considerada é a da nacionalização do

solo rural e a criação de um fundo de terras públicas, exceção apenas daquelas terras

produtivas, as quais não porque não se manterem nas mãos dos atuais proprietários,

posseiros ou arrendatários.

A liquidação do latifúndio improdutivo liberaria para a produção imensas áreas de

terras hoje ociosas e viabilizaria um grande projeto de reforma agrária que, na maioria dos

países civilizados, já foi levada a termo e levaria ao fim ao monopólio privado de

propriedade da terra, o que seria uma medida de largo alcance na direção da

democratização da sociedade e de sua economia.

Com essa nacionalização, hoje defendida por legisladores progressistas, estudiosos

da questão agrária e pelos movimentos sociais, se viabilizaria o assentamento de milhões de

trabalhadores rurais sem terra, com usufruto perpetuo e sem possibilidade de negociar e

repassar a terra, a não ser por direito de herança.

Claro que deve ser agregada a tais medidas a organização em cooperativas, credito

amplo, assistência técnica e comercial do Estado e absorção da tecnologia produzida pela

comunidade científica.

3.2. O CARÁTER DA AGRICULTURA MODERNA PARA COMPREENSÃO DA

FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

O problema de se saber se a grande ou a pequena propriedade territorial seria a

forma mais vantajosa de exploração da terra, do ponto de vista do desenvolvimento social,

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preocupa a ciência social – e sua expressão no campo jurídico, a legislação – desde que o

capitalismo começou a mostrar uma de suas características perversas, qual seja a

concentração de riquezas (HOBSBAWM, 1977, p. 189-206).

Esse debate resta em aberto ate hoje, mas tala não impediu que enquanto os teóricos

e políticos, na academia e fora dela, discutem o assunto, a agricultura tenha realizado,

especialmente no Brasil, uma poderosa evolução.

Para perceber os traços essenciais desse desenvolvimento não se deve fixar o olhar

exclusivamente sobre o conflito entre grandes e pequenos proprietários, visto que não se

pode considerar a agricultura em si mesma e não como fenômeno vinculado ao mecanismo

da produção social.

Já se tem dado por assente que a agricultura não se desenvolve segundo o mesmo

processo da indústria urbana. Esta possui leis próprias, o que não quer dizer que sua

evolução se coloque necessariamente em oposição a daquela e que ambas sejam

inconciliáveis. Ao contrário, ambas tendem para um mesmo fim.

De resto uma adequada compreensão do sistema de produção e do caráter

igualmente capitalista da agricultura que se encontra inserida numa economia geral de

mesmo tipo não pode ser reduzida a repetição da formula que a grande exploração leva a

supressão da pequena propriedade e que tal chavão uma vez decorado tivesse o condão de

nos por no intelecto a chave para a compreensão da economia capitalista e sua relação com

o campo.

Se se deseja compreender a questão agrária segundo uma perspectiva histórica e

científica não devemos nos contentar com a resposta a indagação de saber qual o lugar dos

pequenos proprietários no futuro da agricultura, mas também, e centralmente, abordar as

transformações experimentadas pela agricultura no decurso de um regime capitalista,

verificando como o capital se apodera da agricultura, revolucionando e subvertendo todas

as antigas formas de produção e relações sociais de propriedade anteriores e criando a

necessidade de novas formas.

Só assim uma abordagem cientifica estará em condições de dizer se a superação, ou

não, da propriedade privada se estende ao problema agrário e ao mais considerável meio de

produção, que é exatamente a terra, visto que o grande capital – e hoje isso já se evidenciou

bastante – não restringe sua ação ao campo industrial- urbano, mas também se apoderou da

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agricultura pelo menos metade do século passado e de forma acelerada a partir dos anos

setenta.

A partir de tal década, os processos da chamada transformação moderna da

agricultura atingiu maior intensidade dado a incorporação de conquistas da engenharia

mecânica no tocante ao uso de maquinário avançado em forma intensiva, de avanços da

indústria química, especialmente no que concerne aos adubos e defensivos agrícolas, do

melhoramento genético das sementes e da biologia, especialmente no que concerne à

fisiologia vegetal e animal.

Esses avanços saíram das cidades, dos centros de pesquisa, das tecnologias

industriais para penetrar definitiva e irreversivelmente no campo, alterando de forma

definitiva seu perfil e destruindo de forma cabal a ideia de dois brasis, um capitalista e

moderno e outro agrário e feudal3.

Tal concepção conduzia a esdrúxula conseqüência (ainda que formalmente negada

pelos seus defensores) pela qual qualquer política de reforma agrária deveria ter como

corolário levar capitalismo ao campo enquanto ênfase central e não o foco, como se

formula adiante em uma política de créditos para os pequenos proprietários e, antes de

tudo, a desapropriação de todas as terras improdutivas e a nacionalização do solo, o que

torna a questão centralmente política e não problema meramente técnico.

Para que a agricultura possa progredir numa economia centrada da apropriação

privada e para que possa se beneficiar dos avanços da técnica ela precisa de quantidades

crescentes de capital, por isso é que a exploração moderna do tipo capitalista precisa

crescentemente de capitais, isto porque, como já observara um dos estudiosos do problema,

na organização da produção toda soma de dinheiro que excede as necessidades de consumo

pode tornar-se capital, ou seja, valor que produza mais-valia.

A exploração atual da agricultura é capitalista visto que nela se revelam os

caracteres distintivos de tal modo de produção ainda que sob formas específicas e que

combinam dois fatos fundamentais, quais sejam: a propriedade individual da terra e o

caráter de mercadoria que apresentam todos os produtos da lavoura.

3

3

Cuja maior expressão era a formulação, comum até os anos sessenta, de que o Brasil era um país feudal. (GUIMARAES, 1967, passim).

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O primeiro fator que caracteriza uma agricultura como capitalista, a propriedade

privada da terra, alem de curial, já foi examinada acima, resta entender o segundo

supracitado e seus desdobramentos.

Ora, uma mercadoria é, necessariamente, aquilo que resulta do trabalho humano e

que não foi feito para ser utilizado pelo próprio produtor. Dela, o produtor não tem

necessidade imediata (pode ter mediata, para, por meio dela, ou por sua expressão

monetária, poder adquirir outras mercadorias, ou seja, como valor de troca).

Mas o que determina esse valor de troca do produto do trabalho (no caso, trabalho

agrário)? Tal valor resulta de uma forma determinada da divisão do trabalho.

A produção de mercadorias é a forma em que operários independentes entre si

trabalham socialmente. Numa sociedade socialista eles trabalhariam diretamente uns para

outros.

Mas, como produtores formalmente desvinculados entre si, só conseguem fazê-lo de

forma indireta, na medida em que, para suprirem suas necessidades, trocam – através do

mercado e por uma forma de equivalente, o dinheiro – os artigos que elaboram.

Note em que tal sistema a força de trabalho também se constitui, ela mesma, numa

mercadoria, posta a venda no preço e nas condições que o mercado estabelece.

Isso ocorre porque a certo grau de evolução a produção capitalista de mercadoria

substitui as formas de troca simples existentes no campo e porque o trabalhador já não é

mais proprietário de seus meios de produção, especialmente a terra (MARX, 1983, p.

121ss) 4

A alternativa que lhe resta é a de submeter a vender sua forca de trabalho a qualquer

empreendimento capitalista, tornando-se assim um trabalhador assalariado sem vínculos

com a terra.

Assim, o antigo produtor familiar, e autônomo, já não mais trabalha diretamente

para o consumidor e passa a existir em nossa economia agrária como uma presença cada

vez mais decrescente.

4

4

Nessa obra Marx partia do pressuposto – correto, por sinal – que a agricultura, da mesma forma que a manufatura, já estava dominada pelo modo de produção capitalista.

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4. CONCLUSÃO: OS LIMITES À PROPRIEDADE PRIVADA NÃO PRODUTIVA

DA TERRA COMO OPÇÃO DO LEGISLADOR CONSTITUINTE

Predomina atualmente, acerca da natureza da propriedade, o entendimento que ela

abrange um conjunto de normas de direito publico e direito privado, cujo conteúdo é

determinado constitucionalmente.

O que cabe ao direito civil, com a mudança de paradigma quanto ao direito de

propriedade instituída pela CF-88, é a tarefa de disciplinar as relações jurídicas CIVIS

decorrentes do citado direito de propriedade. Isto por que a nova constituição conferiu ao

direito de propriedade uma feição muito mais ampla que anteriormente, determinando

juridicamente a sua limitação positiva, ou seja, ate onde vai o seu conteúdo e uma limitação

negativa ou seja, ate onde vem ou podem vir as incursos dos outros sobre o citado direito e

procurando orientá-la como instrumento de bem-estar social, até porque o direito à

propriedade não pode ser superior, por exemplo, ao direito à vida, este efetivamente um

direito constitucional fundamental ate mesmo porque explica, em grau próximo ou remoto

a existência dos demais direitos (FRANCA, 1995, p. 7-13).

REFERÊNCIAS

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MARX, Karl. Debates sobre a questão do furto de lenha caída. In: Escritos de Juventude. São Paulo: Edições Vitoria, 1957.

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______. Critica filosofia do direito de Hegel (Introdução). São Paulo: Cortez, 1995.

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ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem das desigualdades entre os homens. São Paulo: Abril, 1983.

SOUZA, Nilson Araujo. A longa agonia da dependência. São Paulo: Alfa-omega, 2004.

______. A economia brasileira contemporânea. São Paulo: Atlas, 2007.GUIMARÃES, Juarez Rocha. Do sentimento à imaginação republicana: em busca de uma narrativa para a reforma agrária do século XXI. In: STARLING, Heloísa Maria Murgel; RODRIGUES, Henrique Estrada; TELLES, Marcela (orgs.). Utopias agrárias. Belo Horizonte: Ed UFMG, 2007.

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A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO NO SISTEMA DO CÓDIGO CIVIL:

UMA NOVA VISÃO DO DIREITO CIVIL CONTRATUAL

Renata Poloni Sanches

RESUMO: A Constituição Federal de 1988 é um marco para a análise do Direito Civil

visto que a divisão existente entre o direito privado e o direito público é modificada com

a queda do muro a separar o Estado e a sociedade. A pós-modernidade impõe ao

contrato a inserção de mega-princípios, como o da função social e o da boa-fé, além da

necessidade de revisão dos seus postulados tradicionais, moldados agora sob a ótica dos

valores constitucionais e buscando servir como meios adequados de enfrentamento da

complexidade pós-moderna. A função social do contrato, tal como prevista no contexto

da legislação civil, é acompanhada dos demais princípios que formam a tessitura da

teoria contratual criando uma nova visão do instituto, de forma que, como ressalta

Tereza Negreiros, a função social, muito além de ser mais um principio com finalidades

delimitativas, é elemento de qualificação do contrato. Esse argumento é reforçado pelos

ensinamentos de Judith Martins-Costa, no sentido que de função social é elemento

integrante do próprio conceito de contrato. O legislador civil optou por inserir

expressamente o principio da função social no texto da codificação civil, em seu artigo

421, dispondo que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da

função social do contrato. Nesse contexto, a opção legislativa pela inserção do ditame

da função social dos contratos por meio da técnica da cláusula geral, dotada de uma

vagueza proposital permitirá uma atuação construtiva por parte dos operadores do

Direito, pois, como sugerido por Paulo Nalin a ocorrência de inobservância do

postulado da função social do contrato seja motivo para o reconhecimento do que

designa de ‘nulidade virtual’. A exata dicção do texto legislativo, estabelecendo que a

liberdade de contratar seja exercida em razão e nos limites da função social, inseriu algo

como se a função social fosse imanente ao exercício legitimo da liberdade contratual e

não como uma situação de eventual restrição da liberdade negocial. Assim, a partir do

modelo traçado de contrato fundado na vontade individual, tem-se hoje um modelo

normativo no qual a força obrigatória do contrato repousa não na vontade, mas na

própria lei, submetendo-se a vontade à satisfação de finalidades que não se reduzem

exclusivamente ao interesse particular de quem a emite, mas igualmente à função social

do contrato.

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PALAVRAS CHAVES: Contrato; Função Social; Pós-Modernidade.

A FUNCTION OF SOCIAL CONTRACT IN CIVIL CODE SYSTEM: A NEW

VISION OF CIVIL CONTRACT

ABSTRACT: The Federal Constitution of 1988 is a milestone for the analysis of civil

law since the division between private law and public law is changed with the fall of the

wall separating state and society. Postmodernity contract requires the insertion of the

mega-principles such as social function and good faith, beyond the need to revise their

traditional postulates, now framed from the perspective of constitutional values and

seeking to serve as a suitable means of coping with complexity postmodern. The social

function of the contract as provided in the context of civil law, is accompanied by other

principles that form the fabric of contract theory by creating a new vision of the

institute, so that, as in Tereza Negreiros, social function, beyond be more a principle

with verge purposes, is qualifying element of the contract. This argument is reinforced

by the teachings of Judith Martins-Costa, in the sense that the social function is an

integral element of the concept of contract. The legislature chose civil insert expressly

the principle of the social function to encoding civil, in article 421, providing that

freedom of contract is exercised by reason and within the limits of the social contract. In

this context, the legislative option by inserting the dictate of social function of contracts

through the technique of clause generally endowed with a purposeful vagueness will

allow for constructive action by the operators of the law, because, as suggested by Paul

Nalin occurrence of failure postulate of the social function of the contract is subject to

the recognition of designating a 'virtual nullity'. The precise diction of the legislation,

stating that freedom of contract is carried on within the limits of reason and social

function, inserted something like a social function was immanent to the legitimate

exercise of freedom of contract and not as a condition of any restriction of freedom of

negotiation . Thus, from the model contract drawn founded on individual will, has today

become a normative model in which the binding force of the contract lies not in the will,

but the law itself, submitting to the will to satisfaction of purposes that are not reduced

solely to private interest who emits, but also to the social function of the contract.

KEYWORDS: Contract; Social Function; Postmodernity.

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O objetivo almejado através da realização deste artigo não é o de tentar esgotar

o amplo questionamento que abarca a questão em análise, nem tampouco propor

soluções que visem dirimir de forma definitiva a problemática existente, mas

demonstrar que a pós-modernidade impõe ao contrato a adoção de mega-princípios,

como o da função social e da boa-fé, além da necessidade de revisão dos seus

postulados tradicionais, moldados agora sob a ótica dos valores constitucionais e

buscando servir como meios adequados de enfrentamento da complexidade pós-

moderna.

A aplicação do direito positivo legalista não acompanhou as reformatações do

mundo contemporâneo, não cabendo ao intérprete mais a investidura do manto da

neutralidade; e, quanto ao Juiz ao julgar o caso concreto não pode atuar somente com os

métodos hermenêuticos tradicionais devendo buscar novas formas de atuação frente ao

direito posto.

Neste sentido, nas palavras de AZEVEDO, “se compreendermos o Juiz como

um aplicador mecânico das leis, melhor seria substituí-lo por um computador” 1.

O escopo do direito positivo é a obtenção da paz social e apresenta-se

formalmente em todas as constituições do mundo, como um instrumento que busca dar

tratamento isonômico entre os indivíduos de uma dada realidade social, mas possui

como pano de fundo justificar os privilégios das classes detentoras do poder.

A ciência do Direito, que instrumentaliza a aplicação do direito, deve ter em

conta, antes de tudo, que seu trabalho tem destinação social e se liga a determinado

contexto histórico, cujos contornos fundamentais não lhe podem escapar2.

Vivemos em um período conturbado da história, onde percebemos as grandes

transformações em todos os campos do saber, pois, determinadas pessoas apregoam o

fim da modernidade e, portanto, o fim de um paradigma. Estamos vivendo um novo

ciclo, que muitos denominam de pós-modernidade ou modernidade tardia.

1 AZEVEDO, Plauto Faraco de. Direito, justiça social e neoliberalismo. 2ª tiragem, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 47, apud RODRIGUES, Vinicius Gonçalves. A crise do positivismo jurídico e a necessidade de mudança de paradigma. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, IX, n. 35, dez 2006. Disponível:http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=1496>. Acesso em out 2012. 2 AZEVEDO, Plauto Faraco de. Direito, justiça social e neoliberalismo. 2ª tiragem, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 24, apud RODRIGUES, Vinicius Gonçalves. A crise do positivismo jurídico e a necessidade de mudança de paradigma. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, IX, n. 35, dez 2006. Disponível:http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=1496>. Acesso em out 2012.

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Com a globalização e as modificações do mundo pós-moderno, o direito

codificado passa a não mais dar cabo da conflitividade que, atualmente, não é mais

individual, mas coletiva. O direito tem por finalidade regular as relações sociais e o

intérprete não pode ignorar o contexto social, político, econômico que essas relações se

exprimem, sob pena de não produzir eficácia.

O pós-modernismo, portanto, perpassa por vários segmentos da sociedade,

instigando o homem à revisão de (pré-)conceitos e valores moldados conforme

interesses de certos segmentos da sociedade. Caracteriza-se pela ruptura de um

pensamento padrão, formado com base na razão e na ciência. Assume, pois, uma

postura zetética, e não dogmática 3.

O termo "pós-modernidade" foi cunhado por Arnold Toynbee. Por vezes

também aparece com os nomes de "supermodernidade" (Balandier) ou "modernidade

reflexiva" (Ulrich Beck). De qualquer forma, sempre sugere reflexão, conforme anota

Eduardo C. B. Bittar 4.

Para Cláudia Lima Marques, pós-modernidade "é uma tentativa de descrever o

grande ceticismo, o fim do racionalismo, o vazio teórico, a insegurança jurídica que se

observam efetivamente na sociedade, no modelo de Estado, nas formas de economia, na

ciência, nos princípios e nos valores de nossos povos nos dias atuais. Os pensadores

europeus estão a denominar este momento de rompimento (Umbruch), de fim de uma

era e de início de algo novo, ainda não identificado". 5

Luís Roberto Barroso, na mesma vereda, afirma "entre luz e sombra,

descortina-se a pós-modernidade; o rótulo genérico que abriga a mistura de estilos, a

descrença no poder absoluto da razão, o desprestígio do Estao; (…) uma época pós-

tudo: pós-Marxista, pós-Kenseniana, pós-Freudiana".6

Pós-modernidade denota o que vem após a modernidade. O pensamento pós-

moderno surgiu, pois, em oposição ao projeto de modernidade, elaborado pelo ideário

3 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão e dominação. 2ª Ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 41. 4 BITTAR, Eduardo C. B. O Direito na pós-modernidade. 2ª ed. Ver. Atu.e amp. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 115 5 MARQUES, Cláudia Lima. A Crise Científica do Direito na Pós-Modernidade e seus Reflexos na Pesquisa. Revista Arquivos do Ministério da Justiça, Brasília, D.F., v. 189, p. 49-64, 1998. 6 BARROSO, Luís Roberto. A Nova Interpretação Constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 4.

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Iluminista 7, nos Séculos XVII e XVIII, que fundava suas bases no triunfo da razão, da

ciência, da verdade absoluta, da certeza, da objetividade, da neutralidade e do domínio

do homem sobre o mundo. O Iluminismo ganhou força com a Revolução Francesa, uma

vitória da burguesia, motivada por interesses próprios e que se valeu de premissas

Iluministas, dentre elas o lema "Liberdade, Igualdade e Fraternidade", que, por sua

vez, contestava o poder absoluto dos reis. O Iluminismo lançou suas bases,

predominantemente, na razão e na ciência, mas também defendeu a livre iniciativa

como desenvolvimento do capitalismo, daí a afinidade para com a burguesia. Também

data desta época a Independência dos Estados Unidos da América, igualmente

alicerçada em bases Iluministas. A própria Revolução Gloriosa, na Inglaterra, e o

movimento conhecido como Inconfidência Mineira, no Brasil, seguiram essa

orientação8.

O Direito, além das teorizações de Estado e Separação de Poderes, também

reivindicou status de Ciência, dotado, portanto, de razão e objetividade, em nome da

segurança jurídica. É aqui que se destaca Hans Kelsen e sua Teoria Pura do Direito,

elegendo como objeto de estudo a norma jurídica. Esta que é constituída de modais

deônticos P (permitido), V (proibido) e O (obrigatório). A norma jurídica, pois,

manifesta-se como descritiva de objetos (proposições jurídicas – Rechtssatz) e

prescritiva de condutas (norma jurídica – Rechtsnorm). Contém em si o comportamento

a ser realizado pelo sujeito, bem como as sanções correspondentes em caso de

inobservância ou descumprimento.9

Sintetizando essa concepção de mundo natural e ambiência jurídica, estão as

palavras de Lourival Vilanova: "altera-se o mundo físico mediante o trabalho e a

tecnologia, que o potencia em resultados. E altera-se o mundo social mediante a

linguagem das normas, uma classe da qual é a linguagem das normas do Direito". 10

7 Em alemão Aufklärung; em inglês Enlightenment; em italiano Illuminismo, em francês Siècle des Lumières e em espanhol Ilustración. 8 VIANNA, José Ricardo Alvarez. Pós-modernidade e Direito. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2384, 10 jan. 2010 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/14168>. Acesso em: 24 out. 2012 9 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 10 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 40.

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Apesar de não apresentar soluções ou propostas alternativas, o pós-

modernismo, ao empregar uma mentalidade niilista, cética e desconstrutiva, lança bases

para a mudança de paradigmas na sociedade contemporânea e, por conseguinte, para o

Direito, de modo a fazer deste não mero apêndice da política ou instrumento da

economia, mas veículo da paz, pressuposto para um convívio social harmônico, dotado

de liberdade e justiça social.11

É imprescindível remontar as origens históricas de nosso Direito Privado para a

exata compreensão dos contornos juscivilísticos da contemporaneidade.

Nos ensinamentos de Giordano Bruno Soares Roberto, “não é possível

compreender o momento atual do Direito Privado brasileiro sem olhar para sua

história. Para tanto, não será suficiente começar com o desembarque das caravelas

portuguesas em 1500. A história é mais antiga. O Direito brasileiro é filho do Direito

Português que, a seu turno, participa de um contexto mais amplo”.12

O movimento de codificação é fruto do jus racionalismo. Conforme lição de

Francisco Amaral, a codicização pode ser resumida nas seguintes palavras: “em senso

estrito, significa o processo de elaboração legislativa que marcou os séculos XVIII e

XIX, de acordo com critérios científicos decorrentes dos jus naturalismo e o

iluminismo, e que produziu os códigos, leis gerais e sistemáticas. Sua causa imediata é

a necessidade de unificar e uniformizar a legislação vigente em determinada matéria,

simplificando o direito e facilitando o seu conhecimento, dando-lhe ainda mais certeza

e estabilidade. Eventualmente, constitui-se em instrumento de reforma de sociedade

como reflexo da evolução social. Seu fundamento filosófico ou ideológico é o

jusracionalismo, que vê nos códigos o instrumento de planejamento global da

sociedade pela reordenação sistemática e inovadora da matéria jurídica, pelo que se

afirma que os "os códigos jus naturalistas foram atos de transformações

revolucionárias".13 (AMARAL, 2003, p. 122 e 123)

11 VIANNA, José Ricardo Alvarez. Pós-modernidade e Direito. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2384, 10 jan. 2010 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/14168>. Acesso em: 24 out. 2012. 12 ROBERTO, Giordano Bruno Soares. Teoria do método jurídico: a contribuição de Teodor Viehweg. In FIUZA, César; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SÁ, Maria de Fátima Freire (coord.). Direito Civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. 13 AMARAL, Francisco. O Direito civil na pós-modernidade. In FIUZA, César; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SÁ, Maria de Fátima Freire (coord.). Direito Civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

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Nas célebres palavras de Giselda Hironaka: desta era – da era da

racionalização da vida jurídica – resultou, como consequência imediata, a concepção

do direito como um sistema. E, como tal, o processo de codificação se tornou

imperioso, visando unificar e uniformizar a legislação vigente, emprestando-lhe um

sistema, uma ordem, uma carga didática, uma possibilidade melhor, ou maior, de

compreensão destas próprias regras e de comparação destas com outros povos. Esta foi

a importante fase de organização codicista, que atendeu às necessidades e reclamos de

uma época que visava superar a insegurança. E apresentou suas vantagens, entre elas

– uma que desejo citar – a de traduzir-se, o código, em instrumental de garantia das

liberdades civis.14 (HIRONAKA, 2003, p. 97)

Assim, dentro dessa visão segmentada do Direito, fazia todo sentido apontar o

Código Civil como centro do ordenamento do direito privado, restando à Constituição a

função de carta política regulamentadora do Estado; suas normas eram exclusivamente

dirigidas ao legislador.

O Código Civil foi elaborado dentro da dogmática que apartava o Direito

Público do Direito Privado, envolto pelos ideais de liberalismo e individualismo. Assim,

ilustra o Prof. César Fiúza: "O Código Civil foi elaborado sob a inspiração do Estado

Liberal burguês, do século XIX. Não se adequava, evidentemente, às aspirações do

emergente Estado social, instalado no Brasil já no início do século XX". 15 (FIÚZA,

2003, p. 30)

Francisco Amaral também retrata o assunto com muita clareza trazendo que o

Código Civil de 1916 era um código de sua época, elaborado a partir da realidade típica

de uma sociedade colonial, traduzindo uma visão do mundo condicionado pela

circunstância histórica, física e étnica em que se revela. Sendo a cristalização axiológica

das idéias dominantes, detentores do poder político e social da época, por sua vez

determinadas, ou condicionadas, pelos fatores econômicos, políticos e sociais 16.(AMARAL, 2003, p. 131)

14 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Tendências do Direito Civil no século XXI. In FIUZA, César; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SÁ, Maria de Fátima Freire (coord.). Direito Civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. 15 FIUZA, César. Direito Civil: curso completo. 6. ed. rev. atual. ampl. de acordo com o Código Civil de 2002. Belo Horizonte: Del Rey, 2003 16 AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 5. ed. rev. atual. e ampl. de acordo com o novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

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O patrimônio era a dimensão econômica da personalidade; garantia de proteção

e preservação do indivíduo frente ao Estado.

Prof. Gustavo Tepedino resume: O código civil, como se sabe, quando entrou

em vigor, em 1917, refletia o pensamento dominante das elites européias do século XIX,

consubstanciado no individualismo e no liberalismo jurídicos. O indivíduo, considerado

sujeito de direito por sua capacidade de ser titular de relações patrimoniais, deveria ter

plena liberdade para a apropriação, de tal sorte que o direito civil se estruturava a

partir de dois grandes talicerces, o contrato e a propriedade, instrumentos que

asseguravam o tráfego jurídico com vistas à aquisição e à manutenção do patrimônio.17

(TEPEDINO, 2003, p.116)

Nesta esteira, Taísa Maria Macena de Lima acentua que o antigo Código Civil

brasileiro – influenciado pelas doutrinas voluntaristas – dava ênfase ao indivíduo,

porém nos papéis de proprietário e contratante. Noutros termos, o legislador de 1916

ocupou-se mais das relações jurídicas patrimoniais que das relações jurídicas

existenciais, dando relevo ao direito de propriedade.18 (LIMA, 2003, p.250)

Vivem-se hoje no Brasil os alvores do Estado Democrático de Direito. Este é o

momento da conscientização desse novo paradigma. Só agora assumem a devida

importância os princípios e os valores constitucionais por que se deve pautar todo o

sistema jurídico. Constitucionalização ou publicização do Direito Civil entram na

temática do dia. O Código Civil não seria mais o centro do ordenamento civil. Seu lugar

ocupa a Constituição, seus princípios e valores. Diz-se que os pilares de sustentação do

Direito Civil, família, propriedade e autonomia da vontade, deixaram de sê-lo. O único

pilar que sustenta toda a estrutura é o ser humano, a dignidade da pessoa, sua promoção

espiritual, social e econômico. Este pilar está, por sua vez, enraizado na Constituição.

Tudo isso, não há dúvidas, dá o que pensar. (FIUZA, 2003, p. 29)

17 TEPEDINO, Gustavo. Crise das fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002. In A Parte Geral do Novo Código Civil. Estudos na Perspectiva Civil-Constitucional. RJ-SP: Renovar, 2003 18 LIMA, Taísa Maria Macena de. Princípios fundantes do Direito Civil atual. In FIUZA, César; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SÁ, Maria de Fátima Freire (coord.). Direito Civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

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O Direito é fenômeno histórico e social. É mutante por natureza, pois reflete o

ideário e as aspirações de um povo em um determinado espaço de tempo. A inércia,

portanto, não deve integrar seu conceito.

A constatação da existência de crise no Direito Civil moderno é inequívoca.

Sua dogmática envelheceu; foi sucateada por nossa sociedade mutante. Mas, em

primeiro lugar, imprescindível que pontuemos o conceito desde fenômeno.

Claro que, de forma alguma, significa seu fim, pois não há como negar que a

juscivilística constitui o substrato do ordenamento jurídico de toda e qualquer

sociedade. "É verdadeiramente a espinha dorsal de toda a ciência jurídica, como se tem

dito e registrado ao longo dos tempos, desde a origem romana do Direito Civil".

(HIRONAKA, 2003, p.94)

O Direito Civil adquiriu novos contornos e seus institutos basilares foram

repaginados. E mais importante: deixaram de ser basilares. A base passou a ser o

homem e sua dignidade. Todo o resto deve estar funcionalizado para promoção do

desenvolvimento do ser humano em todos os seus aspectos.

A propriedade, que nos últimos séculos, possuía um caráter de absoluteidade

incontestável é relativizada e recebe conteúdo de função: "... passa a ser situação

jurídica consistente na relação entre o titular e a coletividade (não-titulares) da qual

nascem para aquele diretos (usar, fruir, dispor e reivindicar) e deveres (baseados na

função social da propriedade)." (FIUZA, 2003, p. 28)

O dogma da autonomia da vontade é superado nas relações contratuais,

colocando-se de lado o princípio liberal de igualdade formal para permitir a intervenção

estatal regulando desequilíbrios e disparidades, que, concomitantemente à expansão da

legislação especial, os textos constitucionais passam, progressivamente, a definir

princípios relacionados a temas de Direito Privado, dantes exclusivamente reservados

ao Código Civil: "função social da propriedade, os limites da atividade econômica, a

organização da família, matérias típicas do Direito Privado, passa a integrar uma nova

ordem pública constitucional" (TEPEDINO, 2004, p. 07)

E, assim, conforme Ricardo Luís Lorenzetti, "os códigos perderam a sua

centralidade, porquanto esta se desloca progressivamente. O Código é substituído pela

constitucionalização do Direito Civil, e o ordenamento codificado pelo sistema de

normas fundamentais".19 (LORENZETTI, 1998, p. 45).

19 LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do Direito Privado. Trad. Vera Maria Jacob de Fradera. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.

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Neste diapasão, Maria Celina Bodin de Moraes acrescenta: Diante da nova

Constituição e da proliferação dos chamados microssistemas, [ ] é forçoso reconhecer

que o Código Civil não mais se encontra no centro das relações de direito privado. Tal

pólo foi deslocado, a partir da consciência da unidade do sistema e do respeito à

hierarquia das fontes normativas, para a Constituição, base única dos princípios

fundamentais do ordenamento.20 (MORAES, 1993)

A Constituição Federal toma o lugar antes ocupado pelo Código Civil e passa a

ser o estatuto central da sociedade civil e política. Seu advento significa o fim da

centralidade sistêmica do Código Civil apesar de ainda existir relutância por parte da

doutrina em admitir o necessário fim da dicotomia público-privado.

Todas as normas infraconstitucionais devem se submeter aos princípios e

valores que a sociedade brasileira identifica como prevalentes, quais sejam, os

princípios e valores constitucionais.

Com a queda da dicotomia que segmentava o Direito Privado do Público, é um

contrassenso afirmar que as normas constitucionais se destinam somente ao legislador.

Todas elas têm aplicação direta. Seus princípios atuam tanto no plano da justificação

quanto no plano da aplicação, e são, inclusive, autoexecutáveis.

Diante disso, a Constituição da República se situa no ápice do sistema

normativo. Possui um papel unificante tendo em vista o amplo compromisso social que

suas normas representam.

Conforme nos ensina o Prof. Gustavo Tepedino (TEPEDINO, 2003, p. 119-

120), a sociedade contemporânea alcançou três conquistas fundamentais no campo

jurídico.

A primeira dessas conquistas seria a descoberta do significado relativo e

histórico dos conceitos jurídicos, que sempre foram encarados como neutros e

absolutos. Hoje, inclusive, nos parece óbvio que nenhum direito, dever ou construção

jurídica seja revestido de absoluteidade. Cada instituto jurídico se torna insuficiente fora

de um contexto histórico ou cultural.

20 MORAES, Maria Celina Bodin de. A caminho de um Direito Civil Constitucional. In Revista dos Tribunais. São Paulo, nº 65, p. 21-32, jul/dez, 1993.

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A segunda conquista elencada pelo Prof. Gustavo Tepedino é a superação da

dicotomia entre Direito Público e Direito Privado. Esta classificação não serve para

atender reivindicações sociais, onde é necessário funcionalizar as relações patrimoniais

a valores constitucionais, tendo em vista o amplo compromisso social de nossa

Constituição Federal de 1988.

Por fim, a terceira conquista se traduz na absorção definitiva pelo texto

constitucional de valores que presidem a iniciativa privada e seus institutos (família,

propriedade e contrato).

Por tudo isso, fala-se, atualmente, em Direito Civil-Constitucional. A atividade

interpretativa do Direito passa necessariamente por esta perspectiva, onde os princípios

constitucionais deixaram de ser, há muito, meros princípios políticos.

Os valores existenciais estão no vértice do ordenamento jurídico. A pessoa

humana é o valor que deve orientar todo e qualquer ramo do Direito. Todos os institutos

jurídicos devem ser funcionalizados com o objetivo de promover o pleno e integral

desenvolvimento do homem.

Desta feita, a "patrimonialização" tradicional das relações civis, que ainda

persiste em nosso novo Código Civil, é totalmente incompatível com os valores

constitucionais fundados no princípio da dignidade da pessoa humana. A primazia da

pessoa humana é condição essencial de adequação do direito à realidade e aos

fundamentos constitucionais vigentes.

Diante disso, fala-se em "repersonalização" das relações civis, movimento que

objetiva recolocar o ser humano no centro do Direito Civil, lugar que sempre deveria ter

ocupado, ao invés do patrimônio, que norteou nosso ordenamento juscivilístico até

então.

Nesse aspecto, cumpre fazermos algumas ponderações para indagarmos se esse

fenômeno não seria mais bem denominado como "personalização" do Direito Civil.

Não restam dúvidas a respeito da supremacia absoluta dos princípios e regras

constitucionais sobre todo o ordenamento jurídico, nem tampouco de que a estrutura

legislativa adotada por nossa Carta Magna forma um sistema que rege tanto as relações

jurídicas públicas quanto as privadas.

Entendido este ponto, devemos considerar que a interpretação das normas

constitucionais e da legislação infraconstitucional não pode ser estática. Ao contrário,

deve ser dinâmica para se adaptar à realidade social do momento da aplicação da norma,

pois o significado de um texto legal pode variar no tempo e no espaço.

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Todas estas premissas são de extrema relevância para analisarmos a harmonia

do Código Civil de 2002 – e de sua técnica legislativa - com a Constituição Federal de

1988.

Assim, as cláusulas gerais se afiguram como fórmulas genéricas que

determinam comportamentos não pormenorizados, ao contrário das regras, destinados a

regular, especificamente, hipóteses fáticas determinadas. Trata-se de normas

orientadoras e se dirigem ao julgador, dando-lhe certa liberdade para decidir,

preenchendo seu conteúdo diante do caso concreto.

Prof. Gustavo Tepedino complementa: (...) uma codificação não surge por

acaso. Expressa momento de unificação política e ideológica de um povo, fazendo

prevalecer o conjunto de regras que o sintetiza. Assim foi o século XIX, após a

revolução Francesa, assim se deu na Europa do pós-guerra, com a derrubada dos

governos totalitários. Tais circunstâncias históricas não mais existem: deram lugar a

cenário inteiramente diverso, pluralista e multifacetado, onde os grupos políticos

emergentes manifestam-se através do robusto conjunto de leis especiais, que regula de

maneira setorial a atividade privada e parece insuscetível de unificação no plano das

leis ordinárias.21 (TEPEDINO, 2004, p.499-500)

Essa fase turbulenta, recheada de incertezas, deu origem à chamada "crise" do

Direito Civil que, como já dito, nada mais é que a superação de antigos paradigmas e a

instauração de novos, em substituição.

O Direito Civil é fragmentado, desagregado em uma série de corpos jurídicos

autônomos: os microssistemas, dotados de princípios, que já não buscam vida no

Código Civil, mas na própria Constituição Federal. A era da descodificação se

amoldura.

Os pilares tradicionais da dogmática civil, autonomia da vontade, propriedade e

família, perdem seu status. O direito civil é personalizado e seu centro epistemológico é

ocupado pelo ser humano e por sua dignidade, elevados, pela Constituição Federal, à

categoria de princípios fundamentais de nossa República.

É neste diálogo entre o direito e a política que se pode situar, por exemplo, o

fenômeno da constitucionalização do direito civil. Alude-se a uma constitucionalização

do direito civil como consequência de uma opção política pela prevalência do princípio 21 TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004

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da democracia em nosso ordenamento jurídico-político. É o princípio da democracia

que se apresenta como a diretiva que impõe tal precedência da normativa constitucional

sobre a legislação ordinária, porquanto a constituição seja o resultado de debates

instaurados na Assembléia Nacional Constituinte, com ampla participação popular, o

que não ocorre no tocante à atividade do legislador ordinário. Assim, em homenagem “à

função promocional do Direito, o princípio da democracia impõe a máxima eficácia ao

texto constitucional, expressão mais sincera das profundas aspirações de transformação

social”.22

Já não se pode mais fechar os olhos à superação do “significado constitucional”

das codificações civis, ou seja, ao processo histórico e jurídico que se traduz na perda de

centralidade do código civil como vetor sistematizador do direito privado, pelo que a

Constituição assume o papel de eixo central ou de elemento harmonizador do

ordenamento. Assim é que o Código Civil brasileiro em vigor, baseado nas experiências

codificadoras anteriores à década de 70 do século passado, tem em seu texto várias

cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados apartados de qualquer outro ponto

de referência valorativo. É por isto que se aponta a necessidade de que o intérprete

proceda com a conexão axiológica entre a codificação civil e constituição pátria, a qual

prevê quais são os valores e princípios fundantes da ordem pública, a fim de conferir um

sentido uniforme às cláusulas gerais a partir dos princípios constitucionais.23

Judith Martins-Costa apresenta três indicações úteis para o processo de revisão

destes condicionamentos hermenêuticos: I) a convicção da historicidade ou relatividade

dos conceitos jurídicos; II) a ultrapassagem do “significado constitucional” dos códigos

civis (ou seja, o código civil visto como “constituição” do cidadão e da vida privada);

III) a relevância dos elementos de raiz publicística – em especial a função social de

certos institutos e modelos.24

O contrato de antigamente não é mais o mesmo contrato do mundo pós-

moderno. Para Figueiredo25, o contrato "não é mais instrumento jurídico de interesse

22 MORAES, Maria Celina Bodin de. A constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a responsabilidade civil. Direito, Estado e Sociedade, v. 9, n. 9 (jul./dez. 2006), p. 236. 23 TEPEDINO, Gustavo. Cidadania e direitos da personalidade. Revista Jurídica, ano 51, n. 309 (jul. 2003). Porto Alegre: Notadez, p. 13. 24 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 29-30. 25 ALVEZ, Jones Figueiredo. Novo Código Civil: uma nova teoria do direito contratual. In: Revista Jurídica Consulex. Brasília, ano VII, nº 147, 28 fev. 2003.

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puramente interpessoal ou de operação de proveitos. Seu conteúdo deve importar nos

fins da justiça e da utilidade, em superação do egocentrismo que propicia a fragilização

do débil e a dominação do mais forte".

No Brasil isso se refletiu com o advento do Código do Consumidor, visando

evitar ou diminuir o abuso do desequilíbrio contratual. Entretanto, tal aplicação poderia

ter ocorrido há muito, eis que a Lei de Introdução ao Código Civil, em seu artigo 5º, já

objetivou a realização da justiça e do bem-estar social.

Em busca da garantia da chamada dignidade da pessoa humana, da equidade

nas relações contratuais, gradativamente se alteraram alguns dogmas, tais como (i) a

posição do Estado frente as relações privadas, passando de liberal, onde as regras

fixadas pelas partes contratantes não eram passíveis de reforma, para o Estado

intervencionista, onde é possibilitado ao magistrado revisar os contratos que não mais

espelhassem o equilíbrio e a igualdade nas relações; bem como (ii) a

constitucionalização do Direito Civil.

É certo que não mais é possível sacrificar os contratantes a ponto de

comprometer seu patrimônio, somente para se resguardar o princípio da força

obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda). Por outro lado, não se afigura razoável

a aplicação de teorias que tratam da onerosidade excessiva e da superveniência sem

critérios, o que beneficiaria, certamente, os contratantes de má-fé, que visam apenas a

redução de prestações ou o perdão de dívidas.

A busca, então, pela manutenção equilibrada dos contratos resultou no aumento

da flexibilidade dos vínculos contratuais e do rol de causas que permitam sua revisão.

Relativamente às cláusulas gerais, observa-se a função social do contrato,

disposta no artigo 421 do novo Código Civil, cujo objetivo é a consagração da

dignidade da pessoa humana, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a

justiça social, o bem comum, a comutatividade, o equilíbrio e a igualdade, cuja

finalidade é corrigir ou evitar a desigualdade das partes para aferição da liberdade e

validade da declaração.

Outra mudança importante foi a introdução da boa-fé como cláusula geral,

prevista no artigo 422 do novo Código, servindo de norte aos contratantes, o padrão de

comportamento por eles a ser seguido em todas as fases da relação contratual, ou seja,

nas negociações preliminares, no pré-contrato, na contratação, execução e no pós-

contrato.

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Celso Antônio Bandeira de Mello, em seu estudo sobre o Direito

Administrativo, que não obstante ser típico ramo do direito público aplica-se

plenamente ao Direito Civil, basilou de maneira ímpar a importância da preservação dos

princípios fundamentais do sistema jurídico, ao descrever qual a consequência da

desatenção aos princípios, afirmando que: Violar um princípio é muito mais grave que

transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um

específico mandamento obrigatório, mas a todo sistema de comandos. É a mais grave

forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme escalão do princípio atingido,

porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores

fundamentais, contumélia irremessível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua

estrutura mestra.26

Ao prever a função social dos contratos e da propriedade, o Código Civil, com

apoio na Constituição da República, valoriza o exercício dos direitos subjetivos segundo

o que melhor atender à finalidade (função) do bem comum (social). Função social está

afeto ao bem comum que melhor atenda as partes envolvidas e terceiros, quando da

prática do ato jurídico.

Com dito alhures, o Código Civil de 2002 privilegiou as cláusulas gerais.

Várias as passagens da codificação civil que simbolizam os princípios da socialidade, da

eticidade e da operabilidade. Alguns exemplos devem ser citados como os artigos 113 e

423 do Código Civil que disciplinam: “Art. 113 - Os negócios jurídicos devem ser

interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. “Art. 423 –

Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á

adotar a interpretação que for mais favorável ao aderente”.

Também o artigo 421 do Código Civil, objeto central do nosso trabalho, que

nos indica de modo solar que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos

limites da função social do contrato”, bem como o artigo 422 do mesmo diploma ao

impor às partes do contrato o axioma de que “os contratantes são obrigados a guardar,

assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e

boa-fé”.

O Código Civil de 2002 inovou ao funcionalizar o instituto do contrato,

indicando às pessoas de direitos e deveres na ordem civil que o exercício do direito

básico de contratar está delimitado em razão e nos limites da função social,

26

MELLO, 1984, p. 230.

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condicionando a liberdade de contratar à consecução de um fim socialmente

significativo, sem o que, não mais será assegurado ou admitido o exercício deste direito

subjetivo. A conservação e manutenção da liberdade de manifestar vontade com o

intuito de adquirir, resguardar, transmitir, modificar, extinguir ou conservar direitos e

deveres entre partes contratantes passa a ter como condição legitimadora o cumprimento

da finalidade social do contrato.

A ordem econômica e jurídica tem no contrato o porto seguro para a regulação

de seus interesses apreciáveis economicamente. Diz Orlando Gomes que: “Todo o

contrato tem uma função econômica, que é, afinal, segundo recente corrente doutrinária,

a sua causa”.27

Além da função econômica, o contrato passa a ter uma função social

acentuada. De mero servidor da economia, o contrato passa ao serviço da sociedade

como um todo. Não basta mais o adimplemento da função econômica para a qual o

acordo se destinou, é fundamental que ao lado desta expectativa econômica seja

atingida a expectativa social.

A sociabilidade é a grande ambição do projeto Miguel Reale. Visa este

princípio, sobremaneira, impor óbices ao exercício egoístico dos direito patrimoniais

privados, regulando a prática dos direitos subjetivos que podem ser traduzidos pela

visão de um poder conferido pelo ordenamento jurídico à uma pessoa de agir e exigir de

outrem um certo comportamento que lhe satisfaz. Representa, portanto, o direito

subjetivo, a senhoria do querer como expressão do direito de liberdade.

Sociabilidade significa a busca do bem comum que pode variar no tempo e no

espaço, cabendo ao intérprete da lei, nos moldes da técnica de concreção, aferir o bem

comum segundo o momento vivido.

A fim de manter uma relação comutativa, o direito passa a trazer institutos que

relativizam o princípio pacta sunt servanda e a máxima res inter alios acta tercio nec

nocet, neque potest, valores que passam a ser quebrados em prol da função social e da

busca do adimplemento contratual.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, inciso IV, ao disciplinar os

princípios fundamentais da República prevê o valor social da livre iniciativa. No mesmo

passo, ao tratar da ordem econômica e financeira, a Constituição norteia a livre

iniciativa a partir de sua visão social que passa a ser valor a perseguir no exercício da

27

GOMES, Rio de Janeiro, 1996, p.19.

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autonomia privada econômica. Assim o disposto no artigo 170 da Constituição da

República em vigor: Art. 170 - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho

humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme

os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios.

Antônio Junqueira de Azevedo, comentando o princípio da função social dos

contratos, ensina-nos que: A ideia de função social do contrato está claramente

determinada pela Constituição ao fixar como um dos fundamentos da República, o

valor social da livre iniciativa (art. 1º, inc. IV); essa disposição impõe, ao jurista, a

proibição de ver o contrato como um átomo, algo que somente interessa às partes,

desvinculado de tudo o mais. O contrato, qualquer contrato, tem importância para toda

a sociedade e essa asserção, por força da Constituição, faz parte hoje do ordenamento

positivo brasileiro – de resto, o art. 170, caput, da Constituição da República, de novo

salienta o valor geral, para a ordem econômica, da livre iniciativa 28.

Cumpre-nos, neste momento, para melhor elucidação do pensamento posto,

novamente trazer à luz o artigo 421 do Código Civil de 2002, cujo teor dispõe que: a

liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

O direito de liberdade não se mostra mais absoluto, mas traz deveres anexos,

positivos e negativos, inerentes à função social que abrangem os contratantes e

repercutem sobre terceiros, numa sociedade livre justa e solidária, objetivo fundamental

da República Federativa do Brasil (artigo 3º, I, da Constituição Federal de 1988).

Assim, a liberdade individual, que é abonada pelo ordenamento jurídico, passa

a ter esta garantia limitada ao exercício do direito conforme o que melhor atenda à

sociedade. O valor socialmente relevante passa a ser o legitimador da autonomia da

vontade individual.

Emile Durkhein nos explica de maneira lapidar a legitimação social que

hodiernamente se exige no momento em que a autonomia da vontade individual é

manifestada para a formação do contrato, in verbis: É verdade que as obrigações

propriamente contratuais podem fazer-se e desfazer-se unicamente com o acordo das

vontades. Mas não se deve esquecer que se o contrato tem o poder de ligar, é a

sociedade que lhe confere este poder (...) Portanto, todo o contrato pressupõe que por

trás das partes que o estabelecem, há a sociedade pronta para intervir a fim de fazer

respeitar os compromissos assumidos; por isso ela só presta essa força obrigatória aos

28

Parecer Civil. RT-750: 1998. p.116.

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contratos que, por si mesmos, têm um valor social, isto é, que são conforme as regras

do direito.29

Cabe neste passo trazer à lume a doutrina de Judith Martins Costa, in verbis: O

início do séc. XX veio traçar uma nova trilha, agora em direção à funcionalização do

direito subjetivo. São formuladas teorias negativas ao conceito de direito subjetivo,

substituindo-o por outras figuras. Entre as mais relevantes estão a de Léon Duguit, que

reconstrói a ideia de direito subjetivo afirmando existirem posições vantajosas para

certas pessoas porque garantidas pelo poder estatal, na medida em que desempenham

funções dignas dessa garantia; e de Otto Von Gierke, sustentando a existência de

‘limites imanentes’ aos direitos decorrentes da impossibilidade da existência de direitos

sem deveres. Desde então, toda a teoria do direito subjetivo está polarizada entre duas

teses: a dos limites internos ao direito, e a dos limites externos. Ambas podem ser assim

sintetizadas: 1. Teoria interna: Os direitos e respectivos limites são imanentes a

qualquer posição jurídica; o conteúdo definitivo de um direito é precisamente, o

conteúdo que resulta dessa compreensão do direito ‘nascido’ com limites; logo o âmbito

de proteção de um direito é o âmbito de garantia efetiva desse direito. 2. Teoria externa:

os direitos e as restrições são dimensões separadas; as restrições são sempre

‘desvantagens’ impostas externamente aos direitos; o âmbito de proteção de um direito

é mais extenso do que a garantia efetiva, porque aos direitos sem restrições são opostos

limites que diminuem o âmbito inicial de proteção 30

O contrato deixa de ser impermeável à coletividade que o circunda. As

condicionantes sociais passam a afetar o contrato gerando efeitos perante outras pessoas

determinadas ou indeterminadas que não são sujeitos da relação jurídica originária. Com

a função social, o princípio da relatividade dos contratos passa a sofrer ranhuras em sua

construção dogmática para aceitar efeitos jurídicos não só perante as partes, mas,

sobretudo, perante terceiros estranhos à relação contratual base.

Assim, o disposto no artigo 421 do Código Civil como cláusula geral da

dogmática contratual, expressa o valor da solidariedade social que deve imperar nas

relações jurídicas, que no caso dos contratos, deve primar por uma relação de

coordenação das vontades apostas no ajustes e de colaboração entre as partes, e o

elemento social, a fim de que a obrigação ajustada seja cumprida de modo mais útil,

29

DURKHEIN, São Paulo, 1999. p. 89 30 Notas sobre o princípio da função social do contrato – Disponível:http://www.realeadvogados.com.br/pdf/judith. > acesso em 24.09.2012.

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justo e adequado ao interesse dos indivíduos contratantes e dos terceiros que sentem a

eficácia do contrato.

Constitui, portanto, a função social dos contratos uma das significativas

inovações trazidas pelo novo Código Civil de 2002, cláusula geral de relevo que tem

despertado a atenção dos estudiosos que buscam precisar de modo devido e através do

método da concreção o seu sentido e alcance.

Limita-se a liberdade em prol do fim social dos contratos, que é ser adimplido

pelos estipulantes de maneira mais eficaz para o credor, menos gravosa para o devedor e

que atenda à sociedade.

Se modificados a sociedade, o tempo e o homem é inevitável que a teoria

contratual também devesse se modificar, razão pela qual a aposição do adjetivo "novo"

às teorias do contrato. No entanto, a adjetivação acaba por demonstrar a permanência

arraigada de negação do relativismo histórico no campo jurídico e a crença num sistema

jurídico oitocentista que, evidentemente, não mais pode ou deve prevalecer.

Eros Roberto Grau sustenta que as inovações vivenciadas nada mais são do que

formas de preservar a intocável teoria clássica do contrato. De qualquer forma,

Negreiros postula contra uma teoria clássica que busca sua legitimação em um único

princípio. Se a crise do paradigma clássico não é tão clara ou unânime, reconhece a

autora a indubitável crise de um paradigma único e exclusivo e, mais ainda, tendo-se em

vista a necessidade do reconhecimento de que diferentes são os contratos, combate as

tentativas de construção de uma teoria geral para enfrentá-los.

A boa-fé é tratada por Teresa Negreiros como assentada na cláusula geral de

tutela da pessoa humana, interpretada constitucionalmente sendo: possível reconduzir o

princípio da boa-fé ao ditame constitucional que determina como objetivo fundamental

da República a construção de uma sociedade solidária, na qual o respeito pelo próximo

seja um elemento essencial de toda e qualquer relação jurídica (2008, p. 117).

Assim, a partir do modelo traçado de contrato fundado na vontade individual,

tem-se hoje um modelo normativo no qual a força obrigatória do contrato repousa não

na vontade, mas na própria lei, submetendo-se a vontade à satisfação de finalidades que

não se reduzem exclusivamente ao interesse particular de quem a emite, mas igualmente

à função social do contrato.

Para finalizarmos, porém, sem a pretensão de esgotamento do tema em

questão, o contrato não está numa “redoma de vidro” e alheio as variantes sociais. A

liberdade contratual encontra o seu limite na função social do contrato. E, nas palavras

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de Cristina Tereza Gaulia31: a modernidade jurídica nascida na Constituição de 1988

requer juízes que sejam criadores do Direito e livres intérpretes da lei, tendo por

objetivo a busca da justiça a ser aplicada em beneficio da paz social.

REFERENCIAS BIBLIIOGRÁFICAS: AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. AZEVEDO, Antônio Junqueira. Parecer Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.v. 750. BIERWAGEN, Mônica. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de direito administrativo. São Paulo. MENKE, Fabiano. Revista do direito do consumidor, São Paulo, RT, n. 50, 2004.RT, 1984.

RODRIGUES, Renata de Lima. As tendências do Direito Civil brasileiro na pós-

modernidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 655, 23 abr. 2005 . Disponível em:

<http://jus.com.br/revista/texto/6617>. Acesso em: 24 out. 2012.

31 A interpretação das leis principiológicas e a convicção politico-ideiológica do magistrado. In:Revista da Associação dos Magistrados Brasileiros , ano 5, n.11, 2ºsem., 2001, p. 142-52.

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A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS COMO INSTRUMENTO PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

THE SOCIAL FUNCTION OF CONTRACTS AS AN INSTRUMENT FOR

SUSTAINABLE DEVELOPMENT

Luciana Costa Poli Bruno Ferraz Hazan

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 O contrato contemporâneo: uma visão funcional; 3 Função social do contrato: visão geral; 4 Buscando um horizonte interpretativo para a função social dos contratos; 5 Meio ambiente e função social dos contratos: interface necessária; 6 Conclusão; Referências. CONTENTS: 1 Introduction; 2 The contemporary contract: a functional view; 3 Social function of contracts: overview; 4 Seeking a fourth interpretive horizon for social function of contracts; 5 Environmental and social function of contracts: required interface; 6 Conclusion; References. RESUMO O trabalho faz uma releitura do contrato e procura traçar um perfil funcional e promocional do instituto, em busca de um desenho contratual que exprima a principiologia constitucional. O estudo do tema procurará demonstrar que o contrato não cabe mais em uma moldura individualista que procura a satisfação apenas de interesses das partes. O modelo contratual que se propõe é aquele em que está presente também a preocupação com uma finalidade solidarista que orienta o ordenamento constitucional. O trabalho abordará de forma breve a evolução histórica do contrato e analisará as funções que deve desempenhar na contemporaneidade, em especial a função social. Nesse contexto, será examinada a dinamicidade da relação contratual que a conecta diretamente à sociedade e ao meio ambiente. Dessa forma, permeando a função social do contrato, defende-se a ideia de que o contrato é instrumento que deve espelhar os ideais solidaristas da ordem constitucional e que deve colaborar para o desenvolvimento sustentável. PALAVRAS-CHAVE: Contrato; Função Social; Princípio da Solidariedade; Meio Ambiente; Desenvolvimento Sustentável. ABSTRACT The work is a reinterpretation of contract and seeks to draw a functional and promotional profile of the institute, seeking a contract design that expresses the constitutional principles. The study of the subject will seek to demonstrate that the contract no longer fits into an

Luciana Costa Poli. Advogada. Doutora em Direito Privado pela PUC-MINAS. Professora na Escola Superior Dom Helder Câmara/MG e na Faculdade Estácio de Sá/MG. Bruno Ferraz Hazan. Advogado. Mestre e Doutorando em Direito Privado pela PUC-MINAS. Professor na Escola Superior Dom Helder Câmara/MG e na Escola Superior de Advocacia da OAB/MG.

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individualistic frame who seeks only the satisfaction of interests of the parties. The contractual model that is proposed is one in which also contains the concern with a solidaristic purpose that guides the constitutional system. The work will address briefly the historical evolution of the contract and will examine the roles it should play in contemporary society, especially the social function. In this context, will be examined the dynamics of the contractual relationship that connects directly to society and to the environment. Thus, permeating the social function of the contract, it defends the idea that the contract is an instrument that should reflect the solidaristic ideals of the constitutional order and that should collaborate for the sustainable development. KEYWORDS: Contract; Social Function; Principle of Solidarity; Environment; Sustainable Development.

1 INTRODUÇÃO

O trabalho se propõe a analisar o papel funcional que o contrato pode desempenhar

na sociedade. Pretende-se demonstrar que contrato hoje é instrumento dinâmico, voltado não

apenas à satisfação dos interesses ou necessidades individuais das partes, mas direcionado

também à produção de efeitos externos às partes contratantes.

Partindo de uma visão histórica, que perpassa pelo modelo contratual que adentrou

no movimento oitocentista de codificação por meio da ideologia burguesa que apregoava a

não intervenção do Estado e elevava a manifestação da vontade dos contratantes ao caráter de

dogma, passa-se a analisar o contrato sob sua feição atual que estabelece novos parâmetros

para a contratação.

Nesse contexto, a funcionalização do contrato é visível com a adoção de cláusulas

gerais pelo Código Civil de 2002 que claramente tiveram inspiração nos valores e princípios

constitucionais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade. Da autonomia da vontade,

marca do Estado Liberal, passa-se ao conceito de autonomia privada. A liberdade de contratar

sofre limitações, como a função social, a boa-fé objetiva, os princípios e valores

constitucionais. O contrato agora é palco para que os atores individuais atuem em prol de

interesses outros que não meramente alcançar a finalidade econômica do contrato.

A função social, segundo a concepção que se apresentará preconiza, sobretudo, que

as obrigações oriundas dos contratos valem não apenas porque as partes as assumiram

voluntariamente, mas também porque interessa à sociedade a tutela das situações jurídicas

geradas com a contratação.

A liberdade contratual, na acepção atual, passa a ser compreendida como um poder-

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dever. Ao facultar ao indivíduo o poder de contratar, impõe-lhe o ordenamento jurídico o

dever de fazê-lo de forma a cooperar com a coletividade em que está inserido e de perseguir,

não apenas seus próprios interesses, mas, ainda, interesses extracontratuais socialmente

relevantes, dignos de tutela jurídica, que se inter-relacionam com o contrato de alguma forma

ou são por ele atingidos.

A contratação, segundo a concepção que se apresentará, acompanha todo o processo

econômico e dele não se desvincula, exercendo uma influência direta no meio ambiente, seja

no natural ou artificial.

Assim, procurar-se-á demonstrar que o entrelaçamento entre o desenvolvimento

sustentável e fenômeno contratual é estreito: o contrato há de revelar-se como instrumento

eficaz a fomentar relações saudáveis e úteis entre indivíduo e meio ambiente.

2 O CONTRATO CONTEMPORÂNEO: UMA VISÃO FUNCIONAL

A teoria contratual atual sustenta que o contrato é:

[...] relação jurídica subjetiva, nucleada na solidariedade constitucional, destinada à produção de efeitos jurídicos existenciais e patrimoniais, não só entre os titulares subjetivos da relação, como também perante terceiro. (NALIN, 2007, p. 253)

A conformação do contrato contemporâneo em muito se difere do modelo contratual

romano, marcado pelo rigor formal, pela observância de ritos específicos a cada tipo

contratual1, por sua visão estática e por sua função essencialmente econômica.

O contrato hoje é instrumento dinâmico, voltado não apenas à satisfação dos

interesses ou necessidades individuais das partes, mas direciona-se também à produção de

efeitos externos às partes contratantes.

Atenua-se, consequentemente, o princípio da relatividade dos efeitos dos contratos,

princípio clássico, cultuado no Estado Liberal, que pregava que o contrato só interessava aos

1 “Não bastava o enunciado da lei. Tornava-se preciso também um conjunto de sinais exteriores, como que ritos de uma cerimônia religiosa, chamada contrato, ou processo judicial. Por esse motivo, para haver qualquer venda, deviam usar um pedaço de cobre e a balança; para comprar algum objeto, era necessário tocá-lo com a mão, mancipatio; quando se disputava qualquer propriedade, tratava-se de um combate fictício, manuun consertio” (COULANGES, 1995, p. 74).

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próprios contratantes. Não se considerava, nesse contexto, a extensão dos efeitos do contrato à

sociedade. Se o Estado Liberal, não intervencionista, não se preocupava em materializar o

equilíbrio contratual entre as partes, bastando a observância da justiça formal, sequer voltava

os olhos para os possíveis nefastos efeitos que a contratação poderia exercer em seu entorno.

Nessa perspectiva, o contrato, exaltado por Roppo (2009, p. 32) como a “mola

propulsora do capitalismo” assume novas funções, ao lado da tradicional função econômica.

Fala-se em função pedagógica, o contrato como meio de aproximação de cidadão comum

com o ordenamento jurídico, já que a contratação desperta, ou deveria despertar, a curiosidade

ou mesmo a necessidade de consulta à legislação pertinente. O contrato educa, ensina e

civiliza o homem (FIUZA, 2011, p. 315). Formando a tríade, há a função social, tema de

acalorados debates, dada a sua enorme relevância, repercussão e miríade de nuances, a ser

analisada no capítulo seguinte.

O contrato, na moldura da ideologia do Estado Liberal, era palco de uma pretensa

liberdade “ilimitada” das partes para autogerirem seus interesses privados. Cunhou-se o

princípio da autonomia da vontade como “o poder ou a possibilidade de o indivíduo produzir

direito que, no campo contratual, corresponde à chamada liberdade contratual” (MELO,

2011, p. 82).

Consequentemente, a liberdade de contratar passou a ser conjugada com a

obrigatoriedade contratual. Quem contrata, contrata porque quer, estabelece as próprias regras

(o contrato faz lei entre as partes), e, por conseguinte, obriga-se a seu cumprimento. Daí a

máxima pacta sunt servanda.

Encobre-se o contrato, nessa época, de inviolabilidade, seja perante o Estado, seja

perante a sociedade. Cria-se, assim, um vínculo negocial dotado de legitimidade e verdadeira

normatividade entre as partes, demonstrando a hegemonia da ética individualista, dominante

no ambiente impulsionado pela burguesia (ROPPO, 2009, p. 32-33), que via no contrato o

meio para propagar a aquisição de bens. O ideário liberal concentrado em suas metas não

intervencionistas proclama: “quem diz contratual diz justo”2.

Nesse contexto, o contrato está a salvo de qualquer intervenção, já que o direito

reduzia-se quase que exclusivamente a uma função legislativa, não havendo espaço para uma

2 “O ideal revolucionário burguês de ‘garantir propriedade a todos’ era realizado por meio do contrato. Dessa forma, toda dogmática contratual foi concebida, naquele período, tendo como premissa a liberdade de contratar” (MELLO, 2011, p. 78).

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atividade verdadeiramente interpretativa. Os modelos legais, a exemplo o Code Napoléon,

deveriam ser aplicados quase que automaticamente, ignorando a complexidade do tecido

social. Vagava-se por uma racionalidade esmagadora de qualquer exercício dialético com a

realidade existente.

O papel do magistrado, segundo a célebre expressão de Montesquieu, era apenas de

bouche de la loi, ou seja, a aplicação da lei era meramente por subsunção àquilo que havia

sido previsto pelo legislador. Nada mais deveria ser realizado pelo juiz, além do que a

indicação da lei. Tudo em prol da segurança jurídica e do respeito às esferas individuais

invioláveis dos particulares.

Esse é o modelo contratual que adentrou no movimento oitocentista de codificação,

primeiro na França, depois na Alemanha. Fruto da vitória política da classe burguesa, o Code

Napoléon é o primeiro grande código da Idade Moderna, refletindo uma França pós-

revolucionária, mantendo-se fiel às diretrizes desse movimento. A igualdade, a liberdade e a

fraternidade, no campo político, se tornariam, no campo jurídico-contratual, liberdade de

contratar, de escolher com quem contratar e de estipular o conteúdo do contrato. “O legislador

francês do code civil concebeu o contrato como mero instrumento de aquisição e transferência

da propriedade, não sendo aquele um instituto autônomo, mas servil a esta” (MELO, 2011, p.

78).

Décadas após a promulgação do Code, o Código Civil alemão de 1896 (Bürgerliches

Gesetzbuch), inspirado ainda no pensamento liberal-burguês, e baseado no estudo da escola

pandectista alemã, desenvolveu uma teoria do contrato, identificando-a a uma categoria geral

e abstrata, a do negócio jurídico. Segundo Amaral (2008, p. 387):

A categoria do negócio jurídico surge, assim, como produto de uma filosofia político-jurídica que, a partir de uma teoria do sujeito, com base na sua liberdade e igualdade formal, constrói uma figura unitária capaz de englobar, reunir, todos os fenômenos jurídicos decorrentes das manifestações de vontade dos sujeitos no campo da sua atividade jurídico-patrimonial.

A sistematização da teoria do negócio jurídico formou um arcabouço teórico, que

enclausurou o contrato a uma categoria hermética e impermeável, a uma mera espécie do

gênero negócio jurídico, impenetrável às nuances que o contrato de fato assume. Essa visão

míope do que seria o contrato não poderia prosperar, pois ignorava todos os elementos

dinâmicos da relação contratual.

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O contrato assim concebido, como fruto da autonomia da vontade e justiça formal,

tornou-se escravizador, já que mero instrumento de sujeição de um indivíduo sobre outro,

criando uma relação de submissão, dadas às enormes discrepâncias, econômicas, sociais e

culturais dos contratantes. O limbo abstrato no qual o direito permanecia era incapaz de dar

concretude a qualquer pretenso equilíbrio contratual.

A deficiência desse modelo, dessa teoria negocial estruturada – científica, mas

afastada da realidade –, embora tardia, manifestou-se: o contrato não se encaixa em categorias

estruturais pré-definidas, é o “ocaso do negócio jurídico” (FIUZA, 2011, p. 205).

A constatação dessa deficiência foi sentida após a deterioração do Estado Liberal. O

panorama apresentado marcou a modernidade e o século XIX, imerso no contexto de ruptura

com os Estados absolutos e na necessidade de afirmação do capitalismo como sistema

econômico e da burguesia como classe dominante (ROPPO, 2009, p. 122).

A Pós-Modernidade se caracteriza por uma feição intervencionista e pela positivação

de regras jurídicas, principalmente por uma construção principiológica que tem a pretensão de

garantir direitos sociais, econômicos e culturais, demonstrando uma alteração de foco: da

igualdade formal para a igualdade substancial (AMARAL, 2003, p. 72).

Abalam-se as estruturas conceituais sobre as quais o conceito clássico de contrato

assentava-se, já que “o Estado social, desde seus primórdios, afetou exatamente os

pressupostos sociais e econômicos que fundamentaram a teoria clássica do contrato” (LÔBO,

2011, p. 20). Abrem-se novas bases para um desenho contemporâneo de contrato.

Ao contrato, como assinalado no início deste capítulo, são atribuídas outras funções,

mirando não apenas as partes contratantes, mas a coletividade. Nessa perspectiva, de “figura

jurídica central do capitalismo” (ROPPO, 2009, p. 22), passa a sofrer alterações em sua base

principiológica, que começa a lhe impor restrições e formatações que o levam a cumprir não

apenas um “papel de vestimenta jurídica para as operações econômicas” (ROPPO, 2009, p.

23), mas também de concretização da almejada justiça social (BARROSO; MORRIS, 2008, p.

41). “A intangibilidade da vontade individual cede frente à exigência de justiça social”

(BIANCA, 2007, p. 56).

A funcionalização do contrato é visível com a adoção de cláusula gerais pelo Código

Civil de 20023, de caráter cogente. Incidem na formação, no conteúdo e na realização dos

3 Em especial os artigos 421 e 422. Art. 421. “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da

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contratos, fomentando “formas de intervenção legislativa sobre o regulamento contratual

particularmente incisivas e a formas de restrição da autonomia privada particularmente

penetrantes” (ROPPO, 2009, p. 34).

De acordo com Canaris (1996, p. 143), a cláusula geral se caracteriza por “ela estar

carecida de preenchimento com valorações, isto é, ela não dar os critérios necessários para a

sua concretização, podendo-se estes, fundamentalmente, determinar apenas com a

consideração do caso concreto respectivo”.

Da autonomia da vontade, marca do Estado Liberal, passa-se à autonomia privada. A

liberdade de contratar sofre limitações, como a função social, a boa-fé objetiva, os princípios

e valores constitucionais. A liberdade dos contratantes encontra-se “fundamentalmente

subordinada à solidariedade social” (BIANCA, 2007, p. 57). Aduz Neves (2010, p. 62) que:

[...] por um lado, a concreta e material realização do direito faz com que as normas legais se vejam duplamente transcendidas, relativamente às possibilidades normativas que objectivam, pela simultânea e constitutiva referência aos princípios fundamentantes do direito enquanto tal (do normativamente integral sistema do direito) e ao concretum problemático dessa realização, e que, por outro lado, o direito que legalmente se realiza é ele próprio um continuum constituendo em função de uma dialéctica normativa que articula os princípios normativo-jurídicos com o mérito jurídico do problema concreto através da mediação das normas legais.

A intervenção do Estado no universo contratual, ou dirigismo contratual, pretende

direcionar o contrato como instrumento de implementação das políticas e valores sociais

almejadas pelo Estado. O direito civil dito constitucional (TEPEDINO, 1999, p. 349), por

conseguinte, figura-se como “corolário de uma revolução epistemológica nucleada pela esfera

existencial que se agregou à civilística por influência da Constituição democrática do Estado

social avançado” (BARROSO, 2012, p. 155).

3 FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO: VISÃO GERAL

A atribuição de uma função social ao contrato, segundo a acepção de Reale (2002, p.

13) demonstra claramente o caráter de socialidade do Código Civil de 2002. A função social

função social do contrato”. Art. 422. “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

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foi erigida pelo legislador como cláusula geral, o que revela que o sistema hoje se mostra

aberto. Não mais pretende o legislador que os códigos sejam o repertório quase que exclusivo

de todas as normas jurídicas, bastando ao magistrado apenas a aplicação literal da lei.

A cláusula geral permite a construção de uma decisão mais coerente com o caso

concreto, pois permite ao julgador uma participação ativa na formulação da prestação

jurisdicional, na medida em que deverá buscar erigir sua sentença preenchendo o conteúdo da

norma dadas as especificidades de cada caso. A cláusula geral, por não ter o conteúdo pré-

definido, é mais permeável às vicissitudes sociais.

Poder-se-á dizer que, ao trazer vantagens, a adoção das cláusulas gerais é, ao menos

em parte, contrabalanceada pela possível instabilidade e insegurança jurídica que podem

introduzir no ordenamento jurídico. A esse respeito, Canaris (1996, p. 143) já afirmou ser

“evidente que um sistema móvel garante a segurança jurídica em menor medida do que um

sistema imóvel, fortemente hierarquizado com previsões normativas firmes”, razão pela qual

o desaconselha, dentre outros, no direito cambiário ou sucessório, isto é, “nos âmbitos onde

exista uma necessidade de segurança jurídica mais elevada”.

No estado atual, a segurança jurídica, com muita cautela, pode ser mitigada em prol

de outros valores ou princípios, como a equidade contratual e o princípio da solidariedade,

mas Dallari (1980, p. 26) lembra que:

[...] entre as principais necessidades e aspirações das sociedades humanas encontra-se a segurança jurídica. Não há pessoa, grupo social, entidade pública ou privada, que não tenha necessidade de segurança jurídica, para atingir seus objetivos e até mesmo para sobreviver.

Não obstante, é inegável a alteração do “paradigma da lei” para “o paradigma do

juiz”, segundo relata Azevedo (2002, p. 108):

O paradigma, até o final do século XIX, era o da lei propriamente. Os nossos pais certamente aprenderam nas faculdades de Direito que, quando há um conflito, algum problema, a solução está na lei. E essa lei era rígida, de certa maneira universal, geral, e não deveria haver distinções de grupos, pois a lei era para todos. Essa lei deveria ter uma factispecies, uma hipótese legal muito precisa, porque o papel do juiz era justamente o de aplicar a lei de uma maneira automática, silogística. Como dizia um autor antigo, “o juiz tinha um papel passivo”. Esse paradigma da lei entrou em crise no final do século XIX porque, embora tenha obtido muito sucesso em algumas circunstâncias, especialmente para o comércio jurídico, que é um paradigma da lei que dá uma segurança enorme para a população, nesse jogo dos interesses de ordem econômica e social, favorecia muito um determinado tipo de pessoa – o empreendedor, o comerciante, por exemplo –, mas não favoreceu as

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classes que se tornaram cada vez mais pobres. Então, houve um problema de ordem social que veio se refletir na primeira metade do século XX. Nessa primeira metade do século XX, os juristas começaram a questionar de uma certa maneira o paradigma da lei; e, então, tivemos uma série de providências que o mundo do Direito foi tomando para quebrar aquele sistema de ordenamentos precisos e rígidos. O intuito era o de dar mais poderes ao juiz. Assim, encontramos nesse período uma inflexão do paradigma da lei para o juiz, o juiz ativo. A maneira de dar poder ao juiz corresponde, com o devido respeito ao Poder Judiciário, a uma visão do Poder Judiciário como Poder, porque é o tempo do Estado todo-poderoso. É claro que nem todos os países entraram no esquema de um Estado totalitário. Mas, esmo naqueles que mantiveram o Estado Democrático, a interferência do Estado foi muito forte e, para isso, o Estado, inclusive o juiz, como Poder, precisava de instrumentos. [...] Então, o juiz, de uma certa maneira, recebe uma delegação de poder do Legislativo para integrar a lei com os conceitos jurídicos indeterminados.

Nessa perspectiva, considerando o panorama civil constitucional, a função social do

contrato deve ser compreendida tendo como parâmetros hermenêuticos os princípios

constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), do valor social da livre iniciativa

(art. 1º, IV) – fundamentos da República –, da igualdade substancial (art. 3º, III) e da

solidariedade social (art. 3º, I).

Impõe às partes o dever de perseguir, não apenas seus próprios interesses, mas,

ainda, interesses extracontratuais socialmente relevantes, dignos de tutela jurídica, que se

inter-relacionam com o contrato de alguma forma ou são por ele atingidos. Tais interesses

dizem respeito, dentre outros, aos consumidores, à livre concorrência, ao meio ambiente, às

relações de trabalho (TEPEDINO, 2008, p. 397). O mesmo autor continua:

A função social é aqui definida textualmente como a razão da liberdade de contratar. Disto decorre poder-se afirmar que a funcionalização constitui dado essencial à situação jurídica, qualifica-a em seus aspectos nucleares, em sua natureza e disciplina. [...] Toda situação jurídica patrimonial, integrada a uma relação contratual, deve ser considerada originariamente justificada e estruturada em razão de sua função social. (TEPEDINO, 2008, p. 398).

A norma jurídica não se limita a obrigar; também faculta, atribui um âmbito de

atividades autônomas a um ou mais sujeitos, legitimando pretensões ou exigibilidades

(REALE, 2000, p. 211), ou, em outras palavras, a interferência do Estado na autonomia

contratual não há de ser apenas restritiva, deve ser vista como necessária para a promoção da

dignidade, da solidariedade, dentre outros.

O conceito contemporâneo de contrato desafia o intérprete a compreender a função

social e a questionar se exerce um papel apenas para promoção de interesses exógenos à

contratação ou se a função social seria um novo requisito de validade do contrato.

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4 BUSCANDO UM HORIZONTE INTERPRETATIVO PARA A FUNÇÃO SOCIAL

DOS CONTRATOS

O dispositivo do artigo 421 do novo Código Civil ensejou acirrada controvérsia a

respeito de sua mais correta interpretação. Isso porque, a interpretação meramente gramatical

poderia ensejar a ideia de que para a validade do contrato seria necessário o cumprimento de

um novo requisito4, consistente na observância à função social. Nessa perspectiva, somente se

celebrado em prol da coletividade é que seria merecedor de tutela jurídica.

Por essa concepção, a função social preconiza que as obrigações oriundas dos

contratos valem não apenas porque as partes as assumiram voluntariamente, mas também

porque interessa à sociedade a tutela da situação objetivamente gerada por suas

consequências econômicas e sociais.

É importante frisar que a livre manifestação de vontade permanece, mesmo neste

novo conceito contratual, como elemento essencial à formação do contrato. Contudo, a

possibilidade de manifestação de uma vontade plena é, na prática social, cada vez mais rara5,

e a função social assume um papel promocional, que deve ser observado em todo o ciclo vital

contratual e ainda na fase pós-contratual.

A liberdade contratual, na acepção atual, pode ser concebida como um poder-dever.

Ao facultar ao indivíduo o poder de contratar, impõe-lhe o ordenamento jurídico o dever de

fazê-lo de forma a cooperar com a coletividade em que está inserido. O panorama da

contratação parece estar atrelado à “grande cláusula constitucional de solidariedade” (NALIN,

2002, p. 54). Sustenta Costa (2002, p. 211):

Se formos fiéis à descoberta de Sófocles, concluiremos que a liberdade está no coração do Direito Civil, que é o direito das pessoas que vivem na civitas, em comunidade. O problema está no modo de entender-se a liberdade. Não se trata, a meu ver, nem de uma “liberdade consentida” nem de uma liberdade exercida no vazio, mas de uma liberdade situada, a liberdade que se exerce na vida comunitária, isto é: o lugar onde imperam as leis civis. Essa clivagem fundamental já estava em Sófocles, acima lembrado. Daí a imediata referência, logo após a liberdade de

4 Esse elemento se somaria à capacidade do agente, à licitude e determinação do objeto e à observância à forma legalmente prescrita (art. 104, CC). 5 Considerando que o dirigismo contratual e a atual conformação da autonomia privada.

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contratar, à função social do contrato; daí a razão pela qual liberdade e função social se acham entretecidos, gerando uma nova idéia, a de autonomia (privada) solidária.

Essa acepção da função social deve ser analisada com cuidado, sob pena de

estabelecer o contrato não como instrumento útil aos contratantes para satisfação de suas

necessidades ou desejos, mas apenas no sentido social de utilidade para a comunidade. Assim

compreendida, poderia ser legítima a vedação do contrato que não buscasse esse fim.

Esse raciocínio é equivocado porque o interesse particular não se opõe

necessariamente ao interesse social. Essa dicotomia não mais subsiste. Indivíduo e sociedade

não são opostos. O indivíduo encontra-se inserido no contexto social e dele não se desvincula:

[...] o princípio da autonomia da vontade protege a liberdade contratual do indivíduo e também resguarda o interesse social. Indivíduo e sociedade não são opostos e afirmar uma adversidade entre homem e sociedade é exagero que induz á inversão lógica de contrapormos o indivíduo – representado pela liberdade contratual – e sua comunidade – expresso pela função social –, quando na verdade singular e plural são complementares, afinal, a pessoa vive com o seu grupo, eventualmente em meio a concorrências e disputas com outros integrantes, que não anulam o sentido gregário de convivência (MANCEBO, 2005, p. 55).

O contrato é precipuamente um instrumento à disposição das partes para a satisfação

de suas necessidades. Isso não afasta a concepção de que o contrato pode ser destinado à

promoção do bem comum, até porque o atendimento às necessidades humanas e tutela dos

interesses individuais também pode ser entendida como uma das formas de se atender ao

interesse social. Exigir dos contratantes um comportamento altruístico, a impor que eles

procurem realizar, antes de seus interesses, os interesses dos outros é o que parece

desarrazoado:

Na realidade, a perspectiva funcional do direito contratual desloca o fundamento das situações subjetivas, antes ancorado na vontade do indivíduo, para os interesses e valores da coletividade. Porém, isto não quer dizer que as pessoas não possam mais se servir de seus direitos para satisfazer os seus interesses. Ao contrário, o que se pode entender é que a própria razão que justifica que essa pessoa possa exercer os seus direitos em seu benefício é uma razão do ordenamento. Com efeito, há um interesse social a ser atendido quando se tutela o interesse individual de cada pessoa, assim como há quando se tutela a satisfação de interesses difusos ou coletivos que estejam eventualmente envolvidos na realização daquele contrato. Na realidade, não raro a tutela de um interesse coletivo se confunde com a de um interesse individual (RENTERÍA, 2006, p. 305).

Essa ideia aparenta ser bem razoável se pensada, por exemplo, na tutela ao meio

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ambiente. Garantir, por intermédio da contratação, um meio ambiente equilibrado não reflete

apenas um interesse social, mas reflete o interesse das próprias partes que estão inseridas

nesse ambiente.

Ao buscar o sentido da norma, impõe-se realizar uma interpretação que se coadune

com os princípios sobre os quais repousam todo o sistema jurídico que se queira implantar,

afastando qualquer análise meramente valorativa, pois assim aumenta-se o “perigo dos juízos

irracionais, porque neste caso os argumentos funcionalistas prevalecem sobre os normativos”

(HABERMAS, 1997, p. 321-322).

5 MEIO AMBIENTE E FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS: INTERFACE

NECESSÁRIA

A função social dos contratos rompe com o individualismo contratual que

preconizava a existência do contrato em uma esfera individual quase íntima, portanto

intangível e adota uma concepção de institucionalização do contrato. O contrato, além de ser

um instrumento individual, é um instrumento social de harmonização das relações

individuais, de promoção de princípios e valores consagrados pelo ordenamento jurídico.

Contratar não é simplesmente uma mera opção pessoal, mas uma imposição social no sentido

de que os indivíduos são seres dotados de necessidades vitais e o contrato é o principal meio

pacífico e institucionalizado de produção, distribuição e acesso a bens. A contratação

acompanha, assim, em uma sociedade civilizada, todo o processo econômico, dele não se

desvincula e deve direcionar-se para uma justa, útil e sadia circulação de riquezas

(PODESTÀ, 2008, p. 48).

A contratação exerce ainda uma influência direta no meio ambiente, seja no natural

ou artificial6, principalmente se considerada a acentuada reflexividade das práticas contratuais

que são “constantemente examinadas e reformuladas à luz de informação renovada sobre

estas próprias práticas, alterando assim construtivamente seu caráter” (GIDDENS, 1991, p.

45).

6 “Opondo-se ou contrapondo-se ao elemento natural aparece o elemento artificial, aquele que não surgiu em decorrência de leis e fatores naturais, mas por processos e moldes diferentes, proveio da ação transformadora do homem. De fato, a sociedade humana conta, hoje, com os mais variados elementos, fatores e dispositivos para criar, por artifícios inúmeros produtos e ambientes, valendo-se inevitavelmente de elementos e recursos naturais, cuja conta pesa sobre o meio ambiente” (MILARÉ, 2005, p.199).

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O mundo contemporâneo, ao refletir uma forma de existência verdadeiramente

global (SANTOS, 2005, p. 27), promovendo articulações intercorrentes e incessantes entre o

agir local e suas consequências no globo, revela que a necessidade de proteção do meio

ambiente está umbilicalmente associada ao princípio da solidariedade que orienta, como já

assinalado, a própria contratação por intermédio da função social do contrato.

Até porque direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito de todos,

inclusive das futuras gerações (WEISS, 1989, p. 78). A proteção ambiental configura-se como

um ”munus” direito-dever de todos, o que requer solidariedade jurídica, solidariedade ética,

inclusive intergeracional, pois os sujeitos encontram-se, simultaneamente, em ambos os polos

da relação jurídica, ou seja, ao mesmo tempo em que são sujeitos ativos, são também sujeitos

passivos do mesmo direito-dever: têm direito e dever sobre o mesmo bem (MORAES, 2008,

p. 54). Os deveres correspondentes à função ambiental (CAVEDON, 2003, p. 82) não são

exclusivamente do Poder Público, são solidarizados com a sociedade:

A solidariedade já não pode ser considerada como resultante de ações eventuais, éticas ou caridosas, tendo-se tornado um princípio geral do ordenamento jurídico, dotado de completa força normativa e capaz de tutelar o respeito devido a cada um (MORAES, 1993, p. 28).

A leitura do ordenamento civil há de ser realizada buscando-se uma justificativa

constitucional, uma dinamicidade entre as normas infraconstitucionais e os princípios e

valores constitucionais, de modo que as normas de direito civil não seriam integradas apenas a

relações interpessoais.

O entrelaçamento entre o desenvolvimento sustentável e fenômeno contratual é

estreito: o contrato há de revelar-se como instrumento eficaz a fomentar relações saudáveis e

úteis entre indivíduo e meio ambiente, relações que devem se estreitar principalmente se

considerada a responsabilidade do homem com as gerações futuras. Como adverte Bordin

(2008, p. 37-61), o princípio da solidariedade entre as gerações traz a ideia de solidariedade

diacrônica e solidariedade sincrônica7:

A solidariedade diacrônica consiste na responsabilidade que a população atual tem com a população futura de não incorrer em ações irreversíveis capazes de alterar

7 Segundo Saussure (2002, p. 96), “é sincrônico tudo quanto se relacione com o aspecto estático da nossa ciência; é diacrônico tudo que diz respeito às evoluções.”

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negativamente o modo de vida destas populações, em decorrência da exaustão dos recursos e do processo cumulativo de poluição. A solidariedade sincrônica corresponde à responsabilidade com a geração presente, na qual a equidade social entre as nações e dentro delas é o ponto central (SACHS, 1986, p. 47).

A ideia de solidariedade remete a uma desejável reação ética dos indivíduos, com a

finalidade de preservar os ecossistemas, com todas as suas formas de vida, inclusive a vida do

próprio ser humano. Com efeito, o desenvolvimento econômico, intimamente conectado ao

universo contratual, deve conciliar uma atitude socialmente justa e economicamente viável de

exploração do ambiente, contudo, sem exaurir sua capacidade natural de se reproduzir para as

gerações futuras (COUTINHO, 2009).

Ao buscar essa abertura comunicacional entre a dimensão negocial que orienta as

atividades econômicas dos indivíduos e seu relacionamento com o meio ambiente, pretende-

se privilegiar uma atitude ética ambiental, que pressupõe a observância nas relações privadas

de valores de especial fundamentalidade para uma nova organização do direito ambiental, a

responsabilidade, o cuidado e o respeito a se permitir a superação do “paradigma de

dominação” (LEITE, 2001, p. 70), marcado pela forte tensão entre as relações entre homem e

natureza e que tem, repetidamente, orientado também o discurso no tratamento jurídico do

ambiente.

Acredita-se que, privilegiando a comunicação entre o universo contratual,

considerando-se o papel a ser desempenhado pela própria função social dos contratos, pode

ser possível a construção de uma nova fundamentalidade para o discurso jurídico ambiental.

Revelar-se-á uma alteridade contratual que busque a equidade, “equidade que, na disciplina

ambiental realizada pelo texto constitucional, assume um alargamento peculiar, espacial e

temporalmente projetado” (LEITE, 2001, p. 62).

Necessária para a superação da crise ecológica é a superação da ética individualista,

que marcava o discurso civilístico. Há que incorporar-se um pensamento discursivo que

permita responsabilizar a todos pelos acontecimentos ecológicos globais. A resposta à crise

ecológica demanda responsabilidade solidária, centrada em princípios que ultrapassem a

esfera individualista ainda tão cara ao homem contemporâneo:

A sociedade que gerou a crise ecológica não teve alteridade nem solidariedade como valores fundamentais. Tal responsabilidade coletiva é pleiteada num nível ético, que deve decorrer da junção entre as éticas da solidariedade e da alteridade – sem as quais não é possível considerar a natureza e mesmo os próprios seres humanos como outros sujeitos, mas apenas como objetos – para que seja possível compreender e

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buscar uma saída da crise ecológica (LIMA, 2006, p. 81).

Não se pode mais privilegiar a autossuficiência dos contratos como mero instrumento

de satisfação dos interesses egoísticos das partes, na medida em que cresce a dimensão social

das relações privadas.

É necessário perceber que as partes contratantes têm deveres que ultrapassam aqueles

assumidos apenas inter partes, pois seu acordo não apenas não deve causar dano à sociedade,

mas sim promovê-la. Deve-se ultrapassar a preocupação essencialmente patológica do

contrato para se voltar ao seu papel promocional. Só assim será possível uma verdadeira

interface entre o universo contratual e o meio ambiente.

6 CONCLUSÃO

O trabalho, partindo de uma visão histórica do contrato, analisa o modelo contratual

do Estado Liberal, que pregava a não intervenção do Estado e elevava a manifestação da

vontade dos contratantes ao caráter de dogma, e passa a estudar o contrato em sua feição

contemporânea, que pretende estabelecer novos parâmetros para a contratação, com

observância de valores e princípios que sobressaem o mero interesse das partes.

Assim, procura-se demonstrar que o contrato assume papel funcional, cujo conteúdo

pode ser apreendido inspirando-se na dignidade humana e no solidarismo social, situação em

que incorpora um aspecto profilático ou promocional, de forma que a tutela contratual deve

não apenas garantir, mas também promover esses valores sobre os quais se funda o

ordenamento jurídico. E isso não se realiza apenas limitando o exercício dos direitos

contratuais, mas por meio da utilização do fenômeno contratual de maneira saudável e útil a

fomentar relações de interação entre o universo contratual e o meio ambiente.

Defende-se que os valores e princípios inspiradores da teoria contratual atual estejam

sedimentados na sociedade para que a função social não seja considerada apenas um valor

vago a ser densificado pelo juiz, mas um princípio que propicie o sentimento de efetiva

participação dos destinatários da norma.

A efetiva sedimentação dos valores éticos e solidários, tão caros ao constituinte,

apenas se dará se o ser humano romper com o ideário individualista e com a indiferença ao

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ambiente em que está inserido. A partir da constatação de que o homem já não encontra

vínculo forte com suas razões, nem com seus semelhantes, resta enfraquecida a significância

do outro, esvaindo-se o sentido da própria sociedade.

A contratação há ser vista como não apenas um processo econômico de acesso e

circulação de bens, mas como um instrumento importante de promoção da própria sociedade.

Para tal, faz-se necessário o sentimento de “pertença” do indivíduo no ambiente social. A real

identidade humana se dará na medida em que conseguir uma verdadeira inserção no ambiente

social, quando compreender que não se dissocia do outro e que não se dissocia do meio

ambiente8.

Nesse sentido, desenvolvimento sustentável e fenômeno contratual possuem relação

estreita: o contrato pode e deve funcionar como instrumento útil a incrementar relações

proveitosas entre indivíduo e meio ambiente, relações que devem propiciar a implementação

de valores constitucionais como a dignidade da pessoa humana e a solidariedade,

principalmente se considerada a responsabilidade do homem com as gerações futuras.

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8 “[...] a indiferença do homem em relação ao homem faz do ambiente social um ‘não lugar’, que segundo, revela a falta de identidade entre os seres humanos e a total incapacidade da sociedade em se tornar um meio de consideração e respeito recíprocos” (AUGE, 1994, p. 56).

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A FUNÇÃO SOCIAL NO DIREITO PRIVADO: UMA ANÁLISE CRÍTICA ACERCA

DAS EMPRESAS INDIVIDUAIS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA

LA FUNCIÓN SOCIAL EN EL DERECHO PRIVADO: UN ANÁLISIS CRÍTICO

ACERCA DE LAS EMPRESAS INDIVIDUALES DE RESPONSABILIDAD

LIMITADA

CÉSAR FIUZA

Doutor em Direito pela UFMG. Advogado e Consultor Jurídico. Professor de Direito Civil na PUCMG e na UFMG. Professor Titular na Universidade FUMEC. Professor Colaborador na UNIPAC. THIAGO PENIDO MARTINS Doutorando em Direito Privado pela PUCMG. Mestre em Direito Empresarial pelas Faculdades Milton Campos. Professor de Direito Privado em Cursos de Graduação e de Pós-graduação. Advogado e consultor jurídico. Procurador autárquico do Município de Belo Horizonte.

RESUMO: O estudo do Direito Privado sempre se preocupou precipuamente com a estrutura de seus institutos. Assim, o estudo dos contratos, das obrigações, da família, da empresa, da propriedade, da posse e até mesmo do ato ilícito, para citar apenas alguns deles, sempre partiu de seus elementos estruturais: sujeitos, objeto e forma. Há bem pouco tempo não era preocupação do jurista, o estudo da função, da finalidade, da utilidade desses institutos, do que deveriam se ocupar os sociólogos, cientistas políticos, economistas e psicólogos. O presente trabalho, portanto, longe de esgotar toda a temática, tem por desiderato apresentar considerações e contribuições sobre a funcionalização dos institutos do Direito Privado, especialmente do Direito de Empresa, demonstrando a necessidade de se aprofundar o estudo das empresas individuais de responsabilidade limitada, principalmente considerando que, se bem normatizadas e utilizadas, muito contribuirão para o promoção do desenvolvimento de toda a sociedade.

RESUMEN: El estudio del Derecho Privado siempre se preocupó con la estructura de sus institutos. Así que el estudio de los contratos, de las obligaciones, de la familia, de la empresa, de la propiedad, de la posesión y incluso del acto ilícito, siempre partió de sus elementos estructurales: sujetos, objeto y forma. Hay bien poco tiempo no era preocupación del jurista, el estudio de la función, de la finalidad, de la utilidad de esos institutos, de que deberían ocuparse los sociólogos, científicos políticos, economistas y psicólogos. El presente trabajo, por lo tanto, lejos de agotar toda la temática, tiene por objetivo presentar consideraciones y contribuciones sobre la funcionalización de los institutos del Derecho Privado, especialmente del Derecho de la Empresa, demostrando

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la necesidad de profundizarse el estudio de las empresas individuales de responsabilidad limitada, principalmente considerando que, si bien normativizadas y utilizadas, mucho contribuirán para la promoción del desarrollo de toda la sociedad. PALAVRAS-CHAVE: Direito; Privado; Função; Social; Empresa; Individual; Responsabilidade; Limitada. PALABRAS-LLAVE: Derecho; Privado; Función; Social; Empresa; Individual; Responsabilidad; Limitada.

1. INTRODUÇÃO

O estudo do Direito Privado sempre se preocupou precipuamente com a estrutura

de seus institutos. Assim, o estudo dos contratos sempre partiu de seus elementos

estruturais: sujeitos, objeto e forma. O mesmo ocorre em relação a vários outros

institutos, como a família, a empresa, a propriedade e até mesmo o ato ilícito, para citar

apenas alguns deles. Há bem pouco tempo não era preocupação do jurista, o estudo da

função, da finalidade, da utilidade desses institutos, do que deveriam se ocupar os

sociólogos, cientistas políticos, economistas e psicólogos.

A partir do final do século XIX, entretanto, esse método estruturalista começa a

ser questionado. Rudolph von Jhering lança o utilitarismo; surgem pensadores com ideias

as mais diversas, propugnando por uma visão não estruturalista do Direito.1 Tudo isto

coincide com o surgimento do Estado Social, preocupado com o bem-estar da sociedade,

o qual deveria ser objetivo do Direito. Assim começa o Direito a se funcionalizar.2 Mas,

que é funcionalização?

É estar em função de algo. No estudo do Direito, funcionalização significa que a

análise que o jurista fará de cada instituto deverá partir, sem dúvida, da estrutura, que

continua sendo importante, mas também levará em conta a função que o instituto exerce

para o bem do ser humano, o papel que um princípio ou uma regra desempenha no

interior de um sistema ou de uma estrutura. (AMARAL, 1998, p. 366) Cada instituto

jurídico deverá ser estudado em função do ser humano, em função da sociedade etc.

                                                                                                                         1 Fundamental é a obra de Norberto Bobbio: “Da estrutura à função”. 2 Atualmente, a ciência jurídica volta o olhar para a perspectiva da finalidade dos modelos jurídicos. Não há mais um interesse tão evidente em conceituar a estrutura dos institutos, mas em direcionar o seu papel e missão perante a coletividade, na incessante busca pela solidariedade e pelo bem comum. Enfim, a função social se dirige não só à propriedade, aos contratos e à família, mas à reconstrução de qualquer direito subjetivo, incluindo-se aí a posse, como fato social, de enorme repercussão para a edificação da cidadania e das necessidades básicas do ser humano. (FARIAS; ROSENVALD, 2007, p. 11)

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Neste contexto é que se fala em função social, função econômica, função repressiva,

função preventiva de uma norma ou de um instituto jurídico.

NETTO, ao tratar do tema, dá um bom exemplo dessa funcionalização.

Atualmente, mercê da força, no direito atual, das diretrizes constitucionais, é algo fora de dúvida que a utilização de um direito não pode se prestar a fins opostos àqueles que orientaram seu nascimento, nem tampouco podem colidir com princípios maiores, se em choque. (2003, p. 117)

Por exemplo, nas relações jurídicas de natureza consumerista, o produto

adequado, o qual o fornecedor está obrigado a fornecer, não é, apenas, aquele que cumpra

as normas técnicas pertinentes (estrutura). Vê-se que o direito atual vai além: para que o

produto seja escorreito, livre de vícios, ele deve ser adequado ao fim a que se propõe

(função). Funcionaliza-se, assim, inclusive o conceito de produto. (NETTO, 2007, p. 117)

A análise estrutural continua sendo importante. É fundamental determinar se as

partes contratantes são capazes, se o objeto contratual é lícito e se a forma como se celebrou o

contrato foi adequada. Mas o jurista não pode se limitar a isso. Observar se o contrato

cumpre, ou, por outro lado, se determinado fato ou ato não atenta contra sua função

econômico-social é também importantíssimo. BOBBIO dissertando a respeito das teorias

estrutural e funcionalista do direito, sustenta que:

Se aplicarmos à teoria do direito a distinção entre abordagem estruturalista e abordagem funcionalista, da qual os cientistas sociais fazem grande uso para diferenciar e classificar as suas teorias, não resta dúvida de que, no estudo do direito em geral (de que se ocupa a teoria geral do direito), nesses últimos cinquenta anos, a primeira abordagem prevaleceu sobre a segunda. Sem fazer concessões a rótulos, sempre perigosos por mais úteis que sejam, acredito ser possível afirmar com certa tranquilidade que, no seu desenvolvimento posterior à guinada kelseniana, a teoria do direito tenha obedecido muito mais a sugestões estruturalistas do que funcionalistas. Em poucas palavras, aqueles que se dedicaram à teoria geral do direito se preocuparam muito mais em saber “como o direito é feito” do que “para que o direito serve. (2007, p. 53)

Tecidas as considerações iniciais, imprescindível proceder à análise da

funcionalização dos principais institutos jurídicos do Direito Privado, com o desiderato de

avaliar de que modo e em que medida a funcionalização afeta a sua interpretação,

compreensão e aplicabilidade, a fim de, ao final, proceder à análise da funcionalização da

empresa, especialmente a partir de uma análise crítica acerca da inserção no ordenamento

jurídico brasileiro da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada.

 

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2. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

Quando se fala em função social, logo se pensa em função social da propriedade.

E, de fato, é importante seu estudo, até para se entender com mais clareza a função social

de outros institutos, como a empresa, por exemplo. Bem, o que se deve, afinal, entender

por função social da propriedade? Como já dito alhures, muito se fala sobre o assunto e

muito se fala mal. Com base na função social da propriedade invadem-se terras alheias,

destrói-se patrimônio alheio, agride-se o próximo física e moralmente. A mora estatal e

da própria sociedade civil em implementar uma melhor distribuição de riquezas estaria a

legitimar atos de violência contra o patrimônio e contra a pessoa (um está

inexoravelmente ligado à outra, em nossa cultura), tudo com fundamento na função social

da propriedade. Isso está correto? Por óbvio que não.

Conforme destaca MONTEIRO, ao dissertar sob a mudança de perspectiva

quanto à compreensão do direito de propriedade:

o homem, no passado, podia usar, gozar e dispor da coisa que lhe pertencesse, como melhor lhe aprouvesse, sem que fosse lícito opor qualquer restrição ao livre exercício desse direito. Todas as legislações, sem discrepância, proclamavam então a intangibilidade do domínio, verdadeiro resquício da propriedade quiritária, no direito romano, sinônima de direito absoluto, de propriedade absoluta. Gradativamente, porém, modificou-se essa concepção egoística e individualista, que logo se tornou obsoleta, graças às tendências fundamentais da civilização atual. (1998, p. 1)

A função social é função e princípio. Função é a finalidade de um instituto, de um

modelo jurídico, no caso a propriedade. Todo modelo jurídico compõe-se de estrutura e

função. A gênese e a forma estão na estrutura; a finalidade, o papel a ser cumprido, na função.

(FARIAS; ROSENVALD, 2006, p. 200) Por função social da propriedade entenda-se a

função que o dono deve atribuir às suas coisas, ao exercer seus direitos sobre elas,

basicamente, ao usar, ao fruir e ao dispor. Essa função deve ser, na medida do possível e

quando for o caso, útil à coletividade. Segundo BOBBIO (2007, p. 60), o Direito deixou

de ser essencialmente repressivo, para se tornar promocional.

Nesta ótica, o Estado não se preocupa tanto em sancionar condutas que firam a

estrutura do direito, ou condutas que atentem contra os interesses coletivos, mas, antes de

tudo, incentiva condutas úteis à coletividade. Para isso, impõe sanções positivas, com o

objetivo de estimular uma atividade, consistente em obrigação de fazer. (BOBBIO, 2007,

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p. 93) Mas qual seria a função social de uma camisa, de um relógio, ou mesmo de uma

casa? Teria o dono o dever de tornar esses bens úteis à coletividade, ao usá-los, ou deles

fruir ou dispor? Evidentemente que não. A função social da propriedade desses bens está

ligada à satisfação do próprio dono, que, além disso, não pode deles usar, fruir ou dispor

de modo a prejudicar ninguém, o que consistiria em abuso de direito ou em ato ilícito

stricto sensu.

Nesse sentido, imprescindíveis os preceitos legais contido no Código Civil, que

ao disciplinarem o instituto do abuso de direito, preceitua de forma expressa e

inequívoca, em seu art. 187, que também comete ato ilícito, passível de gerar

responsabilidade civil, o titular de um direito que ao exercê-lo, exceda manifestamente os

limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

É o reconhecimento de que todo e qualquer direito, inclusive aqueles elevados à condição

de direitos e garantias fundamentais pelo texto constitucional, não são absolutos, e seu

exercício encontra-se limitado pelo direito de terceiros e pelo respeito à ordem pública.

Assim, o Estado não deve influenciar ninguém a deixar uma casa inabitada, para

fins de especulação imobiliária. Esse proprietário está dispondo de seu imóvel de forma

inadequada, em malefício da coletividade; não de uma coletividade amorfa e sem face,

mas de todos aqueles que não tenham onde morar, por uma razão ou outra. Não que cada

um de nós tenha que carregar a cruz dos sem-teto, dos sem-terra, dos sem-emprego etc.

Não é nada disso. Ninguém tem culpa, se A, B ou C não tenham casa. Mas, se D, que tem

uma casa, deixa-a fechada e inutilizada, para especular, de uma certa forma, atenta contra

os direitos de quem não tenha onde morar, uma vez que os preços dos imóveis possam

tender a aumentar, exatamente pela baixa oferta.

Essa lógica do mercado não deve atentar contra a dignidade humana além do

necessário, num sistema capitalista razoavelmente saudável. Poder-se-ia falar em função

social de uma camisa ou de um par de sapatos? Seguramente, que, se função social há na

propriedade desses bens, estará voltada ao bem-estar do próprio dono. Aqui tampouco

importa a coletividade, a não ser na medida em que o dono possa prejudicar alguém ao

usar, fruir ou dispor de algum desses bens. Quando, então, a propriedade deverá estar

funcionalizada para o bem da coletividade? Sempre que isto for possível e razoável.

Se, por um lado, é difícil estabelecer critérios apriorísticos para se aferir se a

função social está ou não sendo cumprido, por outro lado, é possível estabelecer o que

não teria por base a função social. Com base na função social da propriedade não se pode

invadir terras alheias, destruir-se patrimônio alheio, agredir-se o próximo física e

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moralmente. A mora estatal e da própria sociedade civil em implementar uma melhor

distribuição de riquezas não legitima atos de violência contra o patrimônio e contra a

pessoa, com esteio na função social. Função social não é instrumento de distribuição de

riqueza, nem pode ser válvula de escape para quem odeie a riqueza alheia. Por outros

termos, o ódio à riqueza alheia não pode se amparar na função social, para fazer o mal,

atentando contra a pessoa e contra a propriedade, garantida constitucionalmente.

A propriedade da terra deve cumprir uma função social, ou seja, o dono, ao

exercer seus direitos deverá fazê-lo de forma a garantir seu próprio bem-estar, bem como

o de seus familiares, de seus empregados e da coletividade, se for o caso. Digo se for o

caso, porque pode-se tratar de um sítio de lazer, que não tenha nenhuma relação com o

bem social, a não ser o de gerar empregos e tributos. Sendo o caso, porém, a exploração

da terra deve cumprir uma função voltada ao bem-estar do dono e também da

coletividade, qual seja, frutificar, gerar alimentos, sem destruir o meio ambiente. Nesse

diapasão, o artigo 186 da Constituição da República estabelece alguns critérios que

podem ser adotados na avaliação se uma propriedade cumpre ou não a sua função social,

ao preceituar que:

Art. 186 - A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

E se a propriedade não estiver cumprindo sua função social? O que deverá ser

feito?

Em primeiro lugar, deve-se verificar se, de fato, a propriedade não esteja

cumprindo sua função social. Por exemplo, há certas culturas que exigem vastas

extensões de terra, como a soja, o trigo, o eucalipto, ou mesmo a criação de gado de

corte. Tudo isso se empreende muito melhor em grandes fazendas. Consequentemente, é

preconceituoso afirmar que todo latifúndio descumpre a função social da propriedade,

devendo ser desapropriado. Na verdade, cada caso concreto deve ser examinado por

quem entenda do assunto, diante dos critérios constitucionais, para se chegar a uma

conclusão correta.

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Frise-se que a análise deve ser feita por quem entenda do assunto. Seguramente

não será o Movimento das Donas de Casa, nem o Movimento dos Sem Terra, nem a

Ordem dos Advogados do Brasil, nem a Pastoral disso ou daquilo, tampouco a

Associação dos Catadores de Papel; serão técnicos com formação adequada em

engenharia, biotecnologia etc. É o seu expertise que conta para a solução. Se a conclusão

for a de que a propriedade não cumpre sua função social, que deve ser feito?

Logicamente, a resposta não poderá ser a invasão ou a violência, sob o pretexto do

pretenso exercício do direito fundamental de liberdade de manifestação.

Uma sociedade minimamente civilizada não pode aceitar a violência como

resposta, sob pena de perder os parâmetros e ter que aceitá-la em toda situação. Se

aceitarmos a violência de um movimento social, que invada imóveis, porque o Estado

não cumpre o seu papel e não garante um mínimo de bens a todos, então teremos que

aceitar a invasão de um supermercado por quem se diga faminto, ou o assalto a um

banco, por quem se diga desempregado e sem dinheiro e assim por diante. A verdade é

que a Lei dispõe de instrumentos adequados, como o parcelamento e edificação

compulsórios, a tributação progressiva (aumento do valor dos tributos que incidam sobre

o imóvel), a multa e outras penalidades, até a desapropriação ou mesmo a perda do bem

(se estiver sendo utilizado para a exploração de plantas psicotrópicas, por exemplo).

Se os instrumentos legais não são suficientes, há que discuti-los; jamais estimular

a violência como resposta. Função social não é instrumento de distribuição nem de

extermínio da riqueza. O direito de acumulação de bens é direito fundamental, por mais

que o detestem muitos. O ódio à riqueza alheia e ao acumulo de capitais é até um direito,

desde que não ultrapasse os limites da paz social e da livre e pacífica expressão do

pensamento.

Resumindo, ao exercer o domínio, o dono deverá funcionalizar a propriedade ao

seu próprio bem-estar e, sendo o caso, ao bem-estar de seus empregados, de seus

familiares e da coletividade, respeitando a adequada utilização dos recursos naturais e os

direitos trabalhistas daqueles que porventura trabalham na exploração da propriedade.

Não uma coletividade amorfa, sem face, mas a coletividade dos consumidores, dos

trabalhadores, dos locatários etc. A função social consiste numa série de encargos, ônus,

estímulos, deveres e direitos que remetem o proprietário a exercer seus direitos em prol

de seu próprio bem e, se for o caso, do bem comum. (FARIAS; ROSENVALD, 2006, p.

208)

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Como se disse acima, função social é função e princípio. Que se deve entender

por princípio da função social da propriedade? O princípio da função social da

propriedade é a norma jurídica que servirá de fundamento à aplicação das sanções legais

para as hipóteses em que a função social não estiver sendo cumprida. É a norma que dará

fundamento a soluções de problemas relacionados ao descumprimento da função social.

Assim, é com base no princípio da função social da propriedade, que o município

poderá impor o parcelamento e edificação compulsórios, a adoção de Imposto Predial e

Territorial Urbano com alíquotas majoradas ou progressivo no tempo para quem seja

proprietário de um lote vago. É com base no princípio da função social da propriedade,

que a União poderá desapropriar terras para fins de reforma agrária. É com base no

princípio da função social que se impõe multa a quem ouve o som do carro em volume

muito alto, atentando contra o sossego, a saúde auditiva e contra o bom gosto dos

circundantes (função social do aparelho de som – dar prazer ao dono e não incomodar os

circunvizinhos).

É importante ressaltar, no entanto, que o princípio da função social da propriedade

não legitima a violência, a invasão de terras, o furto, o roubo, a apropriação indébita; com

base nele, o juiz não está legitimado a fazer caridade, principalmente às custas alheias. O

princípio da função social deverá dar supedâneo às sanções legais pertinentes aos casos em

que o dono, ao exercer seus direitos, não conferir à propriedade sua adequada função, qual

seja, promover seu próprio bem-estar e, se for o caso, o de seus familiares, de seus

empregados e da coletividade; respeitar o próximo, individualmente ou coletivamente;

respeitar o meio ambiente; recolher os tributos devidos etc.

3. FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE

Assim como a propriedade, também a posse cumpre uma importante função

social. Normalmente, quando se fala em função social da propriedade, já se está falando

em função social da posse, afinal esta é a aparência daquela. Todavia, em muitos casos, a

posse vem desacompanhada da propriedade, como é o caso do locatário, do usufrutuário,

do devedor fiduciante, do possuidor, dentre outros. Especialmente nesses casos, deve-se

falar em função social da posse, como instrumento de promoção da dignidade humana.

E nesse sentido que a posse ganha autonomia em relação à propriedade, como

instrumento de promoção da vida digna. Mais uma vez aqui, pensemos na situação de

milhares de pessoas que não têm casa própria; são locatários, possuidores de imóvel

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residencial alheio. Sua posse deve ser protegida, ainda que contra o próprio dono.3 Posse,

nesse caso, pode significar vida digna. Deve-se relembrar, todavia, que função social não

é instrumento de distribuição nem de extermínio de riqueza.

De acordo com ALBUQUERQUE:

A função social da posse como princípio constitucional positivado, além de atender à unidade e completude do ordenamento jurídico, é exigência da funcionalização das situações patrimoniais, especificamente para atender as exigências de moradia, de aproveitamento do solo, bem como aos programas de erradicação da pobreza, elevando o conceito da dignidade da pessoa humana a um plano substancial e não meramente formal. É forma ainda de melhor se efetivar os preceitos infraconstitucionais relativos ao tema possessório, já que a funcionalidade pelo uso e aproveitamento da coisa juridiciza a posse como direito autônomo e independente da propriedade, retirando-a daquele estado de simples defesa contra o esbulho, para se impor perante todos. (2002, p. 40)

Há quem odeie a riqueza alheia e procure pôr fim a ela, justificando-se pela

função social. Assim, o juiz não pode deixar de decretar o despejo de um locatário

inadimplente com base na função social da posse. Isso não é função social, mas caridade

cristã, que o juiz pode fazer, com seus próprios recursos, se quiser. Mesmo o despejo

imotivado não deixará de ser decretado com base na função social da posse. Função

social não é nada disso. Vamos entendê-la melhor.

A própria Lei 8.245/91 nos dá bons exemplos: o locatário inadimplente poderá

evitar o despejo se purgar a mora; mesmo o locatário despejado terá algum tempo para se

retirar do imóvel; o despejo de hospitais e escolas tem tratamento muito diferenciado; o

próprio despejo na locação residencial é diferente do despejo nas locações não

residenciais. Todas essas regras encontram fundamento na função social da posse.

Pergunta-se, poderá o juiz, com base na função social da posse, eventualmente, dilatar o

prazo de restituição do imóvel, numa locação residencial?

                                                                                                                         3 Nesse sentido: “Por função social da propriedade há de se entender o princípio que diz respeito à utilização dos bens, e não à sua titularidade jurídica, a significar que sua força normativa ocorre independentemente da específica consideração de quem detenha o título jurídico de proprietário. Os bens, no seu sentido mais amplo, as propriedades, genericamente consideradas, é que estão submetidas a uma destinação social, e não o direito de propriedade em si mesmo. Bens, propriedades são fenômenos da realidade. Direito – e, portanto, direito da propriedade – é fenômeno do mundo dos pensamentos. Utilizar bens, ou não utilizá-los, dar-lhes ou não uma destinação que atenda aos interesses sociais, representa atuar no plano real, e não no campo puramente jurídico. A função social da propriedade (que seria melhor entendida no plural, ‘função social das propriedades’), realiza-se ou não, mediante atos concretos, de parte de quem efetivamente tem a disponibilidade física dos bens, ou seja, do possuidor, assim considerado no mais amplo sentido, seja ele titular do direito de propriedade ou não, seja ele detentor ou não de título jurídico a justificar sua posse.” (ZAVASCKI, 2002, p. 844)

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Neste caso, desde que não se exceda muito (dobre ou triplique o prazo, por

exemplo), adotando uma posição paternalista, e desde que as circunstâncias o permitam,

é perfeitamente possível. O princípio da função social da posse pode servir para

flexibilizar as regras da Lei 8.245/91. Mas é só isso. Uma coisa é dilatar um pouco o

prazo do despejo, outra coisa totalmente diferente e inadmissível é deixar de decretar o

despejo. Não confundamos função social com caridade cristã. Se o juiz quiser praticar

caridade cristã, que a pratique às suas próprias expensas.

Sob outra perspectiva, pode-se dizer que a posse irá cumprir a sua função social

quando o próprio ordenamento lhe a atribui a condição de meio para a aquisição da

propriedade mediante o reconhecimento do usucapião e, consequentemente, para a

promoção da regularização fundiária.4 Nesse sentido, o art. 1.238, do Código Civil,

preceitua que aquele que por 15 anos ininterruptos e sem oposição, possuir como seu um

imóvel, com animus domini, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e

boa-fé, podendo, neste caso, requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual

servirá de título para o registro no Cartório de Imóveis.

O Código Civil, reconhecendo a importância da função social da posse,

especialmente quando a posse for transformada em instrumento para a promoção do

direito de moradia do possuidor ou utilizada de forma a garantia a sua produtividade,

estabelece no parágrafo único, do art. 1.238, o instituto do usucapião extraordinário,

prescrevendo que o prazo de 15 anos de posse ininterrupta e sem oposição fica reduzido a

10 anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele

realizado obras ou serviços de caráter produtivo. Destaque-se que os prazos de exercício

da posse acima descritos são reduzidos em 5 anos, quando os possuidores encontram-se

alicerçados em justo título e a exercerem de boa-fé, conforme preceitos legais contidos no

art. 1.242 do Código Civil, que disciplina o usucapião ordinário.

O Código Civil, acompanhando os preceitos constitucionais contidos no art. 191

da Constituição da República, também disciplina outras duas situações jurídicas em que

aquele que promove a função social da posse pode requerer a aquisição da propriedade e,

consequentemente, promover a própria função da propriedade. São os casos do usucapião

                                                                                                                         4 Conforme preleciona Carlos Roberto Gonçalves: “Das ocupações irregulares nos grandes conglomerados urbanos. A invasão de áreas, a falta de fiscalização, a invasão de mananciais, o medo da perda da posse por famílias de baixa renda, a falta de um ‘papel’ que lhes dê legitimidade sobre a posse, a venda de ‘propriedades’, barracos e construções malfeitas, tudo a gerar um conflito social sem precedentes... O que mais querem os moradores é a regularização da ocupação. Para tanto, agora, a lei veio a trazer alguns instrumentos de impacto urbano que podem envolver a legitimação da posse, pacificando a sociedade e dando às grandes cidades condições de desenvolvimento saudável.” (GONÇALVES, 2002, p. 253.)

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especial rural e usucapião especial urbano, as quais se encontram disciplinados,

respectivamente, nos arts. 1.239 e 1.240. De acordo com os preceitos legais contidos no

art. 1.239, do Código Civil, aquele que, possua como sua, por 5 anos ininterruptos, sem

oposição, área de terra em zona rural não superior a 50 hectares, tornando-a produtiva por

seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.

Em idêntico sentido, de acordo com os preceitos legais contidos no art. 1.240, do

Código Civil, aquele que possuir, como sua, área urbana de até 250 metros quadrados,

por 5 anos ininterruptos e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família,

adquirir-lhe-á a propriedade, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou

rural. Ora, em ambos os casos de usucapião especial, o ordenamento jurídico confere

tratamento privilegiado, mediante a redução do prazo de exercício da posse, àquele que

ao exercer a posse cumpre a sua função social ao destiná-la a sua moradia e de sua

família, bem como àquele torná-la produtiva.

Outra situação jurídica em que a promoção da função social da posse é tutelada e

privilegiada pelo ordenamento jurídico é aquela prevista no art. 1240-A, do Código Civil,

de acordo com o qual, aquele que exercer, por 2 anos ininterruptos e sem oposição, a

posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250 m², cuja propriedade

divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que tenha abandonado o lar, utilizando-o para

sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á a propriedade integral, desde que não seja

proprietário de outro imóvel urbano ou rural. Trata-se de hipóteses que o ordenamento

jurídico tutela a família que permanece na posse do imóvel familiar, nos casos de

separação de fato decorrente de abandono do lar conjugal.

Há que destacar os preceitos legais contidos no art. 1.255, do Código Civil, que,

inquestionavelmente, também conferem tratamento especial ao possuidor de boa-fé que

promover a função social da posse, semeando, plantando ou edificando em terreno alheio,

ao garantir-lhe o direito a ser indenizado pelos dispêndios realizados. E o referido

dispositivo legal vai muito além, ao preceituar que, caso a construção ou a plantação

exceda consideravelmente o valor do terreno, fica garantido ao possuidor de boa-fé o

direito de aquisição da propriedade do solo, desde que paga ao proprietário anterior a

indenização fixada judicialmente, se não houver acordo.

Por fim, saliente-se o conteúdo do § 4º, do art. 1.228, do Código Civil, segundo o

qual o proprietário poderá ser privado de seu imóvel caso este consista em extensa área e

estiver em posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número

de pessoas, desde que estas pessoas nela houverem realizado, em conjunto ou

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separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico

relevante. Trata-se de hipótese em que o ordenamento jurídico expressamente protege a

coletividade de pessoas que promove a função social da posse em detrimento do

proprietário leniente ou desidioso.

Os dispositivos legais acima referidos encontram-se em plena consonância com

os preceitos constitucionais contidos no inciso XXIII, do art. 5º, que constitucionaliza a

função social como importante baluarte do ordenamento jurídico; com os preceitos

constitucionais contidos no inciso IV, do art. 1º, e nos arts. 170 e 193, que preveem como

um dos fundamentos do Estado Brasileiro e da ordem social, a promoção dos valores

sociais do trabalho; bem como com os preceitos contidos no art. 6º, que estabelecem o

trabalho e a moradia como direitos sociais a serem garantidos a todos, indistintamente,

para a constituição de uma sociedade livre, justa e solidária.5

4. FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS E OBRIGAÇÕES

Para se compreender a função social da empresa, além do estudo da função

social da propriedade e da posse, é fundamental o estudo da função social das obrigações,

principalmente dos contratos.

O mundo moderno é o universo dos contratos e das obrigações deles decorrentes.

Celebramos contratos desde o momento em que nos levantamos até irmos dormir. Se o

fenômeno contratual deixasse de existir, também o deixaria a nossa sociedade. Nesse

universo, destacam-se três funções primordiais dos contratos: a econômica, a pedagógica

e, relacionada às outras duas, a função social.

A função econômica dos contratos é variada. Os contratos auxiliam no processo

de circulação da riqueza. É por meio de contratos que os produtos circulam pelas várias

etapas da produção: da mina à fábrica; desta à loja, chegando às mãos do consumidor. Os

contratos não só fazem circular as riquezas, mas ajudam a distribuir a renda e geram

empregos. É por meio deles que satisfazemos nossas necessidades.

                                                                                                                         5 Nesse sentido: “Os valores fundamentais e os objetivos do Estado Brasileiro previstos na Constituição de 1988 visam sobretudo elevar o conceito de cidadania, através da valorização da pessoa humana. Evidentemente que tais valores projetam-se para todos os domínios jurídicos, inclusive para o direito privado, como vimos, e, consequentemente, informam o instituto da posse, evidenciando ainda mais o seu aspecto social imanente. Justamente em um sistema jurídico que tem por fim a pessoa humana, daí resultando a natureza teleológica dos argumentos sistemáticos, não se pode deixar de ter por incluída implicitamente, como princípio constitucional positivado, a função social da posse.” (ALBUQUERQUE, p. 40-41)

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Tendo em vista a função pedagógica, contrato é meio de civilização, de educação

do povo para a vida em sociedade. Aproxima os homens, abate suas diferenças. As

cláusulas contratuais dão aos contratantes noção de respeito ao outro e a si mesmos, visto

que, afinal, empenharam sua própria palavra. Por meio dos contratos, as pessoas

adquirem noção do Direito como um todo, pois, em última instância, um contrato nada

mais é do que miniatura do ordenamento jurídico, em que as partes estipulam deveres e

direitos, através de cláusulas, que passam a vigorar entre elas. Ora, o ordenamento legal

nada é além de conjunto de normas abstratas, destinado a todo o grupo social. Por meio

dos contratos, as pessoas aprendem a lutar pelo Direito como um todo, uma vez que,

lutando por seus direitos contratuais, adquirem a visão necessária do funcionamento do

ordenamento jurídico. (JHERING, 1992, p. 63)

A função social dos contratos é como que uma síntese das duas funções

anteriores. Os contratos são fenômeno econômico-social. Sua importância, tanto

econômica quanto social, salta aos olhos. São meio de circulação de riquezas, de

distribuição de renda, geram empregos, promovem a dignidade humana, ensinam as

pessoas a viver em sociedade, dando-lhes noção do ordenamento jurídico em geral,

ensinam as pessoas a respeitar os direitos dos outros. Esta seria a função social dos

contratos: promover o bem-estar e a dignidade dos homens, por todas as razões

econômicas e pedagógicas acima descritas. A função não serve apenas para limitar o

exercício dos direitos, mas antes de tudo para promover a dignidade humana. Como

resume TEPEDINO:

À luz do texto constitucional, a função social torna-se razão determinante e elemento limitador da liberdade de contratar, na medida em que esta só se justifica na persecução dos fundamentos e objetivos da República acima transcritos. Extrai-se daí a definição da função social do contrato, entendida como o dever imposto aos contratantes de atender – ao lado dos próprios interesses individuais perseguidos pelo regulamento contratual – a interesses extracontratuais socialmente relevantes, dignos de tutela jurídica, que se relacionam com o contrato ou são por ele atingido. Tais interesses dizem respeito, dentre outros, aos consumidores, à livre concorrência, ao meio ambiente, às relações de trabalho. (2002, p. XXXII)

É importante ressaltar, como o faz TEPEDINO, que função social dos contratos não

significa dar esmolas, não significa legitimar o mau pagador, não significa que o juiz possa

fazer caridade, principalmente às custas alheias, ou seja, do outro contratante; significa

sobretudo – ao lado dos próprios interesses individuais – atender a interesses outros, quando

pertinentes, tais como respeitar os direitos do consumidor, não atentar contra a livre

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concorrência, contra o meio ambiente e contra as relações de trabalho, além de recolher os

tributos devidos, dentre outros.

As relações obrigacionais são instrumentos de movimentação da cadeia econômica,

de geração e de circulação de riquezas. É por seu intermédio que a economia se movimenta.

Elas geram empregos, criam oportunidades para a promoção do ser humano. Nisto reside sua

função social. É com base no princípio da função social que muitos problemas, por exemplo,

na esfera contratual serão solucionados. Assim, que solução deverá ser adotada no caso de a

execução de um contrato levar uma empresa à falência? Ora, não é objetivo de nenhum

contrato levar qualquer das partes a tal situação, gerando desemprego e pobreza. Assim, a

execução do contrato em tela pode ser processada não do modo tradicional, mas de modo a

evitar a falência da empresa. Esta solução só é viável diante do princípio da função social dos

contratos.

Um subprincípio importante da função social, é o princípio da conservação ou da

preservação do vínculo. O vínculo obrigacional, na medida do possível, sempre deverá ser

mantido. Assim, numa ação anulatória, preferencialmente deve ser anulada a parte defeituosa,

não o contrato inteiro. A revisão será sempre preferível à resolução, salvo se não for possível

a preservação do vínculo. Imaginemos um exemplo: uma empresa comercializa certo produto.

Em determinado momento, ocorrem circunstâncias imprevisíveis que levam os compradores

do produto a pedirem a revisão de seus contratos. Se a única alternativa for a resolução dos

contratos com a restituição do produto e do preço já pago, a empresa fornecedora poderá ir à

falência, bem como o próprio fabricante, gerando desemprego e mais quebras. É óbvio,

portanto, que, com base no princípio da conservação dos contratos, a solução no exemplo

acima, não poderá ser a simples resolução dos contratos.

A obrigatoriedade contratual encontra seus fundamentos na Teoria Preceptiva,

segundo a qual as obrigações oriundas dos contratos obrigam não apenas porque as partes as

assumiram, mas porque interessa à sociedade a tutela da situação objetivamente gerada, por

suas conseqüências econômicas e sociais.6 A esfera contratual é espaço privado, em que as

partes, nos limites impostos pela lei, podem formular preceitos (normas) para regular sua

conduta. A obrigatoriedade contratual também se baseia no princípio da confiança. Baseado

no valor social da aparência, (BETTI, 1959, passim) o contrato vincula por razões sociais, ou

                                                                                                                         6 Conforme preleciona REALE “o contrato é um elo que, de um lado, põe o valor do indivíduo como aquele que o cria, mas, de outro lado, estabelece a sociedade como o lugar onde o contrato vai ser executado e onde vai receber uma razão de equilíbrio e medida.” (1986, p. 10)

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seja, as partes têm que ter a segurança ou a confiança de que o contrato será cumprido,

mesmo que à força.

O princípio da função social é, normalmente, invocado em benefício de terceiros. Tal

é o caso do exemplo dado acima, em que o princípio teve por finalidade proteger uma fonte

de empregos e de riqueza. No entanto, é possível visualizar alguns casos em que o princípio

da função social pode ser invocado em favor de uma das partes. Exemplo seria um contrato de

financiamento da casa própria, cujas prestações se elevassem desmesuradamente, tornando-se

impagáveis. Ora, o contrato de mútuo para a aquisição ou construção da moradia desempenha

relevante função social, promovendo a dignidade humana. Lembremo-nos de que a moradia é

garantia constitucional. Consequentemente, a elevação absurda de suas prestações, tornando-o

impagável, contraria sua função social, podendo o princípio ser invocado, aqui, não em

benefício de terceiros, mas em benefício direto do próprio mutuário.

O princípio da função social não deve ser invocado levianamente. Seguramente, não

serve para proteger o devedor inadimplente, sempre e em qualquer circunstância; não serve

para proteger o mais fraco, sempre e em qualquer circunstância. A funcionalização do Direito

não é panaceia para a solução de todo problema difícil. Função social não é instrumento de

distribuição nem de extermínio da riqueza. O direito de acumulação de bens é direito

fundamental, por mais que o detestem muitos. Infelizmente, aqui tampouco há uma receita

fácil para a aplicação do princípio. Cada caso é único e há de ser interpretado racionalmente,

segundo a lógica do discurso, de modo a, no fim das contas, convencer o maior número

possível de pessoas.

Baseando-se nesta visão preceptiva das relações contratuais é que surgem relevantes

discussões jurídicas acerca da tutela externa da relação contratual, pós-eficácia das

obrigações, deveres laterais de conduta, dentre outras. Basicamente, todas essas teorias tem

por objetivo garantir e promover a efetividade dos contratos, mediante a proteção dos

interesses dos contratantes e da coletividade. A partir da teoria da tutela externa do crédito,

procedendo a uma releitura do princípio da relatividade contratual, sustenta-se a existência de

um dever de abstenção atribuível a todos aqueles que não participam da relação jurídica

contratual de não praticarem atos que possam interferir ilicitamente no contrato com o

desiderato de destruí-lo ou impedir que este produza os efeitos e consequências desejadas

pelas partes contratuais, bem como a possibilidade de responsabilização daquele que

desrespeita o dever de abstenção, compreensão que só é possível a partir do momento em que

o contrato deixa de ser visto como uma relação jurídica de natureza individual para ser

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compreendido como um fenômeno social, de interesse da coletividade. 7 Conforme

prelecionam FARIAS e ROSENVALD:

Com esteio na concepção social do contrato (art. 421 do CC) e na quebra do dogma da relatividade, é possível efetuar uma distinção entre a eficácia das obrigações contratuais e sua oponibilidade. A eficácia das obrigações mantém-se restrita às partes, respeitando-se o princípio da relatividade contratual, pois as prestações de dar, fazer e não fazer só poderão ser exigidas reciprocamente dos contratantes. Porém o princípio da função social condiciona o princípio da liberdade contratual de terceiros, pois torna o contrato oponível erga omnes. Toda a coletividade tem o dever de abster-se de entabular negócios jurídicos que comprometam ou perturbem a realização de obrigações anteriormente assumidas entre sujeitos distintos. A oponibilidade dos contratos traduz se, portanto, em um dever jurídico coletivo de abstenção – semelhante ao tradicionalmente reconhecido aos direitos reais -, atribuível a qualquer um que conheça o conteúdo de um contrato, embora dele não seja parte. A distinção entre a eficácia das obrigações e sua oponibilidade é sugestiva, tanto na hipótese do terceiro ofensor como na do terceiro ofendido pela relação contratual. Sugere que o direito de crédito, como qualquer direito subjetivo, conduz a idéia de exclusividade da atuação de um titular na atuação de um bem (crédito), mediante a cooperação do devedor. Terceiros não podem ser credores ou devedores de prestações em contratos de que não foram partes. Todavia, eles podem ser credores e devedores de deveres de conduta – sobretudo de proteção -, pois a complexidade de qualquer obrigação exige que, no processamento da relação jurídica, as partes não possam lesar a sociedade ou por elas ser lesadas. Há uma via de mão dupla que demanda um atuar dos contratantes para o bem comum, assim como um agir da sociedade que não sacrifique o bem individual, considerado solidário em relação aos bens dos demais. (2007, p. 60-61)

Por sua vez, a pós-eficácia das obrigações, alicerçada na função social do

contrato e na boa-fé, exigiria que os contratantes, mesmo depois de extinta relação

contratual, se abstenham de praticar qualquer conduta que possa despojar ou reduzir as

vantagens contratuais auferidas pelo outro sujeito contratual. CORDEIRO, ao dissertar

sobre a pós-eficácia das obrigações, aduz que:

A idéia da sobrevivência dos deveres acessórios é a de que ao Direito repugna que o sentido das obrigações seja desvirtuado por cumprimentos vazios ou outras fórmulas chicaneiras ou a que, a coberto das obrigações, sejam infligidos danos às partes. Se, depois da extinção das obrigações, mas mercê das circunstâncias por ela criadas, surgirem ou se mantiverem condições que, na sua vigência, podem motivar a constituição de deveres acessórios, eles mantêm-se. As razões de busca de saídas jurídicas materiais que levam, independentemente da vontade das partes, a admitir deveres acessórios durante a vigência da obrigação são sobejamente fortes para os impor, depois da extinção.(1991, p. 181)

                                                                                                                         7 Em igual sentido: “O credor não pode, é certo, exigir a prestação devida, senão do obrigado. Mas todo o terceiro que tivesse conhecimento da relação creditória seria (juridicamente) obrigado a respeitá-la, não lhe sendo lícito induzir o devedor a faltar ao cumprimento, celebrar com ele negócio que o impedisse de cumprir, nem destruir ou danificar a coisa devida.” (VARELA, 2000, p. 175-176)

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Nesse diapasão, verifica-se que as relações contratuais encontram-se cada vez

mais funcionalizadas, estando informadas pelos princípios da função social, da boa-fé

objetiva e do equilíbrio contratual, os quais exigem dos contratantes muito mais do que a

mera observância das cláusulas contratuais e muito mais que mera a satisfação de seus

interesses individuais. O contrato, enquanto importante instrumento de transferência de

riquezas e de desenvolvimento social, passa a ser importante não só para os contratantes,

mas para toda a coletividade, razão pela qual todos devem cooperar para o seu adequado

adimplemento.

5. FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA: UMA ANÁLISE CRÍTICA ACERCA DAS

EMPRESAS INDIVIDUAIS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA

Assim como a propriedade, a posse e o contrato, a empresa também deve

cumprir uma função social. A empresa, sem sombra de dúvidas possui uma relevante

função social uma vez que é responsável pela promoção da produção e circulação de bens

e serviços no mercado, pela geração de riquezas, renda, empregos, pelo pagamento de

tributos aos cofres públicos, enfim, por contribuir para o desenvolvimento econômico,

social e cultural da comunidade na qual encontra-se inserida. Para tanto, deverá o

empresário, ao organizar suas atividades empresariais, deverá respeitar as diversas

normas jurídicas que regulamentam a utilização dos fatores de produção, tais como as

normas trabalhistas, urbanísticas, ambientais, concorrenciais, consumeristas, protetivas

dos direitos autorais, dentre inúmeras outras.

A importância que assume a empresa no contexto da atual sociedade, decorrente

do relevante papel social por ela desempenhado, pode, inclusive, ser percebida quando

diversos dispositivos legais corporificam o princípio de preservação da empresa e de sua

função social, tal como ocorre no Código Civil, na Lei das Sociedades Anônimas, na Lei

de Falência e Recuperação de Empresas, no Código da Propriedade Industrial. O próprio

texto constitucional, reconhecendo a importância das empresas, especialmente aquelas de

menor dimensão, preceitua a necessidade de tratamento diferenciado e favorecido para as

microempresas e empresas de pequeno porte, ao estabelecer, por exemplo, em seu artigo

179, a necessidade de que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios a elas,

tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las, mediante a simplificação de

suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou, inclusive,

mediante a eliminação ou redução destas obrigações.

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Consciente de que, no contexto econômico da sociedade brasileira, a empresas

de menor dimensão e capital são responsáveis pela geração de inúmeros empregos e,

diante da inexistência no ordenamento jurídico brasileiro da permissão para constituição

de sociedades unipessoais, exceto naquelas situações transitórias disciplinadas pelo

Código Civil, fato que acabava por conduzir os empresários a constituição sociedades de

fachada, nas quais um dos sócios detém a quase totalidade do capital social e, o outro,

montante quase insignificante, atuando como “sócio de fachada”, “laranja” ou “testa-de-

ferro”, o legislador ordinário, objetivando eliminar essa indesejável realidade, editou a

Lei Federal n.º 12.441/11, criando a figura da empresa individual de responsabilidade

limitada.

A Lei Federal n.º 12.441/11 acrescentou ao rol da pessoas jurídicas de Direito

Privado as empresas individuais de responsabilidade limitada (EIRELI). O que é isso? As

atividades empresariais eram, tradicionalmente, exercidas pelas sociedades empresárias

(empresas coletivas) e pelas pessoas físicas (empresas individuais), estas em seu próprio

nome, por sua conta e risco, sendo ilimitada sua responsabilidade. Assim, em caso de

falência, todo o patrimônio da pessoa física (empresa individual), estivesse ele afetado à

atividade empresarial ou não, era arrecadado pelos credores. Diante deste novo marco

legislativo, as pessoas físicas podem registrar-se na Junta Comercial como empresa

individual de responsabilidade limitada (EIRELI). Com isso, em caso de falência, sua

responsabilidade se limita ao capital efetivamente destinado à atividade empresarial. Seu

patrimônio particular, não afetado à empresa, não poderá ser arrecadado pelos credores,

salvo as exceções legais.

Na década de 80, no governo Figueiredo, falou-se na criação da EIRELI, como

parte do Programa Nacional de Desburocratização, sob o comando do Ministro da

Desburocratização, Hélio Beltrão. O tema foi abortado por questões fiscais. Nos anos 90,

no governo Collor, a empresa individual de responsabilidade limitada retornou à pauta,

na esfera do Programa Federal de Desregulamentação. A idéia, obviamente, era a de

permitir ao empresário individual exercer suas atividades, sem colocar em risco seu

patrimônio pessoal, não afetado à empresa. Beneficiava, assim, as pessoas físicas.

Também o antigo anteprojeto da nova Lei das Sociedades Limitadas, coordenado por

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Arnoldo Wald, continha proposta de criação da empresa individual de responsabilidade

limitada.8

A empresas individuais de responsabilidade limitada, diga-se de passagem, está

presente em diversos países, como França, Espanha, Portugal, Alemanha, Bélgica, Reino

Unido, Países Baixos e Dinamarca. Entre nós, o Chile a adotou.9 Nossa lei não está,

porém, isenta de questionamentos. O primeiro deles diz respeito ao próprio nome. O

melhor seria “empresário individual de responsabilidade limitada”, uma vez que empresa

é a atividade exercida pelo empresário, seja ele pessoa física (empresário individual) ou

jurídica (sociedade empresária). O segundo é mais sério: seria possível à pessoa jurídica

ser empresária individual de responsabilidade limitada?

A resposta que daria de início é negativa. O objetivo da lei me parece ser o de

conferir ao empresário individual, portanto, pessoa física, a possibilidade de exercer suas

atividades empresariais, sem comprometer seu patrimônio particular, não afetado à

empresa. A responsabilidade desse empresário individual seria, assim, limitada ao capital

afetado à empresa. A responsabilidade das sociedades empresárias já, há muito, pode ser

limitada, com regulamentação própria. Não haveria razão para uma sociedade empresária

adotar a forma de empresa individual de responsabilidade limitada, a não ser que se

reduzisse a um único sócio, quando, então, deixaria de ser sociedade.

O próprio Código Civil só admite a sociedade unipessoal, pelo prazo 180 dias,

quando se reduzir a um só sócio, após o que ela se dissolve (art. 1.033, IV). Até a criação

da empresa individual de responsabilidade limitada, vindo uma sociedade a se reduzir a

um só sócio, ou bem este conseguia um novo parceiro em 180 dias, ou bem a sociedade

se extinguia. Com a empresa individual de responsabilidade limitada, é possível que este

sócio adote esse novo formato. É o que deixa claro o parágrafo terceiro, do artigo 980-A,

do Código Civil, ao dispor que “a empresa individual de responsabilidade limitada

também poderá resultar da concentração das quotas de outra modalidade societária num

único sócio, independentemente das razões que motivaram tal concentração”.

O referido dispositivo legal, contudo, propicia algumas dúvidas. A primeira diz

respeito à menção a “outra modalidade societária”. Por que outra modalidade societária?

A empresa individual de responsabilidade limitada seria, por acaso, uma modalidade

                                                                                                                         8 Parecer do relator do Projeto de Lei da Câmara n. 18 de 2011, Senador Francisco Dornelles. Disponível em: http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/91400.pdf. Acesso em: 03 mar 2012. 9 Parecer do relator do Projeto de Lei da Câmara n. 18 de 2011, Senador Francisco Dornelles. Disponível em: http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/91400.pdf. Acesso em: 03 mar 2012.

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societária? Seria ela uma sociedade unipessoal, como querem alguns? Particularmente,

não esposo essa opinião. A empresa individual de responsabilidade limitada é um

empresário individual de responsabilidade limitada. Essa é a grande novidade: ser

possível a um empresário individual, a partir de agora, limitar sua responsabilidade ao

capital afetado ao exercício da empresa. Antes da empresa individual de responsabilidade

limitada isso só era possível às sociedades. Por que, então, a menção a “outra modalidade

societária”? Má redação do texto legal, pura e simplesmente. Aliás, isso ocorre a miúde

em nosso País, para nossa vergonha.10

O próprio Código Civil contém inúmeros exemplos. Esse mesmo § 3º, do art.

980-A, do Código Civil, possui outra impropriedade linguística, já em sua última oração:

emprega-se o pretérito perfeito do indicativo do verbo motivar, quando se deveria

obrigatoriamente empregar o subjuntivo (“razões que motivaram”, quando o correto seria

“razões que tenham motivado”). Se em outros países, a empresa individual de

responsabilidade limitada é forma societária, no Brasil, não acreditamos que seja. O

espírito da lei não foi o de criar um novo modelo de sociedade (unipessoal); foi tão

somente o de possibilitar ao empresário individual (pessoa física) limitar sua

responsabilidade no exercício da empresa.

A segunda dúvida que suscita o § 3º, do art. 980-A, do Código Civil, é a

seguinte: a sociedade unipessoal que adotar a forma de empresa individual de

responsabilidade limitada poderá continuar sendo a mesma sociedade? Por outros termos,

poderá continuar mantendo o mesmo nome e o mesmo estatuto ou contrato social? A

resposta é negativa. De acordo com o § 1º, do art. 980-A, do Código Civil, o nome do

empresário deverá ser seguido do signo “EIRELI”, após a firma ou denominação. Poderia

ser o caso de a antiga denominação ser a seguinte “Sociedade para o Progresso Ltda.”. O

nome da empresa individual de responsabilidade limitada seria, então, “Sociedade para o

Progresso EIRELI”, ou pior, “Sociedade para o Progresso Ltda. EIRELI”. Não seria

possível nem uma, nem outra denominação, pois elas representam uma contradictio in

terminis. Como um ente poderia ser simultaneamente sociedade e não sociedade

(empresário individual)? É que a sociedade adotará a forma de empresa individual de

                                                                                                                         10 O Enunciado nº 469 da V Jornada de Direito Civil do CJF/STJ acentuou que a Eireli não é forma societária: “A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (Eireli) não é sociedade, mas novo ente jurídico personificado”. Trata-se de um sujeito de direito que difere de seu titular. Foi aprovado também, na I Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal (CJF) o enunciado nº 3, o qual diz que “A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI) não é sociedade unipessoal, mas um novo ente, distinto da pessoa do empresário e da sociedade empresária”.

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responsabilidade limitada. Ora, é possível uma pessoa jurídica dentro de outra? Por óbvio

que não. Ou bem se trata de uma sociedade por quotas (ou anônima etc.), ou bem se trata

de empresa individual de responsabilidade limitada. As duas coisas ao mesmo tempo são

incompossíveis.

O Código Civil, aliás, só admite a empresa individual de responsabilidade

limitada em duas hipóteses: pessoa natural ou sociedade empresária que se tenha

reduzido a um só sócio, ou seja, que tenha deixado de ser sociedade (§§ 2º e 3º, art. 980-

A). Ora, se a empresa individual de responsabilidade limitada não é sociedade (sociedade

unipessoal), então por que o art. 980-A, do Código Civil, dispõe que seu capital “social”

não será inferior a cem salários mínimos? Trata-se de má redação da lei, aqui mais uma

vez. Por “capital social” entenda-se “capital”. Em relação ao estatuto ou contrato social,

acredito que a adoção do novo modelo crie novas regras: as relativas ao empresário

individual, à empresa individual de responsabilidade limitada e, subsidiariamente, as

normas das sociedades por quotas de responsabilidade limitada.

O capital da empresa individual de responsabilidade limitada será de, no mínimo,

cem salários mínimos. Antes, como dito, o empresário individual respondia com todo o

seu patrimônio, estivesse ele ou não afetado ao exercício da empresa. Agora, responde até

o montante do capital informado, que não será inferior a cem salários mínimos. O nome

adotado, seja firma ou denominação, será seguido da sigla EIRELI. Aqui temos uma

novidade; a possibilidade de um empresário individual adotar denominação, o que só era

possível, em princípio, para as sociedades empresárias de capital. A meu ver, a adoção de

denominação só será possível, se a denominação não for incompatível com a EIRELI,

como a que citamos acima: “Sociedade para o Progresso Ltda.”. Neste caso, entendo que

a denominação deva adequar-se à nova realidade.

A pessoa natural só pode figurar em uma empresa individual de responsabilidade

limitada. Óbvio, uma vez que o que deseja a lei é possibilitar ao empresário individual

exercer suas atividades empresariais com responsabilidade limitada. Antes da empresa

individual de responsabilidade limitada nem se cogitava do problema. Como seria

possível a um empresário individual ser dois ao mesmo tempo? Com a empresa

individual de responsabilidade limitada, a ideia é que continue sendo impossível essa

duplicidade.

O estatuto normativo da empresa individual de responsabilidade limitada será

seu próprio estatuto (não há de ser contrato social, por não se tratar de sociedade), que

deverá ser registrado na Junta; as normas do Código Civil relativas à empresa individual

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de responsabilidade limitada e às atividades empresariais em geral e, finalmente, segundo

o § 6º do art. 980-A, as normas previstas para as sociedades limitadas. Aqui, mais uma

vez, há má redação do texto legislado. O que são sociedade limitadas? Seriam apenas as

sociedades por quotas de responsabilidade limitada ou quaisquer sociedades limitas,

inclusive as anônimas? Neste ponto, o parágrafo sexto, do art. 980-A, do Código Civil,

mantém a mesma impropriedade linguístico-doutrinária do próprio Código Civil, que se

refere às sociedades por quotas de responsabilidade limitada simplesmente como

sociedades limitadas. Toma a espécie pelo gênero.

Por fim, cumpre indagar se os atuais empresários individuais migrariam

automaticamente para a forma de empresas individuais de responsabilidade limitada,

tornando-se limitada sua responsabilidade? Por óbvio que não. É necessário alterar o

registro na Junta Comercial, informando o estatuto, o nome e o capital da empresa

individual de responsabilidade limitada.

6. CONCLUSÃO

O estudo do Direito Privado sempre se preocupou precipuamente com a

estrutura de seus institutos. Assim, o estudo dos contratos, das obrigações, da família, da

empresa, da propriedade, da posse e até mesmo do ato ilícito, para citar apenas alguns

deles, sempre partiu de seus elementos estruturais: sujeitos, objeto e forma. Há bem

pouco tempo não era preocupação do jurista, o estudo da função, da finalidade, da

utilidade desses institutos, do qual deveriam se ocupar os sociólogos, cientistas políticos,

economistas e psicólogos.

A análise e estudo da estrutura dos institutos jurídicos continuam sendo

importantes. Não se pode olvidar que é fundamental determinar se as partes contratantes

são capazes, se o objeto contratual é lícito e se a forma adotada foi adequada. Mas o

jurista não pode se limitar a isso, devendo sempre levar em conta a função que o instituto

exerce para o bem do ser humano, o papel que um princípio ou uma regra desempenha no

interior de um sistema ou de uma estrutura. Isto porque, cada instituto jurídico deverá ser

estudado em função do ser humano, em função da sociedade.

A partir do presente estudo, pode-se verificar o quanto é importante que cada um

dos principais institutos do Direito Civil seja estudado também sob a perspectiva de sua

função social, especialmente com o desiderato de garantir que o contrato, as obrigações, a

família, a propriedade, a posse e a empresa sirvam como efetivos instrumentos para a

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promoção de alterações na realidade social e garantir da dignidade da pessoa humana,

especialmente considerando que a proteção e promoção da pessoa humana devem ser a

finalidade de todo o ordenamento jurídico.

Verifica-se que o próprio ordenamento jusprivatístico, em diversos dispositivos

normativos, estabelece limites e conforma a aplicação de seus institutos jurídicos com o

objetivo de garantir que estes cumpram a sua função social, como ocorre por exemplo,

quando se positiva o princípio da boa-fé nos contratos e obrigações, quando preceitua que

o exercício da social posse pela família, constitui importante instrumento de aquisição da

propriedade, quando penaliza o proprietário desidioso que deixa de conferir destinação

funcional à sua propriedade, decretando a sua perda, seja pela desapropriação, seja pelo

usucapião, ou mesmo quando, reconhecendo a importância da empresa, a protege, sem

deixar de exigir que seu exercício de dê em respeito às normas trabalhistas, tributárias,

consumeristas, ambientais, urbanísticas e etc.

Assim com a propriedade, a posse e o contrato, a empresa também deve cumprir

a sua função social. A empresa, sem sombra de dúvidas possui uma relevante função

social uma vez que é responsável pela promoção da produção e circulação de bens e

serviços no mercado, pela geração de riquezas, renda, empregos, pelo pagamento de

tributos aos cofres públicos, enfim, por contribuir para o desenvolvimento econômico,

social e cultural da comunidade na qual encontra-se inserida. Nesse sentido, consciente

de que, no contexto econômico da sociedade brasileira, a empresas de menor dimensão e

capital são responsáveis pela geração de inúmeros empregos e, diante da inexistência no

ordenamento jurídico brasileiro da permissão para constituição de sociedades

unipessoais, fato que acabava por conduzir os empresários a constituição sociedades de

fachada, o legislador ordinário, objetivando eliminar essa indesejável realidade, editou a

Lei Federal n.º 12.441/11, criando a figura da empresa individual de responsabilidade

limitada.

A despeito da criação da figura da empresa individual de responsabilidade

limitada constituir um importante avanço para o Direito de Empresa, uma vez que

desestimula a necessidade de constituição de empresas de fachada, composta por sócios

fictícios, bem como a trazer para formalidade empresários de fato que exercem atividades

econômicas organizadas com intuito de lucro, protegendo o seu patrimônio pessoal em

decorrência da limitação de sua responsabilidade civil, pôde-se constatar que as normas

aplicáveis as empresas individuais de responsabilidade limitada, além conterem inúmeras

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de imprecisões terminológicas e conceituais, foram omissas acerca de diversas questões

relevantes, o que tem acarretado o surgimento de inúmeras dúvidas e questionamentos.

Assim, o presente trabalho, longe de esgotar toda a temática, teve por desiderato

apresentar considerações e contribuições sobre a funcionalização dos institutos do Direito

Civil, especialmente no que tange ao Direito de Empresa, indicando a necessidade do

aprofundamento do estudo das empresas individuais de responsabilidade limitada,

principalmente considerando que se bem normatizadas e utilizadas, muito contribuirão

para o promoção do desenvolvimento de toda a sociedade.

BIBLIOGRAFIA ALBUQUERQUE, Ana Rita Vieira. Da função social da posse e sua conseqüência frente à situação proprietária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 2. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 1998. BETTI, Emilio. Teoria general del negocio jurídico. 2. ed., Madrid: Revista de Derecho Privado, 1959. BOBBIO, Norberto. Dalla struttura alla funzione – nuovi studi di teoria del diritto. Roma: Laterza, 2007. CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no direito civil. v. 1. Coimbra: Almedina, 1984. CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes. Da pós-eficácia das obrigações. Estudos de direito civil. v. I. Coimbra: Almedina, 1991. FARIAS, Cristiano Chaves de & ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Direito das obrigações. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp.60-61. FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 16. ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2013. JHERING, Rudolf von. A luta pelo direito. 10. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1992. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. São Paulo. Saraiva. 1998. NETTO, Felipe Peixoto Braga. Teoria dos Ilícitos Civis. Belo Horizonte: Del ReY, 2003. REALE, Miguel. Projeto do Código Civil. São Paulo: Saraiva, 1986.

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TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A parte geral do novo código civil – Estudos na Perspectiva Civil-Constitucional. 2. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2003. VARELA, Antunes. Das obrigações em geral. 10. ed., Coimbra: Almedina, 2000, vol. I, nº 44. ZAVASCKI, Teori Albino. A tutela da posse na Constituição e no projeto do novo Código Civil. In: A Reconstrução do Direito Privado. Judith Martins-Costa (Org). São Paulo: RT, 2002.

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A RELAÇÃO ENTRE A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA, A LIVRE INICIATIVA

ECONÔMICA E A PROPRIEDADE PRIVADA

THE RELATIONSHIP BETWEEN THE SOCIAL FUNCTION OF ENTERPRISE,

THE FREE ECONOMIC INITIATIVE AND THE PRIVATE PROPERTY

Kátia Lima Sales Leite∗

RESUMO Análise da relação existente entre a função social da empresa, a livre iniciativa econômica e a propriedade privada. De início, é realizada uma abordagem geral sobre o direito de propriedade, a propriedade privada e as definições de empresa, empresário e estabelecimento empresarial no ordenamento jurídico brasileiro, interligando os conceitos, para se chegar à noção de propriedade empresarial, estudando a empresa como expressão do direito de propriedade, por representar a propriedade privada organizada de forma dinâmica. Examina-se, em seguida, a livre iniciativa econômica privada, abordando noções de atividade econômica e de liberdade econômica na autonomia privada da empresa, relacionando-as com o conceito de propriedade privada e mencionando que os regimes podem coincidir, inclusive quanto à necessidade de observância do princípio da função social. Passa-se, então, a uma análise geral da função social da propriedade para, por fim, abordar-se a função social da empresa, mencionando a existência expressa no direito comparado da função social da iniciativa econômica, ambas aplicáveis à atividade empresarial. Objetiva-se com o presente trabalho verificar o contexto em que ocorre a função social da empresa, relacionando-a com sua livre iniciativa econômica privada, a fim de averiguar os contornos da função social na atividade empresarial. A metodologia utilizada é basicamente bibliográfica e documental, coletando os posicionamentos da doutrina nacional e estrangeira sobre os assuntos envolvidos no tema estudado. Conclui-se pela aplicação do princípio da função social à empresa e à iniciativa privada. PALAVRAS-CHAVE: Propriedade privada; Função social; Empresa; Livre iniciativa econômica privada.

ABSTRACT Analysis of the relationship between the social function of the enterprise, the free economic initiative and the private property. Initially, performs a general approach on the right of property, private property and definitions of enterprise, entrepreneur and business establishment in the Brazilian legal system, linking the concepts to arrive at the notion of corporate property, studying the enterprise as an expression of the right of property, to represent the organized private property dynamically. We examine then the free economic private initiative, addressing notions of economic activity and economic freedom in the private autonomy of the enterprise, relating them to the concept of private property and mentioning that regimes can coincide, including the need to compliance the principle of the social function. Then, will be made a general analysis of the social function of property to finally do a study of the social function of the enterprise, citing the existence of comparative law expresses the social function of economic initiative, both applicable to business activity. It aims to work with this check the context in which occurs the social function of the enterprise, linking it to its free economic private initiative, to ascertain the contours of social function in business activity. The methodology used is basically bibliographic and documentary, collecting the domestic and foreign doctrine’s opinions and understanding about the issues involved in the subject studied. We conclude that there is application need the principle of the social function to the enterprise and to private initiative. KEYWORDS: Private property; Social function; Enterprise; Free economic private initiative.

∗ Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR; bolsista da FUNCAP; especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Anhanguera – UNIDERP; especialista em Direito Empresarial pela UVA/FESAC; especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Gama Filho. [email protected]

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Introdução

O presente artigo analisa a relação existente entre a função social da empresa, a livre

iniciativa econômica e a propriedade privada, abordando os conceitos e estabelecendo a

conexão entre eles e sua coexistência na atividade empresarial, levando-se em consideração

não apenas os interesses econômicos e individuais, mas também os coletivos, de forma a

atender os anseios de uma sociedade capitalista e democrática, com existência digna de todos.

A justificativa do trabalho reside no fato de haver questionamentos sobre a

possibilidade de aplicação do princípio da função social à empresa e sua iniciativa privada,

gerando a necessidade de se aferir se a função social pode ser aplicada à atividade empresarial

e em que circunstâncias, a fim de se obter um melhor desempenho da atividade econômica,

uma vez que a Constituição somente se refere à função social da propriedade, no caso, a

propriedade privada, não tratando especificamente de uma função social que se relacione à

empresa.

Objetiva-se, de forma geral, com a investigação averiguar se o princípio da função

social se aplica à empresa e à livre iniciativa econômica e qual a relação dessas com o direito

de propriedade e utilização da propriedade privada.

Especificamente, pretende-se tecer considerações sobre o direito de propriedade, com

ênfase na propriedade privada, abordando os conceitos de empresa, empresário e

estabelecimento, para o estudo da propriedade empresarial.

De igual forma, busca-se analisar a livre iniciativa econômica privada, relacionando-

a com a atividade econômica prestada pela empresa, a propriedade privada e a liberdade

econômica empresarial, verificando se há semelhança entre os regimes para fins de aplicação

do princípio da função social da propriedade.

Evidencia-se também a necessidade de se efetuar uma abordagem sobre a função

social da propriedade, obtendo elementos de compreensão dessa função, para, por fim,

analisar a função social da empresa e da iniciativa econômica privada, buscando-se verificar o

contexto em que ocorre e as razões de sua existência, para se delimitar os contornos dessa

função social.

Ressalta-se a relevância do tema pela contribuição que esse estudo acarreta para a

adequação da atividade econômica empresarial às exigências do Direito, em prol da

coletividade, atendendo aos anseios da sociedade capitalista contemporânea e ampliando os

conhecimentos do operador jurídico, a serem utilizados em sua prática profissional e atividade

acadêmica.

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A metodologia empregada é basicamente bibliográfica, colecionando os

posicionamentos doutrinários, com referência à doutrina nacional e estrangeira sobre os

diversos assuntos estudados, mas também documental, na medida em que serão analisados

alguns dispositivos de lei pertinentes ao tema objeto da pesquisa.

1 A propriedade empresarial: a empresa como expressão do direito de propriedade

A Constituição Federal de 1988, no inciso XXII de seu artigo 5º, expressamente

garante o direito de propriedade como um direito fundamental, determinando

programaticamente no inciso XXIII que “a propriedade atenderá a sua função social.”

Acerca desse direito fundamental, Francisco Luciano Lima Rodrigues (2008, p. 168)

assevera que “é corriqueiro o questionamento sobre o conteúdo do direito de propriedade”, a

fim de se saber se a Constituição, ao estabelecer o direito de propriedade como um direito

fundamental, protegeu apenas a sua titularidade ou também o seu conteúdo. O autor afirma

ainda que: “O conteúdo do direito de propriedade consiste na verificação da sua extensão, na

definição de seu objeto e na composição de seus poderes e faculdades.” (RODRIGUES, 2008,

p. 169)

Pela leitura dos dispositivos constitucionais aludidos, verifica-se que a Constituição

somente explicitou o direito, sem definir expressamente o seu conteúdo ou os limites para o

seu exercício, cingindo-se a determinar que a propriedade privada deve atender à sua função

social. (RODRIGUES, 2008, p. 173). Segundo Francisco Luciano Lima Rodrigues (2008, p.

181), a função social, estabelecida pela Constituição no inciso XIII de seu art. 5º, apresenta-se

“como um condicionador do próprio direito de propriedade”, figurando ainda como “um

conteúdo mínimo do direito de propriedade definido pela Constituição”.

Eros Roberto Grau (2005, p. 232) salienta que a propriedade privada é um

pressuposto necessário da função social, comentando que “a idéia da função social como

vínculo que atribuiu à propriedade conteúdo específico, de sorte a moldar-lhe um novo

conceito, só tem sentido e razão de ser quando referida à propriedade privada”, e não à

propriedade das empresas estatais. Ao analisar o conteúdo do direito de propriedade,

Francisco Luciano Lima Rodrigues (2008, p. 174) observa que:

A respeito da ausência de norma constitucional explícita que autorize o legislador a definir o conteúdo e os limites do direito de propriedade, pode-se entender que a ausência de uma explícita reserva de lei restritiva não impede que a lei possa determinar restrições mais ou menos profundas ao direito de propriedade, seja por meio de específicas remissões constitucionais expressas ou por efeito de

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concretização de limites imanentes e, sobretudo, por colisão com outros direitos fundamentais. Com respeito à ordem constitucional brasileira, pode-se afirmar que compete ao legislador ordinário a definição do conteúdo e dos limites do direito de propriedade, com iniciativa legislativa privativa da União, na forma do artigo 22 da Constituição Federal.

Dessa forma, considera-se que o ordenamento constitucional pátrio previu o direito

de propriedade como um direito fundamental, mas permitiu que seu conteúdo e limites para o

seu exercício possam ser estabelecidos pelo legislador infraconstitucional, desde que

respeitado o seu conteúdo mínimo, garantindo o direito à propriedade privada, se atendida a

sua função social. Afirma-se, ainda, que o direito fundamental de propriedade possui

conteúdo com dupla face: aspecto institucional e aspecto individual. (RODRIGUES, 2004, p.

23 e 24)

Ressalta-se que o direito fundamental de propriedade não autoriza um exercício

absoluto, não podendo ser exercido de forma arbitrária, sem se importar com os demais,

devendo respeitar seu conteúdo mínimo de função social, conformando-se às determinações

constitucionais e legais. Pelas ideias de Maria Elizabeth Moreira Fernandes (2001, p. 188

apud RODRIGUES, 2008, p. 210), tem-se que:

O direito de propriedade é um direito fundamental nos termos do art. 5º da Constituição Federal, marcado pelo estreitamento dos poderes, faculdades e competências que lhes eram tradicionalmente afiançados, devendo ser exercido de acordo com a Constituição Federal e com as leis ordinárias que conformam o direito de propriedade influenciado pelas ideias de um Estado Social.

Infraconstitucionalmente, a propriedade é elencada como um dos direitos reais no

inciso I do art. 225 do Código Civil pátrio e que o § 1º do seu art. 1.228 estatui que: “O direito

de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e

sociais [...]”. Assim, a lei assegura ao proprietário o exercício do direito real de propriedade

de acordo com suas finalidades econômicas, mas impõe que esse exercício atenda também aos

fins sociais. Ressalta-se que: “Na dimensão subjetiva-individual o direito de propriedade

pretende assegurar ao titular dos bens o exercício das faculdades inerentes ao direito de

propriedade – usar, gozar, dispor e reaver”, previstas no caput do art. 1.228 do Código Civil.

(RODRIGUES, 2008, p. 173).

No livro II, referente ao direito de empresa, o mesmo diploma legal, em seu art. 966,

estabelece que: “Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade

econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.” Essa

atividade econômica organizada referida no dispositivo mencionado é o que se intitula

empresa. Os bens necessários para o exercício da empresa pelo empresário individual ou

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coletivo (sociedade empresária) compõem o que a lei denomina de estabelecimento

empresarial. Nesse sentido, o art. 1.142 conceitua estabelecimento como “todo complexo de

bens organizado, para o exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária”,

configurando ele o conjunto de bens utilizados pelo empresário para a exploração da atividade

econômica.

Visualizando os dispositivos legais em comento, por meio de uma análise superficial,

pode-se verificar que a relação do dono dos bens que integram o estabelecimento da empresa

com esses mesmos bens é uma relação jurídica de direito real de propriedade, em razão do

poder que o titular exerce sobre a coisa. Pode-se afirmar, a princípio, que o “dono da

empresa” (assim considerado a pessoa física do empresário individual ou a pessoa jurídica da

sociedade empresária) figura, via de regra, como o proprietário dos bens empresariais. Nesse

caso, afirma-se que o empresário detém a propriedade privada dos ativos e dos bens de

produção da empresa. A esse respeito, Tullo Cavallazzi Filho (2007, p. 82 e 83) aborda que:

Como já foi dito, o exercício da Empresa Privada é um corolário da propriedade privada porque tem em sua formação o ingresso de capitais originariamente pertencentes a proprietários privados, permitindo que o lucro obtido com sua atividade reverta em prol daquelas pessoas (naturais ou jurídicas) que detém o seu controle.

Sobre a empresa e sua função instrumental para o exercício do poder privado

econômico dos proprietários, Washington Peluso Albino de Souza (2003, p. 294 apud

CAVALLAZZI FILHO, 2007, p. 83) leciona que:

Tomada como ‘sujeito’ do Direito Econômico, a empresa, em princípio, é instrumento de exercício do Poder Privado Econômico. Composta de capitais particulares, organizada contratualmente, na corrida em busca do ‘lucro’ no interesse de seus proprietários, aplica-se livremente ao tipo de iniciativa econômica da preferência dos mesmos.

Há de se ressaltar, contudo, que nem sempre o proprietário dos bens que compõem o

estabelecimento empresarial é o mesmo que exerce a empresa, ou seja, nem sempre a figura

do proprietário dos bens empresariais coincide com a do empresário. Fábio Konder

Comparato (2005, p. 100 apud CAVALLAZZI FILHO, 2007, p. 83) observa que:

Aliás, a noção de propriedade, aplicada aos bens empresariais, tem sido criticada. Um empresário pode trabalhar em prédios alheios e com maquinaria alienada fiduciariamente, sem que isto quebre a unidade do estabelecimento. Daí porque uma parte da doutrina prefere falar em titularidade do estabelecimento e não em propriedade. Com razão, ‘propriedade da empresa’ é expressão defeituosa, pois a empresa não compreende apenas bens, mas também homens.

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De igual forma, no direito comparado, Pietro Perlingieri (2007, p. 221) menciona

que:

O direito de empreender uma atividade não comporta necessariamente a titularidade do fundo de comércio (azienda), a qual poderia ser constituída por capitais obtidos mediante mútuo, por imóveis e máquinas alugadas. Apesar disso, estes fazem parte daquele patrimônio com destinação econômica que é o fundo de comércio. (Grifo original)

Constata-se, dessa forma, que a empresa, enquanto atividade econômica organizada,

não se restringe à produção e/ou circulação dos bens materiais ou corpóreos que compõem o

estabelecimento empresarial, devendo abranger, também, os serviços a serem prestados por

pessoas que integram os seus quadros de pessoal, por meio da utilização de referidos bens de

produção, abrangendo, outrossim, para tanto, a utilização dos bens imateriais ou incorpóreos

(direitos, créditos, valores etc.) que compreendem o ativo da empresa, constituindo esses,

igualmente, o seu patrimônio e formando, assim, o seu estabelecimento empresarial. Como

bem afirma Tullo Cavallazzi Filho (2007, p. 84 e 85):

A indicação do dinamismo e da repercussão da atividade empresarial tem salutar importância para demonstrar que a Empresa, como já previamente apresentado em seu conteúdo, não é um objeto ou bem corpóreo, mas sim, um conjunto de bens (materiais e imateriais) que, reunidos e movimentados pelo homem, realizam um determinado fim, tornando-se um desdobramento da Propriedade Privada com importante papel no desenvolvimento da Ordem Econômica nacional.

Dessa maneira, pode-se visualizar a empresa como expressão do direito de

propriedade, representando ela “a propriedade privada organizada de forma dinâmica”

(CAVALLAZZI FILHO, 2007, p. 85). Pietro Perlingieri (2007, p. 218) realiza uma distinção

econômica entre os regimes de propriedade, tendo por base o bem a que ela se refere, se bem

de consumo, ou bem de produção, mas ressalta a relevância jurídica que também possui

referida distinção, afirmando que: “A disciplina do bem varia segundo a titularidade da

faculdade de gozo sobre ele pertença a um particular que exerça, ou não, uma atividade

empresarial.” No tocante a essa diferenciação entre propriedade dos bens de consumo e dos

bens de produção, Eros Roberto Grau (2005, p. 236 e 237) preleciona:

Uma segunda distinção, ademais, há de ser procedida, entre propriedade de bens de consumo e propriedade de bens de produção. [...] A moderna legislação econômica considera a disciplina da propriedade como elemento que se insere no processo produtivo [...] Esse novo tratamento normativo respeita unicamente aos bens de produção, dado que o ciclo da propriedade dos bens de consumo se esgota na sua própria fruição. [...] Esse novo direito – nova legislação – implica prospecção de uma nova fase (um aspecto, um perfil) do direito de propriedade, diversa e distinta da tradicional: a fase dinâmica. (Grifo original)

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O que consubstancia a propriedade, no caso, é a empresa enquanto atividade

econômica organizada e não o estabelecimento empresarial, pois esse é formado apenas pelo

conjunto de bens (corpóreos e incorpóreos) reunidos para a prática dessa atividade pelo

empresário, visto que a propriedade pode incidir sobre coisas concretas (propriedade

material), mas também sobre coisas abstratas (imateriais). Nesse sentido, pode-se falar em

uma propriedade empresarial, cuja atividade econômica possui relevante papel no

desenvolvimento da ordem econômica nacional. Passa-se agora à análise da livre iniciativa

econômica privada e da atividade econômica desenvolvida pelo empresário dentro da ordem

econômica nacional.

2 A livre iniciativa econômica privada

A Constituição Federal de 1988, no capítulo 1 do título “Da ordem econômica e

financeira”, trata dos “Princípios gerais da atividade econômica” e, em seu art. 170, caput e

parágrafo único, estabelece que:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: ........................................................................................................................................ II – propriedade privada; III – função social da propriedade; ........................................................................................................................................ Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. (Grifa-se)

Observa-se que o caput do art. 170 da Constituição Federal elenca a livre iniciativa

como um dos fundamentos da ordem econômica e, de igual forma, o art. 1º, IV da Lei Maior a

estatui como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Consoante Eros

Roberto Grau (2005, p. 207 e 203), a liberdade de iniciativa constitui um dos desdobramentos

da liberdade, aduzindo o autor que: “Uma das faces da livre iniciativa se expõe, ninguém o

contesta, como liberdade econômica, ou liberdade de iniciativa econômica, cujo titular é a

empresa”.

Carlo José Napolitano (2004, p. 191 e 192) compreende a livre iniciativa como um

princípio que traduz “a possibilidade, no campo econômico, de decidir o que fazer, como

fazer e quando fazer, independentemente de autorização e determinação do Estado”, sendo

caracterizada, nas palavras de Miguel Reale Júnior e David Teixeira de Azevedo (1995, p.

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137 apud NAPOLITANO, 2004, p. 192), pela ‘livre eleição da atividade e dos meios de que

se deve lançar mão na consecução da atividade econômica’.

Pela leitura conjunta dos dispositivos legais supracitados, extrai-se que a atividade

econômica é aquela que se desenvolve na ordem econômica para produção ou circulação de

bens ou prestação de serviços, a qual, tendo por base a livre iniciativa e a valorização do

trabalho humano, visa a assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da

justiça social, observados, dentre outros, os princípios da propriedade privada e da função

social da propriedade, estando garantido a todas as pessoas o seu livre exercício, salvo

disposição legal em contrário.

Pode-se, destarte, afirmar que a atividade empresarial é, por excelência, uma

atividade econômica, na medida em que, conforme já salientado, o ordenamento jurídico

pátrio descreveu a empresa como sendo a atividade econômica organizada para a produção ou

a circulação de bens ou de serviços, atribuindo ao empresário individual (pessoa física) ou

coletivo (sociedade empresária) a sua prestação, nos termos do art. 966 e seguintes do Código

Civil. Eduardo Goulart Pimenta (2006, p. 66) menciona que:

Em uma ordem econômica baseada na livre iniciativa privada as diferentes modalidades de sociedades empresárias assumem fundamental papel. São elas que agrupam diferentes quantidades de capitais e pessoas com o objetivo de viabilizar e maximizar o exercício das atividades de produção ou distribuição de bens ou de serviços com intuito lucrativo.

Eros Roberto Grau (2005, p. 103 e 104) comenta que há duas espécies de atividade

econômica (sentido amplo): a do serviço público, prestada por empresas públicas e sociedades

de economia mista, e a atividade econômica em sentido estrito, que é a exercida pela

iniciativa privada e a qual se refere esse trabalho.

Nesse sentido, a livre iniciativa econômica privada, da qual o empresário privado é

detentor para o exercício da empresa e organização dinâmica da propriedade privada, revela-

se de extrema importância para a estruturação da ordem econômica brasileira, a qual deve

observância aos princípios da propriedade privada e da função social da propriedade, dentre

outros. Como bem afirma Pietro Perlingieri (2007, p. 220):

É necessário confrontar o instituto da propriedade, no sentido estático de situação subjetiva complexa, e a empresa. A livre iniciativa econômica, mesmo sendo uma noção autônoma respeito àquela de propriedade, deve ser estudada também no âmbito desta última. [...] Seria errado pensar que a noção de propriedade seja inútil para a individuação daquela de livre iniciativa econômica e que entre propriedade e empresa não exista nenhuma correlação.

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Conforme se constata, embora as noções de propriedade e livre iniciativa econômica

não se confundam, elas encontram-se interligadas, devido aos conceitos de empresa e de

atividade econômica, atribuídos pela ordem legal e constitucional pátrias. Deve-se, assim,

relacionar os conceitos de propriedade e de empresa, de forma a visualizar, como já

mencionado, que essa se apresenta como uma expressão da existência e organização dinâmica

daquela. Relacionando propriedade com liberdade, Francisco Luciano Lima Rodrigues (2008,

p. 172) explana que:

É possível, ainda no tocante à dimensão objetiva-institucional da propriedade, estabelecer uma relação entre o direito de propriedade e a liberdade como direito fundamental. Essa ligação tem sido verificada pelo Tribunal Federal Constitucional alemão, (Bundesverfassungsgericht) no sentido de que, na estrutura global dos direitos fundamentais, a garantia da propriedade privada tem a função de assegurar ao titular do direito um espaço de liberdade (Freiheitsraum) no âmbito jurídico-patrimonial, através do reconhecimento de direitos de decisão, de utilização e de domínio [...]

Aplicando-se essa liberdade à propriedade empresarial, tem-se que a livre iniciativa

pode ser entendida como a representação, do ponto de vista econômico, da autonomia privada

do empresário particular (pessoa física ou jurídica), ou, ainda, consoante constata Ana Prata

(1982, p. 197): “É comum ver entender que a autonomia privada constitui a expressão jurídica

da livre iniciativa econômica privada”. De igual modo, Gabriela Mezzanotti (2003, p. 26)

aborda que: “Na esfera constitucional, a autonomia privada assume relevo no que se refere à

garantia fundamental da iniciativa econômica, intimamente ligada ao tema da empresa”.

Observa-se a relação da iniciativa econômica da empresa com sua autonomia

privada, pois, para que o empresário possa desenvolver a atividade econômica a que se

propõe, é necessário que possua liberdade de atuação na economia. Igualmente, deduz-se que,

para que essa liberdade econômica possa ser exercida, pressupõe-se a existência da

propriedade privada.

Ana Prata (1982, p. 201) infere, por isso, que “a iniciativa econômica é um conceito

derivado do de propriedade”, entendendo que aquela consubstancia um modo de existir dessa.

É razoável afirmar-se, assim, que o direito real de propriedade funciona como uma premissa

da livre iniciativa, na medida em que, sem a propriedade privada, não há falar em livre

iniciativa econômica do particular, diante da impossibilidade de exercício da atividade

econômica.

Dessa maneira, torna-se intuitivo que “as normas sobre a iniciativa econômica

justamente porque normalmente realizam a situação estática que é a propriedade, [sic] são

extensíveis a esta enquanto compatíveis.” (PERLINGIERI, 2007, p. 221). Relacionando

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propriedade privada com livre iniciativa e atividade econômica privada em um sistema

capitalista, Carlos José Napolitano (2004, p. 193) assevera que:

A previsão da livre iniciativa, no texto constitucional, consagra, no ordenamento jurídico brasileiro, a economia de mercado capitalista. Esse princípio é um pressuposto básico desse sistema econômico, justamente com a propriedade privada. Com a previsão do princípio da livre iniciativa e consequente consagração do capitalismo, a ordem jurídica constitucional brasileira admite ampla organização empresarial da atividade econômica privada, fundada no postulado da livre iniciativa.

Ressalta-se que a forma de exercício lícito das faculdades relativas ao direito de

propriedade e ao seu regime reflete diretamente no regime da iniciativa econômica privada e

vice-versa, pois, conforme já mencionado, essa indicaria um modo de existir daquela. Ana

Prata (1982, p. 201) atenta-se para o caso, já mencionado alhures, de o empresário não ser o

proprietário dos meios de produção e afirma que isso não prejudica a correlação entre os dois

regimes, da propriedade e da iniciativa econômica, explanando que:

[...] não há, normalmente, completa identidade de regimes e não que um deles (o da propriedade) não tenha larga repercussão no outro (o da iniciativa econômica), quer na medida em que coincidam as qualidades de proprietário e empresário, quer porque as formas de actuação da liberdade de iniciativa econômica se configuram, em larga medida, como formas jurídicas de realização das faculdades inerentes ao direito de propriedade (quer essa realização seja directamente operada pelo titular do direito, quer o seja indirectamente, por um terceiro, que tem a qualidade de empresário). (PRATA, 1982, p. 202)

No direito português, Miguel Nogueira de Brito (2007, p. 905 e 906) interliga as

expressões supramencionadas, prelecionando que “a propriedade é uma manifestação da

liberdade, porque através dela é conferido ao indivíduo um conjunto indefinido de poderes e

faculdades”, reconhecendo a “proximidade entre a garantia da propriedade e outros direitos

fundamentais que tutelam a autonomia privada”, a exemplo da “liberdade de iniciativa

privada e a inegável dimensão econômica daquela garantia”. Além disso, destaca o autor que

os direitos privados patrimoniais possuem especial significado social e econômico e, por isso,

merecem tutela jurídico-constitucional, como sucede, por exemplo, com as grandes empresas.

Ademais, a esse respeito, Francisco Luciano Lima Rodrigues (2004, p. 13) pondera

que, diferentemente do Brasil, a ordem constitucional portuguesa inclui o direito de

propriedade “no catálogo dos direitos econômicos, sociais e culturais”, ao passo que,

conforme já mencionado, a Constituição Federal brasileira o elenca no rol dos direitos e

garantias fundamentais.

Estabelecida a correlação entre os regimes da propriedade e da livre iniciativa

econômica, pode-se afirmar que os princípios da propriedade privada e da função social da

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propriedade, estatuídos nos incisos II e III do art. 170 da Constituição, devem ser observados

pela atividade empresarial.

Por serem princípios gerais da atividade econômica, devem também ser aplicados à

empresa e ao regime da livre iniciativa econômica privada, na medida em que o exercício da

empresa é uma atividade econômica e a livre iniciativa figura como um dos fundamentos da

ordem econômica nacional. Então, é forçoso perceber que as limitações ou condicionamentos

a um ou a outro regime, por vezes, acabam coincidindo.

Dessa forma, a função social da propriedade deve ser observada pela propriedade

privada e também pela atividade econômica empresarial, ou seja, pela empresa, que nada mais

é do que uma forma de expressão da propriedade privada, uma finalidade para a qual essa é

dirigida, sendo, portanto, seu corolário.

Necessário se faz tecer algumas considerações sobre a função social da propriedade,

para depois adentrar-se no estudo da função social da empresa e ainda da iniciativa econômica

privada.

3 A função social da propriedade

Retomando a discussão doutrinária acerca da função social da propriedade, agora de

maneira mais específica, pode-se dizer que, quanto à natureza jurídica da função social da

propriedade, Maria Elizabeth Moreira Fernandes (2001, p. 188 e 189) destaca a necessidade

de se averiguar se a função social “constitui uma peça estrutural dos direitos em causa, ou, se,

pelo contrário, se trata antes de um elemento externo de natureza finalística, manifestado pela

lei, e para o qual os direitos em apreço tendem.”

De forma mais objetiva, Francisco Luciano Lima Rodrigues (2005, p. 209) menciona

que: “A tentativa de definir a natureza jurídica da função social da propriedade se restringe a

responder a seguinte questão fundamental: seria a função social um aspecto exterior ou

interior do conteúdo da estrutura do direito de propriedade?” No entendimento do autor:

[...] sobre a busca da natureza jurídica da função social da propriedade, pode-se afirmar que seu papel diante do direito de propriedade, na forma preceituada na Constituição Federal, seria compatível com o caráter estrutural, condição de elemento interno, do direito fundamental à propriedade privada. (RODRIGUES, 2008, p. 214)

Por esse raciocínio, a função social da propriedade seria um elemento interno da

propriedade, compondo seu interior. De igual modo, para Gilberto Bercovici (2005, p. 145),

“a função social da propriedade torna-se o fundamento do regime jurídico do instituto da

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propriedade, de seu reconhecimento e da sua garantia, dizendo respeito ao seu próprio

conteúdo.” Nesse sentido, Stefano Rodota menciona que:

[...] la función no puede identificarse ulteriormente con la banda externa de la propiedad, reservada a la colectividad, y se presenta con una expresión elíptica, que unifica los presupuestos de la calificación jurídica de modo tal que identifica el contenido mismo de la situación de pertenencia.

Não obstante tais posicionamentos, Francisco Luciano Lima Rodrigues (2008, p. 198

e 199) comenta que Léon Duguit (1920, p. 147-178 apud RODRIGUES, 2008, p. 198 e 199)

entende a propriedade como sendo “uma instituição jurídica que, atendendo a uma

necessidade econômica, transforma a propriedade em função social, deixando, assim, de ser

um direito individual para se transformar em uma função.” Duguit nega a existência dos

direitos subjetivos do indivíduo, sem negar a existência da propriedade (RODRIGUES, 2008,

p. 200), visualizando a função social como uma limitação a ela e não como um

condicionamento, fazendo objeção à doutrina individualista, socializando, assim, a noção de

propriedade.

Reforçando o primeiro entendimento, no sentido de compreender a função social

como um aspecto interior do conteúdo da propriedade, Maria Elizabeth Moreira Fernandez

(2001, p. 192) aduz que “o que se designa como função social é parte da estrutura interna da

propriedade privada”. Para ela, “a propriedade não tem função social, mas antes é função

social”, fazendo referência de que a propriedade estaria “funcionalizada no seu ser”. Acentua

ainda que:

Por esta razão, as leis que intervém no direito de propriedade privada fixam as possibilidades e modalidades de intervenção sobre as propriedades existentes determinando o conteúdo, procurando a configuração óptima entre o interesse individual e o interesse coletivo. A função social não só vincula, mas também conforma a propriedade, e por isso, constitui uma fórmula que altera o próprio conteúdo do direito em apreço significando uma nova ideia do mesmo, necessariamente, correspondente a um direito-dever. (FERNANDEZ, 2001, p. 192)

A expressão “função social”, que integra o conteúdo da propriedade, é esmiuçada por

Gilberto Bercovici (2005, p. 147), que a explica da seguinte forma: “A função é o poder de

dar à propriedade determinado destino, de vinculá-la a um objetivo. O qualitativo ‘social’

indica que esse objetivo corresponde ao interesse coletivo, não ao interesse do proprietário.",

havendo, segundo o autor, “um condicionamento do poder a uma finalidade”, impondo ao

proprietário o dever de exercê-la em sua conformidade.

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Acerca desse direito-dever do proprietário de fazer cumprir a função social da

propriedade privada, compatibilizando o seu interesse individual com o coletivo, o mesmo

pode ser elucidado da seguinte forma:

A teoria de Léon Duguit pode ser definida por duas proposições, a saber: - o proprietário tem o dever de empregar a coisa que possui para a satisfação das suas necessidades individuais e especialmente de empregá-las no desenvolvimento de sua atividade física, intelectual e moral. [...] o proprietário tem o dever e, portanto, o poder de empregar a sua coisa para a satisfação de necessidades comuns de uma coletividade nacional inteira ou de coletividades secundárias. ........................................................................................................................................ No caso da atribuição de uma função social à propriedade pela Constituição, mesmo a nível programático, modifica-se a relação da coisa com o proprietário. Este passa a ter, ao lado dos direitos de usar, gozar, dispor e reaver a propriedade, a função de atuar, juntamente com o Estado, na condição de gestor da coisa que interessa a toda a coletividade. Com o reconhecimento da função social da propriedade, passa o seu senhor a condicionar o exercício das prerrogativas de proprietário ao atendimento de interesses de toda uma coletividade, da qual é integrante. [...] (RODRIGUES, 2008, p. 200 e 202)

De acordo com Gilberto Bercovici (2005, p. 142 e 143): “Os direitos individuais não

devem mais ser entendidos como pertencentes ao indivíduo em seu exclusivo interesse, mas

como instrumentos para a construção de algo coletivo.” Ao tratar da autonomia privada, o

autor assevera: “A autonomia privada deixou de ser um valor em si. Os atos de autonomia

privada, possuidores de fundamentos diversos, devem encontrar seu denominador comum na

necessidade de serem dirigidos à realização de interesses e funções socialmente úteis”. Na

esteira desse pensamento, é válido destacar que:

[...] o ser humano é parte de um corpo social e os direitos, inclusive os privados, devem ser exercidos sob a óptica de uma função social e valores constitucionais. [...] Vale ressaltar que a autonomia privada não deixa de ser uma expressão de liberdade. Contudo, esta liberdade não é simplesmente analisada do ponto de vista individual, mas também sob o prisma da sociedade e da realização dos Direitos Fundamentais, que constituem o ideário igualitário em âmbito social. (MAILLART; SANCHES, 2011, p. 30)

Pietro Perlingieri (2007, p. 221), com base no direito comparado italiano, destaca que

“a propriedade, de dois diversos pontos de vista, é situação subjetiva e é relação” e visualiza a

função social como “o conteúdo global da disciplina proprietária”, entendendo que ela não

concerne apenas aos limites. (PERLINGIERI, 2007, p. 226) Acentua ainda referido autor que,

“para o proprietário, a função social assume uma valência de princípio geral. A autonomia

não é livre arbítrio: os atos e atividades não somente não podem perseguir fins anti-sociais ou

não sociais, mas, para terem reconhecimento jurídico”, devem perseguir a razão pela qual seu

direito de propriedade foi estabelecido. (PERLINGIERI, 2007, p. 228) Francisco Luciano

Lima Rodrigues (2008, p. 214 e 215) discorre que:

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[...] por força do princípio republicano e democrático que fundamenta o Estado brasileiro, seria a propriedade privada submetida, quanto ao exercício de suas prerrogativas pelo proprietário, à obrigação de atender a função social como condição de seu reconhecimento pelo estado e, ainda, ser exercida em atendimento aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana [...]

Como ressalta Pietro Perlingieri (2007, p. 230 e 226): “A afirmação generalizada de

que a propriedade privada tem função social não consente discriminações e obriga o intérprete

a individuá-la em relação à particular ordem de interesses juridicamente relevantes”, em

consonância com os valores sobre os quais se funda o ordenamento. Nesse contexto,

Francisco Luciano Lima Rodrigues (2008, p. 203) realça que:

A partir da inclusão da função social como um direito e uma garantia fundamental, deu-se uma ligação estreita entre este conceito e o princípio da dignidade da pessoa humana, com reflexos sobre a necessidade de um desenvolvimento nacional, de um combate contra a pobreza e as desigualdades regionais. Haveria, assim, uma relação próxima entre o princípio da função social e o da igualdade, visto ser necessário a oferta de oportunidades e de condições de vida digna, capazes de efetivar a justiça social [...]

Ademais, vale mencionar que Stefano Rodota (1987, p. 239 e 240)

distingue função social da instituição de função social dos bens, nos seguintes termos:

Semejante noción excluye otras que, aun tomando como punto de partida El reconocimiento de la función social, tienden a no modificar em ninguno de sus elementos la situación del sujeto proprietário, refiriendo la función a la propriedad como institución o a lós bienes que constituyen su objeto. La propiedad ilamada a desarrollar una función social no es la propiedad-derecho subjetivo, o sea, en cuanto derecho subjetivo, es la propiedad como institución jurídica. Para ilegar a esta conclusión es necesario seguir concibiendo los límites como algo que está fuera de la situación de propiedad. Y esto comporta, ante todo, el planteamiento de un contenido esencial de la propiedad como algo a priori respecto de las modificaciones o de las limitaciones, y en segundo lugar, la referencia al concepto de institución, sobre el cual se puede formular alguna reserva por las incertidumbres a que da lugar y la duplicación que introduce.

Eros Roberto Grau (2005, p. 247) diferencia a função social prevista no título dos

direitos e garantias fundamentais, no inciso XIII do art. 5º da Constituição, a qual, segundo

ele, refere-se à “propriedade dotada de função individual”, da função social da propriedade

estatuída como princípio geral da atividade econômica, que se relaciona à “propriedade-

função social” e corresponderia à propriedade dos bens de produção, sendo essa a que

diretamente interessa à ordem econômica.

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4 A função social da empresa

A empresa é uma atividade extremamente relevante para o desenvolvimento do

Estado, especialmente para a ordem econômica nacional, funcionando como importante

elemento da realidade social e econômica, com importância não apenas jurídica, mas também

econômica, social e política. (MESSANOTTI, p. 16 e 18). Segundo Arnold e Michelan (2000,

p. 157):

Com o processo de globalização e regionalização da economia, a empresa passa a desempenhar papel fundamental na sociedade contemporânea. Dela depende, diretamente, a subsistência da maior parte da população ativa do Brasil e nos países desenvolvidos ou em desenvolvimento. É dessa instituição social que provém a grande maioria dos bens e serviços consumidos pelo mercado, além de prover o Estado da maior parcela de suas receitas fiscais.

Assim, a atividade econômica empresarial é importante, pois produz riquezas para o

país, funcionando a empresa como grande fonte de tributação e arrecadação para o Estado e

de renda para as pessoas, pois gera empregos, sendo essencial para qualquer estrutura

organizacional humana e satisfação de suas necessidades. Deve ser preservada e protegida

pela ordem jurídica, pois sem ela o Estado não se desenvolve. Ocorre que, conforme

observam Arnoldi e Michelan (2000, p. 157):

[...] A empresa, tal qual a concebemos hoje, não é mais uma mera produtora ou transformadora de bens que coloca no mercado. É, antes de tudo, um poder. Nesse contexto, deve ampliar suas responsabilidades sociais e redefinir seu papel e missão na sociedade, ou seja, deve essa instituição possuir uma função social.

Como a empresa possui o poder de movimentar a economia, sendo a atividade

organizada responsável pela produção e circulação de bens ou serviços no mercado, para

atender às necessidades da população, funcionando como fonte de empregos e de

subsistência, bem como de tributação para o Estado, detém ela uma grande responsabilidade

social de cunho comunitário, devendo atender aos interesses coletivos do bem estar geral da

sociedade, pelo atendimento de uma função social, a denominada “função social da empresa”,

que se revela como um “elemento externo ao objetivo privado de sócios e da própria Empresa

na obtenção do lucro [...]”. (CAVALLAZZI FILHO, 2007, p. 88). Cássio Cavalli (2005, p.

209) aduz que:

A empresa é, indiscutivelmente, um centro para o qual confluem diversas relações sociais, que possuem em comum o fato de (a) serem direcionadas ao mesmo sujeito, o empresário; e (b) serem direcionadas ao mesmo fim, ou seja, possuem a função de servir à produção de bens ou serviços tendentes à satisfação de necessidades alheias.

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Nesse sentido, o exercício da empresa pelo particular, como atividade econômica que

é, deve atender não apenas aos seus interesses privados a serviço do lucro, mas também aos

ditames da justiça social, a fim de assegurar a todos existência digna, com obediência aos

princípios gerais da atividade econômica, dentre eles o da propriedade privada e o da função

social da propriedade, estatuídos nos incisos do art. 170 da Constituição Federal. Como bem

observa Tullo Cavallazzi Filho (2007, p. 84):

Para identificar-se, no entanto, a Função Social da Empresa, é preciso lembrá-la como uma atividade que não está apenas e tão somente restrita aos interesses particulares e a serviço do lucro, mas também como um ente cujo perfil funcional está cada dia mais representado pelo atendimento de interesses comunitários.

Gabriela Mezzanotti (2003, p. 23) comenta sobre a convivência dos princípios da

autonomia privada e da solidariedade social na disciplina da empresa, diante dos princípios

constitucionais da ordem econômica, mencionando a necessidade de delimitação de sua

função social, da seguinte forma:

Muito embora, ao relacionarmos o instituto da empresa aos princípios constitucionais da ordem econômica, como a liberdade de iniciativa e de concorrência e, de forma indireta, à autonomia privada, tende-se a ligar tais institutos aos cânones do tradicional capitalismo liberal. Contudo, o pensamento hodierno apresenta uma preocupação diversa, que motiva tais institutos a partir da devida delimitação de sua função social.

Dessa maneira, a empresa não se pode restringir a objetivos meramente lucrativos,

devendo buscar também, juntamente com o Estado, a realização do bem-estar e da justiça

social, a fim de assegurar os direitos individuais dos cidadãos. Para Eros Roberto Grau (2005,

p. 224) justiça social significa correção e “superação das injustiças na repartição, a nível

pessoal, do produto econômico”, exigida em qualquer política econômica capitalista. Acerca

da atribuição de funções sociais às empresas em uma sociedade capitalista, Arnoldi e

Michelan (2000, p. 160 e 161) asseveram o que se segue:

A empresa capitalista é, em última análise, uma organização produtora de lucros; é esse o seu objetivo final. Esta instituição jamais poderá renunciar a sua finalidade lucrativa. Contudo, as empresas acabam sendo hoje tão responsáveis quanto o Estado no que diz respeito a assegurar os direitos individuais do cidadão. [...] ........................................................................................................................................ O papel que essa instituição desempenha hoje na sociedade é extremamente importante para eximi-la de toda e qualquer obrigação diversa da meramente lucrativa.

Arnoldi e Michelan (2000, p. 160) ressaltam que não é porque a empresa possui

referida missão na sociedade que o Estado se desincumbe do dever que lhe compete,

asseverando o que se segue:

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Não se pode, a priori, relacionar uma suposta função social que venha a exercer a empresa com a demissão, pelo Estado, de sua atribuição primordial, qual seja, a de guiar e dirigir a nação em busca da realização do bem-estar e da justiça social. Este não se exime de sua função por existir uma segunda entidade colaborando para a consecução de uma mesma finalidade.

A respeito desse papel e responsabilidade social da empresa, atuando ao lado do

Estado, em benefício da coletividade, Arnoldi e Michelan (2000, p. 161) mencionam ainda

que:

Podemos afirmar que atribuir alguns deveres sociais a essas entidades não significa esquivar o Estado de funções que lhe são próprias. Na economia moderna, ambos devem trabalhar juntos, pois é notório que a atividade empresarial assumiu dimensões extraordinárias que cada vez mais vêm se acentuando nesta época de globalização. [...] Importante ressaltar que sua contribuição à sociedade não significa uma diminuição dos lucros. Pelo contrário, podemos felizmente constatar uma sensível melhora nas condições econômico-financeiras das instituições que têm adotado medidas de caráter social. São alternativas viáveis e necessárias a esse novo contexto mundial. A sociedade está cobrando cada vez mais essa atuação.

Logo, cabe à empresa cumprir uma função social, em atendimento ao princípio da

função social da propriedade, da qual se revela como um modo de expressão ou finalidade,

por representar, como mencionado alhures, a própria propriedade privada organizada de

forma dinâmica, sendo, segundo Tullo Cavallazzi Filho (2007, p. 82), “o exercício da

Empresa Privada um corolário da Propriedade Privada”. Sobre essa organização dinâmica da

propriedade privada pela empresa, vale destacar as lições de Eros Roberto Grau (1981, p. 115

apud CAVALLAZZI FILHO, 2007, p. 85):

O que importa destacar, em tal concepção, é a visualização da propriedade não estaticamente, mas sim como dinamismo. Nesse ponto, na concepção da empresa como conjunto de bens em dinamismo – e que, portanto, deve ser objeto de um tratamento jurídico diferenciado daquele que se aplica à propriedade enquanto estaticamente considerada – iremos encontrar não apenas as bases que justificam o entendimento da empresa como detentora de função social, mas também ponderáveis razões a justificar a construção desenvolvida em torno da ideia da empresa como sujeito de direitos.

Em vista disso, a função social da propriedade dos bens de produção, postos em

dinamismo em regime de empresa no capitalismo, expressa-se pela função social da empresa,

podendo-se afirmar, ainda, que “a propriedade em regime de empresa é discernida a partir da

consideração da propriedade dinâmica que não tem por objeto a fruição do seu titular – mero

direito subjetivo – mas a produção de outros bens – função.” (GRAU, 2005, p. 237 e 240).

Sendo assim:

O exercício da propriedade – considerada no seu momento dinâmico – é, pois, função. [...] a propriedade deve ser examinada em dois momentos distintos: um, o

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momento estático, quando ela é regulada em termos de pertença ou pertinência – e aí é faculdade que se pode transmutar em ato em decorrência de permissão jurídica, é poder; outro, o momento dinâmico, em que regulada em razão do fim a que socialmente se destina. (GRAU, 2005, p. 244)

A empresa, portanto, dinamiza a propriedade por meio de sua livre iniciativa

econômica e possui grande poder de transformação das realidades sociais, devendo atender

não só as finalidades econômicas da atividade empresarial e interesses particulares do

proprietário do estabelecimento ou do empresário que a exerce, mas também à sua função

social, em prol de interesses coletivos, em benefício da coletividade, desempenhando um

papel fundamental na sociedade contemporânea. Tulo Cavallazzi Filho (2007, p. 86)

menciona “a importância o papel da Empresa na realização da política econômica e social do

país, que a constitui como um dos principais agentes de desenvolvimento da nação”, aduzindo

ainda que:

Todos estes elementos levam à conclusão de que a atividade econômica desenvolvida pela Empresa Privada, por ser um salutar elemento para a Ordem Econômica nacional, sujeita-se plenamente ao Princípio da Função Social da Propriedade. Conclui-se, também, que a Empresa e seus Bens de Produção, quando particulares, equivalem à Propriedade Privada na Constituição da República. Isto permite afirmar que o Princípio da Função Social da Propriedade deve ser aplicado plenamente à atividade empresarial, não só como forma de delimitar e fiscalizar suas atividades em razão do interesse público e comunitário, mas também, em determinados momentos, como uma garantia que a própria Constituição da República oferece para defender a integridade dos Bens de Produção e das atividades exercidas pela Empresa Privada. (CAVALLAZZI FILHO, 2007, p. 92 e 93)

Philomeno Joaquim da Costa (1956, p. 172 e 173 apud GRAU, 2005, p. 245)

evidencia que: “A empresa, como confluência de capital e trabalho, está sendo instrumento de

uma reelaboração do conceito de propriedade; é dono de um bem quem dele se utiliza para

fins produtivos”.

No direito comparado italiano, Pietro Perlingieri (2007, p. 220) refere-se a

expressões como “proprietário-empresário” e “propriedade-empresa”, aduzindo, em síntese,

que o proprietário-empresário tem a obrigação de utilizar o bem e que sua atividade é livre,

desde que o bem não fique inutilizado. Caso o bem seja utilizável, mas não lhe tenha sido

dada destinação alguma, ele será utilizado no interesse da coletividade. O autor destaca que há

figuras de atividade de propriedade-empresa, nas quais “o sujeito proprietário tem a obrigação

de realizar a utilidade social que aquele bem é suscetível de realizar, ainda que não seja em

uma única direção obrigatória”.

De mais a mais, no direito comparado português, Ana Prata (1982, p. 203 e 206) trata

da função social da iniciativa econômica privada, assinalando que essa suporta não apenas

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limites negativos, que delimitam os setores de atividade, mas também a existência explícita e

inequívoca de uma função social que lhe é expressamente atribuída e que “garante a liberdade

do seu exercício enquanto instrumento do progresso coletivo”.

A autora menciona que o alcance dessa função social da iniciativa econômica é

delimitado pela compreensão do que seria progresso coletivo, o qual se particulariza nos

diversos setores da atividade econômica, caracterizado, primeiramente, por um sentido

econômico de aumento da produção e da produtividade dos meios de produção, sendo

identificado, também, por “um aumento quantitativo e qualitativo da satisfação das

necessidades individuais e sociais”, de igual forma, pela salvaguarda da independência

nacional e, por fim, figurando como “um meio de obter uma ordem social mais equilibrada e

menos desigual”. (PRATA, 1982, p. 204)

A “função social”, atribuída expressamente pelo direito comparado português à livre

iniciativa econômica privada, auxilia, juntamente com a “utilidade social” e as “relações

sociais justas”, na configuração do âmbito de esfera de liberdade deixada ao empresário ou ao

proprietário privado no exercício daquela iniciativa, possuindo algumas restrições que, se não

lhe trazem uma imediata projeção no âmbito de sua autonomia privada, acarretam-lhe, ao

menos, um reflexo imediato, condicionando o campo de suas liberdades jurídicas negociais

pela limitação da liberdade de opção ou da liberdade de gestão desses operadores econômicos

privados. (PRATA, 1982, p. 206 e 207)

Do exposto, constata-se a existência da função social no exercício da empresa

privada, de forma a coadunar-se com o princípio da função social da propriedade, que

representa um princípio geral da atividade econômica explorada pelos particulares no uso de

sua livre iniciativa, a qual figura como um dos fundamentos da ordem econômica brasileira. É

visível a relação da livre iniciativa econômica privada com a função social da empresa,

devendo aquela compatibilizar-se com essa, buscando assegurar a existência digna de todos,

em consonância com os ditames da justiça social.

Conclusão

Foi realizada uma análise da relação existente entre a função social da empresa, a

livre iniciativa econômica e a propriedade privada, abordando-se seus conceitos e

especificações, bem como a conexão entre eles, interligando-os, de forma a demonstrar a

necessidade de sua coexistência na atividade empresarial, com importância econômica e

social para a sociedade contemporânea.

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Verificou-se inicialmente que a propriedade está prevista em nosso ordenamento

jurídico como um direito fundamental e caracteriza um direito real, podendo incidir sobre

bens materiais ou imateriais. Diferenciou-se os conceitos de empresa, empresário e

estabelecimento empresarial. A empresa representa a atividade econômica organizada para a

produção e circulação de bens e de serviços, exercida pelo empresário, que poderá ser pessoa

física (empresário individual) ou coletivo (sociedade empresária), utilizando-se do

estabelecimento empresarial, composto pelo conjunto de bens concretos (bens de produção)

ou abstratos (ativos empresariais).

Observou-se que o proprietário do complexo de bens que compõe o estabelecimento

pode ou não coincidir com a figura do empresário que exerce a atividade empresarial. Foi

constatado, assim, que a empresa figura como uma expressão do direito de propriedade e que

representa um modo de existir da propriedade privada de forma dinâmica, podendo-se cogitar

da existência de uma “propriedade empresarial”.

Analisou-se que o exercício da empresa pressupõe a existência da livre iniciativa

(expressão econômica da autonomia privada, configurando a liberdade econômica

empresarial) para que se possa exercer a atividade econômica e que, para isso, é necessário

que exista a propriedade privada, relacionando os regimes existentes entre elas, os quais, por

vezes, podem coincidir, como é o caso da necessidade de atendimento da função social.

Foi feita uma abordagem sobre a função social da propriedade, visualizando-se que

ela apresenta-se como um aspecto interno do conteúdo do direito de propriedade,

representando o conteúdo mínimo da propriedade estabelecido pela Constituição Federal,

sendo componente da estrutura interna da propriedade privada, e, por isso, um

condicionamento da propriedade, embora, há quem entenda que se trata de uma limitação às

suas faculdades.

Verificou-se que a propriedade não pode ser utilizada arbitrariamente, devendo

atender não apenas aos interesses particulares do proprietário, mas também aos interesses

coletivos juridicamente relevantes, em atendimento à sua função social e à razão para o qual

foi atribuído ao seu proprietário. Foi observada a existência de dois aspectos da propriedade e

também de sua função social: um individual e outro institucional, sendo esse último o aspecto

que interessa à ordem econômica.

De igual forma, destacou-se que a importância da empresa para a sociedade

contemporânea, analisando-se que ela possui responsabilidades sociais e cumpre um papel

fundamental na realização do bem-estar coletivo e da justiça social, pois é ela que gera

empregos, funciona como forte fonte de tributação e arrecadação para o Estado e é produtora

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e transformadora dos diversos bens e serviços que posta em circulação no mercado, para

atender as necessidades da população do país, devendo atuar juntamente com o Estado para

assegurar os direitos individuais dos cidadãos, melhorando as condições de vida da

coletividade.

Por fim, concluiu-se que, por figurar a empresa como um centro para o qual

confluem diversas relações sociais, e tendo ela missão tão importante na sociedade, faz-se

notório que ela também é detentora de uma função social, em reforço, inclusive, da própria

função social da propriedade, devendo a atividade econômica empresarial atender não apenas

às finalidades lucrativas dos interesses particulares do empresário/proprietário, mas também

aos interesses coletivos do bem estar geral da sociedade e ela exerce isso por meio da

liberdade econômica que possui, liberdade essa atribuída por sua livre iniciativa econômica

privada, a qual também deve servir para o cumprimento da função social.

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O DIREITO (FUNDAMENTAL) À PROPRIEDADE NO ÂMBITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO E A SUA RELATIVIZAÇÃO PELO INSTITUTO

DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE.

THE (FUNDAMENTAL) RIGHT TO PROPERTY WITHIN THE BRAZILIAN CONSTITUTIONAL LAW AND ITS RELAVITIZATION

Samantha Ribas Teixeira1

RESUMO

O presente estudo tem como objetivo analisar de que forma e em que extensão o instituto da Função Social da Propriedade relativiza o direito fundamental à propriedade elencado na Constituição Federal de 1988. Para a consecução de tal fim buscou-se explorar, primeiramente, a temática referente ao surgimento da concepção de propriedade privada e a fundamentação filosófica que a embasa. Em seguida, estuda-se a alteração desta concepção, desde o seu entendimento como direito absoluto do homem até a seu ingresso na esfera jurídica brasileira, que culmina com sua inserção na Carta Magna vigente como direito fundamental. Isto posto, seguirá a análise proposta, estudando o conceito e a proposta trazida pela Função Social da Propriedade, e em que extensão a vinculação de tal instituto ao direito fundamental à propriedade privada o relativiza a fim de sanar mazelas típicas de economias capitalistas.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos Fundamentais; Propriedade; Função Social.

ABSTRACT

The present study aims to examine how and to what extent the institute of Private Property Social Function relativizes the fundamental right to property present in the Brazilian 1988 Federal Constitution. To achieve that purpose it was sought to explore, first, the theme of the emergence of the concept of private property and the philosophical foundation that underlines it. Next, the focus turns to the change on this first conception of property and analyzes the comprehension of it since it was claimed to be an absolute human right, through the decades and through its entry in the brazilian legal system, culminating in its ultimate inclusion as a fundamental right with the 1988 Brazilian Federal Constitution. That said, what follows is an analysis of the concept and the ideology of the Private Property Social Function institute and in what extension bounding the fundamental right to fulfilling a social role actually help to vanquish ailments typically found in capitalist economies.

KEYWORDS: Fundamental Rights; Property; Social Function.

1 Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná em 2011, mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, pesquisadora do Grupo de Estudos Meio Ambiente: sociedades tradicionais e sociedade hegemônica. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected].

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Sumário: Introdução; I. Breve Histórico sobre a Propriedade Privada – Uma introdução necessária; II. A Constitucionalização do Capitalismo: O direito (fundamental) à propriedade no Brasil; III. Função Social da Propriedade – Relativização do Direito (fundamental) à propriedade; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO

A propriedade privada, conforme atualmente concebida, não é senão o resultado de

um processo histórico multifatorial e de decurso relativamente recente na história mundial,

uma vez que seus contornos somente foram propriamente delineados em meados da chamada

Idade Moderna, através do incentivo de pensadores vinculados à Igreja Católica (São Tomás

de Aquino e Santo Agostinho) e filósofos como John Locke, o qual introduziu a ideia da

propriedade privada como um direito natural do homem – concepção que veio a ser

absolutizada e elencada como direito humano na Declaração de Direitos do Homem e do

Cidadão de 1789, consequência da Revolução Francesa datada do mesmo ano.

Na mesma época, e na esteira do disposto neste documento, os Estados nacionais

europeus e grande parte daqueles sob sua influência passaram a elencar a propriedade

individual caracterizando-a como um direito inerente ao homem e protegido por todo o

sistema jurídico. No caso brasileiro não foi diferente. O instituto da propriedade aparece

elencado em todas as Constituições brasileiras, demonstrando uma tutela perene, apesar de

algumas serem mais conservadoras no seu reconhecimento como um direito absoluto e outras

mais inovadoras/progressistas, e de apenas recentemente ter sido expressamente disposta

como um direito fundamental.

A Constituição de 1988 inova no sentido de que vincula o direito elencado como

fundamental ao cumprimento do estabelecido como a sua função social, em mais de um

momento no contexto do texto constitucional. Esta relativização do tradicional teor absoluto

do instituto da propriedade se dá, no entanto, mais no plano formal do que no

verdadeiramente prático, haja vista a existência de óbices à sua concretização no contexto do

próprio texto da Constituição. Como se não bastasse, tal vínculo não encontra punição efetiva

para o caso de seu descumprimento, uma vez que no pior caso possível de descumprimento do

postulado como papel a propriedade, especialmente a agrária, no contexto social, a medida

mais grave é a expropriação do bem mediante prévia e justa (suficiente) indenização. O que se

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efetua é, na verdade, uma troca do bem por numerário, o que não configura uma real punição

ao descumpridor do constitucionalmente determinado, posto que por vezes esta troca lhe é até

benéfica, senão inócua. Ainda, apesar de o instituto da propriedade ter sido relativizado, o

sistema econômico a ele umbilicalmente vinculado, qual seja, o capitalismo2, não o é. Se

muito, é tolhido de forma a poder adequar-se às transformações sociais normalmente causadas

por seus próprios meios e de forma a ser mantido, fortalecido, adequado dentro do contexto

social atual.

I. BREVE HISTÓRICO SOBRE A PROPRIEDADE PRIVADA – UMA INTRODUÇÃO NECESSÁRIA

A propriedade privada, conforme a concebemos atualmente, é fruto de processos

históricos que acompanham a humanidade desde seus primórdios, mas que apenas vieram a

concretizar-se da forma posta em momento relativamente recente.3

Inicialmente, durante período em que a humanidade agrupava-se em comunidades

esparsas, e em geral nômades, a fim de garantir a sua sobrevivência, o sentido de propriedade

de bens ou de territórios, como a concebemos atualmente, não era corrente. A terra, todos os

seus frutos e eventuais objetos eram de uso e serviam a uma finalidade coletiva.4

Tal cenário passa a mudar quando o homem passa agir de forma sedentária e, com

isso, a delimitar o território que estava sob o uso de sua comunidade em detrimento de outras

que se instalavam em localidades próximas ou limítrofes – este reconhecimento de

propriedade da comunidade é que acaba por assumir, com o tempo, os contornos de

propriedade individual, a qual adquire status de concessão divina a alguns indivíduos no

âmbito das sociedade antigas, e em contextos sociais como o romano ela já aparece

solidamente configurada como um instituto reconhecido e protegido por leis.5

2 SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Traduzido por George Allen e Unwin Ltd. Disponibilizado por Ordem Livre Org. Disponível em: ftp://ftp.unilins.edu.br/leonides/Aulas/Form%20Socio%20Historica%20do%20Br%202/schumpeter-capitalismo,%20socialismo%20e%20democracia.pdf. Acesso em: 14/03/2013.3 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. A Função Social da Terra. Porto Alegre: Fabris, 2003. p. 22.4 LIBERATO; Ana Paula G. O Direito Humano Fundamental: A reforma agrária. Dissertação apresentada para obtenção de título de Mestre na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Disponível em: http://www.biblioteca.pucpr.br/tede/tde_arquivos/1/TDE-2005-04-13T134538Z-118/Publico/AnaPauladtoDiss.pdf. Acesso em: 18/11/2012. p. 05.5 LIBERATO; Ana Paula G. O Direito Humano Fundamental: A reforma agrária. Dissertação apresentada para obtenção de título de Mestre na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Disponível em:

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O próximo passo no sentido da compreensão da propriedade privada se dá com o

tratamento destinado aos territórios no período feudal, a qual não foi senão reforçada em seu

caráter de concessão divina e, em assim sendo, na condição absoluta de sua fruição por aquele

a qual era destinada.6

Mas é ao ingressar no período chamado de Idade Moderna que ela efetivamente toma

os contornos do que representa atualmente7. Ultrapassa a barreira de concessão divina para ser

considerada direito natural do homem tanto pela doutrina emanada da Igreja Católica quanto

por filósofos como John Locke8, o qual sustenta que ao homem pertence aquilo que ele com o

desforço de seu corpo (sua propriedade) viesse a modificar (válido também para modificação

de matérias-primas através de mão de obra assalariada, visto que o trabalho também é de

propriedade do homem e ele pode comercializá-lo), podendo ele dispor daquilo como lhe

conviesse desde que não o fizesse de forma a deixá-lo perecer.9 Este raciocínio aplica-se

também à terra, que, segundo o filósofo, sendo melhorada pelo trabalho humano, sendo esta a

vontade divina, esta passa a pertencer-lhe, em conformidade com o raciocínio tecido com

relação a qualquer outro bem que o homem viesse a beneficiar com seu gênio criativo e labor

corporal, e aponta com clareza que todo homem deve ter tudo aquilo que conseguir

acumular.10 Este raciocínio, sem mais, evidencia a lógica da elite dominante da época e serve

aos interesses desta, que busca bases para justificar a acumulação capitalista.

Enfim, a noção de propriedade privada é justificada e transformada pela lógica

capitalista de concessão divina em mercadoria, principalmente no que tange à propriedade da

terra, além de fonte de extração de bens e recursos naturais passíveis de comercialização em

forma de produtos obtidos a partir da exploração do trabalho de homens “livres” (expulsos do

campo no qual eram “obrigados” a laborar terras de seus senhores em troca de local para

http://www.biblioteca.pucpr.br/tede/tde_arquivos/1/TDE-2005-04-13T134538Z-118/Publico/AnaPauladtoDiss.pdf. Acesso em: 18/11/2012. p. 06/07.6 LIBERATO; Ana Paula G. O Direito Humano Fundamental: A reforma agrária. Dissertação apresentada para obtenção de título de Mestre na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Disponível em: http://www.biblioteca.pucpr.br/tede/tde_arquivos/1/TDE-2005-04-13T134538Z-118/Publico/AnaPauladtoDiss.pdf. Acesso em: 18/11/2012. p. 07.7 LIBERATO; Ana Paula G. O Direito Humano Fundamental: A reforma agrária. Dissertação apresentada para obtenção de título de Mestre na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Disponível em: http://www.biblioteca.pucpr.br/tede/tde_arquivos/1/TDE-2005-04-13T134538Z-118/Publico/AnaPauladtoDiss.pdf. Acesso em: 18/11/2012. p. 08.8 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. A Função Social da Terra. Porto Alegre: Fabris, 2003. p. 22.9 LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. Disponível em: http://www.xr.pro.br/IF/LOCKE-Segundo_tratado_Sobre_O_Governo.pdf. Acesso em: 20/11/2012. p. 98/100.10 LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. Disponível em: http://www.xr.pro.br/IF/LOCKE-Segundo_tratado_Sobre_O_Governo.pdf. Acesso em: 20/11/2012. p. 98/100. p. 101.

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cultivar seu alimento e construir sua moradia) despojados de qualquer outra forma de

sobrevivência senão aquela auferida através da “livre” venda de seu potencial laboral.11

A progressão histórica do pensamento expressado por Locke é a conveniente

anulação daquilo descrito como “desperdício”, sendo que o proprietário de um bem tem

domínio absoluto sobre ela, podendo, inclusive deixá-la intocada (para utilização como mera

forma de especulação financeira) ou à mercê do perecimento, se assim lhe aprouvesse.12

Vislumbra-se a existência, portanto, uma intrínseca conexão entre a propriedade privada,

principalmente a de vertente agrária (terras) e o estabelecimento/manutenção do capitalismo.13

Resta apontar que a propriedade privada passa definitivamente a integrar

ordenamentos jurídicos nacionais, principalmente na esfera das cartas políticas dos Estados, e

exatamente na conjuntura absoluta já descrita, caracterizada pela aquisição via contrato14 (o

qual pressupõe liberdade individual para contratar) e pela sua oponibilidade frente a todos os

demais cidadãos, a partir do advento da Revolução Francesa15 e do seu arrolamento na

Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão como um direito natural, ambas datadas de

178916.

O conteúdo do referido documento é categórico: “Artigo 2º- O fim de toda a

associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses

Direitos são a liberdade. a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.”17 e, ainda,

“Artigo 17º- Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser

privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir

evidentemente e sob condição de justa e prévia indemnização.”18

11 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. A Função Social da Terra. Porto Alegre: Fabris, 2003. p. 22.12 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. A Função Social da Terra. Porto Alegre: Fabris, 2003. p. 26.13 WOOD, Ellen Meiksins. As Origens Agrárias do Capitalismo. Artigo publicado na Revista Monthly Review. V.50, n. 3, jul/ago, 1998. p. 27.14 RIBEIRO, Fernando J. Armando. O Princípio da Função Social da Propriedade e a Compreensão Constitucionalmente Adequada do Conceito de Propriedade. Disponível em: http://www.fmd.pucminas.br/Virtuajus/ano2_2/O%20principio%20da%20%20funcao.pdf. Acesso em: 17/03/2013.15 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. A Função Social da Terra. Porto Alegre: Fabris, 2003. p. 33/35.16 FORNEROLLI, Luiz Antônio Zanini. A Propriedade Relativizada por sua Função Social. Disponível em: http:tjsc25.tj.sc.gov.br/academia/arquivos/propriedade_funcao_social_luiz_fornerolli.pdf. Acesso em 19/11/2012.17 DECLARAÇÃO DOS DIRETOS DO HOMEM E DO CIDADÃO. Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direitos-humanos/declar_dir_homem_cidadao.pdf. Acesso em 20/11/2012.18 DECLARAÇÃO DOS DIRETOS DO HOMEM E DO CIDADÃO. Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direitos-humanos/declar_dir_homem_cidadao.pdf. Acesso em 20/11/2012.

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É importante apontar que, no contexto exposto, ser proprietário significa, em última

instancia, o pertencimento dentro do sistema, posto que aquele que tem propriedade pode dá-

la em garantia, pode aliená-la ou fruí-la, ou seja, pode capitalizar seu bem, movimentando o

mercado e produzindo a oportunidade de prover lucros si e para outras partes envolvidas

(instituições financeiras, investidores, o próprio Estado, dentre tantos outros) no processo

além de si mesmo, integrando-o ao meio em que vive e alocando-o em determinada classe

social dentro deste meio, no qual detém privilégios e regalias que aqueles destituídos da

possibilidade de adquirir propriedades não possuem.

Vide, ainda, que tal previsão de retomada da propriedade pelo Estado não se vincula

a qualquer condicionante na utilização da mesma ou implica em uma relativização de seu

caráter absoluto, mas, tão somente, da possibilidade de mediante comprovada necessidade

pública de determinado território, cuja escolha deve ser justificada ao proprietário e cujo valor

lhe é pago antecipadamente, pode o proprietário vir a entregar sua propriedade. Exemplos do

arrolamento de tais direitos em ordenamentos jurídicos nacionais podem ser encontrados na

Constituição Norte Americana de 1791 (artigo 1°) e no Código Civil Napoleônico, de 1804, o

qual exerceu grande influência na estruturação do direito civil brasileiro19.

Assim demonstra-se que a propriedade privada, de maneira diversa ao comumente

aventado, não é inerente à essência humana, mas, sim, fruto de um processo histórico que

forjou a sua concepção e a sua adoção pelas sociedades humanas, principalmente por ventura

de interesses voltados à acumulação de riquezas, de capital, e a busca pelo lucro, típicas do

sistema capitalista, ao qual é umbilicalmente vinculada. Reconhecida como direito natural do

homem, passa a adentrar as cartas políticas dos Estados europeus e àqueles por eles

influenciados, como é o caso brasileiro, o qual será matéria de análise em seguida.

II. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO CAPITALISMO: O DIREITO (FUNDAMENTAL) À PROPRIEDADE NO BRASIL

A propriedade privada, elencada como um direito natural do homem na Declaração

de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, e, a partir de então, nas Cartas Magnas da

19 LIBERATO; Ana Paula G. O Direito Humano Fundamental: A reforma agrária. Dissertação apresentada para obtenção de título de Mestre na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Disponível em: http://www.biblioteca.pucpr.br/tede/tde_arquivos/1/TDE-2005-04-13T134538Z-118/Publico/AnaPauladtoDiss.pdf. Acesso em: 18/11/2012. p. 13.

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grande maioria dos Estados europeus e daqueles por eles influenciados, adentra a esfera do

ordenamento constitucional brasileiro desde o seu inicio, na Constituição de 1824, primeira

Constituição brasileira datada do período do Império, em seu artigo 179°.20

Nesta, coadunando com o pensamento corrente na época, a propriedade era apontada

como um direito absoluto, inviolável e integrante dos direitos inerentes aos cidadãos

brasileiros, havendo a possibilidade de sua expropriação apenas em situação de necessidade

daquela pelo Poder Público, mediante prova de sua necessidade e de prévia indenização ao

proprietário, na esteira do disposto na Declaração do Homem e do Cidadão já mencionada.21

As Cartas Magnas que a seguiram jamais configuraram dissidência com relação ao

reconhecimento da propriedade como sendo um direito conferido ao cidadão brasileiro, em

termos muito semelhantes ao elencado pela Constituição de 1824, aceitando-se leves

inovações e retrocessos no que tange à seu caráter absoluto e inviolável. Assim ocorreu com a

Constituição de 1891, promulgada quando o país proclamou a República.

A Constituição de 1934 caracteriza uma inovação, em seu artigo 113°, ao dispor que

o exercício do direito de propriedade não poderia estar em desconformidade com o interesse

social e coletivo, vedação esta que carecia de regulamentação legal para que viesse emanar

efeitos jurídicos, o que jamais veio a concretizar-se. Tal inovação foi esquecida pelo

constituinte da Carta Magna promulgada em 1937, caracterizando um breve retrocesso que

coloca a caracterização da propriedade novamente no trilho que seguia anteriormente.

Em 1946, com o advento de uma nova Constituição, a propriedade é novamente

tutelada pelo constituinte de forma a inovar no que tange ao caráter absoluto da propriedade,

apesar de também concebê-la como um direito do cidadão, pois a condiciona ao bem estar

social e a sua justa distribuição, além da igualdade de acesso a tal direito. Ou seja, pela

primeira vez uma Constituição brasileira vincula a propriedade, eivando-a do caráter de um

dever-poder.22 As Cartas Magnas de 1967, e a modificação introduzida em 1969 via Emenda

Constitucional que tanto alterou seu texto que é considerada como tendo sido uma nova

20 FERREIRA, Simone Nunes. Direito de Propriedade: nas constituições brasileiras e do Mercosul. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/rev_83/artigos/PDF/Simone_rev83.pdf. Acesso em: 19/11/2012. p. 18421 FERREIRA, Simone Nunes. Direito de Propriedade: nas constituições brasileiras e do Mercosul. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/rev_83/artigos/PDF/Simone_rev83.pdf. Acesso em: 19/11/2012. p. 185.22 FERREIRA, Simone Nunes. Direito de Propriedade: nas constituições brasileiras e do Mercosul. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/rev_83/artigos/PDF/Simone_rev83.pdf. Acesso em: 19/11/2012. p. 186.

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Constituição, foram as primeiras a expressamente elencar, sob seu artigo 153°, a propriedade

como um direito fundamental do homem, além de citar o princípio da função social da

propriedade e já prever formas de desapropriação de propriedades localizadas em âmbito

rural23, conforme explica Simone Nunes Ferreira:

As constituições de 1967 e 1969, não obstante o ambiente político em que foram geradas, consignaram, explicitamente, como finalidade da ordem social realizar o principio da função social da propriedade (art. 157, III), regulando inclusive a desapropriação da propriedade territorial rural. A propriedade teve, mais uma vez, posição de destaque, elencada no artigo 153 como direito inviolável da pessoa humana, ao lado dos direitos à vida, à liberdade e à segurança. Pela primeira vez, efetivamente a propriedade é tratada tanto no capitulo dos direitos e garantias individuais quanto no titulo da ordem econômica e social, o que representa uma mudança profunda no conceito do instituto.24

A Constituição Federal de 1988, assim como as demais Cartas Magnas já citadas,

discorre acerca da propriedade e a elenca de forma a tutelá-la como um direito fundamental

do homem, em rol específico destinado a tais direitos, qual seja, seu artigo 5°. Vinculado a

este, porém, postula-se, já no inciso seguinte do referido artigo, que “a propriedade atenderá à

sua função social”, o que torna imperativa a interpretação de que o direito fundamental à

propriedade, garantido constitucionalmente aos cidadãos brasileiros e estrangeiros residentes

no país é vinculado ao também direito fundamental de que esta atenda àquilo que se concebe

pelo texto da Carta Magna como sendo sua função social, e condiciona o seu atendimento à

possibilidade de desapropriação desta pelo Poder Público mediante prévia indenização25.

Esta, porém, não é a única vez que o constituinte versa acerca da propriedade ou de

sua função social no decorrer do texto constitucional, tendo-as mencionado, também, sob o

título da Ordem Econômica e Financeira, especificamente no artigo 170° (incisos II e III),

como princípios da ordem econômica e financeira nacional, com isso modificando o seu

conceito estanque e retirando-o da esfera estritamente individual dos direitos fundamentais, já

que os princípios que norteiam a ordem econômica nacional restam adstritos à ideia de

23 FERREIRA, Simone Nunes. Direito de Propriedade: nas constituições brasileiras e do Mercosul. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/rev_83/artigos/PDF/Simone_rev83.pdf. Acesso em: 19/11/2012. p. 187.24 FERREIRA, Simone Nunes. Direito de Propriedade: nas constituições brasileiras e do Mercosul. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/rev_83/artigos/PDF/Simone_rev83.pdf. Acesso em: 19/11/2012. p. 187.25 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29° ed. - rev. e atualiz. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 271.

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“assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social”26, fim que

são propostos a concretizar pela Carta Magna.27

O que se vislumbra é que o ordenamento constitucional brasileiro, desde a

Constituição de 1824 até a atual, modificou, criou, extinguiu, transformou, vários direitos;

deram forma e base a uma gama de formas de governo e de governar (monárquico e

republicano; ditatorial e democrático, etc.); mas o instituto da propriedade, elencado como um

direito de caráter central e de suma importância, é perene. Essa constância apenas demonstra

aquilo que já se havia constatado em momento anterior: a propriedade, principalmente a

agrária, é umbilicalmente vinculada à base e à manutenção do sistema capitalista vigente,

posto que sem a titularidade do capitalista sobre os meios de produção e do trabalhador sobre

a si mesmo (liberdade) e, consequentemente, de sua força de trabalho a ponto de poder aliená-

la para exploração por outrem, o sistema capitalista não existiria. Ou seja, em última

instância, o que se entende é que existe uma clara escolha em garantir a perenidade do sistema

capitalista no Brasil através de sua constitucionalização indireta, perpetrada quando é jogado

para dentro da Constituição sob a forma de direito natural (nas primeiras) e, mais tarde,

fundamental do homem, à propriedade, que consta lado a lado com outros direitos como a

vida, a dignidade, e outros.

A questão que se opõe ao verificar a tutela conferida pela Constituição de 1988 à

propriedade, depois de verificar o histórico de formação deste instituto e de averiguar o seu

vínculo estreito com o sistema capitalista, principalmente no que tange à propriedade em

âmbito agrário, é sobre a real existência de uma relativização do direito à propriedade

correntemente conferida ao homem através do instituto da função social da propriedade, e, em

última instância, se a relativização proposta atinge à finalidade almejada de impedir a

utilização arbitrária da terra pelo capitalista.

III. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE - RELATIVIZAÇÃO DO DIREITO (FUNDAMENTAL) À PROPRIEDADE?

Para ingressar na análise proposta resta necessário, inicialmente, tecer um breve

conceito do instituto estudado.

26 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29° ed. - rev. e atualiz. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 271.27 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29° ed. - rev. e atualiz. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 271.

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A função social da propriedade é uma limitação imposta pela Constituição Federal no

que tange ao direito de propriedade, pois exclui a possibilidade do seu exercício de forma

absoluta e desvinculada do contexto social no qual se insere28. O constituinte elencou, no teor

do artigo 186 da Constituição Federal de 1988 que a função social da propriedade rural, por

exemplo, está vinculada a quatro requisitos a serem preenchidos de forma simultânea: seu

aproveitamento racional e adequado; utilização racional dos recursos naturais e preservação

ambiental; a observância da legislação trabalhista com relação aos seus empregados; e a

perpetração de uma exploração que favoreça o bem-estar dos trabalhadores e do próprio

proprietário.29 É estabelecido, também, tanto no texto constitucional quanto

infraconstitucional, que a propriedade produtiva atinge a sua função social, excluindo a

possibilidade da sua desapropriação pelo Poder Público em face do interesse social.30

Ou seja, quando se fala em função social da propriedade, o que se denota é uma

pretensa evolução, pois o direito à propriedade deixa de ser considerado absoluto ou semi-

absoluto em seu exercício e sua tutela pelo Estado. É neste sentido que aponta José Afonso da

Silva, em sua obra Curso de Direito Constitucional Positivo, na qual coloca que aquela

concepção Moderna da propriedade que a postulava como um direito absoluto e/ou um direito

natural foi desconstruído e superado, principalmente com o advento da ideia de função social

da propriedade31. Neste sentido, ensina:

Demais, o caráter absoluto do direito do direito de propriedade, na concepção da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 (segundo a qual o seu exercício não estaria limitado senão na medida em que ficasse assegurado aos demais indivíduos o exercício de seus direitos), foi sendo superado pela evolução, desde a aplicação da teoria do abuso do direito, do sistema de limitações negativas e depois também das imposições positivas, deveres e ônus, até chegar-se à concepção da propriedade como função social, e ainda à concepção da propriedade socialista, hoje em crise.32

28 PESSOA, Maiana Alves. A Função Social da Empresa como Princípio do Direito Civil Constitucional. Disponível em: http://www.oab-ba.com.br/novo/Images/upload/File/Artigos/maiana-alvez-pessoa-a-funcao-social-da-empresa.pdf. Acesso em 21/03/2013.29 BRAGA, Roberta Chaves. O Direito de Propriedade e a Constituição Federal de 1988. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à ESMEC – Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará em julho de 2009. Disponível em: http://bdjur.tjce.jus.br/jspui/bitstream/123456789/229/1/Monografia%20Roberta%20Chaves%20Braga.pdf. Acesso em: 19/11/2012. p. 34.30 BRAGA, Roberta Chaves. O Direito de Propriedade e a Constituição Federal de 1988. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à ESMEC – Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará em julho de 2009. Disponível em: http://bdjur.tjce.jus.br/jspui/bitstream/123456789/229/1/Monografia%20Roberta%20Chaves%20Braga.pdf. Acesso em: 19/11/2012. p. 34.31 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29° ed. - rev. e atualiz. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 272.32 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29° ed. - rev. e atualiz. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 272.

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Sobre o tema, Carlos Frederico Marés de Souza Filho aponta que ao vincular a

propriedade ao cumprimento de requisitos que ensejem o reconhecimento do atendimento de

uma função social, de fato ocorre um enfrentamento do caráter absoluto e inviolável que lhe

havia sido conferido em outras épocas, especialmente frente à necessidade de tutela de novos

direitos coletivos, como é o caso da proteção conferida ao meio ambiente, por exemplo, sendo

que a propriedade que não cumpra com o seu papel frente à sociedade não possui tutela

jurídica e não pode ser considerada propriedade.33

Este mesmo autor, no entanto, aponta para o fato de que, em que pese o instituto da

propriedade ter sido relativizada em face ao seu anterior caráter absoluto na Carta Magna de

1988, a aplicação desta relativização é menos simples do que parece, posto que em que pese

quando da formulação do texto constitucional as oligarquia não terem conseguido impedir a

vinculação da propriedade ao atendimento de sua função social, houve a implementação por

estas de várias previsões dentro do próprio texto constitucional que obstariam a sua

concretização, em última análise remetendo-as ao escrutínio do Poder Judiciário e Executivo,

deixando-a à mercê de seu interprete.34

Mas dentre todas as aberrações perpetradas a fim de burlar o dever do proprietário de

cumprir o papel social vinculado à terra, o mais grave se opera, ainda, nas consequências

imputadas àquele que descumpre com a função social de sua propriedade, as quais não

chegam a configurar uma punição ao violador da norma constitucional. Isso porque, na pior

das hipóteses de descumprimento, o Estado espoliará o proprietário de seu bem mediante

pagamento antecipado do seu justo valor. Vide que tal consequência não pune e, sim, premia o

proprietário no âmbito da racionalidade capitalista na qual se insere a população brasileira,

haja vista que este não perde efetivamente nada, apenas troca seu bem por numerário, por

vezes ainda maior do que aquele que investiu.35

Do exposto, dessume-se que resta pacífico que o instituto da propriedade foi

relativizado em seu caráter absoluto, inviolável e sagrado na tutela que lhe foi conferida pela

Constituição de 1988, pelo menos formalmente, em especial pela sua vinculação ao

cumprimento de sua função social, apesar de ter sido elencada como um direito fundamental

do homem em conjunto com direitos como à vida, por exemplo.

Em uma derradeira análise, cabe apontar que não seria possível dizer que porque a

propriedade privada foi relativizada, que isso significa que o capitalismo sistema capitalista

nela embasada também sofreu relativização. Vide que da própria análise dos efeitos desta

33 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. A Função Social da Terra. Porto Alegre: Fabris, 2003. p. 114/116.34 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. A Função Social da Terra. Porto Alegre: Fabris, 2003. p. 118/120.35 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. A Função Social da Terra. Porto Alegre: Fabris, 2003. p. 127.

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relativização ao proprietário que descumpre seu papel social verifica-se que até quando se

relativiza as bases estruturantes do capitalismo, isto se faz dentro dos seus próprios moldes e

irrevogavelmente em favor dele. A relativização do instituto da propriedade privada, assim

como o instituto em si, é fruto de um processo histórico pautado nas tensões e desigualdades

sociais perpetradas pelo sistema econômico adotado. Ou seja, o que se verifica é que o

sistema capitalista por si só é autofágico e por vezes necessita de ser estruturado e limitado

para o fim de poder manter-se vigente dentro de um determinado contexto social, que é, sem

dúvida, o caso em tela.36

CONCLUSÃO

A noção de “propriedade” individual e absoluta como é concebida atualmente, por

alguns colocada como inerente à essência humana, é, na realidade, fruto de um processo

histórico distante do natural e relativamente recente, cujo percurso tomou os contornos

interessantes à consolidação e perpetuação do sistema econômico capitalista ao qual é

intrinsecamente vinculada. Disseminada primeiramente como uma concessão divina, e depois

pela doutrina da igreja católica e por grandes filósofos como John Locke como um direito

natural do homem, teve a sua primeira expressão como direito humano legalmente postulado

no âmbito das sociedades ocidentais europeias com a Declaração de Direitos do Homem e do

Cidadão de 1789, oriunda da Revolução Francesa datada do mesmo ano. Com inspiração

neste documento e nas necessidades de uma tutela jurídica específica em cada Estado que

garantisse o direito absoluto e inviolável a este instituto basilar aos interesses dos capitalistas,

passa-se a verificar a inserção dele em grande parte das Cartas Magnas dos Estados nacionais

europeus e daqueles que recebiam suas influências.

O direito à propriedade individual, no âmbito do ordenamento constitucional pátrio,

restou elencada em todas as oito Constituições brasileiras (contando a Emenda Constitucional

n° 1 de 1969), desde a Carta Magna de 1824 até a Constituição atualmente vigente. O que se

verifica é que a tutela da propriedade individual como um direito garantido e juridicamente

tutelado é perene, sofrendo variações apenas no que tange a uma tutela mais ou menos

conservadora deste instituto.

A Constituição de 1988 traz uma tutela interessante e diferenciada. Elenca o direito à

propriedade como direito fundamental, em título específico que versa acerca destes no teor de

seu texto e que concede uma posição diferenciada no âmbito do próprio ordenamento jurídico

36 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 257.

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nacional. Porém, faz a vinculação deste direito ao cumprimento da sua função social, esta

também elencada, em inciso próprio, como direito fundamental, tornando impossível a sua

interpretação apartada. A declaração da propriedade vinculada ao seu exercício em

conformidade com a função social que lhe é cabida também aparece em outro momento ao

longo do texto constitucional, quando o constituinte versa acerca de princípios concernentes à

Ordem Econômica e Financeira, não só reafirmando-os mas, ainda, vinculando a interpretação

destes à finalidade que estes princípios devem gradativamente intentar atingir, qual seja,

assegurar uma existência digna e em conformidade com os ditames da justiça social.

É possível entrever que o instituto da propriedade foi, de fato, relativizado – pelo

menos na sua abordagem teórica. Isso porque, apesar de o exercício da propriedade ser

condicionado ao cumprimento de sua função social, conforme determinado pelo ordenamento

jurídico nacional, o próprio texto constitucional que o apresenta e tutela detém vários entraves

à sua devida aplicação, obstando a concretização do que foi postulado. Ademais, apesar da

vinculação do exercício da propriedade à condicionantes que se referem ao cumprimento do

seu papel perante à sociedade, não há punição coerente no caso de haver descumprimento,

sendo que a mais severa pena é aquela que permite o Poder Público de expropriar o

proprietário de seu bem indenizando-lhe previamente. Ou seja, ao invés de puni-lo tomando-

lhe o bem, o Estado, na realidade, apenas troca a propriedade por numerário, o que por vezes

é extremamente vantajoso ao proprietário que deveria ser punido.

Assim, em que pese o instituto da propriedade, tecido historicamente como um

direito natural e absoluto, ter sido relativizado no âmbito constitucional pátrio instituído pela

Constituição Federal de 1988 com a sua vinculação à concretização da função social a ela

atribuída, a aplicação desta relativização é complexa e travada por interesses conflitantes e

alheios a sua concretização, próprios do sistema econômico que se visou instituir e manter

desde a Constituição de 1824, quando primeiramente se elencou a propriedade como direito

constitucional – o capitalismo. Este, vislumbra-se, apesar de intrinsecamente conectado ao

instituto em questão, não foi relativizado. Foi nada senão fortalecido e tolhido de forma a si

benéfica, posto que dependente de certa regulamentação para que não se auto destrua em sua

fúria acumulativa.

REFERÊNCIAS

BRAGA, Roberta Chaves. O Direito de Propriedade e a Constituição Federal de 1988. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à ESMEC – Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará em julho de 2009. Disponível em:

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A SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA PÚBLICO-PRIVADO SOB O ENFOQUE DA

FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

OVERCOMING THE PUBLIC-PRIVATE DICHOTOMY WITH A FOCUS ON SOCIAL FUNCTION OF PROPERTY

Cristina Malaski Almendanha1

RESUMO O Estado Constitucional intervém na propriedade privada, apresentando limitações de natureza administrativa ou impondo o dever constitucional de cumprimento de uma função social. Esse é o ponto de partida do presente trabalho, por meio do qual se pretende demonstrar, a partir da análise de uma rica bibliografia sobre o tema, que com o progressivo processo de constitucionalização do direito civil a dicotomia público-privado, que parecia dividir o ordenamento jurídico foi sendo superada. O Estado passou a tutelar com maior esforço os interesses da sociedade em detrimento dos interesses puramente individuais e patrimonialistas, o que se verifica, com maior clareza, na inserção de conteúdo constitucional nos dispositivos do Código Civil de 2002 e na edição da Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade). Nos referidos diplomas foram definidas diretrizes para o adequado aproveitamento da propriedade, com vistas a atender a dita função social que, na verdade, parece constituir muito mais o próprio conteúdo do direito de propriedade do que uma limitação imposta pelo Estado. Palavras-chave: Estado; Dicotomia público-privado; Propriedade; Função social. ABSTRACT The Constitutional State intervenes in private ownership, with administrative constraints or imposing a constitutional duty to fulfill a social function. This is the starting point of the present work, whereby if you want to demonstrate, through the analysis of a rich literature on the subject, that with the gradual process of constitutionalization of civil law to public-private dichotomy, which seemed to divide the law was being overcome. The state began to protect more effort societal interests over the interests purely individual and patrimonial, which occurs with greater clarity on content insertion constitutional in devices of the Civil Code of 2002 and the enactment of Law No. 10,257 / 2001 (Statute of the City). In these texts were defined guidelines for the appropriate use of the property, in order to meet the dictates social function that actually seems to be much the content of the right to property than a limitation imposed by the state. Keywords: State; Public-private dichotomy; Property; Social function.

1 Advogada. Mestranda do Programa de Pós Graduação em Direito Econômico e Socioambiental da Pontifícia Universidade

Católica do Paraná. Linha de Pesquisa: Estado, atividade econômica e desenvolvimento sustentável.

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1. O conceito e a função do Estado

Aristóteles já dizia que “todo Estado é uma sociedade” (ARISTÓTELES, 1998, p.

01) e que toda sociedade busca alguma vantagem, sendo que aquela que se propõe a encontrar

a maior vantagem é denominada Estado ou Sociedade Política.

Norberto Bobbio (BOBBIO, 2001, p. 94) afirmou que o Estado costuma ser definido

por três elementos: o povo, o território e a soberania. O poder soberano seria o poder de criar

e aplicar o direito; o território representaria o limite de validade espacial e o povo seria o

limite de validade pessoal do direito do Estado. Bobbio alude à necessária distinção entre a

crise do Estado e o fim do Estado. A crise poderia ser representada pelos problemas do Estado

democrático, que não consegue mais atender as demandas da sociedade; não seria

confundível, portanto, com o fim propriamente dito. O problema do fim do Estado reside no

juízo de valor, positivo ou negativo, atribuído à concentração de poder (BOBBIO, 2001, p.94)

- pela qual o Estado tem poder de vida e de morte sobre os indivíduos que a ele se

subordinam.

Para Hans Kelsen todo Estado é uma ordem jurídica, mas nem toda ordem jurídica

constitui um Estado. Para ser um Estado a ordem jurídica precisa configurar-se como uma

organização, instituindo órgãos e apresentando certo grau de centralização de funções, pois o

Estado nada mais é do que “uma ordem jurídica relativamente centralizada” (KELSEN, 2006,

p. 317).

Kelsen efetivamente definiu o Estado como uma ordem jurídica relativamente

centralizada, soberana e limitada temporal e espacialmente quanto ao aspecto de vigência.

Nas palavras do autor:

O Estado, como realidade social, está incluído na categoria de sociedade; ele é uma comunidade. O Direito está incluído na categoria de normas; ele é um sistema de normas, uma ordem normativa. O Estado e o Direito, segundo essa visão, são dois objetos diferentes. A dualidade de Estado e Direito é, na verdade, um dos fundamentos da ciência política e da jurisprudência modernas. (KELSEN, 2006, p. 263).

Quanto aos fins do Estado, Dalmo de Abreu Dallari sustenta que o problema da

finalidade do Estado comporta grande relevância prática, de modo que seria impossível

definir um Estado sem antes descobrir suas finalidades (DALLARI, 2007, p. 103). O autor

afirma que enquanto Kelsen se nega a reconhecer que a Teoria Geral do Estado deva se

ocupar, também, com a finalidade do Estado - por entender que essa é uma questão de cunho

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político e não jurídico –, muitos sustentam que a finalidade é o elemento essencial de um

Estado. De qualquer sorte, Dallari enfatiza que, sendo ou não elemento formador, a finalidade

é elemento de grande importância para a definição do Estado.

De forma bem esclarecedora Dallari traduz suas ideias na seguinte afirmação, em

relação a qual há que se concordar: “o Estado, como sociedade política, tem um fim geral,

constituindo-se em meio para que os indivíduos e as demais sociedades possam atingir seus

respectivos fins. Assim, pois, pode-se concluir que o fim do Estado é o bem comum”

(DALLARI, 2007, p. 108)

2. O movimento de codificação

Orlando Gomes destaca que a codificação do Direito Civil encontra amparo em dois

grandes códigos: o alemão de 1.896 e o francês, de 1.804, que exerceu significativa influência

em todos os outros códigos do século XIX e em alguns do século XX (GOMES, 2002, p. 62).

Conforme os ensinamentos do autor, a codificação do direito civil francês provocou, entre os

juristas do século XIX, uma tendência para o seu endeusamento.

Sobre a forma como foi estruturado, inicialmente, o código civil brasileiro, Carin

Prediger anota que:

A concepção oitocentista de Código Civil supunha que este era capaz de prever todas as situações pelas quais passaria o indivíduo no curso de sua vida: nascimento, maioridade civil, realização de negócios, aquisição da propriedade, casamento, morte. Nesse sentido, a organização do código, particularmente, do Código de Napoleão, correspondia ao movimento natural deste indivíduo, sem buscar necessariamente um rigor lógico ou o estabelecimento de uma ordenação perfeitamente dedutiva entre os seus artigos. (PREDIGER, 2002, p. 148)

De acordo com a autora, o nosso Código Civil de 1916 foi muito influenciado pelo

movimento das codificações oitocentistas, o que se percebe na sua pretensão de completude,

com intuito de abranger, de forma centralizada, toda a legislação (PREDIGER, 2002, p. 164).

A autora afirma, também, que com o tempo a centralidade que caracterizava o movimento de

codificação foi sendo relativizada pela complexidade da sociedade, pois:

A concepção do modelo jurídico de codificação enquanto sistema fechado, embasada numa visão totalizadora, que antes assegurava o “mundo da segurança”, não mais se apresenta suficiente diante do surgimento de uma multiplicidade de leis especiais, destinadas a abarcar as novas relações jurídicas e os novos campos do Direito

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emergentes. Há a perda de centralidade do código, porquanto este passa a dividir o papel que antes lhe incumbia com uma série de leis, que, mais do que “esparsas”, muitas vezes se constituem verdadeiros microssistemas e subsistemas (PREDIGER, 2002, p. 165).

Nesse contexto dos microssistemas referidos por Carin Prediger, que derivam, em

verdade, da dinâmica da vida social, importante destacar o entendimento de Paolo Grossi,

para quem o verdadeiro código é sempre fruto de uma revolução cultural que, ao ser

deflagrada, devasta os fundamentos já consolidados no universo jurídico (GROSSI, 2007, p.

89). O autor ainda tece as seguintes considerações:

As matrizes jusnaturalistas pesam sobre o Código. Como norma que presume prender a complexidade do social em um sistema fechado, o Código, toda codificação, somente pode traduzir-se em uma operação drasticamente redutiva: se a razão civil pode e deve desenhar-se em uma harmonia geométrica, sob a égide da máxima simplicidade e da máxima clareza, o legislador deve empenhar-se em um esforço de depuração e decantação (GROSSI, 2007, p. 96).

A codificação, por si só, pode ser considerada grande precursora do processo de

formação da dicotomia público-privado, vez que, a partir da superveniência dos códigos,

passou-se a considerar que os referidos diplomas possuíam por função precípua a tutela dos

direitos particulares dos indivíduos, estabelecendo-se, assim, uma delimitação da área de

atuação do Código e da Constituição. Ao primeiro caberia se preocupar tão somente com a

vida particular dos cidadãos; à segunda competia a tutela dos interesses do Estado.

3. A dicotomia público - privado

Norberto Bobbio afirma que os dois termos de uma dicotomia - exemplo: guerra e

paz - são passíveis de definição independente ou, se definido apenas um deles, o outro

ganharia conceituação negativa - exemplo: a “paz” como “não-guerra” (BOBBIO, 2001, p.

14). A dicotomia existente entre o direito público e o direito privado pode ser elucidada com

base nessa explicação, isto é, o oposto ao “público’ seria o ”não-público”, mais conhecido

como “privado”. A palavra “público” soa mais forte, mas os dois termos se condicionam

reciprocamente. Assim, por exemplo, o interesse público remete ao contraste com o interesse

privado, e vice versa.

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A clássica dicotomia entre o direito público e o direito privado espelha a situação de

um grupo social, em que há prévia diferenciação entre o que pertence ao grupo (coletividade)

e o que pertence a cada membro desse grupo, individualmente (BOBBIO, 2001, p. 16).

Norberto Bobbio relata que a primazia do direito privado sobre o público já existiu e

surgiu da difusão e da recepção do direito romano no Ocidente: o conhecido direito Pandette,

que era quase totalmente privado e baseava-se nos institutos da família, da propriedade, do

contrato e dos testamentos. O direito privado romano, com o passar do tempo, adquiriu status

de “direito da razão”, ou seja, um direito com validade reconhecida independentemente das

circunstâncias locais e temporais (BOBBIO, 2001, p. 16). Assim, durante séculos, o direito

privado foi o direito por excelência e isso repercutiu até mesmo nos estudos de Karl Marx,

que teria desenvolvido sua crítica tomando por referência o direito privado.

Bobbio faz uma brilhante observação quanto ao uso axiológico da dicotomia, nos

seguintes termos:

Como se trata de dois termos que no uso descritivo comum passam por ser contraditórios, no sentido de que no universo por ambos delimitado um ente não pode ser simultaneamente público e privado, e sequer nem público nem privado, também o significado valorativo de um tende a ser oposto ao do outro, no sentido de que, quando é atribuído um significado valorativo positivo ao primeiro, o segundo adquire um significado valorativo negativo, e vice-versa (BOBBIO, 2001, p. 20).

Em relação à distinção entre direito público e privado, Kelsen afirma a inexistência

de uma determinação satisfatória (KELSEN, 2006, p. 311). Para a concepção dominante o

direito privado representaria a relação entre sujeitos em posição de igualdade, ao passo que o

direito público traduziria a relação estabelecida entre um sujeito supra-ordenado (Estado) e

um sujeito subordinado (indivíduo), havendo valor jurídico superior do primeiro sobre o

segundo. Exemplo típico de uma relação de direito público, para o autor, seria a ordem

administrativa, por meio da qual o indivíduo, como destinatário da norma, é juridicamente

obrigado a uma conduta em conformidade com aquele comando. Exemplo de relação de

direito privado seria o negócio jurídico - mais especificamente o contrato -, em que as partes

contratantes vinculam-se, juridicamente, a uma conduta recíproca (KELSEN, 2006, p. 311).

Voltando à concepção de Bobbio, tem-se que a distinção entre público e privado

duplica-se na distinção feita entre política e economia, acarretando a interpretação de que a

primazia do público sobre o privado representa o primado da política sobre a economia e essa

constatação representaria o fenômeno da “publicização do privado”. Nesse sentido, Bobbio

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afirma que referido fenômeno constitui etapa do processo de transformação das sociedades

industriais mais avançadas (BOBBIO, 2001, p. 26). Ao lado desse processo, estaria o

fenômeno da “privatização do público”.

Hannah Arendt anota que o termo “público” indica dois fenômenos correlatos,

porém não idênticos (ARENDT, 2003, p. 59). Significa, primeiramente, que as coisas que

vêm a público podem ser vistas e ouvidas por todos, ganhando ampla divulgação. Em segunda

análise, a palavra “público” traduz o próprio mundo, pois representa algo comum a todos. A

esfera pública, nesse sentido, reúne os indivíduos, evitando que eles colidam uns com os

outros. Para a autora, a dificuldade de suportar a sociedade de massas não está no número de

pessoas que ela abrange, mas no fato de que o mundo não consegue mais mantê-las juntas.

Francisco Amaral defende que a dicotomia entre direito público e direito privado, tal

como a tripartição dos poderes, foi um dos postulados do Estado Liberal. Sob uma perspectiva

histórica, o autor sustenta que essa clássica distinção surgiu em Roma, ressalvando, porém,

que os termos “ius publicum” e “ius privatum” não possuiam o mesmo significado que

possuem hoje (AMARAL, 2003, p. 69).

Em Roma o “ius publicum” era tão somente o direito derivado do Estado e de caráter

obrigatório para a comunidade; o “ius privatum”, contrariamente, representava as relações

firmadas entre os indivíduos no exercício de sua autonomia. O autor destaca, ainda, que na

Idade Média essa distinção perdeu o sentido, somente ressurgindo no século XV, com a

Revolução Comercial, reafirmando-se, mais tarde, com a Revolução Francesa (AMARAL,

2003, p. 70).

Analisando a problemática da dicotomia público-privado sob a ótica das questões

proprietárias, Judith Martins-Costa alude ao que chama de modelo de incomunicabilidade

entre a Constituição e o Código Civil, em que os dois diplomas eram como linhas paralelas

que somente se tocavam sob o aspecto formal, por força do princípio da hierarquia das leis

(COSTA, 2006, p. 67). A Constituição, tida como estatuto do Estado e do homem político,

com vistas a tratar, com exclusividade, do interesse estatal, pouco se relacionava com o

Código Civil, considerado o estatuto da sociedade e do cidadão-proprietário, destinado a

tutelar os interesses do indivíduo.

O referido modelo de incomunicabilidade foi uma resposta do século XIX ao

fenômeno das fontes do Direito e se caracterizou por ser fundamentalmente dicotômico, com

base na oposição travada entre o Estado e a sociedade civil, de tal forma que “a dicotomia

importará numa assimilação: livre é a pessoa proprietária, o “sujeito proprietário”: a liberdade

será assimilada à propriedade” (COSTA, 2006, p. 67).

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Quanto à dicotomia público-privado, interessante anotar a comparação feita por

Nelson Saldanha no sentido de que a esfera privada em muito se assemelha a um jardim,

concebido, geralmente, como parte integrante ou muito próxima da casa do indivíduo,

representativo da privacidade de cada um (SALDANHA, 2005, p. 44). A esfera pública, por

sua vez, seria comparável a uma praça, a qual é pensada como um espaço amplo,

constituindo-se em “essência da cidade” (SALDANHA, 2005, p. 14).

4. A propriedade no Estado moderno

Traçando um perfil histórico-político e histórico-jurídico, Nelson Saldanha afirma

que o Estado Moderno formou-se quando as monarquias européias superaram as forças

feudais internas, libertando-se da pressão das estruturas maiores, do império e do papado

(SALDANHA, 2005, p. 117). O marco histórico do surgimento do Estado Moderno,

segundo o autor, foi o Renascimento, época em que ocorreram diversas transformações

decisivas, como as expansões marítimas, o advento da economia monetária, o humanismo nas

ciências e na literatura, a urbanização dos estilos de vida, a ampliação do comércio e o

racionalismo intelectual.

Paulo Bonavides, por seu turno, aponta que o Estado Moderno encontra sua

significação na ideia de uma nova representação de poder, extremamente diferente daquela

que vigorava no passado, como no período medievo por exemplo (BONAVIDES, 2007, p.31).

O autor afirma, nesse sentido, que para a adequada compreensão do fenômeno “Estado

Moderno”, é preciso remeter às suas raízes históricas.

Assim, Bonavides esclarece que na antiguidade Clássica o Estado era a Cidade, na

qual se condensavam todos os poderes. O Estado Antigo era reduzido a duas extremidades: de

um lado, a força bruta das tiranias imperiais típicas do Oriente; de outro, a onipotência

consuetudinária do direito ao fazer a vontade do corpo social. Já na Idade Média, após o

colapso do Império Romano, o Estado, tal como estabelecido na Antiguidade, começa a

decair (BONAVIDES, 2007, p.33).

A Idade Média, juntamente com sua organização feudal, nascida das ruínas do

Império Romano, tratou com moderação a concepção de Estado, de modo que a visão pálida e

fraca que se tinha do Estado anteriormente passou a ser contrabalanceada pela presença ativa

das correntes que buscavam restabelecer mais a universalidade de cada poder desmembrado

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do que a unidade do sistema, representada pela fusão das esferas política e religiosa, rompida,

de forma definitiva, com o advento do Cristianismo.

Dalmo de Abreu Dallari destaca que as deficiências da sociedade política medieval

foram determinantes para a definição das características fundamentais do Estado Moderno

(DALLARI, 2007, p. 70). Assim, por exemplo, com a intolerância dos senhores feudais às

exigências dos monarcas daquela época, que tributavam excessivamente, mantinham um

estado de guerra constante e destruíam gradativamente a vida econômica e social, foi surgindo

a conscientização dos indivíduos no sentido de buscar a unidade. E a unidade perseguida só

seria alcançada com a afirmação de um poder soberano, reconhecidamente supremo dentro de

uma determinada limitação territorial.

O autor atribui aos Tratados de Paz de Westfália o papel de documentação desse

novo tipo de Estado, que teria por característica básica a unidade territorial dotada de um

poder soberano (DALLARI, 2007, p. 280). Nesse Estado, chamado de Moderno, as

características fundamentais, com o passar do tempo, foram convertidas em objetivos a serem

alcançados.

Ao frisar que o Estado configura o poder, integrando a modalidade de dominação

correspondente à organização social vigente, Nelson Saldanha destaca que as estruturas

jurídicas vinculam-se às estruturas políticas (SALDANHA, 1999, p. 114). Relativamente ao

aspecto histórico, o autor afirma que enquanto a organização política da Idade Média revelava

a existência de ordens diferenciadas, o Estado Moderno tinha a missão de representar uma

sociedade unificada pela ordem social e pela ordem política.

Katie Argüello relembra que Max Weber identificava o Estado Moderno com o

Estado Racional, comparando-os com outras formas de Estado de base patriarcal, patrimonial

ou carismática, nas quais a ausência de objetividade no ordenamento jurídico e administrativo

era evidente (ARGÜELLO, 1997, p. 89). No Estado Moderno, em contrapartida, referida

objetividade é característica essencial. Para Weber, conforme anota a autora, somente no

Estado Racional o capitalismo moderno se desenvolveu plenamente, vez que fundado num

direito racional e na burocracia.

Pietro Perlingieri descreve o Estado Moderno da seguinte maneira:

O Estado Moderno não é caracterizado por uma relação entre cidadão e Estado, onde um é subordinado ao poder, à soberania e, por vezes, ao arbítrio do outro, mas por um compromisso constitucionalmente garantido de realizar o interesse de cada pessoa. A sua tarefa não é tanto aquela de impor aos cidadãos um próprio interesse superior, quanto aquela de realizar a tutela dos direitos fundamentais e de favorecer o pleno desenvolvimento da pessoa (...) removendo os

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obstáculos que impedem a participação de todos na vida do Estado. (PERLINGIERI, 2002, p. 54).

Thiago Lima Breus afirma ser possível descrever o Estado por intermédio de três

fases, quais sejam: a fase pré-moderna (ou liberal) do início do século XX; a fase de Estado

Moderno (ou social), em meados do século e a fase em que o Estado é conhecido como pós-

moderno (ou neoliberal), nas últimas duas décadas do milênio (BREUS, 2007, p. 56). O autor

enfatiza, contudo, que em relação ao Estado brasileiro afirma-se, com freqüência, a existência

de um Estado pós-moderno, sem sequer ter vigorado, efetivamente, um Estado Moderno ou,

sob certos aspectos, um Estado Liberal ou pré-moderno (BREUS, 2007, p. 56).

5. Propriedade: um direito subjetivo?

Em breve relato histórico sobre a noção de propriedade Francisco Amaral afirma

que o direito romano usava os termos dominium e proprietas como significativo do poder de

uma pessoa sobre seus bens (móveis ou imóveis) e sobre as pessoas (mulheres, filhos,

escravos). O direito medieval, que, segundo o autor, teria desenvolvido a teoria geral dos

direitos subjetivos, considerava a propriedade um atributo da personalidade humana. Já na

época moderna, a propriedade era consagrada pelo liberalismo e definida pelo Código de

Napoleão como um direito unitário, perpétuo, absoluto, ilimitado e exclusivo (AMARAL,

2003, p 145).

Lançando o olhar para o passado brasileiro percebe-se que desde a ocupação da

Colônia pelo Reino português o domínio da terra vem sendo um dos fatores determinantes do

poder político e social. A ruptura do modelo tido por senhorial e a conseqüente mudança para

uma estrutura capitalista serviram de base para as alterações provocadas no tratamento da

propriedade privada do século XIX (FACHIN; GONÇALVES, 2008, p. 127).

José Afonso da Silva assevera que a doutrina brasileira já chegou a admitir a

propriedade privada sob dois aspectos: como direito civil subjetivo e como direito público

subjetivo. Mas tal dicotomia teria sido superada com o surgimento da noção de que a função

social constitui elemento estrutural do regime jurídico da propriedade, configurando-se como

princípio ordenador da propriedade privada (SILVA, 2006, p. 273).

Ademais, para abranger a visão global do instituto, no lugar daqueles dois conceitos

já fragmentados, vem sendo utilizada a noção de situação jurídica subjetiva (complexa)

(SILVA, 2006, p. 273). José Afonso da Silva ainda complementa que:

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Nessa conformidade é que se pode falar em direito subjetivo privado (ou civil) do proprietário particular, como pólo ativo de uma relação jurídica abstrata, em cujo pólo passivo se acham todas as demais pessoas, a que corre o dever de respeitar o exercício das três faculdades básicas: uso, gozo e disposição (CC, art. 1.228). (SILVA, 2006, p. 273).

Assim, de acordo com o autor, as normas de direito privado sobre a propriedade

devem ser compreendidas de acordo com a disciplina legal que a Constituição da República

lhe impõe. Sobre a caracterização do direito de propriedade como um direito subjetivo,

Francisco Amaral assevera que:

Nos ordenamentos jurídicos da época moderna (séc. XVIII e XIX) propriedade e liberdade são intimamente ligadas. A propriedade configura-se, assim, como um poder pleno e exclusivo do proprietário, e como um princípio da organização política e econômica da sociedade liberal. À propriedade privada cabe, por isso, o papel de princípio organizativo das relações econômicas e sociais, que está na base da sociedade moderna gerada pela Revolução Francesa. Conseqüentemente, existe profunda conexão entre propriedade, empresa e mercado (AMARAL, 2003, p.146).

No entendimento de Luiz Edson Fachin e Marcos Alberto Rocha Gonçalves a

mercantilização da propriedade alargou o fosso entre os que têm muito e aqueles que nada

têm, já que a absolutização da propriedade, dentro da lógica capitalista de transformar os

meios de produção em mercadorias acumuláveis, acarreta a manutenção das grandes porções

de terra sob o domínio da concentração fundiária ((FACHIN; GONÇALVES, 2008, p. 136).

Também sobre a noção de propriedade individual, Carlos Frederico Marés escreve

que:

A idéia de apropriação individual, exclusiva e absoluta, de uma gleba de terra não é universal, nem histórica nem geograficamente. Ao contrário, é uma construção humana localizada e recente. Estado e Direito modernos começam a surgir na Europa lá por volta do século XIII, talvez antes, teorizados a partir do século XVI com as informações fantásticas que traziam de cada parte do mundo as caravelas dos aventureiros, conquistadores e mercadores (MARÉS, 2003, p. 17).

O autor destaca que a noção de propriedade atual construída a partir do

mercantilismo encontra-se, hoje, em crise, de tal gravidade que Estado e propriedade

atingiram um esgotamento teórico e prático. MARÉS ainda reforça que o marco jurídico da

propriedade moderna foi a Revolução Francesa e o surgimento das Constituições Nacionais.

Conforme relembra o autor, “todo o direito do Estado moderno está assentado na concepção

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dos direitos individuais” e esse direito foi sendo construído sobre a idéia de que a propriedade

privada pudesse ser patrimoniada, isto é, usada e fruída com absoluta disponibilidade do

proprietário, de forma indefinidamente acumulável (MARÉS, 2003, p. 34).

Eroulths Cortiano Junior assevera que o modelo proprietário da modernidade está

profundamente ligado à visão atomística da sociedade, na qual o indivíduo é dono de si

mesmo e de seus atos (CORTIANO JUNIOR, 2002, p. 91). Trata-se, segundo o autor, de uma

autonomia, uma liberdade de agir que faz com que a propriedade se confunda com a

liberdade, sendo possível afirmar que ser proprietário é ser livre. Nesse sentido, Cortiano

Junior anota a existência de uma correlação entre a autonomia privada e o direito de

propriedade, já que ambos seriam expressões jurídicas da liberdade humana.

Adotando linha de raciocínio semelhante, Francisco Eduardo Loureiro afirma que a

propriedade foi fonte inspiradora do constitucionalismo liberal, transformando-se em garantia

de liberdade do cidadão contra a ação interventiva do Estado. Para o autor, a Bill of Rigths da

Virgínia, de 1776 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, são os

maiores exemplos dessa transformação, pois teriam colocado a liberdade, a segurança e a

propriedade em um mesmo patamar, como direitos naturais e imprescritíveis da pessoa

humana (LOUREIRO, 2003, p. 09). A propriedade, por si só, representa garantia da

individualidade humana, pois, na ótica liberal, segundo o autor, tudo gira em torno dos

instrumentos de circulação de riqueza, dentre os quais a propriedade se destaca como símbolo

jurídico.

Carlos Marés considera que não obstante o esmero do legislador é raro encontrar

nas legislações a definição do que seja a propriedade. O Código Civil, por exemplo, apresenta

mais de cinqüenta artigos atinentes à propriedade, não apresentando, porém, um conceito para

o instituto. Para o autor, “a propriedade tão discutida nos séculos anteriores passou a ser um

dado da realidade, absoluta e indefinível e de proteção cogente para as Constituições e

Estados constitucionais capitalistas” (MARÉS, 2003, p. 35).

Luiz Edson Fachin destaca que a partir da previsão de que ao direito subjetivo da

apropriação correspondem deveres é que surgiu a idéia de interesse social. Daí em diante,

passou-se a compreender que referido direito subjetivo possui destinatários na sociedade, de

tal forma que o direito de propriedade passa a ser visto como direito à propriedade, gerando,

por conseguinte, um estatuto de garantia, vinculado aos ditames sociais, e outro, de acesso

(FACHIN, 2003, p.289).

Ainda sobre o quesito conceituação, Cármem Lúcia Antunes Rocha aponta que na

técnica jurídica propriedade não se confunde com direito de propriedade, afirmando que a

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primeira representa um atributo inerente a uma pessoa ou objeto específico, distinguindo ou

caracterizando um bem ou a relação deste com os outros. Assim, “propriedade identifica a

condição de um bem pertencente a alguém e a submissão deste (proprietário) com a coisa que

se subsume à sua vontade e disposição” (ROCHA, 2004, p. 60).

Sob a perspectiva da propriedade como um direito subjetivo, como era vista no

Direito Moderno, em que se estabelecia a relação exclusão-inclusão, relativamente à

abrangência e aos efeitos do direito de propriedade, Antunes Rocha assevera:

A exclusivação da propriedade por um sujeito e a sua retirada do espaço de incidência da vontade de outrem faz com que este não possa ser titular do direito a esta mesma propriedade, pelo que se restringe, assim, o direito de todos os outros, que não o titular, pelo reconhecimento e garantia do direito de propriedade (ROCHA, 2004, p. 65).

Orlando Gomes afirma que se a propriedade tem hoje uma função social significa

que o proprietário está vinculado ao cumprimento de deveres e isso, por certo, implica em

contradição com a ideia de direito subjetivo. Nesse sentido, o autor faz a seguinte observação:

Ora, sendo o domínio um direito subjetivo, o mais amplo poder jurídico que o homem pode ter sobre as coisas, admitir que deva ser usado a serviço de outros, e não no próprio interesse, é acumular, na mesma definição, dois conceitos antagônicos (GOMES, 2002, p. 76).

Hans Kelsen dizia que costumeiramente são contrapostos os direitos e liberdades

fundamentais do indivíduo ao dever correspondente do Estado de não violá-los e de não

interferir na esfera privada individual. Para o autor, as liberdades e os demais direitos

fundamentais não constituem direitos subjetivos, tendo em vista que a proibição de editar leis

que ofendam referidos direitos constitucionalmente garantidos não cria qualquer dever

jurídico para o órgão legislativo, possibilitando, tão somente, eventual anulação de lei

inconstitucional (KELSEN, 2006, p. 329).

Antunes Rocha manifesta entendimento no sentido de que antes mesmo da

constância do Estado Moderno, mas, principalmente, durante sua vigência, o direito à

propriedade privada vem sendo analisado mais sob o prisma do sujeito do que sob o enfoque

de sua função legitimadora (ROCHA, 2004, p. 66). Por essa razão é que o referido direito

passou a ser anunciado no mundo jurídico como um direito subjetivo.

A autora defende que a noção de direito subjetivo somente pode ser aproveitada

quando for tomada no sentido de subjetivar a titularidade para o fim de identificar aquele que

propõe sua vontade sobre o bem (ROCHA, 2004, p. 68). Assim, observada a natureza

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funcional da propriedade, o interesse determinante do cumprimento do fim a que se destina

deve operar junto com a vontade do titular da propriedade.

O direito de propriedade da era moderna está assentado na idéia de inclusão-

exclusão, por meio da qual quando o Estado tutela o direito subjetivo do proprietário,

incluindo-o em órbita de tutela, comete a exclusão dos direitos de todos os outros indivíduos

que não são proprietários. É a inclusão do direito de um, em detrimento da exclusão do direito

de alguns.

Assim, a função social parece constituir-se não em limite, mas em conteúdo do

direito de propriedade que, pelo que também parece, deixou de ser um direito exclusivamente

subjetivo, dotado daquele caráter absoluto, típico do Estado Moderno.

6. O Estado constitucional e a superação da dicotomia

O primado do público, no último século, assumiu diversas formas, manifestando-se

na reação à concepção liberal do Estado e configurando a derrota do Estado Mínimo. Esse

primado funda-se, precipuamente, na contraposição do interesse coletivo ao interesse

individual e sobre a subordinação necessária do segundo ao primeiro, significando, em

síntese, o aumento da intervenção estatal na regulação coercitiva do comportamento dos

indivíduos (BOBBIO, 2001, p. 25). Nas palavras de Michele Costa da Silveira:

Parece não fazer sentido, nos tempos atuais, falar-se na permanência de uma real “dicotomia” entre direito público e direito privado, entendida a mesma, na forma determinada por Bobbio, como duas esferas reciprocamente opostas, excludentes e exaustivas. Talvez se possa, no máximo, manter a idéia de uma mera “distinção” que se fragiliza diante de determinadas situações impostas pela nova ótica de refundação das bases do direito privado em face da Constituição (SILVEIRA, 2002, p. 49).

Nesse contexto, Thiago Lima Breus defende que, com a ampliação dos instrumentos

de controle da atividade estatal, tem-se percebido uma transição do autoritarismo para a

democracia (BREUS, 2007, p. 37). E essa passagem da rigidez autoritária à flexível

democracia atinge todo o ordenamento jurídico, caracterizando o que se pode chamar de

transição do Estado de Direito ao Estado Constitucional.

Por esse motivo é que se costuma afirmar que uma das mais intensas

transformações decorrentes da transição do Estado de Direito para o Estado Constitucional

refere-se ao papel assumido pelo Estado perante os particulares. Na constância do Estado

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Constitucional a linha divisora entre o público e o privado fica mais tênue, passando-se a

falar, inclusive, da privatização do público e da publicização do privado, o que revelaria a

aplicação dos princípios constitucionais à todo o sistema normativo, de modo que institutos

do direito privado passaram a ser utilizados no direito público, ao passo que institutos do

direito público também passaram a compor o direito privado (BREUS, 2007, p. 39).

Sob essa nova perspectiva tem-se que no Estado Constitucional, ao invés de se falar

tão somente em interesse público, unitário e formal, fala-se em valores e direitos

fundamentais, os quais não deixam de se referir ao interesse público, representando, porém,

muito mais que isso, como compromisso social assumido pelo Estado e consagrado no texto

constitucional (BREUS, 2007, p. 44).

No entendimento de Pietro Perlingieri, a distinção entre direito público e privado

está em crise, de tal forma que na sociedade atual torna-se difícil individuar um interesse

particular autônomo por completo e independente do interesse público (PERLINGIERI, 2002,

p. 53). E essa dificuldade também se agrava por conta da presença cada vez mais incisiva dos

interesses coletivos quando da tentativa de traçar linhas fronteiriças entre o público e o

privado.

Lançando um olhar mais crítico sobre a realidade social do Brasil, Thiago Lima

Breus considera que o Estado Constitucional ainda é um projeto, sendo perceptível nas

grandes cidades a inocorrência do exercício dos direitos liberais consagrados pelo Estado de

Direito. Trata-se, segundo o autor, de uma crise no sistema de conformação jurídica estatal, de

tal forma que essa crise nos pilares de sustentação do Estado já virou regra na história

(BREUS, 2007, p. 51). Contudo, de acordo com o autor, desde o início da modernidade a

estrutura da formação política estatal não tinha sido tão questionada como foi nas últimas

décadas do século XX.

7. A constitucionalização do direito civil

O direito civil de hoje não guarda tanta similaridade com aquele que vigorava na

época oitocentista, marcado pelos limites da família, da propriedade, do indivíduo, do

contrato e da responsabilidade civil (SILVEIRA, 2002, p. 48). Busca-se, agora, à luz da

Constituição, a renovação do direito privado, de modo que as normas tidas como exclusivas

do direito privado começam a invadir o texto constitucional.

Conforme anota Leonardo Mattietto, a renovação do direito civil brasileiro

encontrou no chamado “direito civil constitucional” o seu melhor ponto de apoio, pois a

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incidência dos princípios constitucionais no direito privado derivou da preocupação com uma

ordem jurídica mais sensível aos problemas da sociedade e mais ligada à promoção da

dignidade da pessoa humana (MATIETTO, 2000, p. 163). O autor pondera, todavia, que para

a adequada compreensão do direito civil constitucional é essencial que se examine, antes, a

questão atinente à dicotomia público-privado e ao papel da Constituição no direito civil.

Mattietto assevera que apesar de ainda haver, didaticamente, a distinção entre o

direito público e o direito privado, a verdade é que os dois se complementam. O autor destaca,

ainda, que a distinção entre público e privado passa por enorme crise em razão da dificuldade

de se tratar separadamente e de forma autônoma o interesse privado e o interesse público

(MATIETTO, 2000, p. 165).

O autor também ressalva que o direito privado - em especial o direito civil -, não

pode ser visto como antítese do direito público, como um lugar em que os cidadãos estejam a

salvo das ingerências do Estado, podendo, assim, exercer sua liberdade e autonomia. A

atividade estatal, por seu turno, não pode ser pautada na subordinação do indivíduo, devendo

ser orientada, isto sim, pela inclusão do valor constitucional do respeito à dignidade das

pessoas (MATIETTO, 2000, p. 165).

Nessa mesma linha, Gabriel Menna Barreto Von Gehlen destaca que o direito

privado jamais poderá entrar em choque com o texto constitucional, devendo, também, ser

interpretado conforme a Constituição. A inserção de institutos de direito civil no texto

supremo garante-lhes “imunidade contra o legislador ordinário e mesmo contra o poder de

reforma constitucional”(VON GEHLEN, 2002, p. 185).

No tocante à constitucionalização, Ricardo Luis Lorenzetti sustenta que o direito

privado atual adota uma perspectiva constitucional permanente e em diferentes níveis, pois,

segundo o autor, a Constituição também contém disposições de conteúdo civilista, aplicáveis

no âmbito das relações privadas (LORENZETTI, 1995, p. 253). O autor faz, ainda, uma

peculiar consideração:

De outro ponto de vista, o direito Privado é Direito Constitucional aplicado, pois nele se detecta o projeto de vida em comum que a Constituição tenta impor; o Direito Privado representa os valores sociais de vigência efetiva. Por isso é que o Direito Privado se vê modificado por normas constitucionais. Por sua vez, o direito Civil ascende progressivamente, pretendendo dar caráter fundamental a muitas de suas regras, produzindo-se, então, uma Constitucionalização do Direito Civil (LORENZETTI, 1995, p. 253).

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Facchini Neto afirma que o fenômeno da constitucionalização do direito privado,

sob um prisma “mais antigo”, pode ser descrito de várias maneiras. Assim, na época do

liberalismo clássico, em que ocorriam as grandes codificações do direito privado do século

XIX, as Constituições liberais eram concebidas como legítimos “códigos de direito público”,

destinados a disciplinar e organizar o Estado, a estrutura dos poderes e as relações entre o

Estado e os indivíduos (FACCHINI NETO, 2006, p. 35).

Os códigos privados, por sua vez, eram tidos como verdadeiras Constituições do

direito privado, com a função de disciplinar as relações jurídicas entre os particulares,

descartada qualquer possibilidade de intervenção estatal, principalmente na área econômica,

em virtude da prevalência da autonomia da vontade e da concepção individualista da

propriedade privada (FACCHINI NETO, 2006, p. 35).

Sob um ponto de vista “mais moderno”, o autor destaca que o fenômeno da

constitucionalização do direito privado pode ser visto sob dois aspectos. Primeiro, no sentido

de que vários institutos anteriormente tratados nos códigos privados (como a família e a

propriedade) passaram a ser abordados nas constituições contemporâneas. (FACCHINI

NETO, 2006, p. 39). Em uma segunda acepção, costumeiramente indicada como

constitucionalização do direito civil, verifica-se a incidência de princípios e regras

constitucionais no direito privado e a interpretação das leis conforme o texto constitucional.

Leonardo Mattietto alerta que é preciso ter em mente que a adjetivação do direito

civil como “constitucionalizado” implica no dever, atribuído ao intérprete e ao legislador, de

reler a legislação civil à luz do texto constitucional, privilegiando, entre outros, os valores

não-patrimoniais, a justiça distributiva e a dignidade da pessoa humana (MATTIETTO, 2000,

p. 170).

Luiz Edson Fachin e Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk sustentam que o

reconhecimento da eficácia dos direitos fundamentais nas relações interprivadas pode ser o

cerne da constitucionalização do direito civil (FACHIN; RUZYK, 2006, p. 100), de tal modo

que a constituição deixa de ser mera carta política, assumindo uma função integradora no

ordenamento jurídico.

Fachini Neto, por seu turno, reforça que a constitucionalização do civil acarreta a

migração de valores constitucionais, tal como a dignidade da pessoa humana, para o âmbito

privado (FACHINI NETO, 2006, p. 34). Desse fenômeno teria surgido, na visão do autor, a

despatrimonialização ou repersonalização do direito civil, isto é, a recolocação do ser humano

no centro do direito privado, em detrimento de valores essencialmente patrimonialistas.

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Fato incontestável é que em decorrência do processo de constitucionalização do

direito civil, os direitos fundamentais e os princípios constitucionais passaram a nortear o

ordenamento jurídico como um todo. Com a perda da noção de completude do Código Civil,

aquela idéia do direito como um sistema fechado, típica do Estado moderno, foi aos poucos

sendo abolida.

8. O princípio da dignidade da pessoa humana

O artigo 1º da Constituição Federal dispõe que o Estado brasileiro tem como

fundamentos a soberania, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo

político, a cidadania e a dignidade da pessoa humana, que constitui o fundamento maior do

ordenamento jurídico brasileiro.

Judith Martins-Costa assevera que a noção de direitos fundamentais sob a forma

unidimensional e unidirecional não resistiu às transformações pelas quais passou a sociedade,

sobrevindo a chamada Teoria dos Direitos Fundamentais, que afirma diferentes eficácias dos

direitos, ao mesmo tempo em que evidencia suas conseqüências jurídicas (COSTA, 2006, p.

70). Segundo a autora:

Três fatores, pelo menos, impulsionaram esse movimento. O primeiro foi de ordem sociológica (tratando-se das transformações qualitativas na vida social provocadas pela sociedade de massas); o segundo foi de ordem jurídico-dogmática, com a construção e expansão dos Direitos de Personalidade; e o terceiro, enfim, foi de ordem hermenêutica, com a ultrapassagem do modelo savignyano de interpretação jurídica (COSTA, 2006, p. 70).

Laura Beck Varela assevera que o princípio da dignidade da pessoa humana, nos

dias de hoje, é concretizado quando conjugado com a tutela do livre desenvolvimento,

encontrando amparo no princípio da diferença (VARELA, 2002, p. 808). Desse modo é

preciso reconhecer que, juntamente com o princípio da igualdade, condicionante da ideia de

sujeito unitário nas codificações, existe, na esfera do direito privado, o pluralismo entre os

indivíduos.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho entende os direitos fundamentais como limitadores

de poder. Nas palavras do autor, “definem esses direitos a fronteira entre o que é lícito e o que

não é para o Estado. E, limitando o poder, deixam fora de seu alcance um núcleo irredutível

de liberdade” (FERREIRA FILHO, 2004, p. 06).

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Sobre esse aspecto Ingo Wolfgang Sarlet destaca que os direitos fundamentais

também exercem sua eficácia vinculante na esfera privada, nas relações entre os particulares:

Fora das relações indivíduo-poder, isto é, quando se trata de particulares em condições de relativa igualdade, deverá, em regra (segundo os defensores desta concepção), prevalecer o princípio da liberdade, aceitando-se uma eficácia direta dos direitos fundamentais na esfera privada apenas nos casos em que a dignidade da pessoa humana estiver sob ameaça ou diante de uma ingerência indevida na esfera da intimidade pessoal (SARLET, 2003, p. 353).

O conceito de dignidade da pessoa humana sofreu um processo de racionalização e

laicização nos séculos XVII e XVIII, em que vigia o pensamento jusnaturalista. O próprio

direito natural passou por essa transformação, sendo mantida, porém, a ideia de igualdade dos

homens no tocante à dignidade e à liberdade (SARLET, 2001, p. 32). De acordo com Ingo

Sarlet, Immanuel Kant foi um nome de destaque no período em comento, por conceber a

dignidade como parte integrante da autonomia ética do ser humano, definindo tal autonomia

como fundamento da dignidade da pessoa humana.

Entre os teóricos modernos, Immanuel Kant foi quem apresentou o imperativo

categórico segundo o qual o ser humano jamais pode ser usado para atingir outras finalidades,

devendo, ao revés, ser considerado como um fim em si mesmo (MORAES, 2006, p. 115). Tal

imperativo é regido pelo valor absoluto, universal e incondicional da dignidade humana, que

inspira a norma ética de maior relevância: o respeito pelo outro.

De acordo com Sarlet, a doutrina jurídica atual tem se baseado no pensamento de

Kant para conceituar a dignidade da pessoa humana e o fato de a dignidade estar consagrada

numa ordem constitucional revela a importância da condição humana como pressuposto para

que o indivíduo seja detentor de direitos que devam ser respeitados por todos, inclusive pelo

Estado (SARLET, 2001, p. 34).

O autor acrescenta que em virtude do pensamento cristão e humanista foi

recepcionada uma fundamentação metafísica da dignidade da pessoa humana, que traduz a

última garantia da pessoa no tocante à disponibilidade integral por parte do poder estatal e

social. Sobre essa temática, Jacques Távora Alfonsin tece as seguintes considerações:

O princípio constitucional que mais diretamente diz com a responsabilidade do Estado é o da eficiência; com a responsabilidade do exercício de direitos sobre latifúndios rurais e urbanos é o da função social da terra; com a responsabilidade de toda a sociedade civil é o da cidadania. Todos os três podem ser sintetizados no respeito devido à dignidade humana (ALFONSIN, 2006, p. 166).

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Liana Portilho Mattos, por sua vez, destaca que:

A constitucionalização do princípio da dignidade da pessoa humana, como ocorreu no ordenamento jurídico brasileiro, por força do disposto no art. 1º, III, da constituição de 1988, faz desse princípio o eixo norteador de todas as normas constitucionais e infraconstitucionais aqui editadas, por ser ele elemento fundador, estruturante mesmo, de todo o sistema jurídico-normativo brasileiro (MATTOS, 2004, p. 294).

A autora acrescenta que a dignidade da pessoa humana deixou de ser um princípio

cristão e humanitário para ser princípio jurídico, figurando como um fim do direito

(MATTOS, 2004, p. 294). E por se atribuir à dignidade da pessoa humana a noção de respeito

à integridade e inviolabilidade do homem nas suas dimensões existenciais é que o processo

histórico de reivindicações culminou na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,

elaborada pela ONU em 1948.

9. Função social da propriedade: conteúdo ou limite?

Para Paulo Bonavides o funcionamento normal de um sistema político pressupõe

determinada ordem de valores sobre a qual se sustentam as instituições (BONAVIDES, 2007,

p. 320). No sistema democrático, essa ordem de valores é representada pela Constituição, que

tem o papel de guiar a vida pública e garantir a liberdade dos indivíduos.

O autor afirma que num sistema democrático a Constituição é tudo, figurando como

fundamento do direito e valor mais alto da sociedade, de tal forma que o exercício da

autoridade legítima e consentida deriva de sua observância (BONAVIDES, 2007, p. 320).

Nesse sentido, a Constituição representa a imagem da legitimidade nacional, um valor

supremo limitador de toda espécie de poder e impeditivo do exercício da autoridade

despótica.

Luís Roberto Barroso eleva a Constituição Federal de 1988 à condição de símbolo

da transição do Estado autoritário e intolerante para um Estado democrático de direito.

Segundo ele, a Constituição de 1988 “assegurou ao país duas décadas de estabilidade

institucional”, caracterizando um rito de passagem para a “maturidade institucional brasileira”

(BARROSO, 2008, p. 29).

Analisando a evolução do direito de propriedade nas nossas Constituições, Sérgio

Iglesias Nunes de Souza afirma que pela Constituição Imperial de 1824, o modelo

institucional brasileiro visava unicamente o regime da propriedade privada; ao passo que na

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Constituição Federal de 1891 a propriedade funcionava como um dos requisitos básicos à

inviolabilidade dos direitos civis e políticos do indivíduo, ao lado da segurança e da liberdade

individual (SOUZA, 2004, p. 104). Ocorre nesse período, segundo o autor, a ampliação do

liberalismo com notável diminuição dos limites do direito de propriedade, a qual passou a ser

conceituada por seu caráter absoluto e inalienável.

Na Constituição Federal de 1934 o direito de propriedade sofre reformulação no

conceito, de tal forma que o foco foi transferido do indivíduo para a coletividade, como

reflexo da edificação do modelo de Estado Social que surgiu a partir de 1930, pregando um

sentido social ao direito (SOUZA, 2004, p. 108). Assim, nas Constituições de 1934, 1937 e

1946, o direito de propriedade figurou no rol dos direitos individuais, ressalvado o

atendimento do bem-estar social, por intermédio da sua função social.

No texto constitucional de 1967 o direito de propriedade é visto, segundo Souza, sob

dois prismas: individual e social, figurando como direito e garantia individual, em torno do

qual girava o interesse social e coletivo (SOUZA, 2004, p. 108). O autor destaca, nesse

contexto, o importante papel exercido pela Lei 4.504/64 (Estatuto da Terra), ao promover a

integração da eficácia da norma constitucional com o conteúdo positivo do direito de

propriedade.

Na Constituição Federal de 1988 a propriedade é tratada como direito essencial e

inviolável, no mesmo patamar do direito à vida, à liberdade e à igualdade, por exemplo

(SOUZA, 2004, p. 110). O direito de propriedade é definitivamente condicionado pelo

exercício de sua função social.

Nesta seara, oportunas as palavras de José Afonso da Silva, para quem a função

social da propriedade não se confunde com seus sistemas de limitação, os quais se referem ao

exercício do direito do proprietário, ao passo que a função social tem a ver com a estrutura do

direito de propriedade (DA SILVA, 2006, p. 281). As limitações, bem como as obrigações e

os ônus são elementos externos ao direito de propriedade, vinculando apenas as atividades do

proprietário, de modo a interferir somente no exercício do direito.

Há que se coadunar com esse entendimento. O artigo 5º, caput, da Constituição

Federal elenca dentre os direitos invioláveis do indivíduo, o direito à propriedade, o qual, no

art. 182, § 2º do mesmo diploma, torna-se alvo de regulamentação jurídica, por meio do plano

diretor de cada município, com vistas ao cumprimento de uma função social pré-determinada.

O disposto no § 4º do artigo citado e no art. 183 revela o agir do Estado no tocante

ao uso e à aquisição da propriedade, sob o fundamento de que conjuntamente com o direito à

propriedade, há o dever de cumprimento de sua função social. Por um lado, o texto

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constitucional assegura ao indivíduo um direito inviolável limitando, por outro, o exercício de

tal direito, ao impor observância de uma função social quanto à utilização da propriedade.

Nesse sentido, José Afonso da Silva defende que o direito de propriedade, antes

concebido como uma relação entre uma pessoa e uma coisa, já não é assim reconhecido.

Segundo ele, o direito de propriedade passou a ser conceituado como uma relação entre um

sujeito ativo, representado pelo indivíduo proprietário e um sujeito passivo universal, formado

pela coletividade, que tem o dever de respeitar tal direito (DA SILVA, 2006, p. 281).

Jacques Távora Alfonsin reforça que se o “social” não se separar do gozo e se a

“função” não se distanciar do exercício, tanto a autorização para excluir já nascerá limitada no

gozo, quanto o dever de incluir já nascerá instrumentalizado no exercício, fazendo com que a

aparente antinomia exclusão-inclusão perca seu apelo racional (ALFONSIN, 2006, p. 54).

Gustavo Tepedino lembra que a Constituição de 1988 propiciou transformações

profundas na disciplina da propriedade no Brasil, com a introdução de uma ampla reforma de

ordem econômica e social, em que se destacou uma tendência intervencionista (TEPEDINO,

2008, p. 322).

Nesse contexto é que se explica a redação do art. 1.228, parágrafos 1º, 3º e 4º, do

Código Civil, em que, não obstante a previsão do direito puramente individual do proprietário

(caput) há, em contrapartida, a exigência do atendimento às finalidades sociais da propriedade

(§ 1º), bem como a previsão clara de que o Estado pode, a qualquer momento, nos casos de

interesse social ou utilidade pública, privar o indivíduo dos direitos que possui como

proprietário (§§ 3º e 4º).

Tepedino reforça, ainda, que a propriedade tratada pela Constituição não representa

redução quantitativa do poder do proprietário, mas revela-se instrumento para a realização do

projeto constitucional, na medida em que a relação jurídica da propriedade também

compreende a tutela de interesses não proprietários (TEPEDINO, 2008, p. 343).

Sobre esse aspecto, o autor ainda acrescenta que o discurso sobre o conteúdo

mínimo da propriedade - por vezes considerado núcleo inatacável de poderes, além do qual

não poderia mais haver violação ou redução de direitos - também deve ser redimensionado,

tendo em vista que a disciplina da propriedade constitucional dirige-se à compatibilidade da

situação jurídica proprietária com situações não proprietárias (TEPEDINO, 2008, p. 344).

Assim, o conteúdo da propriedade deve ser analisado, hoje, simultaneamente às situações

concretas que se apresentam.

Para Laura Beck Varela, embora o direito de propriedade seja considerado um

direito subjetivo que tem por escopo o cumprimento de uma função social, os conceitos de

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função social e de direito subjetivo parecem incompatíveis, tendo em vista a oposição travada

entre dever e liberdade e entre direito civil renovado e direito civil oitocentista (VARELA,

2002, p. 765). Assim, o direito de propriedade deve ser compreendido na dimensão de sua

historicidade, com observância do binômio construção-reconstrução; e a reconstrução do

direito proprietário, segundo a autora, possui sua essência na função social.

Por oportuno, cabe anotar que Fábio Konder Comparato caracteriza o exercício do

direito de propriedade como um “poder-dever positivo” (COMPARATO, 1986, p. 71-79).

Aliás, nesse sentido é que deve ser interpretado o parágrafo primeiro do art. 1.228 do Código

Civil, o qual prevê, expressamente, que a propriedade, embora tida como plena e exclusiva

pelo art. 1.231 do mesmo diploma legal, deve cumprir suas finalidades econômicas e sociais.

Interessante observar, também,conforme bem lembrado por Carlos Frederico Marés,

que a Constituição Federal não indica, com clareza, o castigo aplicável ao proprietário que

não faz a terra cumprir sua função social. Entretanto, de acordo com o próprio autor, referido

castigo parece óbvio: “o proprietário tem a obrigação de cumprir o determinado, é um dever

do direito, e quem não cumpre seu dever, perde seu direito” (MARÉS, 2003, p. 117).

Ou seja, o castigo para quem descumpre a função social da propriedade é a perda do

próprio direito de propriedade. A função social configura, assim, conteúdo de um direito,

essência e não simples característica.

Não é a toa que o Código Civil de 2002 garante em seu art. 1.228 o direito do

proprietário de usar e gozar da propriedade, exigindo, em contrapartida, que esta propriedade

cumpra sua finalidade econômica e social (§ 1º). Do mesmo modo, pelos artigos 182 e 184 da

Constituição Federal, o Estado também fica legitimado a intervir na propriedade individual,

em prol do interesse social. Referidos dispositivos expressam, de forma inequívoca, a

preocupação do legislador em dar efetividade à função social da propriedade, preconizada no

texto constitucional.

Neste mesmo passo, a Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) assume papel de

fundamental importância na execução da política urbana como meio de garantir o exercício da

função da propriedade.

Nelson Saule Júnior afirma que a noção de política urbana adotada pelo Estatuto

da Cidade deve servir de parâmetro para a política habitacional praticada pelos entes

federativos (SAULE JUNIOR, 2004, p. 211). Nesse sentido, o autor afirma que o direito de

propriedade urbana só pode ser protegido pelo Estado quando cumprida a função social

prevista no inciso XXIII, do art. 5º, do texto constitucional. Desse modo, referido princípio

deve servir de base para a identificação de quais funções a propriedade deve ter para que

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sejam atendidas as necessidades sociais nas cidades. Sobre esse aspecto, o autor acrescenta

que:

(...) para definir quais funções devem ser atribuídas à propriedade urbana é preciso que exista uma sintonia destas funções - tais como os objetivos gerais da política urbana de assegurar o exercício da cidadania, de respeitar a dignidade da pessoa humana, do uso da propriedade não resultar em formas de discriminação ou de preconceito, de combater e eliminar a pobreza, de reduzir as desigualdades sociais - com os objetivos especificados no artigo 182 da Constituição (SAULE JUNIOR, 2004, p. 214).

A grande verdade é que o descumprimento da função social pelo proprietário

representa lesão ao direito fundamental de acesso à propriedade, de maneira que o

proprietário que não cumprir seu dever social perde as garantias, judiciais e extrajudiciais, de

proteção da posse, inerentes à propriedade.

Não se pode negar que formalmente a função social da propriedade está muito bem

estruturada, com posição de destaque no ordenamento, em vista de sua inserção no texto

constitucional. O que não se verifica, todavia, é a completa efetividade de tal princípio no

cotidiano dos nossos tribunais. O Judiciário é carente de decisões no sentido de atribuir à

função social o caráter de conteúdo, pois a maioria dos magistrados interpreta o princípio na

acepção de limite.

Não se pode afirmar que a função social seja mera limitação ao direito do

proprietário, já que hoje ela parece figurar como conteúdo do direito de propriedade. E o

conteúdo, como todos sabem, é algo que faz parte da coisa, que está contido nela; é algo sem

o qual a coisa não tem razão de ser, não se justifica, não sobrevive.

Assim, só se fala em propriedade e, em sua garantia pelo Estado, se antes se falar

em função social. O Estado deve intervir nas relações entre os particulares para assegurar um

direito de propriedade com conteúdo constitucional, isto é, garantir que a propriedade coexista

com sua função social.

10. Considerações finais

Ao longo da história, a ideia de propriedade sempre esteve ligada à noção de poder.

Aliás, mais que isso, a propriedade já foi vista como um direito natural, inerente ao homem,

preexistente ao Estado e de caráter absoluto. Mas, conforme a sociedade vai se modificando,

também o direito se modifica. O ordenamento jurídico acaba sempre refletindo o momento

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histórico pelo qual passa a vida das pessoas. E a vida das pessoas está estritamente ligada à

propriedade.

A propriedade, como era vista no Estado Moderno, por exemplo, já não é a mesma

de hoje. O tríplice vértice do direito civil se mantém: família, contrato e propriedade; mas a

forma como esses institutos são abordados pelo ordenamento jurídico atual, difere, em muitos

aspectos, da tutela que o Estado os oferecia na modernidade.

O Código de Napoleão, que influenciou o nosso Código Civil de 1916, possuía em

seu seio três importantes concepções patrimonialistas: o liberalismo, o jusnaturalismo e o

capitalismo, todas também insertas no Código Civil brasileiro de 1916. Sob a vertente do

jusnaturalismo, o direito de propriedade era tido como um direito natural, de tal forma a ser

possível afirmar que fazia parte da natureza humana ser proprietário. Sob o viés do

liberalismo, todos os indivíduos tinham o direito de ser livres, tendo liberdade, também, para

se apropriar dos bens. Já no âmbito do capitalismo, a propriedade decorre da circulação de

riquezas e da acumulação do capital.

No Estado Moderno (liberal) a propriedade era tida como um direito subjetivo,

associado ao direito natural, também por influência do individualismo e do racionalismo

(segundo o qual o direito de propriedade preexiste ao direito). Com a superveniência do

Estado Constitucional - momento em que os interesses da sociedade começam a ser tutelados

pelo Estado, por meio de sua intervenção na vida dos particulares -, o “público” ganha uma

maior dimensão nos cenários político, social e jurídico.

A noção de direito subjetivo é, aos poucos, substituída pelo conceito de situação

jurídica patrimonial, em que se entrelaçam os interesses individuais e os sociais. O

proprietário passa a ser obrigado a respeitar os interesses da coletividade e isso se viabiliza

por meio do cumprimento da função social. A propriedade perde o seu caráter absoluto.

Com esse processo de constitucionalização do direito civil, o direito privado passou

a ser interpretado à luz da Constituição Federal o que acarretou o início da fase de superação

da dicotomia, antes evidente, entre a esfera pública e a privada.

Hoje a dicotomia público-privado parece, efetivamente, ter sido superada (embora se

ouça falar em suavização, e não em superação) vez que não se nota mais no ordenamento

jurídico uma distinção entre as esferas de direito público e de direito privado. Aliás, o

ordenamento parece enfrentar, ainda, um processo de crescente constitucionalização do

direito civil. E isso se verifica na forma como vem sendo tratado o instituto da propriedade no

sistema jurídico infraconstitucional e na jurisprudência, ainda que timidamente. O Estatuto da

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Cidade, por exemplo, figura como importante marco dessa nova fase por que passa a tutela do

direito de propriedade.

Superada, então, a dicotomia e despido o direito civil de sua veste puramente

patrimonialista, torna-se possível a percepção de que a função social não configura limite

imposto ao direito de propriedade, mas conteúdo característico do instituto. A função social é,

pois, inerente ao direito de propriedade, não podendo dele se desvencilhar, já que o justifica

na órbita das relações entre os indivíduos e o Estado.

Se antes prevalecia a ideia de que o direito estava assentado na dicotomia entre o

direito público e o direito privado, hoje não mais se fala em tal distinção. O processo de

constitucionalização do direito civil acabou por atenuar as linhas fronteiriças existentes entre

o direito que pretendia tutelar os interesses do Estado e aquele destinado a regular somente as

relações entre particulares. E o direito de propriedade, em especial, é o que mais evidencia

esse novo contexto jurídico e social.

É tão importante falar da propriedade quanto falar em dignidade da pessoa humana,

liberdade, ou igualdade, pois, lançando o olhar sobre nossas cidades é possível perceber o

impacto que o inadequado tratamento do direito de propriedade causa na vida social.

Dizer, hoje, que a propriedade deve cumprir sua função social, não significa dizer

que o Estado está impondo uma limitação externa ao referido direito. Parece certo que a

função social é algo inerente ao direito proprietário, de tal forma que falar em propriedade é

falar em função social. Isto significa, em outras palavras, que a propriedade só encontra razão

de ser no ordenamento jurídico, se cumprir sua função social, isto é, se tiver uma finalidade

social a cumprir.

Com o movimento de descodificação e a superveniência dos chamados

microssistemas, paralelamente aos processos de superação da dicotomia e

constitucionalização do direito privado os direitos fundamentais passaram a ser mais

utilizados para informar e orientar o ordenamento jurídico.

O direito à moradia, por exemplo, é direito fundamental de grande importância e

também está intrinsecamente ligado à noção de dignidade da pessoa humana, além de estar

diretamente relacionado à forma como são conduzidas as questões políticas, econômicas e

sociais pelos governantes. O art. 183, da Constituição Federal, por exemplo, quando se refere

à possibilidade de usucapião urbano, nada mais está a fazer do que a garantir o direito à

moradia àqueles que estão à margem da tutela estatal relativamente à propriedade.

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Os direitos e garantias fundamentais não estão na Constituição à toa. Não quis o

constituinte apenas deixar o texto constitucional mais bonito, repleto de palavras poéticas

como dignidade ou liberdade.

Direitos fundamentais são fundamentais. Isto significa que tais direitos servem de

fundamento, de base, de suporte para o reconhecimento de quaisquer outros direitos. Ser

fundamental é ser fonte, ser início, ser justificativa. O princípio da função social da

propriedade, como conteúdo desse direito, é também instrumento para a efetivação de

diversos direitos fundamentais, além da propriedade. E cabe ao Estado implementar políticas

públicas eficientes, habilitadas a garantir a concretização dos direitos fundamentais de seus

cidadãos, sejam eles proprietários ou não.

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PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA,

PROTEÇÃO JURÍDICA DO EMBRIÃO E O DIREITO À VIDA

THE PRINCIPLE OF THE HUMAN DIGNITY,

LEGAL PROTECTION OF EMBRYO AND THE RIGHT TO LIVE

Cyntia Brandalize Fendrich

Miguel Kfouri Neto

Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Unicuritiba

RESUMO

O presente artigo tem por finalidade abordar a utilização de embriões humanos na prática da

reprodução humana assistida dentro de uma visão principiológica e constitucional, voltando-

se o estudo especificadamente ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e aos seus

Direitos Fundamentais. Destaca-se inicialmente a delimitação conceitual de direitos

fundamentais, no que se refere a terminologia e conceito da expressão. Em seguida é traçado

o panorama sobre a proteção dos direitos humanos e direitos fundamentais. Segue-se

contextualizando o Princípio da Dignidade Humana, estabelecendo-se o seu fundamento

histórico, conceito e normatização jurídico-positiva. Demonstra-se a Dignidade da Pessoa

Humana como norma jurídica, princípio e valor fundamental, destacando-se a função do

Estado em propiciar as condições para que as pessoas possam viver dignamente. Pretende-se,

por fim reforçar que o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é o alicerce para a proteção

jurídica do embrião e como forma de preservação do direito à vida. Para a realização da

pesquisa, utilizou-se de pesquisa bibliográfica e doutrinária essencialmente.

PALAVRAS-CHAVE: embriões; reprodução humana; direitos humanos; dignidade da

pessoa humana; direitos fundamentais; direito à vida.

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ABSTRACT

This article aims to treat the use of human embryos in the practice of assisted human

reproduction based on a principled and constitutional vision, turning the study specifically to

the Principle of Human Dignity and its Fundamental Rights. It should be noted initially the

conceptual delimitation of fundamental rights, concerning to terminology and its concept.

Next its shown a perspective about the human right's protection and the fundamental rights.

Then the Principle of Human Dignity is contextualized, being settled its historical foundation,

concept and its legal positive regulation. It is demonstrated the Human Dignity as a legal rule,

principle and fundamental value, enphasizing the role of the state in providing the conditions

for a dignified life. Finally, it is intended to reinforce that the principle of human dignity is the

basis for the embryo's legal protection as a way of preserving the right to life. To perform the

research, it was consulted the literature and doctrine, essentially.

KEYWORDS: embryos; human reproduction; human rights; human dignity; fundamental

rights; right to live.

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1 INTRODUÇÃO

As clínicas de fertilização artificial desempenham uma função social relevante ao

viabilizarem, para aqueles que não podem gerar filhos pela concepção natural, o acesso a

gerar vida por meio dos mecanismos de facilitação reprodutiva.

Referidas clínicas concorrem para a consecução do proporcionar do bem-estar da

sociedade e da melhoria da qualidade de vida da população.

No entanto, os avanços da biotecnologia utilizada pelas clínicas de fertilização,

ocorrem em rápida velocidade, criando demandas para o tutelamento jurídico, que

desejavelmente deveria acompanhar a corrida tecnológica, a fim de lhe impor limites de

atuação, para que a Ciência não extrapole não apenas o marco regulatório, mas a essência da

efetividade prática dos direitos fundamentais e dos princípios constitucionais.

E a propósito desse compêndio (direitos e princípios referenciados), o arcabouço

normativo vigente, em que pese se basear no fato do nascimento com vida para ancorar o

“começo da pessoa humana”, também oferece tutelamento para aqueles ainda “em fase de

gestação”, dispondo, por exemplo, da vedação do comércio de embriões. E da basilar proteção

e principiologia constitucionais, destaca-se a dignidade da pessoa humana, prevista no artigo

1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988.

Este trabalho resta estruturado, inicialmente, na análise da evolução histórica dos

direitos fundamentais, investigando a progressiva incorporação dos valores ao Direito,

positivados nos níveis hierarquicamente mais altos do ordenamento, a saber, os assim

denominados Direitos Fundamentais.

O estudo segue analisando o aspecto conceitual, dentre o variado elenco de expressões

utilizadas pela doutrina e pelo direito positivo para se referir aos direitos essenciais, atingindo

o fato de que a dignidade da pessoa humana, como qualidade intrínseca do ser humano, é

irrenunciável, inalienável, imprescritível e intransferível.

O tópico seguinte aborda o princípio da dignidade da pessoa humana, em sua

qualidade de norma fundamental ínsita na ordem juridico-constitucional brasileira, a

dignidade como dispositivo positivado e como valor fundamental.

Por fim, é aprofundada a análise do princípio da dignidade da pessoa humana no

cotejo com sua protetividade tutelar, a proteção jurídica do embrião e o seu direito à vida.

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2 APONTAMENTOS CONCEITUAIS SOBRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Os direitos fundamentais se relacionam diretamente e são derivados das múltiplas

conquistas sociais e reformas políticas derivadas tanto de lutas por causas pontuais, como das

grandes guerras e revoluções.

Em que pese a maior parte dos Estados, notadamente os ocidentais, serem signatários

das Declarações e Convenções Internacionais de Direitos Humanos, tendo consignado suas

tutelas com a qualidade de direitos fundamentais dos cidadãos, em suas Constituições, de toda

sorte ainda há que se prospectar o solucionamento dos problemas suscitados pela casuítica;

afinal, da normatização à eficácia e efetivação dos direitos, há um caminho de políticas

sociais a ser percorrido, o que, certamente, demanda tempo.

É costume que a doutrina utilize expressões sinônimas para se referir aos direitos

fundamentais, tais como: direitos naturais, direitos humanos, direitos fundamentais do

Homem, direitos subjetivos públicos, direitos dos povos. Mister, portanto, que se faça uma

delimitação conceitual.

Diante da variedade de expressões, "a doutrina tem alertado para a heterogeneidade,

ambiguidade e ausência de um consenso na esfera conceitual e terminológica, inclusive no

que diz com o significado e conteúdo de cada termo." (SARLET, 2006, p. 33).

Diferenciem-se, então, algumas das expressões utilizadas.

Ao citar Santo Tomás, Bobbio fala da definição de lei natural, que para Santo Tomás

seria "o modo como uma ordem cósmica, emanada de Deus, manifesta-se naquele aspecto da

criação que é a criatura dotada de razão, isto é, o homem. A lei natural consta de um preceito

único, e genérico do qual a razão deduz todos os outros." (BOBBIO, 1997, p. 38).

Segundo Grotius (2004, p. 79): "o direito natural nos é ditado pela razão que nos leva a

conhecer que uma ação, dependendo se é ou não conforme à natureza racional, é afetada por

deformidade moral ou por necessidade moral e que, em decorrência, Deus, o autor da

natureza, a proíbe ou a ordena".

Direitos humanos é expressão adotada na atualidade e possui um conteúdo semelhante

ao do direito natural, traduzindo-se por uma espécie de direito que seria atribuído por Deus

aos homens.

"A expressão Direitos Humanos está relacionada com os documentos do direito

internacional, com aspiração à validade universal, para todos os povos e tempos, o que revela,

com isso, um evidente caráter supranacional." (SARLET, 2006, p. 36).

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Para Canotilho (2003, p. 393), direitos humanos é a expressão utilizado para designar

"a categoria de prerrogativas essenciais da pessoa em sentido amplo, ainda que não

positivadas em algum ordenamento jurídico, haja vista tratar-se da denominação mais

difundida no cenário internacional". Aliás, foi esta a expressão adotada pela Organização das

Nações Unidas (ONU) na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.

E diversamente de direitos humanos, os direitos fundamentais são aplicados àqueles

direitos do ser humano, que foram reconhecidos e positivados na esfera do direito

constitucional positivo de cada Estado, àqueles direitos "objetivamente vigentes numa ordem

jurídica concreta" (SARLET, 2006, p. 35-36).

Pode-se dizer então que direitos fundamentais são "todos aqueles direitos subjetivos

que correspondem universalmente a todos os seres humanos dotados de status de pessoa, de

cidadão ou pessoa com capacidade de fato." (FERRAJOLI, 2001, p. 37)

O termo direitos subjetivos públicos surge para delimitar os direitos considerados

essenciais à pessoa humana dentro de um marco positivista, estando presa ao conceito de

Estado Liberal, atuando como um limite ao poder político, mas não nas relações entre

particulares, não conseguindo abranger, portanto, grande parte das situações em que é

necessário reivindicar tais direitos.

Direitos dos povos é utilizado "para designar aqueles direitos que os povos têm de

determinar seu destino, no campo político, social, cultural, econômico, o direito de se

relacionar com outros Estados, direito a paz, não abrangendo, entretanto os direitos das

pessoas como indivíduais, concretas, insubsituíveis". (MIRANDA, 2000, p. 68).

Ao presente estudo adota-se o termo sugerido por José Afonso da Silva (2008, p. 178),

'direitos fundamentais do homem', pois as demais expressões restringem o alcance dos

direitos considerados essenciais à pessoa humana, e referem-se apenas a "princípios que

resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento

jurídicoé reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e

instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas

as pessoas."

Ainda segundo José Afonso da Silva, (2008, 178) o termo 'fundamentais' indica uma

situação jurídica sem a qual a pessoa humana não se realiza, nem mesmo sobrevive. Se é

fundamental ao homem, todos os direitos, por igual, devem ser formalmente reconhecidos e

concreta e materialmente efetivados.

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3 A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Os direitos fundamentais não se restringem a limitar a esfera de atuação do poder

estatal, ou a conferir aos cidadãos o direito de reclamar benefícios. Por trás da filosofia dos

direitos fundamentais está o objetivo de compartilhar, repartir o próprio poder entre os

diversos atores sociais, a contrario sensu de concentrá-lo nas minorias empoderadas.

Os denominados “direitos de participação” decorrem da função dos direitos

fundamentais de compartilhar o poder, que se inicia pela partilha dos direitos políticos, e em

seguida, se estendendo à esfera do poder econômico e cultural. Neste sentido os direitos

fundamentais se apresentam com função de não interferência, participação e prestação, e para

que estas funções tenham eficácia, é necessário um forte regramento do direito positivo.

Os direitos fundamentais surgem juntamente com a formação do Estado moderno, e a

partir deste marco, eles foram conquistados historicamente, conforme expõe PEREIRA (2012,

p. 63), "pela necessidade, primeiramente, de limitar as ações do Estado; em um segundo

momento para exigir desse mesmo Estado prestações; e, em um terceiro momento, para obter

participação no poder do Estado".

Assim, verifica-se que os direitos fundamentais são instrumento de impactante

relevância para a sobrevivência sustentada da humanidade, notadamente em razão da

vulnerabilidade dos cidadãos em diversos papeis desempenhados.

Mas a sua positivação não é suficiente. É preciso que os direitos normatizados sejam

protegidos, por meio da busca constante de sua concretização casuística. É imperioso que os

direitos fundamentais sejam compreendidos como titularidades a que fazem jus – na prática –

todos os homens, e não apenas os de status mais privilegiados da sociedade, ou os cidadãos de

com acesso a advogados mais experientes. A repercussão jurídica da norma deve ser pró-

efetivação das garantias, em nível administrativo e judicial.

Neste contexto, ao tratar da ética da responsabilidade, JONAS (2006, p. 327)

estabelece que:

"[...] a natureza fictícia da existência deve exercer um efeito desmoralizante sobre todas as

pessoas, pois junto com a realidade também se confisca ao homem a dignidade humana, de

modo que aquela satisfação corresponderia à falta de dignidade. Aqueles que valorizam a

dignidade humana não deveriam desejar um tipo de satisfação semelhante para as futuras

gerações. Deveriam temê-la".

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E muito além das discussões conceituais, está a compreensão dos direitos

fundamentais como instrumento para assegurar e proteger a dignidade da pessoa humana, com

vistas às futuras gerações.

4 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Na interpretação da leitura de Ingo Sarlet, haveria uma ideia relativa ao valor

intrínseco da pessoa humana, a qual deita raízes no pensamento clássico e no ideário cristão.

Segundo ela, todos os seres humanos são dotados de um valor próprio e que lhe é intrínseco,

não podendo ser transformado em mero objeto ou instrumento.

No pensamento filosófico e político da antiguidade clássica verifica-se que a

dignidade da pessoa humana referia-se, geralmente, à posição social ocupada pelo indivíduo e

seu grau de reconhecimento pela sociedade.

De outra senda, no pensamento estóico, a dignidade representava a qualidade que, por

ser inerente ao ser humano, o distinguia das demais criaturas, no sentido de que todos os seres

humanos são dotados da mesma dignidade.

Durante o medievo, segundo ensinamentos de Klaus Stern, "a concepção de inspiração

cristã e estóica seguiu sendo sustentada, destacando-se Tomás de Aquino, o qual, fortemente

influenciado também por Boécio, chegou a referir expressamente à expressão dignitas

humana", partindo da racionalidade como qualidade inerente ao ser humano, sendo esta a

"[...] qualidade que lhe possibilita constituir de forma livre e independente de sua própria

existência e seu próprio destino."

Outra posição é a de Immanuel Kant, ao manifestar que a "dignidade parte da

autonomia ética do ser humano, considerando esta como fundamento da dignidade do homem,

além de sustentar que o ser humano (o indivíduo) não pode ser tratado, nem mesmo por ele

próprio, como objeto" (SARLET, 2001, p. 33) . Segundo Kant, a dignidade representa o valor

de uma disposição de espírito, colocando-a infinitamente acima de todo o preço.

E é justamente no pensamento de Kant que a doutrina jurídica mais expressiva ainda

hoje se identifica, nas bases de uma fundamentação e, de certa forma, de uma conceituação de

dignidade da pessoa humana.

Fato é que "a permanência da concepção kantiana no sentido de que a dignidade da

pessoa humana, esta considerada como fim e não como meio, repudia toda e qualquer espécie

de coisificação e instrumentalização do ser humano. (SARLET, 2001, pg. 35)

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E assim a dignidade da pessoa humana continua, talvez mais do que nunca, ocupando

um lugar central no pensamento dos intelectuais.

Ocorre que uma conceituação direta do que seja a dignidade, inclusive para efeitos de

definição de seu âmbito de proteção como norma jurídica fundamental, se revela difícil de ser

obtida, pois "cuida de conceito de contornos vagos e imprecisos, caracterizado por sua

'ambiguidade e porosidade'. (SARLET, 2001, 38).

A dignidade, de acordo com o entendimento majoritário, independe das circunstâncias

concretas, pois inerente a toda e qualquer pessoa humana, pois todos são iguais em dignidade,

ainda que não se portem de forma igualmente digna nas suas relações com os seus

semelhantes e consigo mesmas.

Não é diverso o entendimento estampado no artigo primeiro da Declaração Universal

da ONU (1948), segundo o qual todos os serem humanos nascem livres e iguais em dignidade

e direitos.

Não se pode deixar de citar Chamon Junior (2008, p. 438), que trata do princípio da

dignidade à luz da modernidade:

"O princípio moderno da dignidade desenvolve-se, desenrola-se e desdobra-se jurídica e

legitimamente a partir do respeito ao princípio democrático, pois. Já de um ponto de vista da

Moral, o princípio da dignidade cobra-nos o respeito ao princípio da universalização. Assim,

posso entender que o princípio da dignidade é um elemento normativo da Modernidade, uma

exigência da qual o mundo da vida moderno não tem como se afastar sem se autodestruir."

Como tarefa imposta ao Estado, a dignidade reclama que este guie as suas ações tanto

no sentido de preservar a dignidade existente como objetivando a promoção da dignidade,

especialmente criando condições que possibilitem o pleno exercício e fruição da dignidade,

sendo portanto dependente a dignidade da ordem comunitária. (SARLET, 2001, p. 47)

Ingo Sarlet (2001, p. 58) busca conceituar a dignidade explicando que apenas a

dignidade de determinada pessoa seria passível de ser desrespeitada, inexistindo no caso

citado qualquer atentado contra a dignidade da pessoa em abstrato.

Para além disso, Sarlet cita que a dignidade constitui um atributo da pessoa humana

individualmente considerada, e não de um ser abstrato, razão pela qual não se pode confundir

as noções de dignidade da pessoa e dignidade humana, quando esta for referida à humanidade

como um todo.

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Na tentativa de responder Sarlet (2001, p. 59) conclui que onde não houver respeito

pela vida e pela integridade física e moral do humano, onde as condições mínimas para uma

existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, onde a

liberdade, a autonomia, a igualdade e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e

assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana.

E sendo assim, Sarlet (2001, p. 60) ousa em propor um conceito de dignidade da

pessoa humana:

[...] a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo

respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um

complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e

qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições

existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação

ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os

demais seres humanos.

Portanto, a dignidade da pessoa humana, como qualidade intrínseca do ser humano é

irrenunciável, inalienável, instransferível e irrevogável, constituindo elemento que qualifica o

ser humano como tal e dele não pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar na

possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a

dignidade.

4.1 A normatização jurídico-positiva da dignidade como norma fundamental no âmbito

constitucional brasileiro

A Constituição Federal brasileira de 1988 foi a primeira a destinar um capítulo próprio

para tratar dos princípios fundamentais, localizado após o preâmbulo e antes dos direitos

fundamentais. Esta previsão ocorreu a fim de "outorgar aos princípios fundamentais a

qualidade de normas embasadoras e informativas de toda ordem constitucional" (SARLET,

2001, p. 65).

Com a crise do Estado contemporâneo, permitiram-se gritantes ofensas à dignidade

humana. A exemplo, vale citar a Segunda Guerra Mundial, na qual as próprias vítimas

perdiam a noção de dignidade, devido aos ataques com armas invencíveis, a ideologia de

dominação, e incontáveis aniquilações do ser humano.

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Portanto, verifica-se que a positivação do princípio da dignidade humana é recente,

pois apenas após a Segunda Guerra Mundial é que ela passou a ser reconhecida

expressamente nas Constituições. No Brasil, ocorre em 1988, firmando a ruptura entre o

regime ditatorial instalado em 1964 e o regime democrático pós-ditadura.

Apesar da normatização positivada, a dignidade da pessoa humana, na prática, ainda

não foi integrada de maneira definitiva às relações jurídicas contemporâneas, pecando na falta

de efetividade regulamentar. Portanto, embora positivada, as violações ao princípio ainda são

frequentes, não impedindo a ocorrência de atrocidades contra os cidadãos. A simples

positivação, ou seja, a referência do princípio – da Constituição às leis e doutrina – por si só

não é capaz de preservar a pessoa humana de violação à sua dignidade.

É que o Estado moderno ainda está despreparado para prestar a devida proteção aos

cidadãos, pois desde os primórdios, a legislação surgiu como forma de proteção e limitação

dos direitos do Estado. Entretanto, se esquece que na verdade é o Estado que existe em função

da pessoa humana, e não o contrário.

Neste contexto, podemos vislumbrar a dignidade da pessoa humana como norma

jurídica e valor fundamental ao desenvolvimento nacional.

4.2 Dignidade da pessoa humana como norma jurídica e os direitos fundamentais

O status de princípio e valor fundamental à dignidade da pessoa humana foi conferido

pela Constituição Federal de 1988, logo no inciso III do seu artigo 1°: A República Federativa

do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípiose do Distrito Federal,

constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III - a dignidade

da pessoa humana".

No entendimento de Sarlet, o dispositivo constitucional citado não traduz

simplesmente mais uma norma, mas sim uma norma definidora de direitos, garantias e

deveres fundamentais. O dispositivo traduz um princípio e valor, não somente a norma

constitucional em suas características impositivas de deveres.

Ora, se o dispositivo que traz o princípio da dignidade humana prevê garantias,

direitos e deveres fundamentais, pode-se afirmar que o princípio da dignidade possui uma

dupla função: a defensiva e a prestacional: defensiva na posição de finalizar normas que

outorgam direitos subjetivos de cunho negativo (não violação da dignidade), mas que também

pedem condutas positivas para promover a dignidade.

A dignidade não é algo que se outorgue aos indivíduos, mas algo instrínseco da pessoa

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humana. Não há um 'direito à dignidade', mas um direito de seu reconhecimento, respeito,

proteção e promoção, e vislumbra-se até mesmo inexistir o 'direito fundamental à dignidade

da pessoa humana'.

No entendimento da doutrina em geral, este é o aspecto principal da dignidade, ser

uma qualidade intrínseca do ser humano, e por tal razão torna-se despicienda a sua concessão

(a outorga) pelo Estado; contudo, é demandatória a sua proteção e promoção.

O princípio da dignidade humana é valor fonte que justificaria a existência do próprio

ordenamento jurídico, sendo considerado o princípio constitucional de maior hierarquia

axiológico-valorativa. Portanto, o valor-fonte da nossa Constituição Federal não é outro senão

o mencionado princípio da dignidade humana.

Ante o exposto, uma das principais funções do princípio da dignidade da pessoa

humana repousa na circunstância de ser o elemento que confere "unidade de sentido e

legitimidade a uma determinada ordem constitucional" (SARLET, 2001, p. 79). Assim, o

valor fonte da dignidade humana confere uma unidade axiológico-normativa de sentido à

Constituição Federal.

Neste aspecto Alexy declara que no âmbito da doutrina germânica, ainda que

contestado por alguns doutrinadores, "a norma consagradora da dignidade da pessoa revela

uma diferença estrutural em relação às normas de direitos fundamentais, justamente pelo fato

de não existir uma ponderação no sentido de uma colisão entre princípios[...]."

Para a ordem constitucional é conferido sentido e legitimidade pelo princípio da

dignidade da pessoa humana, traduzindo a ideia de que a pessoa é o fundamento e o fim das

sociedades e do Estado. Logicamente que para que seja legítima, a dignidade deve ser

reconhecida e protegida pelo ordenamento jurídico nacional, e o seu respeito é imprescindível

para a legitimação e atuação do Estado.

De imperiosa referência, o fato de que a parcela expressiva da jurisprudência adota o

princípio da dignidade da pessoa humana como balizador das decisões que visam a

restabelecer a paz face à violação dos direitos fundamentais. A dignidade da pessoa humana

pode ser considerada, portanto, o valor fundante de todo e qualquer direito fundamental,

atrelado à proteção e ao desenvolvimento de todas as pessoas.

Ocorre que nem sempre o Estado consegue realizar seu dever protecionista e

promocional da dignidade da pessoa humana. As atuais omissões do Estado, diante das

inovações sociais em sociedades industrializadas e devido à globalização, tem gerado "[...]

violação nos direitos fundamentais / 'direitos do homem' (e não somente subjetivos, pois a

nova geração de direitos passou a considerar os direitos difusos". (NOVAK, 2010, p. 166).

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Outro aspecto é apresentado por Moraes (2008, p. 43), a partir de uma leitura sobre a

perspectiva da teoria sistêmica de Niklas Luhmann, em que se afirma que seria equivocado o

entendimento de que princípios são a base dos sistemas, diante de uma sociedade atualmente

complexa. Porém, cita que os direitos fundamentais ou direitos subjetivos são estruturas que

confirmam e delimitam a diferenciação dos sistemas diferenciados na sociedade moderna,

através dos princípios como premissas das decisões (MORAES, 2008, p. 44).

Ressalte-se que a dignidade humana tem sido considerada frequentemente o princípio

de maior hierarquia do ordenamento jurídico, o que pode resultar no problema de sua eventual

relativização.

Portanto, se a finalidade maior do Estado é a promoção do bem comum, ele deve

propiciar condições para o mais completo desenvolvimento sistêmico e para a realização dos

valores que materializam a dignidade dos cidadãos.

E a ordem jurídica participa zelando para que todos recebam igual consideração e

respeito pelo Estado e pela comunidade, visando à coibição da violação dos direitos

fundamentais e, em última instância, da dignidade da pessoa humana.

5 O VALOR DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO PROTEÇÃO

JURÍDICA DO EMBRIÃO E O DIREITO À VIDA

Com relação aos embriões humanos a partir da ênfase jurídica, faz-se necessária a

discussão acerca da sua proteção, principalmente quanto ao momento em que tem início a

vida, analisando se ao embrião cabe a mesma proteção dispensada à pessoa, ou se deve haver

uma tutela jurídica compatível com a sua condição, porém em harmonia com os preceitos

fundamentais.

Para a embriologia, embrião é a denominação dada ao ser humano durante as oito

primeiras semanas do seu desenvolvimento (GOLDIM, 2003, p. 55). O conceito jurídico de

embrião é diverso, pois para o Direito, após a implantação no útero, o embrião passa a ser

denominado nascituro.

E qual o momento em que o embrião passa a ser considerado pessoa? Para a corrente

concepcionista, a personalidade jurídica tem início no momento da concepção. Para a corrente

natalista, a personalidade é adquirida com o nascimento com vida. Outra teoria, a da nidação,

condiciona a aquisição da personalidade à implantação do embrião no útero materno.

O cerne da discussão consiste em atribuir ao embrião a proteção jurídica de uma

pessoa. Para Cardin (2012, p. 57), "entender que há proteção da vida humana desde a

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concepção não pressupõe, necessariamente, como requisito, o atributo da personalidade, uma

vez que ele emana do nascimento com vida".

No entanto, o embrião, em qualquer fase de desenvolvimento, merece ser tutelado,

sendo considerado, logicamente, que ele somente não possui os direitos e deveres inerentes

àqueles nascidos com vida. Portanto, o simples fato do embrião possuir natureza humana já

lhe confere direitos fundamentais como o direito à vida e à dignidade.

Desta maneira, independentemente da corrente adotada, é pacífico o entendimento

quanto ao valor inerente ao indivíduo: a sua dignidade.

Conforme analisado anteriormente, fruto de larga evolução, "[...] o reconhecimento do

homem como sujeito de dignidade é elemento fundante da ordem jurídica brasileira. Desde os

alicerces do Estado democrático de Direito destacam-se a cidadania e a dignidade da pessoa

humana." (MEIRELLES, 2000, p. 223)

Segundo Silva, "a dignidade, reconhecida a toda a vida humana, ampara-se em dois

pressupostos: a) todas as pessoas humanas devem ser igualmente respeitadas; e b) o respeito

deve ser assegurado independentemente do grau de desenvolvimento individual das

potencialidades humanas."

Assim, importa afirmar que aos embriões aplicam-se os princípios fundamentais da

dignidade humana e da proteção ao direito à vida, concluindo-se que toda a atividade abusiva

que venha atingir os seres embrionários conflitará com o respeito à vida e à dignidade

humana, ambos assegurados constitucionalmente.

A Constituição Federal de 1988 elevou o princípio da dignidade humana e positivou a

garantia e a proteção dos direitos humanos e fundamentais. Assim,a dignidade da pessoa

humana e a inviolabilidade do direito à vida fazem com que as relações jurídicas busquem

personificação e reflitam os direitos humanos, de modo que no roteiro constitucional

brasileiro possam ser identificadas as opções sobre a problemática dos embriões excedentes

das reproduções assistidas.

Não à toa o princípio constitucional da dignidade, como fundamento da República,

exige como pressuposto a intangibilidade da vida humana. Sem vida, não há pessoa, e sem

pessoa, não há dignidade.

Tal preceito é absoluto, não admite exceção e é previsto no artigo 5° da Constituição,

proibindo o aborto, por exemplo, na medida em que o zigoto, posteriormente desenvolvido no

ventre materno é, sem dúvida, um ser humano sujeito de direito, conforme esclarece

Junqueira de Azevedo (2002, p. 96):

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"A célula una (zigoto), resultante da fusão dos gametas e, em seguida, multiplicada por

desenvolvimento interno no ventre materno, é, sem dúvida, um novo ser humano que já rece-

beu sua própria parcela de vida, já se inseriu com individualidade no fluxo vital contínuo da

natureza humana. Tem vida própria e, no mínimo, capacidade para ser amado. Filosoficamente

ou eticamente é, pois, pessoa humana. Do ponto de vista jurídico, pode não ter “personalidade

civil” (art. 4o do C. Civil e art. 2o do novo Código), mas já é sujeito de direito (art. 4o, última

parte, do C. Civil e art. 2o, última parte, do novo Código)."

Por certo que no âmbito constitucional o feto possui proteção tanto pelo princípio da

dignidade da pessoa humana, que pressupõe o direito à vida, quanto pelo caput do artigo 5° da

Constituição.

Tendo em vista estas considerações, constata-se que em se tratando de vida,

especialmente vida humana em potencial, nenhuma atividade destruidora é moralmente

admissível, e não com base no princípio da intangibilidade da vida humana, mas com fulcro

na proteção à vida em geral.

Ocorre que o vazio legislativo permite que sejam praticados diariamente atentados

contra o primado da vida humana, em nome de um relativismo ético. (CARDIN, 2012, p. 80).

O maior atentado à vida se observa na questão relativa à destruição do embrião, em

decorrência da retirada das células-tronco. Chega-se a esta conclusão principalmente àqueles

que acreditam que a vida humana se inicia no momento da concepção, ou seja, da união de

gametas e formação do zigoto.

Por esta razão a Lei de Biossegurança sempre foi alvo de críticas, especificamente no

que tange à permissão de utilização, para fins de pesquisa e terapia, de células-tronco obtidas

de embriões humanos, produzidos em fertilizações in vitro e que não foram transferidos para

o útero materno. Isto porque no entendimento de grande corrente de estudiosos a vida humana

acontece a partir da fecundação.

Com base na análise realizada no presente artigo, verifica-se que a Lei de

Biossegurança de fato viola os preceitos constitucionais que consagram o direito à vida e a

dignidade da pessoa humana.

As células-tronco embrionárias são células que possuem um grande potencial de

multiplicação e diferenciação, contudo, o dilema ético reside no fato de que, para obtê-las, é

necessário a proteção, utilização e destruição dos embriões humanos.

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A discussão encontra mais divergência pelo fato de que as células-tronco embrionárias

não são as únicas células embrionárias com poder de multiplicação celular, podendo ser

utilizadas para os estudos as células adultas também.

Estas células adultas são encontradas em diferentes tecidos, e em cada um deles, dão

origem a diferentes tipos celulares que constituem aquele tecido. Desta forma, não sendo as

células embrionárias as únicas com poder de multiplicação e diferenciação, e sendo possível a

realização de estudos com céluas-tronco adultas, reforça-se a desnecessidade da utilização dos

embriões humanos para tais estudos.

E apesar das divergências de correntes quanto ao momento do início da vida humana,

tem-se que no contexto o bem jurídico protegido é a vida humana embrionária, desde o

momento de sua concepção, desde os estágios iniciais e não após o quinto dia ou de sua

nidação, conforme prevê algumas teorias.

Ora, uma vez entendido que o legislador decidiu proteger a vida humana embrionária a

partir da sua concepção, admite-se que tal proteção se dá no útero ou fora do útero materno.

Resta apenas a dificuldade de compreender o embrião como vida devido ao seu

aspecto morfológico, muito diferente do embrião formado. No entanto, embrião não é um

amontoado de células e em momento algum poderá ser comparado a 'coisa'.

É dever de todos encontrar uma via de respeito a dignidade da vida humana nascente,

em formação, ainda que em seus estágios iniciais.

Nós, seres humanos, devemos nos posicionar a favor da vida e não contra ela,

intensificar nossa luta a favor do respeito à dignidade humana, a fim de prestar efetividade aos

direitos fundamentais previstos em nossa Constituição.

E assim, verifica-se que algumas premissas lançadas inicialmente se confirmam, no

sentido de que:

a) os direitos fundamentais previstos constitucionalmente alcançam a esfera jurídica

das questões bioéticas;

b) existe no Brasil legislação que regulamenta a utilização de embriões humanos em

atividades biotecnocientífica, porém sem respaldo constitucional, aliás, em afronta ao

princípio fundamental da dignidade da pessoa humana;

c) o princípio da dignidade da pessoa humana assegura aos embriões a proteção

jurídica frente ao descarte de material genético e sua utilização para estudos de células-tronco.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Constata-se que o desenvolvimento científico e a reprodução humana não podem ficar

à margem de análise legal e doutrinária de cunho jurídico, tendo em vista a tutela dos direitos

fundamentais e interesses difusos correlacionados com as técnicas de reprodução humana

assistida.

A Constituição Federal de 1988 foi o marco jurídico da transição democrática e da

institucionalização dos direitos e garantias fundamentais.

Já em seu preâmbulo, verificamos a construção desse Estado Democrático de Direito,

destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o

bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma

sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

É nesse cenário que a Lei de Biossegurança finca sua bases de justiça, segurança

jurídica e bem-estar social.

Por conseguinte, o valor solidariedade e a dignidade da pessoa humana tornam-se

sustentáculos do que se pretende neste artigo. O indivíduo não pode viver solitário em

sociedade, mas sim coexistir com os demais semelhantes. Percebe-se que o ser humano não é

uma totalidade em si mesmo, mas torna-se totalidade quando interage com outros.

O estudo nos permite confirmar o entendimento de que o princípio da dignidade da

pessoa humana deverá ser considerado como fundamento para as decisões eventualmente

emanadas a respeito das técnicas de reprodução humana asssitida, pois é o único princípio, e

mais importante do ordenamento, que permitirá a análise do embrião sob o enfoque de ser

humano constituído, aplicando-se a ele toda a proteção jurídica equiparada aos humanos já

nascidos.

São estes valores constitucionais concretizados em normas jurídicas que limitam a

autonomia da vontade no campo da pesquisa e demais destinações dadas aos embriões.

Busca-se com o artigo justamente a verificação da afronta da destinação dada aos embriões

frente ao princípio da dignidade humana e preceitos éticos da sociedade.

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ANÁLISE DO REGIME DAS INCAPACIDADES NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO

APLICADO ÀS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL SOB A ÓTICA

CIVIL-CONSTITUCIONAL: INSUFICIÊNCIA ÀS SITUAÇÕES JURÍDICAS

EXISTENCIAIS

ANALYSIS OF THE DISABILITY SYSTEM IN BRAZILIAN CIVIL CODE APPLIED TO

PERSONS WITH INTELLECTUAL DISABILITIES UNDER CIVIL-CONSTITUTIONAL

PERSPECTIVE: FAILURE TO LEGAL EXISTENCIAL SITUATIONS

Ana Vládia Martins Feitosa Olívia Marcelo Pinto de Oliveira

RESUMO

O expressivo número de pessoas com deficiência intelectual ou mental, atualmente, no Brasil, bem como o aumento de sua participação no cenário social, inclusive no mercado de trabalho, são realidades cada vez mais presentes. Em decorrência, a conquista de autonomia privada por essas pessoas choca-se com o regime das incapacidades previsto no Código Civil Brasileiro (CC/02), insuficiente por não se adequar às situações subjetivas existenciais. Observa-se um descompasso entre as medidas de proteção do “incapaz” com sofrimento psíquico voltadas, precipuamente, às questões patrimoniais, e a observância das liberdades individuais e a promoção do livre desenvolvimento da personalidade, garantidos a todos indistintamente. Dessa forma, explicitam-se os conceitos de personalidade e capacidade, aborda-se a ratio do regime das incapacidades, lançando-se uma crítica à restrição da capacidade de agir (factual) por meio do instituto da interdição à luz das novas diretrizes do ordenamento jurídico fundadas na dignidade da pessoa humana e na consequente funcionalização do direito civil, para, ao final, demonstrar propostas de reforma ou estabelecimento de um sistema de proteção civil dos incapazes inspirado na “doutrina da alternativa menos restritiva”, adotada por alguns países da Europa. PALAVRAS-CHAVE: Capacidade; Deficiência Intelectual; Interdição; Autonomia; Personalidade. ABSTRACT The significant number of people with intellectual or mental disabilities currently in Brazil, as well as increasing their participation in the social scene, including the labor market, are increasingly present realities. As a result, the achievement of private autonomy by these people clashes with the regime of disabilities under the Civil Code, insufficient because it does not suit the subjective existential situations. There is a mismatch between the measures of protection "unable" with psychological distress aimed, primarily, issues equity, and respect for individual freedoms and promote the free development of personality, guaranteed to all Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Pós-Graduada latu senso em Direito Processual Civil pela Fundação Escola Superior de Advocacia do Ceará FESAC. Professora do curso de Graduação em Direito e do programa de Pós-Graduação latu senso em Processo Civil, em Direito e Processo de Família e Sucessões e em Responsabilidade Civil da Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Advogada. Doutoranda em Direito Civil pela Universidade de Coimbra. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Professora do curso de Graduação em Direito e do programa de Pós-Graduação latu senso em Direito e Processo de Família e Sucessões da Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Advogada.

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without distinction. Thus, to explain the concepts of personality and ability, it approaches the ratio of the system of disability, launching a critique of the restriction of the ability to act (factual) via the institute the ban in light of new planning guidelines legal based on the dignity of the human person and the subsequent functionalization of civil law, for in the end, reform proposals demonstrate or establish a system of protection of civil unable inspired by the "doctrine of the least restrictive alternative" adopted by some European countries. KEYWORDS: Capacity; Intellectual Disabilities; Prohibition; Autonomy; Personality. INTRODUÇÃO

Como revisitar o regime das incapacidades estabelecido pelo Código Civil vigente à

luz da dignidade humana e da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência?1

Sobre esta questão central ocupa-se o presente trabalho, que tem por objetivo enfocar a

necessidade de relativização dos parâmetros de fixação legal da incapacidade aplicados às

pessoas com deficiência intelectual, a fim de que este instituto não represente instrumento de

amarra impeditiva de seu desenvolvimento e de sua autonomia, mormente quanto às questões

existenciais.

Nesse contexto, destaca-se o advento do Código de Civil de 2002, que a despeito das

expectativas criadas em torno do tema, permaneceu dispensando tratamento ao regime

jurídico das incapacidades fulcrado em elementos anacrônicos e, sobretudo, em evidente

descompasso com a atual ordem constitucional, que tem a pessoa humana como seu centro e

fonte (TEIXEIRA, 2008, p. 6). Na lição de Leite (2012, 302): Para o Código Civil vigente, pessoa é tão somente aquele que participa da relação jurídica, o sujeito de direitos. A definição de pessoa, portanto, é marcadamente formal, distante da realidade. Nesse contexto, pessoa não é ser humano real, que sofre, se alegra, tem vontade preferências, aspirações, sentimentos, mas simplesmente aquele que tem aptidão para adquirir direitos e deveres, figurando no polo ativo ou passivo das relações jurídicas. Essa definição artificial de pessoa levou a um tratamento jurídico também distante e formal da capacidade civil. Com isso, a proteção da capacidade deixa de ser um instrumento de tutela da personalidade, aqui compreendida como valor jurídico, para figurar como meio de resguardo de interesses patrimoniais.

Ocorre que, em face da projeção dos direitos fundamentais no ordenamento jurídico

(PERLINGIERI, 2007), as relações do direito civil se personalizaram, passando o sujeito de

direito abstrato a ser compreendido como a pessoa, dotada de história própria, sustentada por

sua subjetividade.

Por conseguinte, até mesmo as pessoas consideradas incapazes, mas que demonstrem

algum grau de discernimento, merecem ser ouvidas em suas manifestações e ter reconhecido

1 Convenção aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, no dia 06 de dezembro de 2006, através da Resolução A/61/611 e ratificada, em 09 de julho de 2008, pelo Decreto Legislativo nº186/08, publicado no DOU de 20 de agosto de 2008.

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o poder de decidir como desejam conduzir suas vidas nos mais variados aspectos, na medida

de sua autonomia, como orienta Perlingieri (2007, p. 164-165): O estado pessoal patológico ainda que permanente da pessoa, que não seja absoluto ou total, mas graduado ou parcial, não se pode traduzir em uma série estereotipada de limitações, proibições e exclusões que, no caso concreto, isto é, levando em consideração o grau e qualidade do déficit psíquico, não se justificam e acabam por representar camisas-de-força totalmente desproporcionadas e, principalmente, contrastantes com a realização e pleno desenvolvimento da pessoa. [...] É preciso, ao contrário, privilegiar sempre que for possível, as escolhas de vida que o deficiente psíquico é capaz, concretamente, de exprimir, ou em relação às quais manifesta notável propensão. A disciplina de interdição não pode ser traduzida em uma incapacidade legal absoluta, em uma “morte civil”. Quando concretas, possíveis, mesmo se residuais, faculdades intelectivas e afetivas podem ser realizadas de maneira a contribuir para o desenvolvimento da personalidade, é necessário que sejam garantidos a titularidade e o exercício de todas aquelas expressões de vida que, encontrando fundamento no status personae e no status

civitatis, sejam compatíveis com a efetiva situação psicofísica do sujeito. Contra essa argumentação não se pode alegar – sob pena de ilegitimidade do remédio protetivo ou do seu uso – a rigidez das proibições nas quais se substancia a disciplina do instituto da interdição, tendente à exclusiva proteção do sujeito: excessiva proteção traduzir-se-ia em uma terrível tirania.

Diante, portanto, do conflito existente entre a realidade estabelecida a partir dos

valores e princípios constitucionais e o regime das incapacidades no padrão atualmente

concebido, é premente a necessidade de se pensar na construção de alternativas para

solucioná-lo.

1 O TRADICIONAL REGIME DAS INCAPACIDADES NO CÓDIGO CIVIL

BRASILEIRO

Para tratar do regime das incapacidades disposto no Código Civil Brasileiro,

necessário se faz abordar o conceito de personalidade, diferenciando-o do de capacidade. A

personalidade, de acordo com Nery Júnior e Nery (2012), é a atribuição conferida a alguém

para ser sujeito de direito e de deveres e obrigações, imanente ao ser humano. Essa

possibilidade de participação nas relações jurídicas, estendida não só à pessoa natural como à

pessoa jurídica, exprime o caráter subjetivo da personalidade, já que atualmente ela passou a

ser considerada sob dois vieses, dizendo respeito, por sua vez, o caráter objetivo ao conjunto

de atributos do homem encarado como objeto de proteção jurídica, como bem explica

Tepedino (2008, p. 28-29): É que a personalidade, a rigor, pode ser considerada sob dois pontos de vista. Sob o ponto de vista dos atributos da pessoa humana, que a habilita a ser sujeito de direito, tem-se a personalidade como capacidade, indicando a titularidade das relações jurídicas. É o ponto de vista estrutural (atinente à estrutura das situações jurídicas subjetivas), em que a pessoa, tomada em sua subjetividade, identifica-se como o elemento subjetivo das situações jurídicas.

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De outro ponto de vista, todavia, tem-se a personalidade como conjunto de características e atributos da pessoa humana, considerada como objeto de proteção por parte do ordenamento jurídico. A pessoa, vista deste ângulo, há de ser tutelada das agressões que afetam a sua personalidade, identificando a doutrina, por isso mesmo, a existência de situações jurídicas subjetivas oponíveis erga omnes. Dito diversamente, considerada como sujeito de direito, a personalidade não pode ser dele o seu objeto. Considerada, ao revés, como valor, tendo em conta o conjunto de atributos inerentes e indispensáveis ao ser humano (que se irradiam da personalidade), constituem bens jurídicos em si mesmos, dignos de tutela privilegiada.

A capacidade, segundo a doutrina civilista tradicional, subdivide-se em capacidade

de direito ou de gozo e capacidade de fato ou de exercício. A primeira, muito confundida com

a personalidade em seu viés subjetivo, consiste na manifestação dos poderes de ação inerentes

a esta, ou seja, sua projeção no ordenamento jurídico (TEIXEIRA, 2008). Já a segunda é a

“capacidade para praticar, por si, validamente os atos da vida civil” (NERY JÚNIOR; NERY,

2012, p. 247). A personalidade, mais do que qualificação formal, é um valor jurídico que se reconhece nos indivíduos e, por extensão, em grupos legalmente constituídos, materializando-se na capacidade jurídica ou de direito. A personalidade não se identifica com a capacidade, como costuma defender a doutrina tradicional. Pode existir personalidade sem capacidade, como se verifica com o nascituro, que ainda não tem capacidade, e com os falecidos, que já a perderam (AMARAL apud TEIXEIRA, 2008, p. 7-8).

Desta forma, a capacidade de direito é algo indissociável do ser humano desde o seu

nascimento com vida (arts. 1º e 2º, CC/02), não podendo ser limitada ou suprimida, ao

contrário da capacidade de fato, que por estar ligada a uma manifestação de vontade madura e

consciente da pessoa, revela-se ausente ou limitada em determinados casos, em razão do

pressuposto de validade legalmente subtraído dos comportamentos jurídicos por ela

assumidos.

Nesse sentido, quem possui capacidade de fato é considerado civilmente capaz,

estabelecendo-se o regime de incapacidades para aqueles que não a ostentam, como, por

exemplo, os menores e os que são acometidos de doença ou deficiência mental.

O critério utilizado para que as incapacidades fossem fixadas, já que a capacidade é a

regra, foi a inexistência ou redução do discernimento para a prática dos atos da vida civil. A

depender, pois, do grau de seu comprometimento, a capacidade pode se dar de forma absoluta

ou relativa, conforme estabelecido nos arts. 3º e 4º do CC/02: Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I - os menores de dezesseis anos; II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer:

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I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; IV - os pródigos.

Assim, a capacidade fatual da pessoa pode ser restringida, total ou parcialmente, em

processo judicial de interdição, por meio do qual lhe será nomeado curador para,

respectivamente, representá-la ou assisti-la, suprindo sua incapacidade e possibilitando a sua

inserção no trânsito jurídico.

No caso das pessoas com deficiência intelectual, foco de análise deste trabalho, a

prática forense vem demonstrando que, na quase totalidade dos casos de interdição, elas são

declaradas absolutamente incapazes e lhes é determinada a curatela total para a representação

dos interesses patrimoniais e existenciais. 2

Em síntese, “esses são os contornos hodiernos do regime da capacidade civil e, por

conseguinte, do processo de interdição e da curatela” (LEITE, 2012, p. 307), que tem como

finalidade proteger o incapaz de ocasionais prejuízos causados a si ou a terceiros quando da

realização de seus negócios jurídicos, como assevera Pereira (2004, p. 272): O instituto das incapacidades foi imaginado e construído sobre uma razão moralmente elevada, que é a proteção dos que são portadores de uma deficiência juridicamente apreciável. [...] A lei não institui o regime das incapacidades com o propósito de prejudicar aquelas pessoas que delas padecem, mas, ao contrário, com o intuito de lhes oferecer proteção, entendendo que uma falta de discernimento, de que sejam portadores, aconselha tratamento especial, por cujo intermédio o ordenamento jurídico procura restabelecer um equilíbrio psíquico, rompido em consequência das condições peculiares dos mentalmente deficitários.

Essa proteção inspirada pelos valores liberais é voltada para os interesses

patrimoniais, que necessitam de maior certeza e segurança, remontando desde a época das

Ordenações Filipinas3 o mais antigo registro de estabelecimento de curadoria para os bens dos

incapazes, no Brasil, conforme se observa de alguns de seus dispositivos: Livro 4º Título CIII Dos Curadores, que se dão aos Prodigos e Mentecpatos.

2“Confirma esse entendimento a análise dos resultados da pesquisa feita por Patrícia Ruy Vieira, na qual se verificou que a existência de problema mental leva à interdição civil total de 99% dos portadores de transtornos mentais. No estudo, foi constatada a tendência da Justiça de São Paulo de decidir pela retirada de todos os direitos civis daqueles que sofrem problemas mentais. Dos 1.183 analisados registros encontrou-se em apenas 1% deles recomendação de interdição parcial” (ABREU apud LEITE, 2012, p. 306). 3Com a chegada da família real ao Brasil (1808) e o começo do período imperial, as Ordenações Filipinas, datadas de 1603, eram o ordenamento jurídico vigente no país, tendo tratado da questão dos “incapazes” no Livro 4º, título CIII, detendo-se mais especificamente a curadoria dos pródigos e mentecaptos.

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Porque além dos Curadores, que hão de ser dados aos menores de vinte e cinco annos, se devem também dar Curadores aos Desasisados e desmemoriados, e aos Prodigos, que mal gastarem suas fazendas. [...] E os bens que o Sandeu tiver, serão entregues ao dito seu pai por inventario feito pelo Scrivão dos Orfãos, e o Juiz ordenará certa cousa ao dito pai per que o haja de manter. 1. E sendo o Sandeu, ou o Prodigo ou desmemoriado casado, será entregue ao seu pai, se o tiver, e será feito pelo Juiz e Scrivão dos Orfãos inventario de todos os bens moveis e de raiz, e da sua renda delles, e assinará o Juiz à sua mulher o necessário para seu mantimento, e dos filhos se o tiver, e para vestir e calçar e alfaias de casa, e outras despezas necessarias, conforme a qualidade de sua pessoa, e da fazenda do dito seu marido; e ao pai, que he dado por seu Curador, se dará juramento, que bem e fielmente governe a fazenda e bens do filho, e faça delle curar com bòa diligencia a Medicos, segundo lhe for necessario, e qualidade de sua pessoa requerer. [...] 2. E esta Curadoria administrará o pai ou a mulher, em quanto o filho ou o marido durar na sandice. E tornando a seu perfeito siso e entendimento, ser-lhe-ão tornados e restituidos seus bens com toda a livre administração delles, como a tinha, antes que perdesse o entendimento. [...] 3. E sendo furioso por intervallos e interposições de tempo, não deixará seu pai, ou sua mulher de ser seu Curador no tempo, em que assi parecer sesudo, e tornado a seu entendimento. Porém, em quanto elle stiver em seu siso ou entendimento, poderá governar sua fazenda, como se fosse de perfeito siso. (grifou-se)

O Código Civil de 1916 igualmente privilegiou as situações patrimoniais, na

tentativa de proteger os incapazes das artimanhas do mercado. A tutela da relação contratual

sobrepunha-se a dos direitos ditos existenciais. Com isso, “os atos de autonomia privada, para

os quais era necessário ser capaz, eram tidos como expressão do direito de propriedade e do

tráfego comercial” (STANZIONE apud TEIXEIRA, 2008, p. 12).

Nessa linha de pensamento, o Código Civil de 2002 também se firmou, inclusive

para conferir validade aos negócios jurídicos, uma vez que a capacidade do agente, prevista

em seu art. 104, I, é elemento essencial.

Contudo, apesar de ter surgido para amparar os incapazes, resguardando seus bens, o

posicionamento da pessoa como objeto de tutela pelo ordenamento jurídico alterou a ratio da

interdição, devendo-se ponderar se tal intervenção proporcionada pelo Estado, em realidade,

está cumprindo sua função social?

Para tanto, é primordial que se proceda a uma releitura do assunto sob a ótica civil-

constitucional, levando-se em consideração a (in)pertinência da aplicação do regime das

incapacidades às questões concernentes à esfera do ser, intrínsecas à personalidade.

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2 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E A FUNCIONALIZAÇÃO DO REGIME

DAS INCAPACIDADES

Com o advento da Constituição Federal de 1988 (CF/88), valores como a dignidade

da pessoa humana, igualdade, liberdade, solidariedade, dentre outros, revolucionaram a

maneira de se enxergar o homem, dando ênfase ao ser. As alterações ocorridas “determinaram

uma virada paradigmática no direito civil a favor da pessoa humana, devendo ser esta, que

agora está no vértice do ordenamento jurídico, prioritariamente realizada na ordem civil.”

(MACHADO, 2011, p. 5). Tais valores impactaram as relações privadas, influenciando a

visão civilista do indivíduo, dantes considerado apenas sob um viés patrimonialista, para

integrar um rol de questões existenciais ao grupo de interesses merecedores de tutela legal.

Nesta seara, insere-se também a propriedade, que ao se funcionalizar, deixa de ser

considerada um fim em si mesma, mas sim um instrumento para a realização do projeto

constitucional. Por conseguinte, percebe-se uma evolução no conceito de propriedade,

repercutindo na liberdade negocial de seu respectivo titular, como assevera Tepedino (2008,

p. 337): A propriedade, portanto, não seria mais aquela atribuição de poder tendencialmente plena, cujos confins são definidos externamente, ou, de qualquer modo, em caráter predominantemente negativo, de tal modo que, até uma certa demarcação, o proprietário teria espaço livre para as suas atividades e para emanação de sua senhoria sobre o bem. A determinação do conteúdo da propriedade, ao contrário, dependerá de centros de interesses extraproprietários, os quais vão ser regulados no âmbito da relação jurídica de propriedade.

Isso tudo possibilitou um elo entre os princípios fundamentais, a autonomia privada e

o Direito Privado (MAILLART; SANCHES, 2011), fenômeno conhecido como publicização

do Direito Civil. Diante dessa realidade, questiona-se se no esquema tradicional das

capacidades, a autodeterminação que deve ser reconhecida a qualquer pessoa para tratar de

questões atinentes a sua personalidade, envolvendo situações subjetivas existenciais, está

sendo contemplada, em cumprimento aos propósitos constitucionais de efetiva tutela da

pessoa humana.

A concepção clássica do direito civil, fortemente influenciada pelo liberalismo e pelo

individualismo característicos do século XIX, conforma o regime jurídico geral da capacidade

de agir de acordo com um paradigma patrimonialista. Desta forma, as categorias e conceitos

estabelecidos desde o Código Civil de 1916, estendendo-se também ao de 2002, estão atados

à propriedade privada, ao contrato e à noção de patrimônio (MACHADO, 2011).

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A lei, então, sob a justificativa de proteger os que, por ausência de maturidade,

tirocínio ou senso prático na defesa de seus interesses, são considerados incapazes, os

submete a um regime privilegiado (RODRIGUES, 2002).

É nessa categoria que a doutrina civilista encaixa as pessoas com deficiência

intelectual. Entretanto, conforme referência aos artigos do CC/02, o legislador não elencou

casuisticamente quais seriam as deficiências causadoras de eventual incapacitação, fosse

absoluta ou parcial, inviabilizando, portanto, qualquer enquadramento a priori. Afinal, o fato

de um sujeito possuir um transtorno psíquico, por si só, não implica necessariamente a

limitação da capacidade de agir, nas advertidas palavras de Leite (2012, p. 312): Apenas da análise da situação concreta, mediante a avaliação do grau de comprometimento do discernimento da pessoa, é que será possível identificar o enquadramento legal. Ademais, um mesmo transtorno mental pode apresentar intensidades diferentes de pessoa para pessoa. Também os elementos concretos inerentes à vida de cada um influirão decisivamente na avaliação da capacidade, como o fato de estar em tratamento médico, tomando medicação, por exemplo. Igualmente, as diversas barreiras culturais, econômicas, físicas e de outras espécies enfrentadas por cada pessoa com deficiência em seu cotidiano, suscetíveis de limitar sua autonomia, variam de caso a caso.

Esta visão, essencialmente patrimonialista, acaba por desconsiderar a relevância das

situações subjetivas existenciais, que, por sua vez, possuem ligação estrita com o

desenvolvimento da pessoa. Diante da atual conjuntura de valores, não se pode mais analisá-

las sob a mesma ótica das categorias erigidas no ordenamento jurídico vigente, tendo-se em

vista que o objeto de tutela é a pessoa, que constitui ao mesmo tempo o sujeito titular do

direito e o ponto de referência objetivo da relação. A personalidade é um valor, o valor

fundamental do ordenamento (PERLINGIERI, 2008). Por essa razão, os espaços de liberdade devem ser garantidos, se a pessoa tiver condições para preenchê-los de forma responsável, caso aparente discernimento para tal. O regime das incapacidades não pode servir de limite intransponível às manifestações de liberdade e às escolhas pessoais, sob pena de se tornar instrumento de desvio do objetivo de proteção do incapaz, que constitui sua ratio (TEIXEIRA, 2008, p. 20).

Partindo desta concepção unitária da pessoa, o ser humano passou a ser visto através

de um perfil ético-axiológico, intrinsecamente ligado à realidade humana, ao invés de um ser

neutro e geral (proprietário), fazendo-se necessária uma definição da capacidade de agir

baseada na “realidade biopsicológica da pessoa humana, e não no etéreo elemento

voluntarístico ou num fechado sistema de direito” (MACHADO, 2011, p. 6).

Surge então um contraponto entre os paradigmas patrimoniais e existenciais da

capacidade do homem. O primeiro estabelece uma separação entre titularidade e exercício de

direito, delineando-se, por consequência, duas modalidades de capacidade: a jurídica, que é a

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própria aptidão genérica para ser titular de direitos, e a de agir, que está relacionada ao

exercício de tais direitos. Este viés se adequa perfeitamente ao rol das situações subjetivas

patrimoniais, que necessitam, repita-se, de certeza e segurança.

Porém, para tutelar situações subjetivas existenciais, que, como dito alhures, são de

extrema relevância para a constituição do homem enquanto pessoa, esta categorização não se

conforma, pois tais situações são extremamente dinâmicas, o que impossibilita uma

classificação exaustiva, deixando de fora algumas questões inerentes à pessoa, cuja não

realização acaba ferindo o princípio da dignidade da pessoa humana, norteador de todo o

ordenamento jurídico, como assinala Perlingieri (2008, p.242-244): Muito debatido, entre as questões de técnica legislativa, é o valor das definições. Quando uma lei dita definições para os termos utilizados na mesma lei, ou em outras fontes, pergunta-se se a definição é, como as outras normas, vinculante para o intérprete. O ensino tradicional contestava, com poucas exceções, que o legislador pudesse inserir definições em qualquer tipo nos textos de lei, admitindo que fosse subtraída à sua esfera de competência a atividade de interpretação e de sistematização do direito, reservada exclusivamente à doutrina. As definições, em tal perspectiva, são ou supérfluas ou podem levar a um engano, e, se em contraste com a disciplina estabelecida pelas normas propriamente ditas, não devem ser observadas porque não vinculantes para o interprete. [...] A definição legislativa não tem, por natureza, uma força meramente indicativa ou explicativa, não vinculante para o intérprete. Embora com funções e fins diversos, é vinculante para o intérprete de acordo com o conteúdo e o valor que, cada vez, a interpretação sistemática e unitária do ordenamento lhe atribui. As definições legislativas, portanto, mesmo quando, diretamente, não exprimem normas, têm sempre uma relevância normativa, porque fazem parte de um contexto unitário com outros enunciados; eles também estão sujeitos a interpretações e isso constitui um limite intrínseco de ordem semântica.

Faz-se necessário o exercício de uma hermenêutica voltada para o ser enquanto valor

pleno. Neste conjunto de valores, insere-se uma nova teoria, que propõe a superação do

binômio capacidade jurídica/capacidade de agir na esfera das situações existenciais, visto que

titularidade e exercício coincidem com a existência mesma do valor. A capacidade de agir é a

possibilidade de ação juridicamente assegurada a quem tem discernimento bastante para arcar

com as implicações de seu próprio agir, com a finalidade de garantir o exercício da autonomia

privada, justamente na medida do discernimento da pessoa (MACHADO, 2011).

Nesse sentido, Teixeira, Sales e Souza (2008) afirmam que para essas situações

existenciais, não há que se falar em separação da capacidade de direito e capacidade de fato.

Isso porque o exercício dos direitos de personalidade é intransferível. Nenhum curador ou

tutor poderá se substituir à pessoa com discernimento para uma específica decisão de cunho

extrapatrimonial.

Essa incindibilidade entre capacidade de agir e titularidade de relações jurídicas dá

azo a críticas. Segundo essa teoria, a ausência do discernimento implicaria na impossibilidade

de titularidade de situações subjetivas existenciais (MACHADO, 2001). Isso significa que

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uma pessoa com deficiência intelectual enquadrada como absolutamente incapaz não poderia

ser titular de tais situações, o que configuraria um absurdo. Para o mesmo autor, o que

realmente ocorreria seria uma inseparabilidade entre titularidade e exercício das relações

subjetivas existenciais, já que ambas geralmente se verificariam juntas. Em situações

excepcionais, em que ocorra uma falta real de discernimento para práticas de atos não

patrimoniais, elas deverão ser separadas.

Para além da divergência de opiniões, recusa-se a concepção apriorística do homem,

que o qualifica de maneira artificial, para se apresentar uma capacidade medida em

consonância com a realidade de cada indivíduo e com seus interesses. “Não existe um número

fechado de hipóteses tuteladas: tutelado é o valor da pessoa sem limites, salvo aqueles

colocados no seu interesse e naqueles de outras pessoas”. (PERLINGIERI, 2008, p. 764-765)

Seria, assim, uma capacidade adequada ao reconhecimento das mencionadas situações

existenciais.

3 NOVOS RUMOS PARA A PROTEÇÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

INTELECTUAL

Trazendo essas considerações para as questões existenciais das pessoas com

deficiência, mais especificamente a psíquica, percebe-se a sua compatibilidade com o disposto

na já referida Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que determina como

um de seus princípios gerais, no art. 3º, a, “o respeito pela dignidade inerente, a autonomia

individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, e a independência das pessoas”.

Outrossim, a Convenção, em seu art. 12, itens 2 , 3 e 4, proíbe a supressão da

capacidade jurídica das pessoas com deficiência, determinando, ainda que os Estados Partes

colaborem com medidas promocionais para o seu exercício: Art. 12 – Reconhecimento igual perante a lei. 2. Os Estados Partes deverão reconhecer que as pessoas com deficiência têm capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida. 3. Os Estados Partes deverão tomar medidas apropriadas para prover o acesso de pessoas com deficiência ao apoio que necessitarem no exercício de sua capacidade legal. 4. Os Estados Partes deverão assegurar que todas as medidas relativas ao exercício da capacidade legal incluam salvaguardas apropriadas e efetivas para prevenir abusos, em conformidade com o direito internacional relativo aos direitos humanos. Estas salvaguardas deverão assegurar que as medidas relativas ao exercício da capacidade legal respeitem os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, sejam isentas de conflito de interesses e de influência indevida, sejam proporcionais e apropriadas às circunstâncias da pessoa, se apliquem pelo período mais curto possível e sejam submetidas à revisão regular por uma autoridade ou órgão judiciário competente, independente e imparcial. As salvaguardas deverão ser

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proporcionais ao grau em que tais medidas afetarem os direitos e interesses da pessoa. (grifou-se).

Em termos pragmáticos, isso implica em derrogação dos dispositivos do Código, que

consideram, presumidamente, incapazes as pessoas com deficiência intelectual para fazerem

valer sua vontade, conforme assevera Leite (2012, p. 318): [...] a Convenção foi incorporada ao ordenamento pátrio com status de Emenda Constitucional (E.C.), cuja posição hierárquica dentro do sistema normativo, por óbvio, é superior à do Código Civil. Por essa razão, havendo eventual discrepância entre os diplomas legais mencionados, a prevalência é do primeiro.

Ao versar sobre a possibilidade das pessoas com deficiência possuírem e exercerem

livremente sua capacidade jurídica em condições de igualdade que as demais pessoas, a

Convenção avança e concorre para materializar o movimento de vida independente desses

indivíduos, visando uma sociedade inclusiva.

Até mesmo com relação às questões patrimoniais, a Convenção, ainda no seu art. 12,

item 5, estende a vedação de qualquer discriminação com relação às pessoas com deficiência,

sendo-lhes garantido o pleno e equitativo exercício dos seguintes direitos: Art. 12, item 5. Os Estados Partes, sujeitos ao disposto neste Artigo, tomarão todas as medidas apropriadas e efetivas para assegurar às pessoas com deficiência o igual direito de possuir ou herdar bens, de controlar as próprias finanças e de ter igual acesso a empréstimos bancários, hipotecas e outras formas de crédito financeiro, e assegurarão que as pessoas com deficiência não sejam arbitrariamente destituídas de seus bens. (grifou-se)

De todo o exposto, percebe-se que a rigidez do tratamento legal (CC/02) voltado à

capacidade das pessoas com deficiência não respeita suas liberdades individuais e a promoção

do livre desenvolvimento de sua personalidade, pois desconsidera os níveis de limitações que

realmente cada uma ostenta, acarretando a decretação de uma curatela desproporcional.

Em se tratando desses diferentes níveis de limitação entre as pessoas com deficiência

intelectual, é sabido que sua ocorrência deriva não somente de aspectos biomédicos, mas da

interação destes com componentes sócio-psíquico-ambientais envolvidos. Desta forma, é

patente a necessidade de se averiguar as condições pessoais do indivíduo, caso a caso, antes

de categorizá-lo como incapaz e privá-lo da capacidade de agir em questões de cunho

existencial ou até mesmo patrimonial que possuam implicação com a personalidade.

Conforme pensamento de Abreu (2007), é questionável a ideia de que apenas uma

visão parcial da pessoa, baseada somente em sua saúde mental, possibilite a intervenção em

seus direitos fundamentais e a desconsideração da sua vontade. Um sujeito não é só

integridade psíquica, mas também privacidade, intimidade, honra, imagem, entre tantos

aspectos da sua personalidade:

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Necessário considerar que, mesmo numa única patologia, muitas vezes existem diferentes graus em que ela pode se apresentar; sem falar que, a forma como uma pessoa reage ao comprometimento de sua saúde pode ser inteiramente distinta da de outra, em razões de questões referentes não só às diferenças inerentes a cada organismo, mas também ao histórico de cada um, à personalidade de cada pessoa, ao humor, à formação cultural, a aspectos de ordem social e econômica, entre tantos outros fatores que podem influir para que a situação de dois seres humanos com o mesmo problema de saúde seja inteiramente distinta. (ABREU, 2007, p.34)

É o que também defende Menezes (2009, p. 372): Importa compreender, na tutela da personalidade humana os seguintes pontos: A

personalidade humana é metamórfica, embora possua unidade e continuidade transtemporais. Conhece o ciclo da gestação, do crescimento, da maturidade e da decomposição; Cada homem é uma unidade físico-psíquico-ambiental, com contradições internas e externas, potencialidades e carências, defeitos e virtudes, saúde e doença. Mesmo o indivíduo portador de anomalia psíquica não pode ter desconsiderado o direito de personalidade. (grifo original)

Portanto, o fato de um sujeito possuir alguma deficiência psíquica não o

descaracteriza, antes de tudo, como pessoa, que, na medida de seu discernimento, tem a

necessidade de se autoafirmar nas mais diversas áreas da subjetividade. Destarte, se a pessoa

com deficiência intelectual se posiciona com segurança acerca de questões pessoais, faz-se

necessário reconhecer e respeitar esta manifestação de sua autonomia, desde que não se perca

de vista a consequente assunção de responsabilidade pela decisão tomada.

Observa-se que o regramento da preservação da capacidade jurídica das pessoas com

deficiência de forma mais fluida pela Convenção, ao revés do Código Civil, gera, portanto, a

necessidade de se revisar a curatela (ou até mesmo criar novos institutos para lá da

interdição), cujo estabelecimento deve sempre e somente se dar de forma personalizada às

necessidades individuais e na exata medida do grau de comprometimento intelectual para o

exercício de seus atos, já que proteger não é, nem pode ser, sinônimo de incapacitação

judicial.

Nesse sentido, alguns países europeus passaram a adotar soluções menos formais e

mais adaptáveis à concreta situação da pessoa em consonância com a chamada doutrina da

alternativa menos restritiva, incorporada na Recomendação nº. (99) 4, do Conselho da

Europa, adotada pelo Comitê de Ministros, em 23 de fevereiro de 1999.

Essa doutrina propicia a mínima restrição dos direitos fundamentais e máxima

garantia da autodeterminação das pessoas tidas como incapazes, consubstanciada em

princípios como a máxima preservação da capacidade, a prevalência dos interesses e bem

estar da pessoa incapaz e respeito pelos seus desejos e sentimentos, aliados ao da

flexibilidade na resposta jurídica, necessidade, subsidiariedade e necessidade desta.

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Na Áustria, por exemplo, foi incorporada, desde 1984, em substituição à Lei de

Interdição, de 1916, a Sachwalterschaft, em cujo desempenho da função de assistente

compete primeiramente às pessoas próximas e, posteriormente, a profissionais de várias áreas,

circunscrevendo-se a três situações: “(a) assistência para um único assunto; (b) assistência

para um círculo de tarefas e; (c) assistência para todos os assuntos” (RIBEIRO, 2010, p. 292).

Já na Alemanha, a reforma da tutela e da curatela ocorreu com a Lei do

Acompanhamento ou Betreuunngsgesetz, em 1990, baseada no modelo austríaco. O instituto é

voltado para as pessoas com doença ou deficiência mental, através da nomeação de um ou

mais acompanhantes, que “no exercício das suas funções, deve(m) agir no interesse da pessoa

protegida, determinando a lei que este interesse inclui a possibilidade de a pessoa sob

acompanhamento, dentro de suas capacidades, conformar a sua vida segundo seus próprios

desejos e ideias” (PINHEIRO, 2009, p. 14).

Na Suécia e na França, verificam-se, respectivamente, a Ombudsperson e a

Sauvegarde de Justice, modelos desburocratizados que prescindem de processo judicial,

sendo suficiente, neste segundo caso, o parecer médico atestando a incapacidade do sujeito,

que pode ser por ele anulada mediante apresentação ao Ministério Público de novo parecer

médico em sentido contrário.

A despeito das peculiaridades de cada sistema, sendo eles reformistas ou inovadores,

a proteção às pessoas incapacitadas se mostra flexível e de concretização casuística

personalizada às necessidades individuais.

CONCLUSÃO

Embora o atual Código Civil tenha progredido em alguns aspectos se comparado ao

de 1916, já nasceu defasado em relação ao tratamento dispensado ao regime de incapacidades,

contrastante com os valores e princípios constitucionais.

A Constituição Federal de 1988 passou a considerar a pessoa humana como núcleo

fundante do ordenamento jurídico, devendo a ela ser dadas garantia e proteção prioritárias.

Por conseguinte, a tutela jurídica das situações existenciais sobrepôs-se a das patrimoniais.

A tutela e a curatela, formatadas nos moldes de uma sistemática codicista, têm como

objetivo proteger o incapaz inserido no trânsito jurídico quando da realização de negócios que

possam ser valorados pecuniariamente, conferindo-lhes certeza e segurança. Todavia, esses

institutos se revelam insuficientes para a promoção da dignidade da pessoa humana, uma vez

que suprimem o exercício da capacidade civil para questões referentes à esfera do ser,

intrínsecas à personalidade, como afirma Abreu (apud LEITE, 2012, p. 314):

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O critério da falta de discernimento, aplicado às situações patrimoniais, não é adequado para a solução das situações existenciais, por várias razões. Em primeiro

lugar, porque a pessoa é um valor unitário, que não comporta fragmentações. Logo, vincular a aferição de sua capacidade ao critério do discernimento seria o mesmo que considerar uma pessoa apenas levando em conta a sua integridade psíquica, ou seja, um único aspecto de sua personalidade. Em segundo lugar, porque a pronúncia da interdição com base exclusivamente nesse critério pode configurar medida desproporcional, consistindo em desrespeito aos direitos fundamentais do portador de transtorno mental. Em terceiro lugar, também é certo que limitações a situações existenciais, dado seu reconhecimento prioritário no ordenamento jurídico, só se justificam no interesse do interdito. Em quarto lugar, o critério do discernimento é essencial para situações patrimoniais, porém não é decisivo quando se trata de um valor indisponível como a personalidade humana. Em quinto lugar, é critério impessoal e rígido, logo, incompatível quando a matéria é a personalidade humana, que é, por sua própria natureza, dotada de elasticidade.

Assim, o fato de uma pessoa com deficiência intelectual não dispor, ocasionalmente,

de totais condições para administrar seu patrimônio, não implica na impossibilidade dela

expressar sua vontade com relação a outros assuntos afeitos à família, sexo, cultura, corpo,

educação, religião, dentre outros que promovam o desenvolvimento de sua personalidade.

Nesse sentido, é preciso que se preservem e defendam os direitos humanos e de

personalidade das pessoas com deficiência já assegurados na esfera interna e internacional, a

fim de evitar violações de qualquer natureza.

Para isso, caberá ao legislador rever a aplicação da interdição, flexibilizando-a e

adaptando-a às necessidades do interditando, ou até mesmo criar outros institutos que

prescindam da declaração de incapacitação da pessoa.

Enquanto a reforma legislativa não ocorre, ao julgador deverá ser reconhecida a

competência para personalizar o cuidado com o sujeito protegido, através de uma

interpretação sistemático-teleológica da CF/88 e da Convenção sobre os Direitos das Pessoa

com Deficiência.

REFERÊNCIAS

ABREU, Celia Barbosa. Um critério contemporâneo para a pronúncia da incapacidade civil. Dissertar, Rio de Janeiro, v.12, p. 30-35, 2007.

ARAUJO, Luiz Alberto David. A Proteção Constitucional das Pessoas Portadoras de Deficiência: Algumas dificuldades para Efetivação dos Direitos. In: SARMENTO, Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia (Coord.). Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 911-923.

BRASIL. Constituição (1998). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.

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DA AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE NO CONTEXTO DOS

DIREITOS DA PERSONALIDADE

PATERNITY RESEARCH ACTION IN THE CONTEXT OF PERSONALITY RIGHTS

Jussara Schmitt Sandri∗∗∗∗

Patricia Machado Dias Olders∗∗∗∗∗∗∗∗

RESUMO Este artigo tem como objeto a análise da ação de investigação de paternidade no contexto dos direitos da personalidade dos litigantes. Para isso, serão escrutadas as peculiaridades da ação investigatória da paternidade, cotejando a coisa julgada formal e a coisa julgada material. Serão abordados os direitos da personalidade e suas características, com enfoque aos direitos à identidade pessoal, à integridade psicofísica, à intimidade e à vida privada. A temática apresenta controvérsias que despertam importantes discussões, especialmente nas hipóteses de conflito de valores constitucionais que se operam entre o direito à identidade pessoal do investigante e o direito à integridade psicofísica do suposto pai/investigado. Por fim, será altercada a paternidade socioafetiva, na medida em que, hodiernamente, a afetividade se sobrepõe à consanguinidade. O estudo de referidas questões se mostra relevante, pois se discute a dignidade da pessoa humana no ambiente familiar, sobretudo quando da busca da identidade biológica. A metodologia utilizada é descritiva e analítica, desenvolvida através de pesquisa bibliográfica. PALAVRAS-CHAVE: Afetividade; integridade psicofísica; paternidade responsável; identidade biológica. ABSTRACT This paper is about the analysis of paternity research in the context of personal rights of litigants. For that, scrutinized the peculiarities of investigative paternity, comparing the formal res and judicata res. It will examine the rights of personality and characteristics, focusing rights to personal identity, integrity psychophysics, intimacy and privacy. The theme presents important discussions that arouse controversy, especially in cases of conflict of constitutional values that operate between the right to personal identity and the right to investigating the psychophysical integrity of the alleged father / investigated. Finally, the paternity is analysis, in that, today, affection overlaps the inbreeding. The study of these questions proves relevant as discussing the dignity of the human person in the family, especially when the search of his biological identity. The methodology and analytical is descriptive developed through literature search. KEY WORDS: Affection; psychophysical integrity; responsible parenthood; biological identity.

Mestra em Ciências Jurídica, área de concentração em Direitos da Personalidade, pelo Centro Universitário de Maringá. Professora de Direito no Instituto Federal do Paraná. ∗∗ Acadêmica do 10º Período do Curso de Bacharelado em Direito pelo Instituto Federal do Paraná. Bolsista do IFPR, atuando no Projeto Palmas para Mulheres Mil.

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INTRODUÇÃO

O presente estudo tem o propósito de analisar a ação de Investigação de Paternidade,

meio pelo qual uma pessoa pretende desvendar a sua identidade genética junto ao Poder

Judiciário, no contexto dos direitos da personalidade das partes envolvidas na lide.

Pretende-se analisar a ação de investigação de paternidade enfatizando os deveres

decorrentes da relação que se formará a partir do reconhecimento da relação entre pai e filho,

sobretudo no que concerne à paternidade responsável.

Na hipótese de recusa à realização do exame de DNA, o investigado será

considerado pai presumido. Diante disto, discutir-se-á a coisa julgada formal e a coisa julgada

material no âmbito da ação de investigação de paternidade, tendo em vista a relativização da

coisa julgada, principalmente quando não são realizadas outras provas no curso processual.

No que se refere aos direitos da personalidade, serão estudadas as suas

características, altercando que se encontram em uma esfera maior a dos direitos fundamentais,

eis que, estes vislumbram uma relação de poder do ser humano, enquanto detentor de direitos,

já os direitos de personalidade referem-se aos direitos inerentes ao ser humano, de forma

indisponível e irrenunciável.

Dos diversos direitos da personalidade, pretende-se discutir com mais vagar os

direitos à identidade pessoal, à integridade psicofísica, à intimidade e à vida privada, uma vez

que estes direitos ficam em evidência no âmbito de uma ação de investigação de paternidade.

O direito à identidade pessoal será estudado como o direito ao reconhecimento do

estado de filiação, de maneira que toda pessoa tem direito de conhecer a sua identidade

genética.

Analisar-se-á o direito à integridade psicofísica como uma prerrogativa de

incolumidade da saúde física e psíquica do ser humano.

O direito à intimidade e à vida privada serão discutidos como diretos que vedam a

submissão forçada do investigado à realização do exame de DNA, de modo que somente será

submetido ao referido exame mediante o seu consentimento expresso.

Pretende-se discutir, nesse contexto, os conflitos de valores constitucionais que se

configuram no bojo de uma ação de investigação de paternidade: de um lado o direito à

identidade pessoal do investigante em face, de outro lado, do direito à integridade psicofísica

do investigado.

Será demonstrado que, do mesmo modo que o investigante tem o direito a ver sua

identidade genética desvendada, não há no ordenamento jurídico qualquer norma que autorize

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a violação da privacidade, da intimidade e da integridade física do investigado para se dirimir

qualquer conflito judicial, sob pena de se estar violando norma constitucional, base de todo o

ordenamento jurídico.

Por fim, será evidenciada a paternidade socioafetiva, pois a paternidade deixou de

representar apenas vínculos biológicos ou genéticos, representando laços de afeto, carinho e

de amor que nascem com a convivência familiar, com a estrutura e base de uma família,

envolvendo, inclusive a paternidade responsável.

Na pesquisa levada a efeito foram estudados artigos científicos e livros jurídicos, de

modo que a metodologia empregada foi a pesquisa bibliográfica. O método utilizado no

desenvolvimento da pesquisa foi o teórico. Para o delineamento das conclusões finais

empregou-se o método dedutivo.

1 DA AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE

A ação de Investigação de Paternidade é o meio pelo qual o filho poderá pleitear seu

reconhecimento filial através do Poder Judiciário, para que se estabeleça o possível vínculo

jurídico entre pai e filho.

Nesse contexto, a lei determina alguns critérios para a propositura desse modelo de

ação, conforme leciona Arnoldo Wald (2005, p. 256):

Só se admite a investigação de paternidade ou maternidade pelo filho cujo termo de nascimento não tenha indicação de quem seja o pai ou mãe, ou cujo registro tenha sido previamente anulado, pois ninguém pode vindicar estado contrário ao que consta do registro do nascimento, salvo provando erro ou falsidade do registro (art. 1.604 do CC de 2002).

Deste modo, aquele que deter legitimidade para propor a ação de Investigação de

Paternidade, poderá intentar frente ao Poder Judiciário, em razão de direito próprio, sendo

reconhecido como um direito personalíssimo (nos termos do art. 27 da Lei n. 8.069/90).

A discussão doutrinária acerca deste instituto jurídico é de grande valia, uma vez que

a sociedade está em constante mudança, não sendo mais considerada a Investigação de

Paternidade com um único meio de pleitear exclusivamente o direito alimentar como era

reconhecida no direito canônico, onde esta prestação era devida até mesmo aos filhos espúrios

e sacrílegos. (WALD, 2005, p. 257).

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Segundo Renato Maia (2008, p. 23), “[...] os filhos espúrios juridicamente não

tinham pai: não era possível reconhecê-los, não possuíam quaisquer direitos, nem mesmo o

direito a alimentos”.

Diante destas mudanças, entende Maria Berenice Dias que o termo Investigação de

Paternidade deve ser abordado de forma ampla frente às várias espécies de ações que podem

ser intentadas para a busca da filiação.

[...] Lembra a época em que se só se cogitava a hipótese de o filho buscar o reconhecimento de sua paternidade, como se não houvesse possibilidade de identificação da verdade biológica por meio de ações de investigação de maternidade, anulatória de registro, declaratória de filiação, negatória de paternidade, investigatória da ascendência genética etc. Redimensionando o leque de possibilidades de socorro ao Judiciário, em face da diversidade de demandas em que se busca a definição dos vínculos paterno-filiais, faz-se necessário ampliar também a expressão que identifica as diversas ações. Daí investigação de parentalidade. (DIAS, 2007, p. 345).

Importante destacar a distinção entre a filiação e a relação de paternidade ou

maternidade. A filiação é o vínculo entre pais e filhos, já a relação de paternidade são os

direitos e deveres decorrentes da paternidade.

Destaca Washington de Barros Monteiros, citado por Rizzardo (2007, p. 405), o

entendimento acerca do vocábulo filiação:

Exprime a relação que existe entre o filho e as pessoas que o geraram. Ou seja, a relação do filho para com o pai, ou a mãe. Contrapõe-se à relação decorrente da paternidade, ou da maternidade, que é aquele rol de direitos e deveres do pai ou da mãe em relação ao filho.

Desta relação filial também se estabelecem direitos e deveres, elencados na

Constituição Federal, sendo decorrentes da simples relação entre o pai e o filho,

independentemente de ser este fruto da união matrimonial ou extraconjugal.

No Código Civil de 1916, distinguia-se de natural, resultante esta da procriação,

podendo ainda ser legítima ou ilegítima, ou era civil, quando decorrente de adoção simples ou

plena.

Na visão de Yussef Said Chali (1990, p. 446), citado por Renato Maia (2008, p. 26) a

evolução histórica da filiação se deu da seguinte forma:

• A dominada pelas Ordenações Filipinas, admitia-se o reconhecimento do filho ilegítimo, encarregando-se a mãe de criá-lo de leite até os três anos e o pai, de fazer todas as despesas, proibida a sucessão legítima, mas não testamentária;

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• A iniciada com a Lei n. 463, de 02.09.1948, passaram os espúrios a desfrutar de iguais direitos que os naturais, assistindo-lhes o direito hereditário, em concurso com os legítimos, se reconhecidos mediante escritura pública ou em testamento; • A operada com o Código Civil de 1916 (art. 358), afirma-se a absoluta impossibilidade do reconhecimento dos filhos incestuosos e adulterinos; • A introduzida com radicais modificações a partir da Carta Constitucional de 1937, com leis esparsas, trabalho jurisprudencial, completando-se com as inovações trazidas pela Lei n. 6.515/77 e a Lei n. 7.250, de 14.11.1984; • A instaurada pelo atual sistema de absoluta equiparação dos filhos de qualquer condição jurídica, instaurado com a Constituição de 05.10.1988, art. 227, § 6º, complementando-se com a Lei n. 7.841, de 17.10.1989, que revogou o art. 358 do CC de 1916, e a Lei n. 8560, de 29.12.1992, que regula a investigação de paternidade dos filhos nascidos fora do casamento.

Ainda dentro do contexto de filiação, esta é dividida em espécies, podendo ser

reconhecida como filiação biológica, biológica presumida e sociológica.

A biológica é a decorrente da própria relação dos pais, ou seja, o filho possui os tipos

sanguíneos dos pais, subdividindo-se em legítimos, legitimados e ilegítimos.

Tais distinções foram realizadas por Arnoldo Rizzardo (2002, p. 410):

Legítimos consideram-se os filhos gerados na vigência do casamento civil de seus pais. Legitimados, os gerados antes desse casamento, que os legitima. Ilegítimos, os nascidos fora do casamento civil de seus pais, os quais, por sua vez, se distinguem em naturais stricto sensu e espúrios.

Já na filiação biológica presumida, é pautada do nascimento do filho na constância

do casamento, ou até o período de 300 dias após o término do relacionamento, conforme

disciplinado no Código Civil de 2002, no art. 1.597:

Art. 1.597 – Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II – nascidos nos trezentos dias subseqüentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

E por último a filiação sociológica, a qual é decorrente do instituto da adoção, que

não tem vínculo biológico, mais gera os mesmo direitos e deveres para o filho adotado.

Vale destacar o comentário realizado por Rizzardo, quanto às relações proibidas,

enunciadas em algumas legislações, inclusive no Brasil: “[...] é proibido o reconhecimento da

filiação se decorrente de relações sexuais ilícitas, ou vedadas em razão de um parentesco em

grau elevado, ou praticamente adulterinamente”. (2007, p. 411).

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Atualmente o ordenamento jurídico adequou-se às mudanças sociais, de forma que

reconhece as relações não conjugais, tornando todos os filhos iguais perante a lei.

Com base no princípio da igualdade, consagrado na CF/88, o Código Civil de 2002

adequou seu texto normativo, no art. 1596: “[...] os filhos, havidos ou não da relação de

casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer

designações discriminatórias relativas à filiação”.

Sendo assim, o reconhecimento dos filhos pode ser de forma espontânea ou forçada

(judicial).

O reconhecimento espontâneo é o mais comum, sendo um ato solene e público, de modo que alguém declara uma pessoa como seu filho. O reconhecimento judicial ou forçado é decorrente de uma sentença, fruto de uma ação de investigação de paternidade, cujo objeto da ação é o pedido de reconhecimento do autor, no que afirma ser filho do suposto pai, o requerido. (BEZERRA, 2009).

Essas mudanças constitucionais vieram para tornar iguais perante a lei todos os filhos

havidos ou não do casamento, concedendo ainda a prerrogativa para aqueles que não forem

reconhecidos voluntariamente, ingressarem com a devida demanda judicial para que haja o

reconhecimento coercitivo pelo Estado, sendo esta demanda reconhecida como Ação de

Investigação de Paternidade.

1.1 DA COISA JULGADA FORMAL E DA COISA JULGADA MATERIAL

Com o advento do exame de DNA, as ações de Investigação de Paternidade, para

muitos julgadores, estavam resolvidas. Entretanto, o que se observou foi apenas a

homologação de laudos periciais, onde constava que o investigado era ou não o pai do

investigante, valorando a prova pericial como absoluta e verdadeira.

Segundo Magalhães (2009, p. 01), até meados da década de 90, entendia-se que as

decisões transitadas em julgado, não podiam ser modificadas, somente era permitido em ações

rescisórias, previstas em lei.

Após as descobertas científicas, nasceram discussões acerca da relativização da

coisa julgada nas ações de Investigação de Paternidade, pelo fato dos julgadores entenderem

ser o resultado do exame exato e preciso.

A coisa julgada é conceituada para Nicolau Júnior (2007, p. 269):

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Conceitua-se a coisa julgada não como efeito da sentença, mas como uma especial qualidade desta que confere imutabilidade a seus efeitos, impedindo que voltem a ser questionados depois de definitivamente firmados pela sentença transitada em julgado.

Este conceito traz para o ordenamento jurídico maior segurança nas relações

propriamente ditas, demonstrando a intenção do legislador em tornar as relações mais

estáveis. Vale destacar que este conceito é de suma importância para os casos trazidos ao

Poder Judiciário, os quais são imutáveis e de plena certeza em seus resultados, diferentemente

do que acontece nas ações de Investigação de Paternidade, quando o próprio legislador deixa

evidente a possibilidade de o investigado se recusar a realizar o exame de DNA, tendo apenas

como consequência a presunção de paternidade.

A propósito disto, destaca-se o entendimento de Nicolau Júnior (2007, p. 271):

[...] Defende-se modernamente que essa idéia tradicional da coisa julgada trazida pelo brocardo res judicata facit de albo nigrum é incorreta, pois não se pode levar ao absoluto a imutabilidade dos efeitos de uma sentença, principalmente quando eivada de injustiças.

Sendo assim, não se pode tornar imutável uma decisão que não representa a verdade

real, mas presumida.

O instituto da coisa julgada pode ser material ou formal. No entendimento de Neves

(2009):

A coisa julgada material, então, é a imutabilidade dos efeitos substanciais da sentença de mérito. Este status, que transcende a vida do processo e atinge a das pessoas, consiste na intangibilidade das situações jurídicas criadas ou declaradas, de modo que nada poderá ser feito que venha a contrariar o que houver sido declarado.

Sendo a coisa julgada material, ato que impede a modificação da sentença dentro do

processo em que ocorreu a decisão ou ainda em qualquer outro processo, entende-se que este

cumpriu todo o seu curso processual, exaurindo todos os meios legais para provar o direito

alegado, permitindo com segurança ao Poder Judiciário decidir definitivamente a lide, não

deixando margem para novas discussões.

Quanto às ações filiatórias, entende-se que não incidirá o instituto da coisa julgada

material, pois o próprio texto da legislação pertinente torna possível a recusa em se submeter

à prova pericial, podendo a matéria ser discutida posteriormente por ambas as partes

litigantes, inclusive pelo investigado que, utilizando-se do seu direito de recusa tornou-se pai

presumido, de acordo com a alteração trazida pela Lei 12.004/2009.

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Desta feita, vale ressaltar que a causa de pedir nas ações de Investigação de

Paternidade concerne exatamente em saber a verdade real sobre a paternidade, sendo assim, o

legislador de forma lacunosa e equívoca, quando determinou a presunção, acaba por

relativizar a coisa julgada.

Quanto à coisa julgada formal, Neves (2009), expõe que:

Deste modo, a coisa julgada formal é o fenômeno interno ao processo e refere-se à sentença como ato processual, incapaz de ser alterado pela impossibilidade de interposição de recurso, quer porque a lei não mais o admite, quer porque se esgotou o prazo estipulado sem interposição pelo vencido, quer porque o recorrente tenha desistido do recurso interposto ou ainda tenha a ele renunciado.

A coisa julgada formal impede a modificação da decisão dentro do mesmo processo,

não ficando impedida a matéria de ser discutida em uma nova relação processual.

O que se discute na doutrina e jurisprudência é a relativização da coisa julgada, uma

vez que antes do advento do exame de DNA, não se tinha certeza absoluta quanto à

paternidade discutida em sede de Investigação de Paternidade.

É notória a valoração dada ao exame de DNA nas ações de Investigação de

Paternidade, sendo considerada como prova absoluta, embora o que se discute neste trabalho é

exatamente a alta confiabilidade dada aos resultados proferidos pelos laboratórios, alienando

os julgadores em suas decisões, onde de fato, nada é absoluto, até mesmo o resultado de

DNA, sendo assim, este pode emitir resultado contrário, imputando ao investigado uma

paternidade que eventualmente possa não lhe pertencer, podendo este discutir novamente ao

tempo que for necessário, diante da relativização da coisa julgada.

[...] Ofende a paz social e pessoal condenar uma criança a crescer tendo um pai que a rejeita, que não a gerou nem com ela estabeleceu qualquer vínculo, assim como é tremendamente injusto um homem saber que não é pai, mas que por força da lei foi-lhe atribuída uma série de responsabilidades inerentes ao poder familiar, principalmente agora, que, segundo Belmiro Pedro Welter, a família da atualidade é eudemonista, busca a felicidade individual vivendo um processo de emancipação de seus membros, independente de sua origem se dá no matrimonio, na união estável ou no concubinato. (NEVES, 2009).

A coisa julgada deve ser relativizada, pois o Direito, assim como os fatos sociais que

o compõem, está em constante evolução, de modo que nada é imutável e permanente.

A relativização da coisa julgada nas ações de Investigação de Paternidade tornou-se

uma consequência da possível recusa do investigado em se submeter ao exame de DNA, eis

que, a alteração trazida pela Lei 12.004/2009, apenas tornou a paternidade presumida, nestes

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casos, não operando a coisa julgada. Da mesma forma ocorre quando não se realizam outras

provas no curso processual, apenas a prova pericial de DNA, não poderão incidir os efeitos da

coisa julgada para que não seja atribuída uma paternidade de forma injusta e prejudicial à

criança, onde o que se pretende com a ação de Investigação de Paternidade vai muito além do

reconhecimento documental e sim se deve prezar pelo reconhecimento afetivo, o qual não

nasce com uma presunção imposta pelo Poder Judiciário.

2 DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Estado passou a atuar com

respeito incondicional aos direitos fundamentais, pelo processo histórico que sofreu desde o

regime militar em 1964.

Atualmente os direitos fundamentais constam no rol do art. 5° da CF/88,

pertencentes às cláusulas pétreas, não sendo estes ilimitados, como bem especificados no

próprio texto constitucional.

Esses direitos vêm expressos de forma explícita ou implícita, por toda a norma

constitucional, garantindo a todas as pessoas segurança jurídica de direitos natos.

No Código Civil de 2002, os direitos da personalidade são tratados nos arts. 11 e

seguintes, sendo estes irrenunciáveis e intransmissíveis. São inerentes a toda pessoa humana,

reconhecidos como valor jurídico, consagrado na lei maior, independentemente de posição

política, religiosa ou econômica.

Neste viés Carlos Alberto Bittar (2006, p. 01), conceitua os direitos da personalidade:

Considera-se como da personalidade os direitos reconhecidos à pessoa humana tomada em si mesma e em suas projeções na sociedade, previstos no ordenamento jurídico e exatamente para a defesa de valores inatos no homem, como a vida, a higidez física, a intimidade, a honra, a intelectualidade e outros tantos.

Esses direitos são inerentes ao homem, pelo simples fato de nascer e viver, conforme

disciplina o art. 1° da CF/88:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana;

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Vale ressaltar que os direitos da personalidade se encontram em uma esfera maior à

dos direitos fundamentais, eis que, estes vislumbram uma relação de poder do ser humano,

enquanto detentor de direitos, já os direitos de personalidade demonstram os direitos inerentes

ao ser humano, de forma indisponível e irrenunciável.

2.1 CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE

Assim como o conceito de Direito não é pacifico pelos doutrinadores, os direitos da

personalidade também são apresentados de várias formas por aqueles que tratam da matéria.

Sabe-se que o simples fato de o ser humano nascer, este se torna detentor de direitos

e obrigações na vida civil. Nesse sentido, Carlos Alberto Bittar (2006, p. 05) apregoa que

São direitos ínsitos na pessoa, em função de sua própria estruturação física, mental e moral. Daí são dotados de certas particularidades, que lhes conferem posição singular no cenário dos direitos privados, de que avultam, desde logo, as seguintes: a intransmissibilidade e a irrenunciabilidade, que se antepõe, inclusive como limites à própria ação do titular (que não pode eliminá-los por ato de vontade, mas, de outro lado, deles, sob certos aspectos, pode dispor, como, por exemplo, a licença para uso de imagem, dentre outras hipóteses).

Diante das características dos direitos da personalidade, quanto à

intransmissibilidade, por não poderem transferir a outras pessoas e irrenunciabilidade, por não

poder desistir de seu direito constitucional, embora tenha a faculdade de não exercê-lo em

dado momento de sua vida, mas pode a qualquer momento rever sua decisão.

No entendimento de J.J. Gomes Canotilho (2003, p. 416), citado por Madaleno

(2011, p. 39):

Que os direitos fundamentais são direitos de todos, pois são direitos humanos e não apenas direitos de determinados cidadãos. É uma qualidade inerente a todo e qualquer ser humano; tem um valor supremo e atua como alicerce da ordem jurídica democrática.

O homem busca constantemente o aperfeiçoamento enquanto pessoa inserida na

sociedade, tornando-se a cada dia mais individualista, constatando-se mais uma das principais

características dos direitos da personalidade, qual seja, a vitaliciedade, permanecendo os

direitos da personalidade até a morte, em alguns casos identificam-se os direitos post mortem.

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A personalidade é o pressuposto de todos os direitos. Em outras palavras, podemos dizer, na personalidade tem-se em potência todos os direitos. Lembre-se: os direitos da personalidade compõem um conjunto mínimo de direitos indispensáveis à aquisição e ao exercício de todos os demais direitos. Os direitos personalíssimos passam da potência de ser algo (os outros direitos) ao ato de sê-lo quando, por meio do seu reconhecimento pelo ordenamento jurídico, eles adquirem atualidade no sentido de podendo dar origem à aquisição e ao exercício de todos os demais direitos, acabam incorporando-se indiretamente a eles. (CARVALHO, 2003, p. 29, citado por NICOLAU JÚNIOR, 2007, p. 107).

Estes direitos apenas fundamentam os ditames do Estado Democrático de Direito,

embora a violação seja alvo de grande discussão tanto na doutrina quanto na jurisprudência

quanto ao direito à intimidade e à privacidade do investigado nas ações de Investigação de

Paternidade. Em contrapartida, denota-se o direito do investigante em ter sua identidade

desvendada e a paternidade reconhecida, de modo que observam-se todos estes direitos na

norma constitucional, e passíveis de violação pelo ser humano.

Em outra concepção dos direitos da personalidade, Beltrão demonstra que estes

direitos além de serem natos, devem ser respeitados não só pelo poder público, mas também

pelos particulares, a fim de preservar a dignidade da pessoa humana, respeitando suas

manifestações físicas ou de crença.

Os direitos da personalidade designam direitos privados fundamentais, os quais devem ser respeitados como conteúdo mínimo para a existência da pessoa humana, impondo limites à atuação do Estado e dos demais particulares; contudo, tal conceituação não é suficiente para determinar especificamente quais direitos são ou não da personalidade, sem que exista uma tipificação, uma vez que a posição de Messineo é de que os direitos da personalidade só se operam por força de lei. (BELTRÃO, 2005, p. 24)

Os direitos da personalidade são tutelados em várias áreas do Direito, tais como

penal, civil, constitucional, embora o tema seja tratado de forma muito objetiva e clara pela

legislação vigente, desde a análise do Anteprojeto do Código Civil.

No art. 2º do CC/02, consta que a “personalidade civil começa do nascimento com

vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Porém, alguns

doutrinadores entendem que os direitos fundamentais já estavam presentes desde o século

passado.

A construção da teoria dos direitos da personalidade humana deve-se principalmente: a) ao cristianismo, em que se assentou a idéia da dignidade do homem; b) à Escola de Direito Natural, que firmou a noção de direitos naturais ou inatos ao homem, correspondentes à natureza humana, a ela unidos indissoluvelmente e preexistentes ao reconhecimento do Estado; e, c) aos filósofos e pensadores do ilusionismo em que se passou a valorizar o ser, o indivíduo, frente ao Estado. (BITTAR, 2006, p. 19).

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Os direitos da personalidade são divididos em físicos, psíquicos e morais. Os físicos

são os concernentes à vida, ao corpo, podendo este ser próprio ou de outrem, à imagem, à

locomoção, à voz, ao cadáver, bem como as partes do corpo. Neste ponto encontra-se a

discussão quanto à realização do exame de DNA nas ações de Investigação de Paternidade,

reconhecida como prova infalível para alguns doutrinadores, onde é retirada certa quantidade

de sangue constando informações genéticas privativas do homem, a fim se de obter o

reconhecimento da paternidade nesta modalidade processual, de forma que se viola a ordem

psíquica do investigado quando, atinge a liberdade, a higidez psíquica, a intimidade e os

segredos; por fim, a ordem moral, constando o nome, a reputação, a dignidade pessoal, o

direito moral, dentre outros. (BITTAR, 2006, p. 64).

Com as crescentes mudanças na sociedade, não se pode delimitar a apreciação do

tema apenas nas normas positivadas, pois o direito é mais amplo, compreendo os costumes, a

jurisprudência e outras normas jurídicas. Atualmente os direitos da personalidade estão sendo

levados à apreciação dos Tribunais com mais freqüência.

É importante destacar a diferença entre os direitos da personalidade e os direitos

pessoais.

Assim, pois, considerada a pessoa em seu conjunto, por diferentes aspectos é tratada pelo direito, incidindo: a) os direitos da personalidade sobre o ente em concreto e identificado; em si considerado, ou em seus desdobramentos na sociedade; enquanto b) os direitos pessoais abrangem a pessoa como individuo, ou ser abstratamente analisado, ou como membro de uma família, ou de uma comunidade, ou de uma nação, como toda a gama de relações daí defluentes. (BITTAR, 2006, p. 30).

Deste modo, “[...] a partir do momento em que ocorreu a constitucionalização do

direito civil e a dignidade da pessoa humana foi consagrada como fundamento do Estado

Democrático de Direito (CF, 1°, III), o positivismo tornou-se insuficiente.” (DIAS, 2007, p.

54).

Os direitos da personalidade são aqueles natos do ser humano, oponíveis a todos,

embora possam ser dispostos, independente de condição social, religião ou situação

econômica frente à sociedade em que vive. Já os direitos da pessoa, são os previstos

legalmente, passíveis de ser exigidos frente ao Estado.

Neste sentindo, o princípio da dignidade da pessoa humana tem relação direta com os

direitos da personalidade, quando especificamente nas ações de Investigação de Paternidade

viola a própria dignidade do investigado.

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A propósito disto, Dias entende que “[...] na medida em que a ordem constitucional

elevou a dignidade da pessoa humana a fundamento da ordem jurídica, houve uma opção

expressa pela pessoa, ligando todos os institutos à realização de sua personalidade.” (DIAS,

2007, p. 59-60).

É o que demostra Wolfgang Sarlet (p. 60), citado por Ahmad (2009, p. 5345):

[...] qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham (sic) a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.

Na seara da punibilidade de violação dos direitos da personalidade, vale ressaltar que

qualquer lesão causada frente a esses direitos gera Responsabilidade Civil, conforme leciona

Venosa:

Aquele que for ameaçado ou lesado em seus direitos da personalidade, honra, nome, liberdade, recato, etc., poderá exigir que cesse a ameaça ou lesão e reclamar perdas e danos, sem prejuízos de outras sanções, como dispõe o art. 12. Nesse prisma, a indenização por danos morais assume grande relevância. (2005, p. 201).

Embora a pessoa detentora dos direitos da personalidade tenha a faculdade de dispor

dos mesmos, em hipótese alguma deverá aceitar sejam violados direitos previstos na norma

constitucional, tema que será tratado com ênfase nos próximos capítulos do presente trabalho

quanto à violação do direito à intimidade, bem como, o direito à integridade física da pessoa

humana, diante da possibilidade de recusa do suposto pai a submeter-se a prova pericial de

exame de DNA, nas ações de Investigação de Paternidade.

2.2 DO DIREITO À IDENTIDADE PESSOAL

Toda pessoa tem o direito de saber a sua identidade genética, direito este resguardado

tanto na CF/88 quanto no Estatuto da Criança e do Adolescente em seu art. 27, na medida em

que “[...] o reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e

imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer

restrição, observado o segredo de Justiça”.

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A relação entre pais e filhos está delimitada na linha reta de primeiro grau pelo

parentesco de consangüinidade, ou, ainda, essa relação pode ser dar por afetividade, criando-

se laços de carinho, amor, respeito e cumplicidade entre pais e filhos. Deste modo, nem

sempre a filiação está ligada ao estado biológico da pessoa.

O direito à identidade pessoal está intimamente ligada ao princípio da dignidade da

pessoa humana positivado no Direito Constitucional, consagrado no art. 1º, inc. III da CF/88,

servindo como base para sustentar o Estado Democrático de Direito.

A dignidade humana atua na órbita constitucional na condição de princípio fundamental do Estado Democrático de Direito, e como principio constitucional consagra valores mais importantes da ordem jurídica, gozando de plena eficácia e efetividade, porque de alta hierarquia e fundamental prevalência, conciliando a segurança jurídica com a busca da justiça. (MADALENO, 2011, p. 40).

O art. 227 da CF/88 expressa em seu texto que é dever da família, da sociedade e do

Estado assegurar a criança e ao adolescente, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à

educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, a dignidade, ao respeito, à liberdade e à

convivência familiar e comunitária, de forma que se deve preservar ao máximo a integridade

moral e física do menor.

Segundo Madaleno (2011, p. 485), “[...] o direito ao conhecimento das origens

genéticas teve seu nascedouro nos tribunais alemães que o reconhecem como um direito

fundamental à personalidade da pessoa”, desde então, passou-se a analisar o direito à

identidade pessoal como uma forma de amenizar os problemas que a figura paterna

possivelmente ocasionasse para o menor.

Para o mesmo autor, o direito à identidade genética deve estar em um patamar acima

ao direito à intimidade e à vida privada, em casos em que filho e pai devem ser submetidos a

exame de DNA para se descobrir a possível filiação, elevando o melhor interesse da criança.

Basta de fato analisar qual é o melhor interesse que envolve a criança nestas

circunstâncias, uma vez que o reconhecimento biológico não representa apenas inserir o nome

pai no registro de nascimento, mas deve criar laços de afetividade e obrigações, de maneira

que o direito à identidade pessoal não deve estar relacionado somente ao direito ao nome.

A identidade é o aceitar a si mesmo e ao reflexo de si na sociedade e por isso tem de considerar-se a ontologia da identidade humana. Quer situando cada homem como o centro autônomo de interesses, reconhecendo o seu particular modo de ser e de se firmar e impondo aos outros o reconhecimento de sua identidade. (MAIA, 2008, p. 60).

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A identificação facilita a localização da pessoa na ordem em que se encontra, este

adquire o nome, pseudônimo (nome fictício) e apelido de seus ascendentes.

Para Madaleno, o ponto inicial para o desenvolvimento da criança, começa com o

reconhecimento da identidade genética do menor envolvido, respeitando a dignidade humana

enquanto ser detentor de direitos e deveres.

O direito à identidade genética encontra amparo no artigo 1º, inciso III da CF, respeitante à dignidade humana, uma vez que o ponto de partida para o livre desenvolvimento da personalidade de uma pessoa passa pelo conhecimento de sua ascendência, cuidando-se de um direito inerente à condição humana, imprescritível e irrenunciável e se for preciso confrontar o direito do adulto e preservar sua intimidade e do filho em conhecer sua origem, nesse juízo de ponderação deve ponderar o superior interesse da criança. (2011, p. 486)

Embora a legislação eleve o direito da criança ao nível mais alto de superioridade,

devem-se levar em consideração alguns requisitos com relação especificamente ao exame de

DNA, a fim de que não seja concedida à criança uma identidade a qual não lhe pertence.

O direito à identidade genética muitas vezes é pleiteado por filhos adotivos, apenas

para conquistar em juízo um interesse legítimo, embora aquele que lhe deu afeto, que

efetivamente reconheceu-o como filho, criando laços eternos, não poderá ser desfeito.

[...] O investigante vai apenas identificar o doador do material genético que lhe deu origem e existência, vai conhecer sua identidade estática ao exercer o direito ao conhecimento de sua vida íntima, e não o exercício de sua vida familiar, porque família ele já tem e neste núcleo construiu sua identidade dinâmica. (MADALENO, 2011, p. 488).

Neste viés, para Madaleno, existem duas ordens de investigações de paternidade:

uma delas visa apenas o reconhecimento da filiação e acarreta todos os direitos e deveres de

pai para filho, sendo eles sociais e econômicos, direito a sucessão, alimentos, o direito ao

nome, inexistindo convivência socioafetiva.

Como a realidade da filiação não decorre da biologia, subsiste em outro extremo o direito ao reconhecimento da ascendência genética, com matriz constitucional, voltado ao direito da personalidade, sem alterar as relações de parentesco artificial heteróloga, e assim estão sendo abertos pela jurisprudência brasileira as fronteiras da adoção à brasileira ou filiação socioafetiva, conquanto também realmente existido entre ascendente e descente vínculo efetivos de afeto e não apenas uma mera, distante e fria ligação formal de um registro cartorário destituído de qualquer relação de amor entre um pai e seu filho. (MADALENO, 2011, p. 490).

Embora haja decisões sendo analisadas quanto aos efeitos que a filiação paternal vem

causando, deve ser distinguida a figura de um pai responsável, daquele que irá registrar o filho

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por determinação legal, apenas “emprestando” a este seu sobrenome, como mera

homologação cartorária.

Não basta apenas registrar o filho em um cartório, a fim de lhe dar uma identidade

genética, deve-se respeitar a sua dignidade, de forma a não prejudicar o real interesse da

criança: “Tendo direito a uma paternidade, resta saber se esta paternidade lhe proporciona a

citada dignidade, através de sua correta identificação familiar, uma integridade psíquica

estável e se corresponde ou não à verdade, sendo assim satisfatória.” (MAIA, 2008, p. 63).

Quando se trata de defender o melhor interesse da criança, devem-se levar em

consideração todos os aspectos relevantes ao bem estar social e psíquico da criança, pois o

registro de nascimento é apenas uma forma de documentar, mas os deveres decorrentes da

paternidade não nascem com a coerção do magistrado.

Nenhum magistrado pode fazer com que um pai ame um filho, dê-lhe amor, carinho, um lar digno, mas pode fazer com que reconheça o filho de fato, fazendo o direito do filho se efetivar ao máximo, tendo a criança e o adolescente o direito de ser tratado com dignidade e respeito, cabendo ao poder público o papel principal de observar e fazer cumprir os direitos fundamentais a eles pertencentes. (BEZERRA, 2009).

Neste sentido, o direito à identidade pessoal deve ser preservado, como de fato vem

assegurado tanto na Constituição Federal quanto no Estatuto da Criança e do Adolescente,

devendo-se apenas ficar atento ao que efetivamente é o melhor para a criança envolvida, não

apenas concedendo-lhe um nome para efetivar a identidade genética no registro de

nascimento e sim transcender a figura do pai biológico, uma vez que o magistrado não poderá

determinar que este proporcione ao seu filho carinho, afeto e compreensão.

2.3 DO DIREITO À INTEGRIDADE PSICOFÍSICA DO SER HUMANO

O direito à integridade física, tutelado constitucionalmente, visa evitar o sofrimento

físico ou mental das pessoas, direito este de grande valia, diante de tanta tortura, repúdio,

penas cruéis, tratamento desumano ou degradante (art. 5º, inc. III, CF/88) herdadas pelo

regime militar adotado anteriormente no Brasil.

Szaniawski aporta que “[...] a integridade da pessoa envolve todos os seus aspectos,

quer físicos, quer psíquicos, constituindo uma unidade, a integridade psicofísica” (2005, p.

469).

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Segundo o entendimento de Sandri, “O direito à integridade psicofísica desempenha

relevante papel no âmbito dos direitos da personalidade, na medida em que visa à

incolumidade da saúde física e psíquica do ser humano.” (2011, p. 4897).

Nesse contexto, o direito à integridade da pessoa humana, segundo Szaniawski, é um

direito absoluto, pois todos têm o dever de respeitar a incolumidade anatômica do indivíduo e

sua saúde, não podendo atentar de forma alguma contra esses bens jurídicos. (2005, p. 474).

Carlos Alberto Bittar (2006, p. 78), expõe que nas questões envolvendo o Direito

Civil, em alguns casos esse direito é protegido dentro dos limites que a lei permite, de forma

que “[...] o consentimento é, nesse caso, necessário, devendo manifestar-se por escrito e

mediante explícita enunciação dos fins visados”, de forma que não poderá violar qualquer

dispositivo legal pré-estabelecido.

Nesta mesma linha de raciocínio, o mesmo autor esclarece que as práticas que

ameaçam violar a integridade física do ser humano, devem ser consentidas, sendo assim,

especificamente, nos casos de submissão do suposto pai à realização do exame de DNA

contra a sua vontade, estaria violando um de seus direitos da personalidade, sendo este o de

integridade física.

A respeito de experiências médicas, genéticas, científicas, religiosas e afins, prosperam os mesmos princípios, devendo salientar-se a absoluta vedação de submissão de pessoa contra a sua vontade, a práticas que exponham a sua integridade física ou intelectual. (BITTAR, 2006, p. 79).

Assim como nos outros direitos da personalidade previstos na CF/88, o direito à

integridade física é adquirido pelo ser humano mediante o seu nascimento com vida,

conforme previsto no Código Civil, e permanecerá até a sua morte.

Para Silvio Romero Beltrão (2005, p. 108):

Falar em integridade física é referir-se ao modo de ser físico da pessoa, partindo da noção de direito à vida, onde se constrói a idéia única da existência, sendo a integridade física parte desta idéia, concentrada na manutenção dos atributos e características físicas da pessoa.

Sendo assim, o simples fato de nascer, proporciona à pessoa o direito de preservar a

sua integridade bem como o uso da totalidade de seu corpo ou parte dele, a fim de preservar e

evitar violações indesejadas, ou que atentem contra os bons costumes, com uma única

exceção estabelecida no art. 13 do Código Civil de 2002.

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Art. 13 - Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial.

Já estabeleceu o legislador em 2002, ter a pessoa o direito de decidir sobre o destino

de seu corpo, da mesma forma dispor do todo ou de parte dele apenas com o seu

consentimento, não estando a submissão ao exame de DNA dentro das exceções estabelecidas

pela legislação, mesmo sendo apenas uma gotícula de sangue, um fio de cabelo, embora

alguns doutrinadores entendam serem estes risíveis frente o direito do investigante em ter sua

identidade genética desvendada, a lei não põe a salvo os limites para que o direito à

integridade física do investigado seja violado, estando aí caracterizado o conflito existente

entre os direitos da personalidade do investigante versus investigado, ambos pautados na

Constituição.

Em comentários da decisão do STF do HC n.º 73.373-4, julgado em novembro de

1994, Maria Celina Bodin de Moraes, (1998, p. 01), discerta:

Em novembro de 1994, o Pleno do Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria de votos, que ninguém pode ser obrigado, sem o seu expresso consentimento, a submeter-se a exame pericial com a finalidade de estabelecimento da paternidade biológica, em ação investigatória.

Hodiernamente, porém, com a recusa em realizar o exame de DNA, o investigado

será presumido pai do investigante. Mesmo passado tanto tempo da decisão acima exposta do

STF, o direito à integridade física em nada mudou, continua sendo direito da personalidade do

ser humano, constando no rol do art. 5º da CF/88.

Neste viés, Pereira (1996, p. 159), citado por Maria Celina Bodin de Moraes (1998,

p. 11), adverte:

Não se duvida que a incolumidade física abranja o direito de recusa a submeter-se a tratamento médico ou exame de qualquer espécie, sem o consentimento expresso de seu titular, não podendo o indivíduo ser compelido a realizá-los.

Desta forma, o direito à integridade física do investigado não pode ser violado,

independentemente do direito pleiteado pelo investigante, pois não há no ordenamento

jurídico hierarquia de princípios, sendo que a violação do direito à integridade física é

abusiva, por tratar-se de direito subjetivo da personalidade do investigado.

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Assim como o direito à integridade física e psicofísica, o investigado está amparado

em seu direito à intimidade e vida privada, o qual será analisado em seguida.

2.4 DO DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA

O direito à intimidade e à vida privada, assim como os outros direitos da

personalidade, é uma das garantias previstas no rol do art. 5º, inciso X da CF/88, de forma que

são invioláveis a intimidade e a vida privada, restando vedada a submissão forçada do

investigado a realização do exame de DNA, sem o seu consentimento expresso.

Não se pode ferir um direito constitucional em favor de outro direito indisponível,

uma vez que não há hierarquia de normas constitucionais, devendo-se sopesar os valores, a

fim de não prejudicar demasiadamente uma das partes no contexto processual.

No entendimento da Defensora Pública Cláudia de Almeida Nogueira (2002, p. 194-

195), citada por Shonblum (2008, p. 09):

O corpo físico é o templo sagrado do homem que deve ser respeitado, se o mesmo não admite a produção desta prova pericial. Claro que, para cada ação, resta uma reação. E esse princípio basilar da física encontra acolhida no mundo jurídico. O réu, ao se recusar, formará uma forte presunção iuris tantum de que é realmente o pai biológico do autor, com a procedência do pedido, dependendo do cotejo das demais provas produzidas na investigatória. Mas nem por isso, a recusa deve ser interpretada como confissão ficta, o que macularia o princípio da paternidade real, com respeito aos entendimentos contrários. Obviamente, que não se pode imputar a paternidade de alguém a outra pessoa que não o verdadeiro pai, sob pena de serem ofendidos os princípios da paternidade real e o da paternidade responsável.

Sendo assim, o suposto pai na instrução processual tem o direito de se recusar a

realizar o exame, embora forme uma forte presunção de ser o pai, ficando o juiz responsável

por analisar todas as provas pertinentes ao caso, formando o seu juízo de convencimento.

Já Fernanda Borghetti Cantali (2009, p. 195), questiona até que ponto a intimidade e

a vida privada são mesmo invioláveis como determina a Constituição:

A Constituição e o Código Civil brasileiros determinam que a vida privada e a intimidade são invioláveis. Serão mesmo invioláveis? Simples análise do cotidiano das pessoas leva à conclusão de que a privacidade das pessoas está sujeita a sistemáticas violações. Vive-se numa sociedade vigiada, com câmeras, revistas em aeroportos, bancos de informações virtuais que armazenam dados pessoais e mesmo a mídia, que a cada dia se torna mais agressiva, devassando a vida das pessoas, principalmente dos famosos, nas atitudes mais corriqueiras.

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Ainda, “a privacidade é essencialmente inviolável, mas aquele que possui o controle

de suas informações pessoais pode sim dispor delas, consentindo com a sua divulgação, desde

que isso não afete sua integridade moral e sua dignidade”. (CANTALI, 2009, p. 198).

Denota-se, assim, que a intimidade e a vida privada estão intimamente ligadas, a fim

de preservar os direitos da pessoa envolvida, não expondo sua vida particular ao público em

geral. Por outro lado, alguns doutrinadores classificam a privacidade e a intimidade como

sendo opostas uma da outra.

Poderíamos ilustrar a vida social como um grande círculo, dentro do qual um menor, o da privacidade, em cujo interior seria oposto um ainda mais constrito e impenetrável, o da intimidade. Assim, o conceito de intimidade tem valor exatamente quando oposto ao de privacidade, pois se se cogita da tirania da vida privada, aduz-se exatamente à tirania da violação da intimidade, como, por exemplo, o pai que devassa o diário da filha adolescente ou viola o sigilo de suas comunicações. (ARAÚJO &NUNES JÚNIOR, 2009, p. 152, citado por NOVAES, 2010, p. 8041).

Tratando-se de ação de Investigação de Paternidade, onde opera-se o instituto do

segredo de justiça, deve-se levar em consideração o inc. LX, do art. 5º da CF/88, o qual prevê

que “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da

intimidade ou do interesse social o exigirem”.

Neste mesmo sentido, a legislação infraconstitucional estabelece que:

CPC. Art. 155. Os atos processuais são públicos. Correm, todavia, em segredo de justiça os processos: [...] II – que dizem respeito a casamento, filiação, separação dos cônjuges, conversão desta em divórcio, alimentos e guarda de menores.

E, por estar a filiação inserida no rol do art. 5º da CF/88, deve-se manter sigilo

quanto às informações processuais, sob pena de responsabilização na esfera penal, com

tipificação prevista no art. 325 do Código Penal.

Art. 325. Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação: Pena – detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, se o fato não constitui crime mais grave. § 1º Nas mesmas penas deste artigo incorre quem: I – permite ou facilita, mediante atribuição, fornecimento e empréstimo de senha ou qualquer outra forma, o acesso de pessoas não autorizadas a sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública; II – se utiliza, indevidamente, do acesso restrito. § 2º Se da ação ou omissão resulta dano à Administração Pública ou a outrem: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.

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Esse direito ao sigilo processual vem para complementar os direitos da personalidade

e preserver diretamente a intimidade e a vida privada dos envolvidos nas ações de

Investigação de Paternidade, onde mesmo diante deste sigilo os envolvidos encontram-se em

uma situação complicada de suas vidas, em conflito de princípios, muitas vezes diante do

constrangimento vivido por parte da família e pelas cobranças advindas da sociedade.

Nesse diapasão, insta destacar o entendimento de Novaes (2010, p. 8042), para quem

“Tais cuidados do legislador e do constituinte de 1988 quanto ao sigilo das demandas que

envolvam a defesa da intimidade tem razão de ser, para que não haja exposição das partes

litigantes, escancarando-se suas vidas privadas para a coletividade.”

Deste modo, o direito à intimidade deve estar condicionado ao consentimento da

pessoa envolvida na ação, por transmitir a verdadeira autonomia da vontade, que não deve ser

sopesada frente a outros princípios, sob pena de ultrapassar os limites da legalidade.

A divulgação das informações pessoais da vida privada pelo próprio titular do direito, ou seja, contando com o seu consentimento, representa legitímo ato de disposição sobre a privacidade e a intimidade, que se traduz, justamente, em uma forma de exercício desses direitos, na expressão de liberdade, da autonomia e do livre desenvolvimento da personalidade. Há quem sustente, inclusive, que a vida privada é um princípio de autonomia do indivíduo na sociedade, ou seja, não somente o direito de resguardo de sua intimidade, mas também o seu livre arbítrio. (CANTALI, 2009, p. 199).

Diante disto, aquele que tiver seu direito lesado pode recorrer ao Poder Judiciário, a

fim de pleitear o devido ressarcimento, na forma do art. 21 do CC/02, devendo o juiz, a

requerimento da parte interessada, tomar todas as providências cabíveis para impedir ou até

mesmo cessar atos que violem a vida privada das pessoas.

3 CONFLITOS DE VALORES CONSTITUCIONAIS: DIREITO À IDENTIDADE

PESSOAL VERSUS DIREITO À INTEGRIDADE PSICOFÍSICA

Como visto alhures, tanto o direito à identidade pertencente ao investigante nas ações

de investigação de paternidade quanto o direito à integridade física do investigado, estão

inseridos na Constituição, abarcados pelo princípio da dignidade da pessoa humana.

Diante disso, resta delinear essas duas garantias constitucionais das partes litigantes,

quando a parte investigada se recusa a realizar o exame de DNA.

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Resta saber se há hierarquia de princípios na Constituição Federal, e ainda, como os

juízes resolvem essas demandas processuais quando da recusa do investigado em realizar o

exame, tido como infalível para alguns doutrinadores.

O investigado alega violação do direito à intimidade e à vida privada. Por outro lado,

o investigante fundamenta seu pedido no direito à identidade genética, ao respeito e à

paternidade responsável. Nesse contexto, Ahmad leciona:

Esta colisão de direitos requer solução capaz de trazer equilíbrio a ambas as partes envolvidas na ação investigatória, mas sem, no entanto, aniquilar direito algum para qualquer das partes. E é essa alternativa que doutrina e jurisprudência precisam buscar na fonte dos princípios da igualdade, na razoabilidade e da proporcionalidade, sob a forma de valoração desses direitos, ou seja, ponderando os direitos envolvidos de ambos os lados, para se chegar a uma decisão equilibrada e justa. (2009, p. 5347).

O julgador, nas demandas de Investigação de Paternidade, deve analisar o caso

concreto, de forma a não prejudicar nenhuma das partes envolvidas, uma vez que ambos os

direitos envolvidos devem ser valorizados.

Segundo Ahmad (2009, p. 5347), a maioria da doutrina é contra a condução

coercitiva do investigado para a realização do exame de DNA, eis que, “[...] estar-se-ia

ferindo de morte sua dignidade pessoal, por força da violação ao princípio constitucional da

intangibilidade física do mesmo”.

Os direitos fundamentais estão dispostos a todos de forma geral, sendo assim,

passíveis de conflitos, devendo ser resolvido no plano processual de forma individualiza.

Há doutrinadores que defendem a tutela da criança acima de qualquer outro direito,

ainda que constitucionalmente assegurado, como se pode observar pelo entendimento de

Maria Celina Bodin de Moraes (2008, p. 08):

A integral tutela da criança, em particular de sua dignidade, reflete, nessa medida e ainda hoje, tarefa primária e urgente, da qual decorre, em primeiro lugar, o conhecimento da identidade verdadeira, e não presumida, dos progenitores. [...] A paternidade e a maternidade representam as únicas respostas possíveis ao questionamento humano acerca de quem somos e de onde viemos.

Os adeptos desta corrente doutrinária colocam o interesse da criança acima de

qualquer lei e Corte Constitucional. Alegam, ainda, que a quantidade necessária de sangue, o

qual é mais comumente usado na realização do exame de DNA, é ínfimo, não violando a

integridade física do investigado.

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Embora o investigado esteja amparado no seu direito à integridade física, há também

o princípio da legalidade, uma vez que, na legislação pátria não há norma que determine ou

ainda que obrigue o mesmo a realizar o exame de DNA, neste caso especificamente nas ações

de Investigação de Paternidade.

O que a Lei 12.004 de 29 de julho de 2009, trouxe de inovação para a legislação

infraconstitucional, diz respeito apenas à mera presunção de paternidade, nos casos em que

haja recusa do suposto pai em submeter-se ao exame de DNA, de forma que este terá que

provar o contrário das alegações feitas pelo autor da ação. Deste modo, o exame de DNA

torna-se uma mera faculdade para o investigado. Nos casos de recusa, acarreta-lhe

consequências, não impedindo o seu direito de decidir sobre o destino do seu corpo, ainda que

esteja em confronto com o melhor interesse da criança.

Para os adeptos do princípio da legalidade, mesmo que se crie uma lei que determine

a condução coercitiva do suposto pai para o laboratório, esta será inconstitucional, por ferir a

intimidade e a vida privada do investigado. Nesse sentido, Mendes e Branco (2011, p. 211-

212) esclarecem que

A corrente minoritária, iniciada com o relator originário, Ministro Francisco Rezek, sustentou a legitimidade do exame de sangue forçado, lembrando que o direito à incolumidade física não é absoluto e que, no caso, encontrava-se em fricção com o direito à própria identidade da criança, o de direito de conhecer o vinculo de filiação real.

Há muitos casos em que filhos recorrem ao Poder Judiciário, os quais já foram

registrados pela mãe e pelo marido desta, desde o nascimento, sendo reconhecidos e amados

como filhos do padrasto. Ao filho, porém, é concedido o direito de investigar a sua real

paternidade a qualquer tempo e idade.

A própria Constituição Federal consagra a relação constituída no afeto e convívio

familiar, a fim de preservar a criança, zelando pela sua própria integridade psicofísica.

A constituição não elegeu a origem biológica como fundadora da família. Ao contrário, dispensou-a, para fixar-se na relação construída no afeto e na convivência familiar, tendo ou não consanguinidade. [...]. O reconhecimento do genitor biológico não pode prevalecer sobre a paternidade construída na convivência familiar, que frequentemente ocorre entre a mãe que registrou o filho e o outro homem, com quem casou ou estabeleceu união estável, e que assumiu os encargos da paternidade. (LOBO, 2003, p. 130-132, citado por MADALENO, 2011, p. 488).

Pai é aquele que cria o filho, independente do código genético. É aquele que

proporciona uma vida digna, que lhe dá amor, carinho e afeto, aquele que em todos os

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momentos desempenhou o papel de um pai de verdade. Contudo, esse conflito entre

princípios é comumente identificado nas demandas judiciais. O que não pode passar

despercebida nesses casos, é a igualdade de direitos, ou seja, o tratamento igual perante a lei

para ambos os litigantes, conforme determina o art. 5º, caput, da CF/88.

Diante da legalidade e da igualdade, é importante ressaltar os princípios da

proporcionalidade e da razoabilidade quando dos conflitos processuais, na medida em que

“O princípio da proporcionalidade tem o condão de impedir excessos na aplicação dos

princípios constitucionais, possibilitando que se o conheça em sua relação com os demais

princípios e regras que compõem o sistema constitucional.” (AHMAD, 2009, p. 5350).

Este princípio da proporcionalidade não está elencado na Constituição Federal, mas

garante a efetividade dos direitos fundamentais, de forma coerente e segura, norteando o

magistrado em sua decisão final no caso concreto.

No que diz respeito à razoabilidade, o juiz deve se submeter sempre à lógica do

razoável, analisando todas as fases do processo de uma forma minuciosa, a fim de evitar

danos irreparáveis às partes nos casos de Investigação de Paternidade, podendo ser danos

materiais e sentimentais ou morais.

A propósito disto, Suzana de Toledo Barros (p. 72), citada por Ahmad (2009, p.

5352), esclarece: “Pode-se definir o princípio da razoabilidade [...], como uma idéia de

adequação, idoneidade, aceitabilidade, logicidade, equidade, bom-senso, moderação e

prudência, traduzindo tudo que não é absurdo, tão somente o que é admissível.”

Sendo assim, os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade buscam a

fundamentação social do caso concreto, ponderando o conflito existente entre as normas e das

partes litigantes, a fim de não beneficiar tanto um em detrimento do outro.

A colisão de direitos fundamentais ocorre, quando seu titular, ao exercitar esse direito, gera colisão com direito fundamental de outrem ou com a proteção do interesse de bens da sociedade ou do Estado. Neste norte, caracterizada a colisão entre direitos fundamentais, cabe ao aplicador do Direito fazer uso do método concretista e, por meio da razoabilidade e da proporcionalidade, ponderar os interesses envolvidos, a fim de fornecer a melhor solução. (AHMAD, 2009, p. 5353).

No caso das ações de Investigação de Paternidade, não pode haver prevalência entre

os princípios, em razão do princípio da igualdade. Sendo assim, para dirimir tais conflitos,

deve-se levar em conta a situação fática exposta ao Judiciário, de forma a não expor as partes,

invadindo sua privacidade, valorando princípios e normas constitucionais.

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4 DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA

A paternidade deixou de representar apenas vínculos biológicos ou genéticos,

representando, acima de tudo, laços de afeto, carinho e amor que nascem com a convivência

familiar, com a estrutura e base de uma família, envolvendo, inclusive a paternidade

responsável.

Corroborando este entendimento, Otero e Sandri lecionam que

A Constituição Federal de 1988, no § 7º do art. 226, apresenta o princípio da paternidade responsável, [...] igualmente prevista nos arts. 3º e 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente, e ainda, no inc. IV do art. 1.566 do Código Civil [...]. Fortalece as relações, estimulando e construindo relações baseadas no respeito, no afeto e na solidariedade. (2012, p. 184).

Com as mudanças na legislação, bem como a busca pela verdade real de filhos que

pleiteiam no Poder Judiciário o seu reconhecido, nem sempre é agraciado com a afetividade

de um pai, sendo que muitos já possuem um pai que desde o seu nascimento lhe prestou todo

o apoio necessário, assumindo todas as responsabilidades como se pai biológico fosse.

A paternidade biológica não pode acabar com vínculos formados entre filhos e

supostos pais ou padrastos.

É relevante o entendimento de Madaleno (2011, p. 472):

O real valor jurídico está na verdade afetiva e jamais sustentada na ascendência genética, porque essa, quando desligada do afeto e da convivência, apenas representa um efeito da natureza, quase sempre fruto de um indesejado acaso, obra de um indesejado descuido e da pronta rejeição. Não podem ser considerados genitores pessoas que nunca quiseram exercer as funções de pai ou de mãe, e sob todos os modos e ações se desvinculam dos efeitos sociais, morais, pessoais e materiais da relação natural de filiação.

Neste viés, discute-se a imputação de presunção nos casos de o investigado se

recusar a realizar o exame de DNA, jamais serão formados laços afetivos entre pai e filho, sob

obrigação, tornando a ação de investigação de Paternidade uma incerteza processual.

A Lei 12.004/2009, bem como o enunciado da Súmula da 301 do STJ de certa forma,

causaram certo tumulto processual, quando permitiram o investigado certas condições de

recusa, imputando-lhe como conseqüência a presunção de paternidade, de forma que os

vínculos afetivos nestes casos ficam totalmente frustrados diante da negação da paternidade.

A paternidade afetiva, dentro do ordenamento jurídico, conceitua-se como, “o

vínculo jurídico que liga uma pessoa a seus pais, ou seja, o liame jurídico existente entre eles

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que se fundamenta não exclusivamente na relação biológica, legal ou decorrente da adoção,

mas, fundamentalmente, na afetividade [...]”. (NICOLAU JÚNIOR, 2007, p. 170-171).

A verdade biológica nem sempre irá cumprir suas atribuições dentro da função social

da paternidade, de fato o que se deve pautar são laços afetivos de cumplicidade e respeito

entre pais e filhos.

Muitas ações de Investigação de Paternidade impetradas no Poder Judiciário são de

crianças ou adolescentes que foram educados e alimentados por outro homem, sendo o

companheiro de sua mãe ou até mesmo pelo avô materno, os quais consideram tal criança

como seus filhos, a estes não são negados o direito de ingressar com a demanda judicial para

desvendar sua filiação biológica, mas não se podem abandonar valores e simplesmente

esquecer aquele que realmente foi um pai de verdade, que assumiu todas as responsabilidades

do poder familiar, não se pode destruir histórias de vida, esquecendo-se de valores,

ensinamentos e criações que foram criadas na relação paterno-filial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ação de Investigação de Paternidade, meio pelo qual uma pessoa pleiteia seu

reconhecimento filiatório junto ao Poder Judiciário, deixou de ser apenas um instrumento

processual consagrado ao autor da demanda, passando, no decorrer dos anos, a tratar dos

Direitos da Personalidade das partes envolvidas na lide.

Na ação de investigação de Paternidade não se discute apenas a filiação, enfatizam-se

os deveres decorrentes da relação que se formará a partir do reconhecimento da relação entre

pai e filho.

O Direito, como uma ciência social e que discute as relações humanas, deve adequar-

se a tais fatos decorrentes da vida em sociedade, assim, antes mesmo de se discutir a relação

biológica, é mister reconhecer os laços afetivos existentes entre pais e filhos. A dignidade da

pessoa humana não encontra respalda somente no reconhecimento sanguineo ou biológico,

devendo o afeto, o respeito e o reconhecimento como pessoa humana estar acima de qualquer

entendimento judicial.

O direito de ação é de todos que possuem legitimidade para tal ato, de forma que nas

ações de Investigação de Paternidade, muito além do reconhecimento da relação parental, há

de se reconhecer os direitos inerentes ao autor da demanda, tais como a necessidade de afeto,

carinho, respeito, dentre tantos outros direitos básicos enquanto ser humano.

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Dentro da ação de Investigação de Paternidade, como em toda a lide, discutem-se

direitos antagônicos, mas que devem ser respeitados em suas proporcionalidades, por tratar-se

de direitos fundamentais, direitos da personalidade, adquiridos pelo simples fato de nascer e

ter vida na sociedade civil.

Ambas as partes litigantes nas ações de Investigação de Paternidade são detentoras

de direitos da personalidade, ou seja, de um lado o direito à identidade pessoal do

investigante, o qual deve ter o devido respaldo jurisdicional, pela busca da verdade biológica,

de forma clara e segura, eis que o julgador não poderá no ato de sua decisão quanto a

paternidade, conferir-lhe o afeto paternal, necessário para a formação e estrutura familiar.

Do outro lado da demanda figura o investigado, detentor do direito à intimidade, à

vida privada e à integridade psicofísica, direitos estes adquiridos pelo simples fato de nascer e

ter vida, não sendo nem mais nem menos importantes que os outros direitos discutidos na

demanda judicial.

No deslinde da ação de Investigação de Paternidade não deve haver valoração de

direitos da personalidade, todos estes inseridos na norma constitucional, eis que, todos os

direitos e princípios responsáveis pela convicção judicial são importantes para se dirimir

conflitos na ordem social.

Do mesmo modo como o investigante tem o direito a ver sua identidade genética

desvendada, não há no ordenamento jurídico qualquer norma que autorize a violação da

privacidade, da intimidade e da integridade física do investigado para se dirimir qualquer

conflito judicial, sob pena de se estar violando norma constitucional, base de todo o

ordenamento jurídico.

Diante disso, conclui-se que o direito de ação conferido ao investigante deve

respeitar os limites constitucionais, sopesando valores na ordem pública, considerando que o

conflito a ser dirimido nas ações de Investigação de Paternidade transpõe o reconhecimento

filial, ou meramente formal, devendo reconhecer a afetividade como a base de uma família e

de qualquer relação possível de se estabelecer entre pais e filhos.

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DAS UNIÕES POLIAFETIVAS HOJE: UMA ANÁLISE À LUZ DA PUBLICIZAÇÃO

DO PRIVADO E DO ACESSO À JUSTIÇA

THE POLIAFFECTIVE UNIONS TODAY: AN ANALYSIS REGARDING THE

PUBLICIZING OF THE PRIVATE AND THE ACCESS TO JUSTICE

Luis Gustavo Liberato Tizzo1

http://lattes.cnpq.br/2210465457037662

Priscila Caroline Gomes Bertolini2

http://lattes.cnpq.br/8159498250465198

RESUMO: A expressão “uniões poliafetivas” ainda é bastante controvertida, divide opiniões inclusive no mundo jurídico, considerando-se principalmente a ausência de manifestação do Poder Judiciário acerca do tema. Este artigo tem como objetivo enfrentar a temática das “novas” uniões diante do ordenamento jurídico interno, levando-se em consideração especialmente aspectos relacionados à publicização do privado e acesso à justiça. A questão ganhou especial destaque depois que uma cartorária da cidade de Tupã, interior de São Paulo lavrou uma escritura para “regularizar” a situação entre um homem e duas mulheres que já viviam juntos há três anos na mesma casa. Muito se discute acerca dos efeitos da referida escritura, e ainda sobre os critérios terminológicos que envolvem as mencionadas uniões. Entretanto, o cerne da questão reside basicamente na dicotomia entre reconhecer essas uniões como instituição familiar e assim considerá-las enquanto uma ampliação do conceito de família em respeito ao afeto, atual norteador das decisões envolvendo Direito de Família ou, negar-lhes reconhecimento, tendo em vista principalmente o fundamento de ofensa aos padrões monogâmicos da sociedade ocidental e violação a normas do direito interno. Para possibilitar uma melhor compreensão acerca do tema, faz-se necessária uma breve ponderação histórica, mais especificamente do período de transição entre o Estado Liberal e o Estado Social, consignando a transformação de um sistema normativo com visível separação entre Direito Público e Direito Privado e ausência de intervenção do Estado nas relações privadas para um estágio de forte influencia do público sobre o privado, marcado pela constitucionalização do Direito, publicização do privado, privatização do público, busca pela igualdade material, consagração de liberdades positivas, visível valorização dos direitos fundamentais, da personalidade e acima de tudo da dignidade da pessoa humana além dos atuais mandamentos de acesso à justiça.

PALAVRAS-CHAVE: Uniões Poliafetivas; Constitucionalização do Direito; Publicização do Privado; Acesso à Justiça; Direito de Família.

1 Mestrando em Direito pelo CESUMAR (Centro Universitário de Maringá); Pós-graduado em Direito

Constitucional Contemporâneo pelo IDCC (Instituto de Direito Constitucional e Cidadania); Graduado em Direito Pela PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná); Juiz Leigo; Assessor Jurídico. Endereço Eletrônico: [email protected] 2 Mestranda em Direito pelo CESUMAR (Centro Universitário de Maringá); Pós-graduada em Direito Empresarial pela UEL (Universidade Estadual de Londrina); Graduada em Direito pelo CESUMAR (Centro Universitário de Maringá); Advogada. Endereço Eletrônico: [email protected]

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ABSTRACT: The term “poliaffective unions” is still quite controversial, divide opinions even in the legal world, especially considering the lack of expression of the Judiciary on the subject. This article aims to address the theme of “new” unions before the domestic legal system, taking into account aspects related especially to the publicity of the private and access to justice. The issue gained particular prominence after a employee of Tupa´s registry office, from state of São Paulo, drew up a deed to “regularize” the situation between a man and two women have lived together for three years in the same house. There is debate about the effects of said deed, and also on the criteria mentioned terminology involving the unions. However, the crux of the matter lies in the dichotomy between basically recognize such unions as family institution and thus consider them as an extension of the concept of family in respect to affection, guiding current decisions involving family law, or deny them recognition, and mainly seen in the foundation of the offense monogamous standards of Western society and violating the rules of law. To enable a better understanding of the topic, it is necessary a brief historical weighting, specifically the transition period between the State and the State Social Liberal, consigning the transformation of a normative system with visible separation between Public Law and Private Law and the absence State intervention in private affairs to a stage of strong influences from the public over the private, marked by the constitutionalization of law, publicizing the private, privatization of public pursuit of substantive equality, enshrining freedoms positive, visible appreciation of fundamental rights, the personality and above all the dignity of the human person commandments beyond the current access to justice. KEYWORDS: Poliaffective Unions; Constitucionalisation of Law; Publicizing the Private; Access to Justice; Family Law.

INTRODUÇÃO

Recentemente a questão envolvendo as Uniões Poliafetivas tomou os noticiários e

dividiu opiniões principalmente no mundo jurídico, com a agravante de que o Poder

Judiciário ainda não se manifestou sobre o tema.

A problemática abrangendo as “novas” uniões fora acirrada depois que no mundo

real uma cartorária da cidade de Tupã, interior de São Paulo lavrou uma escritura

“regularizando” a situação entre um homem e duas mulheres que há três anos já viviam juntos

na mesma casa. E, no mundo da ficção, a emissora Rede Globo, na trama da novela Avenida

Brasil, retratou a convivência entre um homem e suas três esposas e uma mulher e seus dois

maridos.

Em que pesem as discussões acerca dos efeitos gerados com a lavratura de um

documento como a referida escritura, além das divergências terminológicas estabelecidas, o

cerne da questão reside na visível contradição entre reconhecer as novas uniões enquanto

instituição familiar, ampliando o conceito de família, como recentemente ocorrera com as

uniões homoafetivas, em respeito ao principal mandamento do Direito de Família na

atualidade que é o afeto, ou negar reconhecimento tendo em vista, por exemplo, o fato de ser

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a sociedade ocidental eminentemente monogâmica e a normativa interna não possibilitar tal

extensão.

Contextualmente, o período de transição entre o Estado Liberal e o Estado Social

possui especial relevância no estudo da problemática do presente trabalho eis que retrata o

momento de decadência da summa divisio até então existente entre os Direitos Público e

Privado, além da notória abstenção do Estado em relação aos vínculos privados e a

consequente prevalência de um sistema normativo de forte influência do público sobre o

privado, com o natural enfraquecimento das fronteiras. Reconhece-se um período em que o

Estado passou a preocupar-se com questões e anseios privados.

O Estado Social assumiu relevante papel na busca de efetivação da igualdade

material e consagração das liberdades positivas. Ganhou força o movimento de

constitucionalização do Direito, publicização do privado e privatização do público e neste

cenário, pelo fato da família consistir em organismo de vital importância para o Estado, tem-

se que o Direito de Família tende a publicizar-se ainda mais. Além disso, os Direitos

Fundamentais e Direitos da Personalidade ganharam função de relevante destaque.

Nesse passo, os ensinamentos de acesso à justiça conduzem a atribuição de um real

sentido e alcance dos direitos fundamentais, levando em consideração preceitos de dignidade,

liberdade e de igualdade, possibilitando às pessoas reivindicar seus direitos e até mesmo resolver

seus litígios sob o olhar do Estado.

É no panorama de ampla proteção estatal, a partir de preceitos da publicização do

privado e mandamentos de acesso à justiça, que se pretende a análise do tema das Uniões

Poliafetivas, em busca de uma resposta para a indagação acerca dos deveres e limites da

proteção do Estado, utilizando-se para tanto do método teórico, constituindo-se na pesquisa de

obras doutrinárias, artigos científicos, legislação nacional e documentos eletrônicos.

1 DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO SOCIAL: UMA BREVE PONDERAÇÃO

HISTÓRICA

Para o estudo da recente temática envolvendo as Uniões Poliafetivas - assunto

exaustivamente tratado pelos noticiários e também pela comunidade jurídica – e

consequentemente a viabilidade do seu reconhecimento ou não no ordenamento pátrio,

algumas considerações históricas se mostram necessárias.

O século XIX, período da modernidade, eminentemente liberal, fora marcado por

uma forte codificação. O que existia de um lado era uma Constituição, encarregada de dividir

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os poderes do Estado e limitar seu âmbito de atuação, entre si e perante os cidadãos, vista

assim como um diploma público por excelência. E de outra banda, um Código Civil, que

contrariamente se apresentava responsável por reger as relações substancialmente econômicas

entre os particulares, tido assim como diploma privado por excelência, supostamente perfeito

e total3.

Neste período, era possível visualizar de forma bastante clara o papel de espectador

ocupado pelo Estado diante das relações privadas, ou seja, uma limitação do poder estatal

com a afirmação dos direitos individuais, autonomia e liberdade irrestritas dos cidadãos4.

Resumidamente, a estrutura normativa liberal era marcada pelo império da summa divisio

entre os Direitos Público e Privado, fato que acabava por implicar em uma diversidade de

ambientes de proteção5 e especialmente em um Direito Privado capaz de rejeitar as

vulnerabilidades e fraquezas de indivíduos ou grupos6.

Observa-se um início de mudança de perspectiva no cenário até então apresentado,

com a promulgação da Constituição de Weimar no ano de 1919 - precedida da Constituição

Mexicana de 1917, considerando que esta se colocou no centro do sistema, trazendo em seu

conteúdo institutos próprios do campo privado, alterando os fundamentos ideológicos do

sistema normativo e influenciando as concepções atuais de constitucionalização do Direito

Privado e superação da dicotomia do ordenamento jurídico7.

Apesar da relevância atribuída à Constituição alemã, fora com as atrocidades

cometidas no segundo pós-guerra (meados de 1945), que a questão ganhou efetiva relevância

já que, o homem passou a reivindicar de forma mais contundente uma proteção pessoal, de

resguardo e de ação, no intuito de se defender e de se afirmar no meio social.

Com o advento do século XX, período de pós-modernidade e transição para um

Estado Social, verificou-se de fato, uma prevalência e fortificação das Constituições, com a 3 LUDWIG, Marcos de Campos. Direito público e direito privado: a superação da dicotomia. In: MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A Reconstrução do Direito Privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 96. 4 A esse respeito, Alessandro Severino Vallér Zenni ensina que: No Estado Liberal “A sociedade civil passa a ser antípoda do Estado, em visão dualista – Estado-sociedade civil, de um lado com os princípios intervencionistas e protetivos e do outro o liberalismo e o laissez faire”. ZENNI, Alessandro Severino Vallér. A crise do direito liberal na pós-modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2006, p. 20. 5 CANTALI, Fernanda Borghetti. Direitos da Personalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 48. 6 Acerca da visível divisão observada entre o Direito Público e Direito Privado, Julio Cesar Finger ensina que “Foi Domat quem por primeiro separou as leis civis das públicas”. Além do que no estado liberal “O código civil era visto, então, como a ‘constituição privada’ que regulava a vida dos cidadãos desde o nascimento e até depois de sua morte. Nesse contexto, a divisão entre direito público e direito privado era praticamente absoluta, sendo o primeiro o destinado a regular os interesses gerais e o segundo, as relações entre as pessoas privadas”. FINGER, Julio Cesar. Constituição e direito privado: algumas notas sobre a chamada constitucionalização do direito civil. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A Constituição concretizada: construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 86. 7 CANTALI, Fernanda Borghetti. Direitos da Personalidade. Porto Alegre: Livraria do Advo gado, 2009, p. 49.

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inserção de seus valores e princípios em toda a normativa infraconstitucional8. Isso porque,

“as exigências sociais e os conflitos àquelas inerentes impuseram a criação de novos

mecanismos normativos no intuito de serem resolvidas demandas para as quais o aparato da

codificação civil não se mostrava apto e adequado”9.

O Estado assumiu papel de importância ímpar, no sentido de, através de normas

ordinárias, remover as barreiras à efetivação do princípio constitucional da igualdade,

fazendo-o incidir nas relações interpretativas, tratando os desiguais de forma também

desigual, de maneira que a igualdade pudesse ultrapassar seu sentido meramente formal,

assumindo caráter material, ou substancial10. Acerca do tema, Letícia Ferrarini contribui com

a ideia de que “[...] o Estado, comprometido constitucionalmente com a realização efetiva dos

direitos fundamentais, não mais se submete àquela postura passiva que o caracterizava na fase

liberal”11.

Nesse contexto, fazendo menção ao Direito de Família, Paulo Lôbo consigna que:

O Estado social, desenvolvido ao longo do século XX, caracterizou-se pela intervenção nas relações privadas e no controle dos poderes econômicos, tendo por fito a proteção dos mais fracos. Sua nota dominante é a solidariedade social ou a promoção da justiça social. O intervencionismo também alcança a família, com o intuito de redução dos poderes domésticos – notadamente do poder marital e do poder paterno -, da inclusão e equalização de seus membros, e na compreensão de seu espaço para a promoção da dignidade humana12.

De forma a complementar Paula Castello Miguel e Ricardo Goretti Santos advertem

que:

A identificação dessa tendência, todavia, somente pode ser sentida a partir da fragilização dos sistemas jurídicos característicos do Estado Liberal, que não concebiam a irradiação de direitos constitucionais fundamentais nas relações

8 A esse respeito, Luis Roberto Barroso explica que: “Os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional. Como intuitivo, a constitucionalização repercute sobre a atuação dos três Poderes, inclusive e notadamente nas suas relações com os particulares”. BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, n. 58, ano 15, p. 129-173, jan.-mar. 2007, p. 141-142. 9 GIRARDI, Viviane. Famílias contemporâneas, filiação e afeto: a possibilidade jurídica da adoção por homossexuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 37-38. 10 NOVAIS, Alinne Arquette Leite. Os Novos Paradigmas da Teoria Contratual: O Princípio da Boa-fé Objetiva e o Princípio da Tutela do Hipossuficiente. TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 38. 11 FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos: pedaços da realidade em busca da dignidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010, p. 85. 12 LÔBO, Paulo. Famílias. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 4.

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jurídicas de direito privado, sob pena de violação de primados clássicos, como a autonomia da vontade, a liberdade e a igualdade paritária ou isonomia perante a lei – igualdade formal13.

Reconhece-se a relevância da valorização de uma igualdade agora inclusive material,

entretanto destaca-se ainda o avanço no campo das liberdades, tão caras ao Estado Liberal, já

que, sob a vigência do Estado Social não apenas liberdades negativas14 são exigidas, sendo

contempladas também “liberdades positivas – isto é, poderes de exigir do ente estatal

prestações específicas, visando ao preenchimento dos assim chamados direitos sociais”15.

Com a mudança de perspectiva de um Estado Liberal para um Estado Social, com

fundamento maior em uma igualdade efetiva, igualdade material, não é possível conceber

discriminações injustificadas. O Estado precisa agir para garantir a efetivação dessa

igualdade, possibilitar o exercício das liberdades e acima de tudo promover a consagração da

dignidade da pessoa humana.

2 A QUESTÃO DA PUBLICIZAÇÃO DO PRIVADO

No contexto de transição de um Estado Liberal para um Estado Social, discute-se

questão relacionada à publicização do privado e privatização do público, sugerindo um

“rompimento de fronteiras” entre o Direito Público e Direito Privado, já que a clássica e

visível divisão estanque do passado não mais corresponde às necessidades da sociedade

atual16. Nesse viés, tem-se que a expressão publicização, abrange um processo de progressiva

13 MIGUEL, Paula Castello; SANTOS, Ricardo Goretti. Irradiação de direitos fundamentais nas relações jurídicas de direito privado: a aproximação de pólos dicotômicos. In: XVIII Encontro Nacional do CONPEDI, 2009, Maringá. Anais do XVIII Encontro Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. 14 No tocante ao sentido político da expressão liberdade, tem-se que liberdade negativa corresponde a ausência de impedimento ou constrangimento para agir ou não agir, enquanto que liberdade positiva corresponde a possibilidade do sujeito orientar seu querer no sentido de uma finalidade, de tomar decisões, sem ser determinado pelos outros. BOBBIO, Norberto. Igualdade e Liberdade. 5. ed. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, p. 48-49. 15 LUDWIG, Marcos de Campos. Direito Público e direito privado: a superação da dicotomia. In: MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A Reconstrução do Direito Privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 97. 16 A esse respeito importante consignar as palavras de Julio Cesar Finger no sentido de que “No influxo gerado pela nova postura intervencionista estatal, em busca da igualdade material, o direito civil, até então impregnado da ideologia liberal, e com as pretensões centralizadoras e totalizantes da codificação (completude), não apresentava mais soluções de molde a regular em contento as novas exigências sociais”. FINGER, Julio Cesar. Constituição e direito privado: algumas notas sobre a chamada constitucionalização do direito civil. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A Constituição concretizada: construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 91.

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interferência estatal na esfera privada, de maneira que a concepção social dos vínculos

privados acaba por caracterizar a nova posição publicista17.

Acerca da trajetória percorrida para que se chegasse ao cenário conhecido atualmente

como publicização do privado, Fernanda Borghetti Cantali pondera de forma a sintetizar que:

A característica liberal de separação do público e do privado, onde aquele somente mantinha a coexistência das esferas individuais para que este atuasse livremente com base em suas próprias regras, veio a ruir na medida em que o Poder Público passou a assumir um caráter intervencionista e regulamentador que, comprimindo a autonomia individual, passou a intervir, pois, nas relações privadas, modificando as funções do Direito Civil, além de publicizar o privado18.

Neste mesmo sentido, relevante é a explicação de Luís Roberto Barroso para quem:

O Código napoleônico e os modelos que ele inspirou – inclusive o brasileiro- baseavam-se na liberdade individual, na igualdade formal entre as pessoas e na garantia absoluta do direito de propriedade. Ao longo do século XX, com o advento do Estado social e a percepção crítica da desigualdade material entre os indivíduos, o direito civil começa a superar o individualismo exacerbado, deixando de ser o reino soberano da autonomia da vontade. Em nome da solidariedade social e da função social de instituições como a propriedade e o contrato, o Estado começa a interferir nas relações entre particulares, mediante a introdução de normas de ordem pública. Tais normas se destinam, sobretudo, à proteção do lado mais fraco da relação jurídica, como o consumidor, o locatário, o empregado. É a fase do dirigismo contratual, que consolida a publicização do direito privado19.

Em tempos de egoísmo, atrocidades, preconceito e sobretudo discriminação de

minorias, não é possível contemplar um modelo de Estado que apenas se abstenha em respeito

à liberdade, autonomia e direitos individuais. A nova fase de observação das relações e

17 Salutar observar a constatação de Sílvio de Salvo Venosa no sentido de que: “A cada dia, no entanto, notamos maior publicização do direito privado. São frequentes as invasões do Estado na órbita que originalmente apenas interessava ao âmbito privado do indivíduo. A influência do Estado é cada dia mais absorvente; surgem, então fórmulas para proteger o Estado por meio de um direcionamento de condutas do indivíduo. É acentuada a cada momento a restrição à liberdade. Princípios tradicionais de direito privado, como, por exemplo, a autonomia da vontade do direito obrigacional, sofrem paulatina intervenção do Estado”. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: parte geral. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 89. 18 CANTALI, Fernanda Borghetti. Direitos da Personalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 50-51. 19 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, n. 58, ano 15, p. 129-173, jan.-mar. 2007, p. 155.

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conflitos de direito privado é conhecida e identificada pela tolerância e pluralismo,

reconhecimento do outro sujeito da relação e respeito a seus legítimos interesses20.

Esboçando contribuição acerca do tema, Claudia Lima Marques e Bruno Miragem

consignam que:

É esse estado de coisas que permite reconhecer no direito privado contemporâneo uma clara diretriz de proteção dos vulneráveis, como espécie de mandamento ético-jurídico que será concretizado tanto por leis protetivas, mas, sobretudo, pela atuação comprometida do jurista com a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana, mediante sua eficácia concreta também sobre as relações privadas21.

Na pós-modernidade o que se constata é um direito privado contemplador de normas

de ordem pública, portador de preceitos de interesse geral e integrado por institutos com

marcada função social22. São novos sujeitos de direito, assim reconhecidos, reivindicando sua

própria lei, leis estas especiais subjetivas e protetivas do vulnerável, do diferente23, fator que

implica em uma prevalência de leis especiais, ou seja, microssistemas capazes de edificar um

novo direito respeitador de exigências até então ignoradas pelos códigos.

3 DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E DA PERSONALIDADE

No estudo do movimento de forte intervenção do público sobre o privado, não há

como deixar de realizar um corte para uma breve tratativa acerca dos direitos fundamentais e

direitos da personalidade, tendo em vista principalmente o papel de destaque assumido por

estes na pós-modernidade24.

20 MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 106. 21 MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 106. 22 LUDWIG, Marcos de Campos. Direito Público e direito privado: a superação da dicotomia. In: MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A Reconstrução do Direito Privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 99. 23 MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 16. 24 Acerca da estreita relação existente entre Direitos Fundamentais e Direitos da Personalidade Nilson Tadeu Campos Silva e Cleber Sanfelici Otero destacam a necessidade de reconhecimento “de que os direitos fundamentais, assim como os direitos da personalidade, prestam-se a resguardar e garantir a dignidade da pessoa humana e, mais, que são matizados pela indivisibilidade, integridade e complementaridade”. OTERO, Cleber Sanfelici; SILVA, Nilson Tadeu Reis Campos. Direitos fundamentais e justiça têm limites? Poligamia e a questão da publicização do privado. In SIQUEIRA, Dirceu Pereira; AMARAL, Sérgio Tibiriçá. (org.) Direitos humanos: um olhar sob o viés da inclusão social. Birigüi: Boreal, 2012, p. 95.

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Em busca de uma conceituação para os Direitos Fundamentais, José Afonso da Silva

já adianta e adverte a dificuldade de se atribuir um conceito sintético e preciso aos referidos

direitos, considerando-se especialmente a ampliação e transformação por eles sofridas no

envolver histórico. Entretanto, ainda assim a doutrina procura conceituá-los basicamente

enquanto “[...] uma categoria jurídica, constitucionalmente erigida e vocacionada à proteção

da dignidade humana em todas as dimensões”.25 Além de relacioná-los como um “[...]

conjunto de normas, princípios, prerrogativas, deveres e institutos inerentes à soberania

popular, que garantem a convivência pacífica, digna, livre e igualitária, independentemente de

credo, raça, origem, cor, condição econômica ou status social”26, sem os quais o homem não

vive, não convive, e, em alguns casos, não sobrevive.

Ingo Wolfgang Sarlet por sua vez, propõe considerações acerca dos Direitos

Fundamentais no sentido de que estes constituem

[...] todas aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas, que, do ponto de vista do direito constitucional positivo, foram por seu conteúdo e importancia (fundamentalidade em sentido material), integradas ao texto da constituição e, portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos (fundamentalidade formal), bem como as que, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparados, agregando-se à constituição material, tendo, ou não assento na Constituição formal (aqui considerada a abertura material do catálogo)27.

Atenta ao movimento de fortificação e valorização dos Direitos Fundamentais,

direitos estes inerentes ao homem, em um momento histórico em que a humanidade se

mostrava tão carente de proteção, em 1988, a Constituição Federal brasileira inovou a ordem

jurídica interna ao positivar em seu texto um exemplificativo rol de Direitos Fundamentais,

dispersos por todo o corpo constitucional como a modelo dos artigos 5º, 6º, 12, 14, 150 e 225,

além de admitir outros direitos consignados implicitamente decorrentes do sistema

constitucional de proteção e ainda impressos nas Convenções e Tratados Internacionais que o

Brasil faça parte28.

25 ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 110. 26 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 404. 27 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 91. 28 FACHIN, Zulmar. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 246-247.

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No contexto dos Direitos Fundamentais, Letícia Ferrarini assinala que o sistema de

Direitos Fundamentais inscritos na Constituição brasileira tem caráter fortemente social29,

permitindo a abertura de parênteses para ressaltar a ideia de que a publicização do privado se

desenvolveu concomitantemente à segunda dimensão de direitos fundamentais. Direitos que

se firmaram no início do século XX, impondo uma atuação, um agir por parte do Estado30,

que ao menos em tese precisou se movimentar para efetivação dos direitos e principalmente

do princípio da igualdade31, diferentemente do que se pretendia com os direitos de primeira

dimensão que impunham uma abstenção do ente estatal32, limitando-se a uma esfera negativa

de proteção contra a ação do Estado.

Neste prisma, a tutela que passou a ser exigida por parte do Estado não se restringiu à

relação Estado e indivíduo. Proteger o indivíduo apenas contra a atuação desmedida do

Estado se tornou insuficiente, sendo necessária a observância e respeito aos direitos

fundamentais também nas relações privadas, ou seja, aquelas relações que se formam entre os

cidadãos, sem a intervenção do Estado, de modo a proteger o cidadão contra o próprio

cidadão33. Este amplo modelo de proteção convencionou-se chamar de eficácia horizontal dos

direitos fundamentais34, de maneira que, vindo a corroborar, recentemente na doutrina alemã

reconheceu-se que, em razão dos efeitos horizontais dos direitos humanos, vários institutos do

direito público acabaram por imigrar para o direito privado35.

29 FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos: pedaços da realidade em busca da dignidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 38. 30 Nesse sentido, tem-se que “Em vez da igualdade formal e da justiça comutativa, a fim de procurar igualar materialmente situações que na realidade não ocorriam, o Estado tornou-se devedor de prestações positivas”. FINGER, Julio Cesar. Constituição e direito privado: algumas notas sobre a chamada constitucionalização do direito civil. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A Constituição concretizada: construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 90. 31 A esse respeito, importante consignar a definição de Paulo Bonavides, de que a segunda dimensão de direitos é constituída por direitos que nasceram abraçados ao princípio da igualdade. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 564. Além da ideia de que assumiram significativa dimensão no período de transição do Estado Liberal burguês para o Estado de Bem-Estar Social, incorporando-se à maior parte dos textos constitucionais do pós-Segunda Guerra. MOREIRA, Reinaldo Daniel. A efetivação judicial dos direitos sociais. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, n. 75, ano 19, p. 309-334, abr.-jun. 2011, p. 311. 32 FACHIN, Zulmar. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 225. 33 COELHO, Luiz Eduardo de Toledo. Os direitos fundamentais e o princípio da dignidade da pessoa humana aplicados às relações privadas. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, n. 67, ano 17, p. 214-243, abr.-jun. 2009, p. 216. 34 Daniel Sarmento explicita claramente a ideia de eficácia horizontal com a aplicação direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas, justificando que numa sociedade desigual, a incidência desses direitos é imprescindível, tendo em vista que as agressões não provem apenas do Estado, mas de uma multiplicidade de atores privados presentes no âmbito familiar, empresarial, no mercado e na sociedade civil. SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 223. 35 MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 200.

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De maneira fortemente atrelada ao cenário apresentado, os direitos da personalidade

passam a ter nova significância, haja vista a estreita ligação destes com o respeito à dignidade

da pessoa humana. A esse respeito, Fernanda Cantali assevera que:

Pode-se dizer, assim, que a construção da teoria dos direitos da personalidade se confunde com a construção relativa aos direitos fundamentais, mas adquire força a partir da consagração da dignidade da pessoa humana como valor fundante dos Estados Democráticos, o que coloca o ser humano como centro referencial dos ordenamentos jurídicos.36

Esboçando contribuição acerca do tema, Adriano de Cupis assinala que “todos os

direitos, na medida em que destinados a dar conteúdo à personalidade, poderiam chamar-se

‘direitos da personalidade’”37. Deste modo tem-se que os direitos da personalidade são

analisados enquanto uma categoria especial de direito, diferente dos direitos reais e dos

obrigacionais. Através dos direitos da personalidade se protegem a essência da pessoa e suas

principais características, sendo que seu objeto se identifica nos bens e valores considerados

essenciais para o ser humano, caracterizados por uma não exterioridade, constituindo

categorias do ser, e não do ter.38

Portanto, as esferas de atos e fatos decorrentes do exercício da liberdade passam a ter

relevância jurídica, não podendo ser ignoradas pelo Estado, merecendo a competente

regulamentação e reconhecimento, como forma de produzir respostas às realidades sociais

diversas decorrentes de uma sociedade plural. E neste instante se propaga o respeito e a

promoção dos direitos fundamentais e da personalidade, reconhecendo o ser humano como o

âmago do ordenamento jurídico, dotado de dignidade, cujas escolhas, desde que observados

preceitos de capacidade civil e manifestação de vontade entre as partes, precisam ser

respeitadas.

4 O AFETO E A SITUAÇÃO ATUAL DO DIREITO DE FAMÍLIA

Para defender a necessidade de reconhecimento das denominadas Uniões Poliafetivas

no ordenamento interno, certamente há que se passar pela análise da viabilidade destas

enquanto instituição familiar.

36 CANTALI, Fernanda Borghetti. Direitos da personalidade: disponibilidade relativa, autonomia privada e dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. P. 61. 37 CUPIS, Adriano de. Os direitos da personalidade. 2. ed. São Paulo: Quorum, 2008, p. 23. 38 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos de personalidade e autonomia privada. 2. ed., rev. 2. reimp. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 20-21.

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A família por assim dizer é tida como uma construção cultural e desta forma

considerada a base da sociedade, recebendo especial proteção estatal39. Corresponde a uma

das instituições mais antigas da sociedade, se não a mais antiga, diretamente vinculada às

transformações sociais40 e nessa esteira, o século XX é encerrado como grande detentor de

visíveis alterações no tocante à família e consequentemente no Direito de Família.

Por ser o Direito de Família o ramo do Direito que regula todo e qualquer arranjo

familiar em seus aspectos pessoais ou patrimoniais, Maria Berenice Dias pondera que este “é

o direito que diz com a vida das pessoas, seus sentimentos, enfim, com a alma do ser

humano”41, constituindo ambiente propício para o desenvolvimento de teorias como a

constitucionalização do direito, publicização do privado, igualdade material, liberdades

positivas e até mesmo eficácia horizontal dos direitos fundamentais.

Diante do cenário de fortificação da intervenção do público sobre o privado,

compreende-se que “o direito de família tende a publicizar-se mais em razão de ordenar um

organismo de vital importância para o Estado”42. A esse respeito, Claudia Lima Marques

consigna que “no direito privado extrapatrimonial, especialmente no direito de família, são

reconhecidos e aplicados, com enorme intensidade, princípios jurídicos que constroem sua

eficácia vinculante tomando por fundamento a própria Constituição”43. E de modo a

complementar, Viviane Girardi esclarece que:

A partir do artigo 226 e seus parágrafos e do artigo 227, a Constituição Federal inundou o cenário jurídico das relações familiares de um sentido amplo de democracia e de respeito às diferenças. Permitindo o reconhecimento legal da união estável e das famílias monoparentais, culminou por elastecer o leque das relações familiares legitimadas, as quais passaram a ser reconhecidas e tuteladas pelo Estado44.

Em contraposição ao sistema conhecido com o Direito Civil do Código de 1916

(representativo do sistema jurídico liberal burguês), no estado atual do Direito de Família, o

que se observa é o relevante papel assumido pelo afeto. Se no Estado Liberal, a família

39 Conforme artigo 226 da Constituição Federal: A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 15. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 40 SOARES, Sônia Barroso Brandão. Famílias monoparentais: Aspectos polêmicos. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 547. 41 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 29. 42 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: parte geral. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 89. 43 MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 99. 44 GIRARDI, Viviane. Famílias contemporâneas, filiação e afeto: a possibilidade jurídica da adoção por homossexuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 32.

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aparecia através do direito patrimonial, consistindo um “[...] referencial necessário para a

perpetuação das relações de produção existentes, sobretudo mediante regras formais de

sucessão de bens, de unidade em torno do chefe, de filiação certa”45, o novo conceito de

família tem por insuficiente o modelo familiar tradicional, modelo patriarcal do direito civil

moderno, levando a uma evolução de conceitos e assim maior maleabilidade na

jurisprudência46.

Jeferson Dytz Marin em contribuição acerca do tema, assegura que “as alterações

trazidas pela Magna Carta de 1988, alcançando aos cônjuges um patamar de absoluta

igualdade, a debelação do conceito de filho espúrio, o reconhecimento da união estável e da

família monoparental, mudaram decisivamente o meio jurídico”47. Assim, “pode-se afirmar

que a família legal contemporânea não encontra mais um modelo único para se expressar.

Sendo porosa e plural, recebeu e incorporou as modificações ocorridas nos costumes de nossa

sociedade [...]”48.

Acima de qualquer objetivo, o que se pretende da família na atualidade é que esta

seja o núcleo capaz de possibilitar o desenvolvimento da personalidade de cada um dos seus

membros, concentrando-se na qualidade das relações entre os entes e no desejo de cada um

deles com fundamento maior no afeto, igualdade e solidariedade. A família hoje deve

constituir o núcleo ideal do pleno desenvolvimento da pessoa, instrumento para realização

integral do ser humano49.

Atenta às transformações nas funções da família, a Constituição Federal acabou por

derrubar definitivamente o postulado de família constituída exclusivamente pelo casamento.

Família monoparental, família mosaico, família decorrente de união estável, dentre

outras com fundamento principalmente no afeto, são conceitos recentes enfrentados pela

sociedade. É nesse contexto que em maio do ano de 2011, o Supremo Tribunal Federal por

votação unânime julgou procedente a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito

Fundamental) n.º 132 e a ADI (Ação Direita de Inconstitucionalidade) n.º 4277, com eficácia

45 LÔBO, Paulo. Famílias. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 12. 46 MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 102. 47 MARIN, Jeferson Dytz. Direitos fundamentais e democratização do afeto: uma incursão pelo princípio da livre orientação sexual. In: MINHOTO, Antonio (Org.). Constituição, minorias e inclusão social. São Paulo: Rideel, 2009, p. 280. 48 GIRARDI, Viviane. Famílias contemporâneas, filiação e afeto: a possibilidade jurídica da adoção por homossexuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 23-24. 49 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, v. 5, p. 13.

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erga omnes e efeito vinculante, atribuindo às uniões homoafetivas as mesmas regras e

consequências da união estável heteroafetiva50.

A referida decisão do Supremo Tribunal Federal, no entanto, não deixou clara a

possibilidade de conversão da união estável em casamento de modo que a Quarta Turma do

Superior Tribunal de Justiça acabou por se manifestar no sentido de inexistência de vedação

expressa para que se habilitem para o casamento pessoas do mesmo sexo51. A linha de

raciocínio adotada pela Quarta Turma do STJ foi a de que a dignidade da pessoa humana,

consagrada pela Constituição, não é aumentada nem diminuída em razão do uso da

sexualidade, e que a orientação sexual não pode servir de pretexto para excluir famílias da

proteção jurídica representada pelo casamento.

Maria Berenice Dias, forte defensora do posicionamento adotado pelo Supremo

Tribunal Federal já previamente considerava que “um Estado que se intitula Democrático de

Direito não pode desrespeitar seus princípios fundamentais, devendo assegurar a realização

das garantias, direitos e liberdades que consagra, sob pena de comprometer sua própria

soberania”52.

O cenário de ampliação do conceito de família instiga discussão acerca da

viabilidade de reconhecimento das denominadas Uniões Poliafetivas, polêmica que tomou

novas proporções depois que uma cartorária da cidade de Tupã, interior do estado de São

Paulo, lavrou uma escritura “regularizando” a situação de um homem e duas mulheres que já

viviam juntos há três anos na mesma casa. E, no mundo da ficção, a novela Avenida Brasil, da

emissora Globo retratou a convivência de um homem e suas três esposas e uma mulher e seus

dois maridos.

Os novos rumos adotados pelo Direito de Família, a ampliação do conceito de

família, a valorização do afeto, o respeito à dignidade de cada um dos membros da instituição

familiar, além do recente posicionamento do Supremo Tribunal Federal e do Superior

Tribunal de Justiça no tocante às Uniões Homoafetivas, podem constituir fortes fundamentos

50 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 4.277/DF, originária da Ação Declaratória de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), sob n.º 132-RJ. Plenário. Rel. Min Ayres Brito. Brasília, DF, 05 maio 2011. DJe nº 198, de 14 out. 2011. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635>. Acesso em: 25 out. 2012. 51 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.183.378/RS. Rel. Min. Luiz Felipe Salomão. Brasília, DF, 25 out. 2011. DJe de 01 fev. 2012. Disponível em: < https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=201000366638&dt_publicacao=01/02/2012>. Acesso em: 25 out. 2012. 52 DIAS, Maria Berenice. União homoafetiva: o preconceito e a justiça. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 94.

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que justifiquem a possibilidade de reconhecimento de “novas” uniões, considerando-se o livre

exercício da sexualidade como integrante da condição humana53.

Tendo em consideração o fato do Poder Judiciário ainda não ter se posicionado

acerca do tema, existem posicionamentos jurídicos contrários e favoráveis com os mais

diversos fundamentos. No entanto, a questão envolve inúmeras consequências e

desdobramentos pelo que obriga reforçada cautela em seu tratamento.

5 DAS UNIÕES POLIAFETIVAS

Em decorrência da novidade do tema, se torna tarefa difícil, se não impossível,

encontrar uma definição para as novas uniões apresentadas. Entretanto, em busca de uma

possível significação para as nominadas Uniões Poliafetivas sem fazer muito esforço, é

plausível se chegar a uma tradução próxima à “uniões decorrentes de muitos, vários afetos”.

Quando se adentra na seara de análise do reconhecimento e tutela de novas práticas e

condutas dos indivíduos, como no presente caso as Uniões Poliafetivas, chama atenção, a

necessidade de se reconhecer a importância revelada com o movimento de fortificação da

intervenção estatal, momento em que o Estado se deparou obrigado a tutelar as diversas

condutas individuais em nome da consagração do princípio da igualdade – especificamente

uma igualdade material - e das liberdades ditas positivas, além de uma notável ampliação na

forma de se interpretar a eficácia dos direitos fundamentais, direitos da personalidade e até

mesmo se reconhecer a dignidade da pessoa humana. Entretanto, neste cenário, também é

preciso aceitar a necessidade de cautela e considerar que justamente em nome da coletividade,

determinados anseios individuais, particulares por vezes requerem limites.

O cerne da questão que circunda as denominadas Uniões Poliafetivas repousa

justamente no fato de constituírem uma realidade no cenário atual, gerando assim uma

contradição entre reconhecê-las enquanto instituição familiar e aceitá-las como parte

53 Em seu voto na Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 4.277/DF, originária da Ação Declaratória de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), sob n.º 132-RJ, o Ministro Luiz Fux consignou que: “O que faz uma família é, sobretudo, o amor – não a mera afeição entre os indivíduos, mas o verdadeiro amor familiar, que estabelece relações de afeto, assistência e suporte recíprocos entre os integrantes do grupo. O que faz uma família é a comunhão, a existência de um projeto coletivo, permanente e duradouro de vida em comum. O que faz uma família é a identidade, a certeza de seus integrantes quanto à existência de um vínculo inquebrantável que os une e que os identifica uns perante os outros e cada um deles perante a sociedade. Presentes esses três requisitos, tem-se uma família, incidindo, com isso, a respectiva proteção constitucional”. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 4.277/DF, originária da Ação Declaratória de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), sob n.º 132-RJ. Plenário. Rel. Min Ayres Brito. Brasília, DF, 05 maio 2011. DJe nº 198, de 14 out. 2011. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635>. Acesso em: 25 out. 2012.

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integrante dos novos modelos de família - como a exemplo da família monoparental e família

homoafetiva -, com fundamento maior em preceitos como o afeto e a igualdade ou, negá-las

reconhecimento com embasamento no fato de que o Estado não está obrigado a tutelar toda e

qualquer conduta humana, tendo em vista principalmente a ofensa aos padrões monogâmicos

da sociedade ocidental além do que o ordenamento interno, as normas positivadas não

oferecem subsídios para reconhecimento das uniões.

Faz-se necessário reconhecer que tratam-se de pessoas que, por algum motivo, se

reúnem ou reuniram formando um núcleo poliafetivo e que estariam a mercê do que

construíram, em seu próprio nome, no curso da vida em comum, sem perspectiva por exemplo

no tocante a benefícios previdenciários ou até mesmo efeitos sucessórios pelo falecimento do

companheiro.

A realidade das Uniões Poliafetivas precisa de algum modo ser observada e

enfrentada pelo Estado, e justamente neste sentido Ronald Dworkin dispõe que: O argumento deste livro – a resposta que oferece ao desafio da consideração igualitária – é dominado por dois princípios agindo em conjunto. O primeiro princípio requer que o governo adote leis e políticas que garantam que o destino de seus cidadãos, contanto que o governo consiga atingir tal meta, não dependa de quem eles sejam – seu histórico econômico, sexo, raça ou determinado conjunto de especializações ou deficiências. O segundo princípio exige que o governo se empenhe, novamente se o conseguir, por tornar o destino dos cidadãos sensível às opções que fizeram.54

Na luta por reconhecimento às Uniões ora discutidas, certamente a regulamentação

legal seria o caminho que conferiria maior segurança a esta realidade. Como a exemplo do

que observou-se com as famílias monoparentais (previstas no art. 226, §4º da Constituição

Federal). Todavia, é necessário reconhecer e valorizar o atual estágio do ativismo judicial,

decorrente da morosidade legislativa, que leva a interpretações como a recentemente assistida

no que diz respeito às Uniões Homoafetivas.

As Uniões Poliafetivas se apresentam como resultado de um caminho aberto e

pluralizado. É claro que se mostra um desafio tratar de tal assunto, todavia, o que se defende é

que o Estado não pode fechar os olhos às realidades existentes, realidades estas complexas e

vivenciadas por pessoas dotadas de liberdade, capacidade, autonomia e principalmente

dignidade, e que não podem serem deixadas de lado, como se formassem – a espelho da

Revolução Francesa – burgos de uma sociedade pós-moderna.

54 DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: teoria e prática da igualdade. Traduzido por Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. XVII.

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5.1 Da escritura pública declaratória de união estável poliafetiva

Desde a notícia de lavratura da escritura pública declaratória de união estável

poliafetiva por uma tabeliã da cidade de Tupã, interior de São Paulo, diversos escritos tem

sido lançados negando juridicidade à escritura, com fundamento de que esta se apresenta

contrária ao ordenamento jurídico pela consideração de que a família brasileira teria natureza

monogâmica.

Antes de elencar os posicionamentos acerca das Uniões Poliafetivas, é mister

destacar a fundamentação trazida pela cartorária que protagonizou a lavratura da escritura. A

responsável pelo documento considera que não se trata de um casamento eis que, civilmente

são pessoas solteiras. Entende não passar de um contrato entre três pessoas, não existindo

proibição expressa na Lei de uma união estável55 envolvendo mais de duas pessoas,

advertindo que para o Direito Privado, para as pessoas, aquilo que não é proibido lhes é

permitido56.

Em síntese o que pretende a cartorária é atribuir os efeitos da união estável ao

relacionamento do trio protagonista da escritura, como forma de garantir igualdade aos que

fazem parte dessa estrutura relacional, já que a lei é omissa, não prevê expressamente a

possibilidade dessa união, ao passo que restringe a união estável ao homem e a mulher, mas

também não a proíbe expressamente.

5.2 Do ordenamento jurídico pátrio – normas positivadas

Primeiramente, cumpre ressaltar que, defender a tutela, a proteção e reconhecimento

das Uniões Poliafetivas, não significa afirmar a viabilidade de sua consagração diante da

normativa, da positivação observada na atualidade, eis que esta quando interpretada em sua

literalidade faz expressa menção a homem e mulher. O que se busca é que de alguma forma –

ao menos – haja reconhecimento das escolhas pessoais e que se apresente o consequente

resultado jurídico dessa escolha, protegendo os direitos daqueles que contribuíram para uma

vida em comum, a partir de um único núcleo familiar, estruturado a partir de uma relação

poliafetiva, não menos digna de respeito que os demais modelos de família. 55 Sem a pretensão de emitir juízo de valor, no que diz respeito à união estável, impende consignar que a Constituição Federal em seu art. 226, §3º expressamente reconheceu a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. 56Disponível em: <http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,MUL1681623-15605,00-CADINHOS+DA+VIDA+REAL+BUSCAM+RECONHECIMENTO+DE+RELACOES+POLIAFETIVAS.html> . Acesso em 25 out. 2012.

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No que diz respeito à União Estável, tem-se que com a Constituição Federal de 1988,

mais especificamente no art. 226, parágrafo terceiro, esta fora consagrada expressamente

como forma de família57. Apesar do texto constitucional não contar com expressa vedação à

união poliafetiva, assim como não o faz com a união homoafetiva, o fato é que o supracitado

dispositivo legal, em que pese o evidente caráter protetivo da instituição familiar, dispõe que

“para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher

como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Nesta mesma

linha, o parágrafo quinto do mesmo dispositivo legal consigna que os direitos e deveres

referentes à sociedade conjugal, são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.

O Código Civil, em seu Livro IV destinado ao Direito de Família, por sua vez,

também expressamente faz menção ao homem e a mulher, como a exemplo do observado nos

arts. 1.51458, 1.51759 e 1.723, onde assinala o reconhecimento como entidade familiar à união

estável entre o homem e a mulher, esta configurada na convivência pública, contínua e

duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.

Portanto, importante registrar que o que se defende é a tutela às pessoas envolvidas

na relação poliafetiva, fruto de uma sociedade globalizada, dinâmica e cada vez mais

complexa. Enquanto seres dotados de dignidade, liberdade merecem um olhar, uma proteção,

embora se reconheça que de acordo com o direito positivo, voltado para o reconhecimento

entre homem e mulher, apresenta-se inviável uma flexão de número ainda que a flexão de

gênero já tenha sido viabilizada com o reconhecimentos das uniões homoafetivas pelo Poder

Judiciário.

5.3 Do crime de bigamia

Quando se busca uma análise prática da questão envolvendo as Uniões Poliafetivas,

não é difícil presumir uma associação com o crime de bigamia e ainda mais com um formato

não tipificado, mas igualmente polêmico que é a poligamia. Essa relação poderia ser invocada

como argumento para apontar as uniões aqui discutidas como crime.

57 Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. 58 Art. 1.514. O casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados. 59 Art. 1.517. O homem e a mulher com dezesseis anos podem casar, exigindo-se autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil. Parágrafo único. Se houver divergência entre os pais, aplica-se o disposto no parágrafo único do art. 1.631.

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Em comentário ao posicionamento da cartorária60 na mesma reportagem veiculada

pela emissora Globo em que se manifestou a autora do documento, o advogado Pedro

Gasparini adentrando na questão da terminologia envolta às Uniões Poliafetivas, contribui

com a informação de que o caso não se confunde com poligamia61 eis que a poligamia se

relaciona com o instituto do casamento62.

No que diz respeito à bigamia, o Código Penal em seu art. 235, a tipifica prevendo

pena de 2 (dois) a 6 (seis) anos de reclusão para aquele que contrair, sendo casado, novo

casamento. Em comentário ao referido dispositivo do Código Penal, Rogério Greco adverte:

Uma vez adotada pelo Estado a monogamia, torna-se impossível que alguém, desprezando as determinações legais e sociais, contraia um segundo matrimônio. A conduta afeta, de tal modo, a paz social que o legislador entendeu por bem tipificá-la, criando o delito de bigamia [...]63.

E segue defendendo que “embora o tipo penal do art. 235 preveja o delito de

bigamia, será possível, também, a ocorrência da chamada poligamia, tendo o agente se casado

mais de uma vez depois de seu primeiro matrimônio”64.

Entretanto, vale consignar que o texto legal é claro, o que é vedado pelo

ordenamento jurídico interno é a pessoa já sendo casada, contrair novo casamento. No caso

das Uniões aqui defendidas o que ocorre é uma única união entre três ou mais pessoas. Em

um único ato, único elo, essas pessoas se unem, inexistindo impedimento prévio a qualquer

uma delas, pelo que se acredita que não se confundem com a bigamia ou até mesmo a

poligamia.

60Disponível em: <http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,MUL1681623-15605,00-CADINHOS+DA+VIDA+REAL+BUSCAM+RECONHECIMENTO+DE+RELACOES+POLIAFETIVAS.html> . Acesso em 25 out. 2012. 61 Acerca da poligamia, a Revista VEJA em 25 de janeiro de 2012 traz a seguinte nota: “É a união reprodutiva entre mais de dois indivíduos de uma mesma espécie. Entre os humanos, já foi a regra. O Velho Testamento faz várias referências ao assunto. O personagem Jacó, por exemplo, teve duas esposas e 12 filhos, que teriam dado origem às doze tribos de Israel. Ainda é praticada no Oriente Médio e em partes da África e da Ásia, além dos Estados Unidos, onde seitas fundamentalistas, não reconhecidas pela organização principal da religião mórmon, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, permitem o casamento poligâmico. Regulamentada pelo Alcorão, é relativamente comum no mundo islâmico, apesar de estar perdendo adesão. O profeta Maomé chegou a ter 16 esposas, mas hoje o permitido são, no máximo, quatro. Foi proibida no Nepal em 1963, na Índia, parcialmente, em 1955, na China em 1953 e, no Japão, em 1880. Nunca foi permitida no Brasil”. Revista Veja. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/noticia/ciencia/poligamia-gera-sociedades-violentas-afirma-pesquisa>. Acesso em: 25 out. 2012. 62 Epistemologicamente poligamia significa “estado do homem casado ao mesmo tempo com diversas mulheres, ou da mulher casada ao mesmo tempo com diversos homens”. NETTO, José Oliveira. Dicionário Jurídico Universitário: terminologia jurídica e latim forense. 4. ed. Leme: EDIJUR, 2010, p. 430. 63 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial v. 3. 4. ed. Niterói: Impetus, 2007, p. 619. 64 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial v.3. 4. ed. Niterói: Impetus, 2007, p. 625.

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5.4 Argumentos contrários ao reconhecimento das Uniões Poliafetivas

Dentre aqueles que se posicionam contrariamente aos ditames poligâmicos, o

respeito à monogamia é tido como fundamento maior.

Como se sabe, nesta seara de estudo, a imprecisão terminológica não é incomum, no

entanto, por vezes tamanha relevância é atribuída à monogamia que Rodrigo da Cunha Pereira

chega a registrar que:

O princípio da monogamia, embora funcione também como um ponto-chave das conexões morais das relações amorosas e conjugais, não é simplesmente uma norma moral ou moralizante. Sua existência nos ordenamentos jurídicos que o adotam tem a função de um princípio jurídico ordenador. Ele é um princípio básico e organizador das relações jurídicas da família do mundo ocidental65.

Acredita-se que o pluralismo familiar reconhecido pela Constituição Federal e pelo

Poder Judiciário, viabilizando arranjos familiares multifacetados aptos à constituição do

núcleo família não significa afastar de sua natureza monogâmica66. Ou seja, defende-se que as

múltiplas formas de família reconhecidas e defendidas na atualidade não constituem

fundamento suficiente para viabilizar o reconhecimento de uniões que fugiriam a um padrão

monogâmico.

Entende-se que “da análise quanto à possibilidade de estabelecer limites aos direitos

humanos, provavelmente será possível extrair uma fundamentação para a legitimação ou não

da poligamia em nosso ordenamento jurídico”67. E, desta forma, utilizando-se do

posicionamento de Gustavo Zagrebelsky, tem-se como resposta que os direitos humanos são

intrinsecamente ilimitados porém com a implicação de uma potencial e necessária limitação

quando extrinsecamente considerados68. Neste sentido, acerca dos limites considera-se que

estes dizem respeito “[...] não apenas a restrição por expressa disposição normativa, mas

65 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 127. 66 OTERO, Cleber Sanfelici; SILVA, Nilson Tadeu Reis Campos. Direitos fundamentais e justiça têm limites? Poligamia e a questão da publicização do privado. In SIQUEIRA, Dirceu Pereira; AMARAL, Sérgio Tibiriçá. (org.) Direitos humanos: um olhar sob o viés da inclusão social. Birigüi: Boreal, 2012, p. 99. 67 OTERO, Cleber Sanfelici; SILVA, Nilson Tadeu Reis Campos. Direitos fundamentais e justiça têm limites? Poligamia e a questão da publicização do privado. In SIQUEIRA, Dirceu Pereira; AMARAL, Sérgio Tibiriçá. (org.) Direitos humanos: um olhar sob o viés da inclusão social. Birigüi: Boreal, 2012, p. 99. 68 ZAGREBELSKY apud OTERO, Cleber Sanfelici; SILVA, Nilson Tadeu Reis Campos. Direitos fundamentais e justiça têm limites? Poligamia e a questão da publicização do privado. In SIQUEIRA, Dirceu Pereira; AMARAL, Sérgio Tibiriçá. (org.) Direitos humanos: um olhar sob o viés da inclusão social. Birigüi: Boreal, 2012.

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sobretudo, à tábua axiológica adotada pela Constituição Federal de 1988, que, antes de

fragilizar aqueles direitos, fortalece-os em substância”69.

Admitida assim a limitação dos direitos, entendendo pela prevalência do padrão

monogâmico da sociedade ocidental acredita-se que o Estado não deve se responsabilizar pela

tutela de toda forma de vontade e manifestação das pessoas, como no caso em que se pretende

a proteção de um sistema poligâmico, onde por certo consideram incluídas as Uniões

Poliafetivas.

5.5 Em defesa de uma tutela pessoal acerca daqueles que vivem em Uniões Poliafetivas:

uma questão de Acesso à Justiça

Doutrinariamente, representando posicionamento favorável ao reconhecimento das

Uniões Poliafetivas70, Maria Berenice Dias considera que “temos que respeitar a natureza

privada dos relacionamentos e aprender a viver nessa sociedade plural reconhecendo os

diferentes desejos”71. Desse modo, ainda que em defesa de vertente aparentemente minoritária

consigna que:

O princípio da monogamia não está na constituição, é um viés cultural. O código civil proíbe apenas casamento entre pessoas casadas, o que não é o caso. Essas pessoas trabalham, contribuem e, por isso, devem ter seus direitos garantidos. A justiça não pode chancelar a injustiça72.

Entende-se neste momento, que a argumentação do Superior Tribunal de Justiça,

quando da análise das Uniões Homoafetivas no sentido de que, a dignidade da pessoa

humana, consagrada pela Constituição não é aumentada nem diminuída em razão da

sexualidade, pode perfeitamente ser estendida em defesa das uniões aqui comentadas. 69 OTERO, Cleber Sanfelici; SILVA, Nilson Tadeu Reis Campos.. Direitos fundamentais e justiça têm limites? Poligamia e a questão da publicização do privado. In SIQUEIRA, Dirceu Pereira; AMARAL, Sérgio Tibiriçá. (org.) Direitos humanos: um olhar sob o viés da inclusão social. Birigüi, SP: Boreal, 2012. 70 Também defensor do reconhecimento das Uniões Poliafetivas está Paulo Roberto Iotti Vecchiatti argumentando que: “Em suma, a despeito de jurisprudência contrária do STJ e do STF à possibilidade jurídica de uniões estáveis paralelas (que diferem das poliafetivas, que não são “paralelas”, pois formam uma única união), a família conjugal poliafetiva que não gere opressão a nenhum de seus integrantes deve ser reconhecida e protegida pelo Estado Brasileiro, por força do princípio da pluralidade de entidades familiares oriundo da interpretação do caput do art. 226 da CF/88 e da ausência de motivação lógico-racional que justifique a negativa de reconhecimento à mesma (isonomia), o que deve ensejar, inclusive, a declaração da inconstitucionalidade do crime de bigamia e do impedimento matrimonial ao casamento civil com pessoa já casada (quando isto seja de plena concordância do outro cônjuge, claro) – argumentos estes que, ao que me consta, ainda não foram considerados pelo STJ e pelo STF”. Disponível em: < http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,uniao-estavel-poliafetiva-breves-consideracoes-sobre-sua-constitucionalidade,40126.html>. Acesso em 26 out. 2012. 71 Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/novosite/imprensa/noticias-do-ibdfam/detalhe/4862 72 http://www.ibdfam.org.br/novosite/imprensa/noticias-do-ibdfam/detalhe/4862>. Acesso em: 26 out. 2012

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Em abordagem acerca das Uniões Homoafetivas, Luís Roberto Barroso compreende

que:

Em relação à autonomia, o casamento entre pessoas do mesmo sexo envolve dois adultos que escolhem, sem manipulação ou coerção, como exercer seu afeto e sua sexualidade. Não há qualquer violação à autonomia de qualquer outra pessoa nem dano a terceiros que possam justificar a proibição. Finalmente, no plano do valor comunitário, não se pode deixar de reconhecer que numerosos segmentos as sociedade civil, particularmente grupos religiosos, desaprovam a conduta homossexual e o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Mas negar o direito de casais homossexuais se casarem seria uma restrição injustificada sobre sua autonomia, em nome de um moralismo impróprio ou da tirania da maioria. Em primeiro lugar, há um direito fundamental envolvido, seja o direito à igualdade ou à privacidade (liberdade de escolha). Mesmo se assim não fosse, o fato inegável é que não há danos a terceiros ou à própria pessoa para serem levados em conta73.

Admite-se que toda pessoa tem o direito de se posicionar contrariamente à união

homoafetiva e tentar convencer os outros de que a sua opinião é correta, o que não significa

defender que o Estado não reconheça um exercício legítimo da autonomia pessoal de cidadãos

livres e iguais74. A autonomia da vontade, interpretada em seu viés de direito fundamental,

constitui um dos componentes essenciais da proteção à liberdade tutelada constitucionalmente

aos indivíduos75.

Acredita-se que antes de se observar o envolto da união ali estabelecida, é preciso

partir da premissa de que se trata de pessoas e como tais, dotadas de capacidade, liberdade,

autonomia e principalmente de dignidade. Se a pouco discutia-se a questão da

homoafetividade, levantando valores como o afeto, a dignidade da pessoa humana, a

igualdade formal, autonomia da vontade, por que não estendê-los à análise das Uniões

Poliafetivas. Na tratativas do tema, famílias simultâneas, Letícia Ferrarini bem adverte que

“qualquer ‘família’, pois, que seja instrumento de realização de seus membros, está protegida

pelo comando constitucional. A família não será protegida pelo seu nome, mas pelo seu

conteúdo”76.

73 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte, Fórum, 2013, p. 105-106. 74 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte, Fórum, 2013, p. 106. 75 PIRES, Eduardo; REIS, Jorge Renato dos. Autonomia da vontade: um princípio fundamental do direito privado como base para instauração e funcionamento da arbitragem. In: CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI, 19., 2010, Fortaleza, CE. Anais... Florianópolis: Fundação Boiteux, 2010, p. 8244-8255. 76 FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos: pedaços da realidade em busca da dignidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010, p. 100.

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Mais uma vez em comentário acerca do tema Maria Berenice Dias apresenta

contribuição no sentido de que:

A Constituição, ao instaurar o regime democrático, revelou enorme preocupação em banir discriminações de qualquer ordem, deferindo à igualdade e à liberdade especial atenção. Esses princípios, no âmbito familiar, são consagrados em sede constitucional. Todos têm a liberdade de escolher o seu par, seja do sexo que for, bem como o tipo de entidade que quiser para constituir sua família77.

Se o papel da família na atualidade é proporcionar o desenvolvimento pleno de cada

um de seus membros, com observância à dignidade da pessoa humana e fundamento maior no

afeto, sem qualquer vinculação obrigatória a laços consanguíneos ou até mesmo matrimoniais,

defende-se que com base nos valores vigentes na sociedade atual, àquele agrupamento de

pessoas em que se desenvolva o afeto e os seus membros assim os reconheçam e desejam ser

reconhecidos, é preciso ser atribuído o status de família. Tal assertiva não significa a defesa

de uma interpretação contra legem e sim uma proposta de tutela a partir da alteração no texto

legal.

Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, em defesa da vontade, da

dignidade e interesse dos conviventes argumentam que “embora a fidelidade (e a monogamia,

por consequência) seja consagrada como um valor juridicamente tutelado, não se trata de um

aspecto comportamental absoluto e inalterável pela vontade das partes”78. Complementando

no sentido de que:

[...] preferimos simplesmente encarar a monogamia como uma nota característica do nosso sistema, e não como um princípio, porquanto, dada a forte carga normativa desse último conceito, é preferível evitá-lo, mormente em se considerando as peculiaridades culturais de cada sociedade.

Acerca da monogamia, Letícia Ferrarini em sua obra Famílias simultâneas e seus

efeitos jurídicos preleciona que “trata-se a monogamia de uma característica histórica-

sociológica reconhecida como padrão médio da família ocidental”79. E que assim, “embora

não tenha sido alçada expressamente na Constituição Federal, arquitetou-se como verdadeiro

77 DIAS, Maria Berenice. União homoafetiva: o preconceito e a justiça. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 64. 78 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de Direito Civil. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012, v. 6, p. 107-108. 79 FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos: pedaços da realidade em busca da dignidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010, p. 92.

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axioma pela doutrina, encontrando guarida na legislação infraconstitucional e na sociedade,

cuja orientação é judaico-cristã”80. Entretanto, acredita-se que a caracterização de um Estado

laico não comporta um fundamento baseado em preceitos unicamente religiosos. No atual

estágio de desenvolvimento da sociedade, não diminuindo a indiscutível influência da religião

e da moral ocidental também no Direito, é preciso que se encare a realidade como ela é, com

as consequências de um mundo globalizado, dinâmico e cada vez mais complexo sob pena de,

a depender do caso concreto se afrontar a dignidade das pessoas envolvidas.

A Constituição Federal, em seu art. 5º, VI, estabelece que o direito de crença é um

direito fundamental; neste viés, qual a resposta de um Estado Democrático de Direito em uma

era assumidamente globalizada, às famílias mulçumanas que professarem a fé islâmica,

entendendo que a poliafetividade é um permissivo religioso e se encontra dentro do código

moral de sua vertente filosófica? Estaria então o Estado legitimado a desrespeitar o direito

fundamental à liberdade religiosa ao reconhecimento a uma família instituída sobre os moldes

familiares islâmicos? Neste sentido evidencia-se que o argumento da monogamia como

fundamento da formação do Estado é decorrente de um viés cultural, o que não se sustenta

como motivo para excluir a tutela jurisdicional sobre as entidades formadas com base no

afeto, conhecida por todos, entre três ou mais pessoas.

Entende-se que a resposta do Estado para situações como a discorrida neste artigo

nada mais é do que a concessão de acesso à justiça a todas as pessoas, as quais possuem

autonomia de vontade. A esse respeito José Roberto dos Santos Bedaque aponta que:

Acesso a Justiça ou mais propriamente acesso à ordem jurídica justa significa proporcionar a todos, sem qualquer restrição, o direito de pleitear a tutela jurisdicional do Estado e de ter à disposição o meio constitucionalmente previsto para alcançar a esse resultado. [...] é o processo modelado em conformidade com as garantias fundamentais [...].81

Ter acesso a justiça é proporcionar o real sentido e alcance dos direitos

fundamentais82, observando preceitos de dignidade, liberdade e de igualdade. Não haveria

valor a um sistema jurídico que contemple um rol de direitos fundamentais quando se

apontam escusas para sua observância. Note-se o relevante apontamento: 80 FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos: pedaços da realidade em busca da dignidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010, p. 92. 81 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência. São Paulo: Malheiros, 2009, p.71. 82 GALLASSI, Almir. O acesso a justiça como garantia dos direitos fundamentais das minorias sociais. In: OLIVEIRA, Flávio Luis de; SIQUEIRA, Dirceu Pereira (Org.). Acesso à justiça: uma perspectiva da democratização da administração da justiça nas dimensões social, política e econômica. Birigui: Boreal, 2012, p.6.

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A expressão ‘acesso à Justiça’ é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos.83

Neste quadrante, a ideia de uma justiça social pressupõe o acesso efetivo, no sentido

de que a adequação do processo ao direito material demanda que seja analisado como técnica

destinada à promoção dos direitos fundamentais e da personalidade, promovendo-se o sentido

axiológico do direito.

Relativamente à axiologia, esta pode ser conceituada como o estudo dos valores, e

valor é aquilo que tem sentido, significado, apreço e estima. Cada ser humano possui em seu

interior valores, cujos princípios o norteiam como ponto de partida para o seu comportamento

e para o seu desenvolvimento.84

O ser humano possui em seu interior diversos valores, sendo que estes compõem a

sua personalidade. Cada homem é guiado em sua existência pelo primado de determinado

valor, pela supremacia de um foco de estimativa que dá sentido a sua concepção da vida.85

Assim como existe necessidade de importar com as escolhas e com os valores que cada um

possui, é igualmente importante aceitar o fato de que alguns valores mudam, neste sentido

note-se a fala de Miguel Reale:

Os valores não são, por conseguinte, objetos ideais, modelos estáticos segundo os quais iriam se desenvolvendo, de maneira reflexa, as nossas valorações, mas se inserem antes em nossa experiência histórica, irmanando-se com ela. Entre valor e realidade não há um abismo, porque entre ambos existe um nexo de polaridade e de implicação, de tal modo que a historia não teria sentido sem o valor, seria inexistente um valor que jamais se convertesse em um momento da realidade.86

O reconhecimento e a tutela das pessoas, enquanto conviventes em uma relação

poliafetiva não pode ser negado com fundamento na necessidade de limites à publicização do

privado, prevalência absoluta da monogamia ou até mesmo por incompatibilidade com o

83 CAPPELLETTI, Mauro; Garth, Bryant, apud MARTINS, Daniela Dias Graciotto. In: OLIVEIRA, Flávio Luis de; SIQUEIRA, Dirceu Pereira (Org.). Acesso à justiça: uma perspectiva da democratização da administração da justiça nas dimensões social, política e econômica. Birigui: Boreal, 2012, p. 91. 84 FERMENTÃO, Cleide Aparecida Gomes Rodrigues. Direito e axiologia – o valor da pessoa humana como fundamento para os direitos da personalidade. Revista Jurídica Cesumar, v. 7, n. 1, 2007, p. 59. 85 FERMENTÃO, Cleide Aparecida Gomes Rodrigues; SILVA, Camila Viríssimo Rodrigues da. A tutela dos valores interiores e da consciência humana pelo direito da personalidade. Revista Jurídica Cesumar, v. 11, n. 2, 2011, p. 618. 86 REALE, Miguel. Filosofia do direito. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 207.

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sistema normativo. Necessário se faz a outorga de uma tutela específica, com observância aos

preceitos de acesso à justiça, a partir do reconhecimento jurídico da sociedade plural hoje

vivenciada, das especificidades das pessoas, suas diferenças, promovendo a tolerância e o

respeito como forma de gerar e perpetuar a almejada sociedade prevista no preâmbulo da

Constituição Federal87.

CONCLUSÃO

O Direito possui papel determinante na organização das sociedades, devendo

acompanhar e responder aos avanços sociais e culturais que estão atrelados ao próprio

desenvolvimento humano. A perspectiva jurídica da idade média não se confunde com a do

início do século XX, nem tampouco com a atual, embora todas estejam, em tese, pautadas por

um padrão ético comum.

O sistema normativo evoluiu de maneira visível na passagem do Estado Liberal para

o Estado Social, a ideia do Público completamente apartado do Privado em respeito à

liberdade e autonomia deu lugar à quebra de barreiras e assim um forte movimento de

constitucionalização do Direito, publicização do privado e privatização do público passou a se

instaurar. O Estado passou a olhar e intervir também nas relações privadas, em busca de uma

igualdade material, liberdade agora positiva, respeito aos direito fundamentais e da

personalidade e principalmente consagração da dignidade da pessoa humana.

Os mandamentos de acesso à justiça passaram a orientar o que se entende por uma

prestação jurisdicional justa, a qual proporcione a todos o direito a pleitear a tutela jurídica do

Estado e de ter à disposição o meio constitucionalmente previsto para alcançar o resultado.

Nesse contexto o Direito de Família, assim como os demais ramos do Direito, foi

inundado por princípios constitucionais. O conceito de família fora ampliado, desenrolando-se

identificações de núcleos familiares distintos do tradicional a partir do reconhecimento do

amor e do afeto como valor juridicamente mensurável.

Na atualidade, o afeto se tornou o grande fundamento nas decisões envolvendo

Direito de Família tanto o é que, após a grande evolução no reconhecimento e valoração da

87 “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 15. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

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união estável, do reconhecimento da família monoparental, recentemente atribuiu-se às uniões

homoafetivas as mesmas regras e consequências da união estável heteroafetiva.

Considerando os recentes posicionamentos dos Tribunais Superiores, conclui-se que

a relevância das normas de direito interno e o viés cultural ocidental da monogamia não mais

podem ser interpretados de forma absoluta, sem a observância da tutela específica das pessoas

que formam um dos requisitos do Estado (povo), as quais, independentemente de se

aglutinarem em um núcleo familiar diverso do tradicional possuem sua dignidade e o direito

subjetivo de exigir do Estado o acesso aos mecanismos jurídicos para o estabelecimento do

justo.

Não se pode fechar os olhos às realidades culturais diversas do contexto ocidental, a

ponto de ignorar qualquer tipo de regulamentação ou tutela. São pessoas que construíram uma

vida em comum, cuja proteção por parte do Estado será diferida, o que afronta princípios

constitucionais básicos do Estado autodeclarado democrático de Direito.

O Estado não pode chancelar a injustiça, ignorando as realidades sociais,

simplesmente por fugirem dos padrões pré-estabelecidos. A família atual é tida como núcleo

capaz de proporcionar afeto, amor e desenvolvimento sadio a cada um dos seus membros e

por isso se acredita que àquele núcleo capaz de instrumentalizar tais características é preciso

sim atribuir o caráter de família, com as consequências jurídicas que isso implicar.

Admite-se e defende-se que o caminho mais acertado e que conferiria maior

segurança a esta realidade é por certo a via legislativa, como se observou com o

reconhecimento da família monoparental e família decorrente de união estável. No entanto,

reconhece-se o atual estágio de necessária influência do ativismo judicial decorrente da

morosidade legislativa, que resulta em interpretações como a recentemente assistida no

tocante às Uniões Homoafetivas.

REFERÊNCIAS

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DIREITO À CONTINUIDADE DO TRATAMENTO MÉDICO EM CASO DE

DESLIGAMENTO DO PROFISSIONAL JUNTO AO PLANO DE SAÚDE

CONTINUITY OF THE RIGHT TO MEDICAL TREATMENT IN CASE OF

TURNING OFF THE PROFESSIONAL WITH THE HEALTH PLAN

Antônio Carlos Efing1

Silvio Alexandre Fazolli2

RESUMO

Cuida o presente estudo de analisar hipótese não albergada especificamente pela legislação de regência, consistente na (im)possibilidade de substituição do médico credenciado a plano de saúde mantido pelo consumidor, com enfoque para o desligamento do profissional durante a realização de tratamento de saúde. Com base nos princípios que oferecem adequada proteção constitucional aos direitos do consumidor, serão investigadas as possibilidades em torno do tema, considerando, para tanto, a resilição unilateral do credenciamento por determinação do plano de saúde e os fatores capazes de infirmar a legalidade de tal comportamento, bem como o pedido de desvinculação oriundo do próprio médico conveniado ao plano.

PALAVRAS CHAVE: Consumidor – plano de saúde – descredenciamento – continuidade de tratamento

ABSTRACT

Take care of the present study did not examine hypothesis specifically accommodated by current law, namely the (im) possibility of substitution of the accredited medical health plan maintained by the consumer, with a focus on professional shutdown during the performance of health care. Based on the principles that offer adequate protection to the constitutional rights of the consumer, the possibilities will be investigated around the theme, considering, for both the unilateral termination of accreditation for determining the health plan and the factors that undermine the legality of such behavior as well as the request for termination originated from the doctor membership to plan.

KEYWORDS: Consumer - health care - accreditation - continuing treatment 1 Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP; Professor titular da Pontifícia Universidade Católica do Paraná-PUCPR, onde leciona na graduação, especializações, mestrado e doutorado; Professor do Estação Convention Center; Professor da Escola da Magistratura do Paraná; membro do Instituto dos Advogados do Paraná; Advogado militante em Curitiba/PR. 2 Doutorando em Direito Econômico e Socioambiental pela PUC/PR (linha de pesquisa Sociedades e Direito); Mestre em Tutela dos Direitos Transindividuais pela Universidade Estadual de Maringá – UEM; Professor efetivo da mesma instituição e docente junto à Pontifícia Universidade Católica do Paraná/Campus Maringá; Advogado militante em Maringá/PR.

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INTRODUÇÃO

Em um rápido passeio pelas principais mudanças evolutivas implementadas entre os

séculos XVI e XX, fruto do desenvolvimento humano e tecnológico, destacou Rui Barbosa

(2004, p. 35) em seu conhecido discurso aos neo-advogados, egressos da faculdade de Direito

do Largo da Ordem de São Francisco, o elevado número de questões das quais passaram a se

ocupar os estudiosos sociais.

Quase cem anos Mpós o texto que ficou conhecido como “orMção Mos moços”,

mostram-se ainda mais vivas as palavras de Rui, personificadas na atual sociedade massa, de

infindáveis necessidades supérfluas, articuladas por agentes de mercados. Os conflitos e

interesse tornaram-se abissais e difíceis de serem harmonizados sob a égide de um mesmo

ordenamento jurídico, sem que se tenha por pauta o respeito à dignidade humana, eleita pelo

texto constitucional vigente enquanto princípio matriz.

Conhecidos problemas que sempre assolMrMm M comunidade global, como “miséria”

e “fome”, por exemplo, embora não erradicados, dividem espaço com preocupações em torno

da “obesidade mórbida”, provocada por excessos alimentares (ABRAMOVAY, 2012, p. 22)

incentivados pela indústria dos fast foods. Esforços para a mantença da superprodutividade de

cultivares - oriunda, em grande parte, do desenvolvimento da transgenia e pesticidas -, aos

poucos, silenciam a natureza, deixando um legado de incertezas ao futuro da humanidade.

Água e ar já não são exemplos de res nullius, perfazendo-se, ao reverso, nas commoditys mais

disputadas por investidores.

Neste cenário de hesitação, consolida-se a prosopopeia hobbesiana do homo homini

lupus, na medida em que o homem perde sua capacidade e autossuficiência e passa a

depender de seus pares para a realização das necessidades mais básicas como alimentação e

moradia (EFING, 2011). O trabalho que transforma e realiza ideias também passa a escravizar

multidões, forjando promissoras expectativas de consumo que aparentam acalentar a alma

daquele que, inserido na era da informação, se vê perdido em meio à diversidade de ofertas.

GM necessidade de proteção deste “homem mínimo” (EFHNG, 2011), doravante

denominado “consumidor”, desprende-se o Direito de velhos dogmas e revisita a fórmula da

igualdade para o atingimento de normativas e entendimentos mais condizentes com a proteção

da dignidade humana, ameaçada pelos abusos praticados pela política do laissez faire – mola

propulsorM da “mão invisível” de Adam SmiPO.

Nesta seara de interesses consumeristas, vale destacar o significativo papel ocupado

pelas operadoras de plano de saúde que, diante das falhas das políticas públicas voltadas para

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este setor, ofertam (ou deveriam ofertar) tranquilidade aos usuários, os quais, em situações de

necessidade, estariam acobertados pelo tratamento médico necessário, sem maiores

dispêndios econômicos.

Tal contratação, todavia, abarca características muito peculiares ao envolver, na

mesma relação jurídica de trato sucessivo celebrada indistintamente com várias espécies de

consumidores, legítimas expectativas individualizadas de cada um destes em relação à

confiança esperada do plano de saúde, bem como do profissional médico que, efetivamente,

lhe prestará assistência para o caso da doença se sobressair em relação à saúde – “princípio da

gMrantiM do suprimento dMs necessidades do consumidor” (NUNES, 2011, p. 173).

Neste ínterim, se indaga acerca da possibilidade jurídica da operadora do plano de

saúde promover o descredenciamento do médico que, até então, vinha prescrevendo e

acompanhando evolução do tratamento para que o paciente/consumidor possa atingir a cura

da moléstia que o aflige. Ainda que forneça substituição compatível com a especificidade do

trabalho que estava sendo desenvolvido pelo profissional descredenciado, como fica a

legítima expectativa do consumidor, no que tange à confiança depositada no médico que,

periódica e pessoalmente, prescrevia todos os passos em direção ao restabelecimento de sua

saúde?

Mostra-se, assim, razoável o desenvolvimento de maiores estudos acerca da relação

jurídica firmada entre o consumidor e o plano de saúde, bem como do vínculo mantido por

aquele e o médico escolhido para acompanhar o procedimento em prol da plena recuperação,

já que a possibilidade de escolha do profissional é um dos elementos que caracterizam o

“seguro saúde” (FAVAIHERH FHIHO, 2010, p. 218).

1. A CONFIANÇA ENQUANTO OBJETO ESSENCIAL E IMPLÍCITO DAS

RELAÇÕES CONTRATUAIS

Considerando que a maioria dos contratos celebrados habitualmente traz a segurança

jurídica como a sua própria razão de existência, não seria estranho defender o dever das partes

em relação a certas práticas, ainda que não previstas de forma expressa pelo instrumento do

pacto. Assim, em especial nas avenças classificadas como comutativas, são comuns os

chamados deveres implícitos assumidos pelos contratantes, com vistas à preservação da

vontade declarada na ocasião da conclusão do negócio jurídico entabulado.

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O direito contratual contemporâneo abdicou das regras de aproveitamento que

historicamente favoreceram o contratante mais preparado, técnica e economicamente. Para tal

intento, no Código Civil de 2002 foram inseridos institutos protetores da boa-fé e da função

social dos contratos (Arts. 421 e 422, do Código Civil, respectivamente), que visam a evitar o

dolo de aproveitamento, v.g., nas situações de estado de perigo (CC, Art. 156) e lesão daquele

contratante ingênuo e inexperiente em relação às práticas contratuais (CC, Art. 157).

Assim, o advento do atual Código Civil, corroborando a sistemática inaugurada pela

legislação consumerista de 1990, acabou por suplantar, definitivamente, do ordenamento

jurídico brasileiro, a vantagem indevida representMda pela conhecida “lei de Gerson”, fruto da

malícia do contratante ambientado no cenário comercial.

Como sucedâneo histórico de ultrapassadas épocas de desconfiança contratual

(MARQUES, 2002, p. 180) instauradas por ocasião de crises econômicas o ordenamento

jurídico brasileiro, acompanhando a tendência mundial vivenciada neste sentido, flexibiliza o

rigor dos pactos privados para possibilitar, ora a revisão de suas cláusulas, ora a imposição de

deveres aos contratantes. É o que se propõe consoante a nova visão de contrato albergada pelo

Direito, que busca não apenas preservar a intenção das partes, assim manifestada no momento

da celebração do acordo, como também assegurar o equilíbrio contratual em todas as fases da

negociação (JACQUES, 2003, p. 113).

É por esse novo viés de boa-fé, eleita como espécie de “cláusula geral” (EFING,

2012, p. 86-92), harmonizado com os valores trazidos pela Constituição Federal de 1988, que

se promove a substituição do descrédito em relação ao outro contratante, que, ao invés de

adversário, passa a ser visto como colaborador/parceiro negocial. Nasce a confiança enquanto

princípio jurídico e com ela o dever de se portar de modo probo, evitando situações capazes

de surpreender negativamente o outro contratante.

2. CONTRATOS DE PLANO DE SAÚDE E O DESCREDENCIAMENTO DE

PROFISSIONAIS

À margem do que já restou mencionado sobre a formação e o papel do princípio da

confiança enquanto garantidor da ordem no cumprimento dos acordos particulares, regidos ou

não pelo Código de Defesa do Consumidor, salutar a abordagem de tal assunto,

contextualizado aos contratos de plano de saúde. Aliás, dentre as modalidades contratuais em

voga, especialmente aquelas afetas ao regramento de proteção e defesa do consumidor,

poucas oferecem cenário tão fértil para a análise do princípio da confiança, considerando-se o

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número de consumidores envolvidos e reflexos para o bem jurídico máximo, representado

pela vida humana.

No meio de inúmeras abordagens para o assunto, opta-se pela possibilidade,

reconhecida pelos Tribunais mediante o preenchimento de certos requisitos, de

descredenciamento do profissional junto ao plano de saúde, mesmo na constância de

tratamento indispensável para o restabelecimento das funções físicas ou mentais do

paciente/consumidor.

De acordo com entendimento levado a efeito pela Terceira Turma do eg. Superior

Tribunal de Justiça, nos autos de REsp 1144840/SP, da relatoria da Ministra Nancy Andrighi,

julgado em 20.03.2012 e publicado no DJe de 11.04.2012, “M operadorM somente cumprirá o

dever de informação se comunicar individualmente cada associado sobre o

descredenciamento de médicos e hospitais”. Verifica-se tratar de preceito protetivo do

consumidor, fundado no dever de informação e no Princípio da Transparência, consagrados

pelo Art. 6.º, inc. III e Art. 46, ambos do Código de Defesa do Consumidor.

No mesmo sentido, dando vazão ao disposto pelo Art. 17, § 1.º, a Lei n.º 9.656/98,

que dispõe sobre planos e seguros privados de assistência à saúde, entendeu o referido

Tribunal pelo dever do fornecedor de informar o consumidor sobre o descredenciamento de

médicos, clínicas e hospitais, bem como de ofertar atendimento compatível com o

anteriormente disponibilizado em sua rede de cobertura. Veja-se o seguinte acórdão:

DIREITO DO CONSUMIDOR. PLANO DE SAÚDE. DESCREDENCIAMENTO DE CLÍNICA MÉDICA NO CURSO DE TRATAMENTO QUIMIOTERÁPICO, SEM SUBSTITUIÇÃO POR ESTABELECIMENTO DE SAÚDE EQUIVALENTE. IMPOSSIBILIDADE. PRÁTICA ABUSIVA. ART. 17 DA LEI 9.656/98. 1. O caput do art. 17 da Lei 9.656/98 garante aos consumidores de planos de saúde a manutenção da rede de profissionais, hospitais e laboratórios credenciados ou referenciados pela operadora ao longo da vigência dos contratos. 2. Nas hipóteses de descredenciamento de clínica, hospital ou profissional anteriormente autorizados, as operadoras de plano de saúde são obrigadas a manter uma rede de estabelecimentos conveniados compatível com os serviços contratados e apta a oferecer tratamento equivalente àquele encontrado no estabelecimento de saúde que foi descredenciado. Art. 17, § 1º, da Lei 9.656/98. 3. O descredenciamento de estabelecimento de saúde efetuado sem a observância dos requisitos legalmente previstos configura prática abusiva e atenta contra o princípio da boa-fé objetiva que deve guiar a elaboração e a execução de todos os contratos. O consumidor não é obrigado a tolerar a diminuição da qualidade dos serviços contratados e não deve ver frustrada sua legítima expectativa de poder contar, em caso de necessidade, com os serviços colocados à sua disposição no momento da celebração do contrato de assistência médica. 4. Recurso especial conhecido e provido. (STJ, 3.ª Turma, REsp 1119044/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, julgado em 22/02/2011, DJe 04/03/2011)

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Em que pese a acertada decisão do STJ nos dois casos examinados, no sentido de

proteger o consumidor da substituição arbitrária do nosocômio, sem o cumprimento dos

requisitos legais, os julgados deixam de fazer ressalva quanto à impossibilidade de se

substituir o médico durante a continuidade do tratamento. Aliás, a normativa em comento (Lei

9.656/98, Art. 17, § 1.º) não faz referência expressa ao médico, mas, apenas, ao

estabelecimento hospitalar:

§ 1o É facultada a substituição de entidade hospitalar, a que se refere o caput deste artigo, desde que por outro equivalente e mediante comunicação aos consumidores e à ANS com trinta dias de antecedência, ressalvados desse prazo mínimo os casos decorrentes de rescisão por fraude ou infração das normas sanitárias e fiscais em vigor.

A redação legislativa em destaque foi assim conformada por força da Medida

Provisória n.º 2.177-44, de 2001, que inseriu M expressão “entidade hospitMlar”, onde antes

constava “contrMtado ou credenciado”3. Com a alteração procedida, o que se poderia concluir

é que a possibilidade de substituição “controlada” ficou restrita a entidade hospitalar.

E quando, em uma situação prática, o descredenciamento em questão for do médico e

não do hospital e ocorrer durante um tratamento de saúde específico? A substituição poderia

ser feita nos mesmos moldes, mediante simples comunicação prévia do consumidor e

disponibilização de profissional com a mesma especialidade?

Causa preocupação e instabilidade jurídica a interpretação extensiva do Art. 17, § 1.º

da Lei 9.656/98 (MIRAGEM, 2011, p. 371-372), no sentido de autorizar os planos de saúde a,

unilateralmente mediante comunicação, substituírem médicos de sua rede conveniada, durante

a realização de tratamento por paciente segurado. Vale lembrar que a possível restrição, por

analogia à situação de internação trazida pelo § 2.º do mesmo Art. 174, não impediria a

substituição de médicos em inúmeros tratamentos (vários deles para doenças consideradas

graves) onde os procedimentos não dependam de reclusão a estabelecimento hospitalar.

Seria o descredenciamento de profissionais uma espécie de direito potestativo do

plano5? Na hipótese do desligamento ocorrer durante o tratamento, não teria o consumidor o

3 Versão original dM norma, antes dM alteração pela MP 2B177/2001: “§ 1o É facultada a substituição do contratado ou credenciado a que se refere o caput, desde que por outro equivalente e mediante comunicação aos consumidores com trinPM dias de antecedência”B 4 “§ 2o Na hipótese de a substituição do estabelecimento hospitalar a que se refere o § 1o ocorrer por vontade da operadora durante período de internação do consumidor, o estabelecimento obriga-se a manter a internação e a operadora, M pagar as despesas até M alta Oospitalar, M critério médico, nM formM do contrato”. 5 No que se refere ao descredenciamento de estabelecimentos médicos, mediante cumprimento dos requisitos legais, entendeu o TJPR tratar-se de direito potestativo do plano. É o que se infere dos autos de AC 897318-8,

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direito de continuar sendo atendido pelo mesmo médico, dada a natureza intuito personae

(NUNES, 2011, p. 397-398) da relação estabelecida com o profissional?

Para o enfrentamento destas questões, alguns pontos merecem maiores

considerações, a saber: a) expectativas do consumidor na fase pré-contratual; b) tempo

indeterminado de duração do contrato de saúde; c) hipervulnerabilidade do consumidor

quando da efetiva utilização dos serviços do plano de saúde para tratamento não eletivo; d)

proteção da confiança em relação à cobertura e ao médico que vem acompanhando tratamento

já em curso; e e) limitações oriundas da adesividade contratual.

Sobre as particularidades enumeradas acima, passa-se a discorrer nos tópicos

seguintes.

2.1 EXPECTATIVAS DO CONSUMIDOR DE PLANO DE SAÚDE NA FASE PRÉ-

CONTRATUAL

Contrariamente do que ocorrera em outros tempos, proposta e aceitação não são

apenas os únicos momentos na formação do contrato. Atualmente, várias obrigações pré e

pós-contratuais podem ser inseridas na relação negocial estudada, com vistas à proteção dos

contratantes ou mesmo da sociedade integrada por estes. No primeiro grupo, pelo interesse

afeto ao tema proposto, vale destacar o dever de honrar, durante a execução do contrato, com

todas as informações prestadas por ocasião das negociações preliminares e que foram

responsáveis pela formação da vontade declarada no ato da contratação – orientação esta,

presente já na parte geral do Código Civil, mais especificamente no Art. 112 (SANTOS,

2012, p. 211-212).

O aumento da responsabilidade das partes, mesmo antes da formalização do contrato,

é fruto da observância do Princípio da Eticidade que norteia toda a aplicação do Código Civil

e do Princípio da Boa-fé dos contratantes, de origem consumerista, mas que também acabou

sendo explicitado pelo Arts. 113 e 422 da legislação civil codificada, de aplicação não só para

a execução do contrato como também para as fases pré e pós-contratual (SANTOS, 2012, p.

213).

Embora filiado à teoria da declaração, no que tange à formação dos contratos

originária do Direito alemão, o ordenamento pátrio cede espaço à teoria francesa sobre a

vontade dos contratantes, acabando por aceitar, para certos casos, uma teoria da confiança, oriunda do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba, julgada em 25.07.2012 e tendo como relatora a Des. Angela Maria Machado Costa, da 12.ª Câmara Cível, julgado em 25.07.2012.

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com vistas à proteção das expectativas das partes (BAGGIO, 2012, p. 91-93). De acordo com

AndrezM F ristina BMggio (p. 95) “nas relações de consumo, é M QMlorizMção da confiançM

depositada no vínculo e a boa-fé das partes contratantes que tornam objetiva a proteção da

vontade, e criam inclusive um novo fundamento para a força obrigatória do contrato...”B

Pela análise conjunta das regras principiológicas mencionadas nos parágrafos

anteriores, voltando-se, especificamente, ao ambiente das relações de consumo, onde, no

momento da contratação, indistintamente, todo destinatário final de produtos e serviços

apresenta-se como vulnerável, mostra-se defensável a expectativa do consumidor do plano de

saúde em ter a sua disposição, durante a vigência do pactuado, todos os profissionais

credenciados, segundo informações prestadas preambularmente. Por vezes, o fato deste ou

daquele médico estar inscrito junto ao rol de credenciados do plano de saúde, é decisivo para

o consumidor optar pela contratação.

Assim, o descredenciamento de médicos que à época da contratação do plano pelo

consumidor, estavam relacionados dentre os prestadores de serviço com os quais ele poderia

contar é motivo de inegável quebra de expectativa, haja vista tratar-se de contrato

“relacional”, do qual esperam as partes a continuidade dos efeitos pactuados (MIRAGEM,

2011, 365). Vale diferenciar aqui, situações em que essa alteração nas possibilidades do

contrato original apresenta-se como tolerável (o que, de qualquer forma, não impediria o

desligamento voluntário, por parte do consumidor), de outras em que se estaria rompendo

com legítima expectativa de confiança (BAGGIO, 2012 p. 89), apta a ser exigida do

fornecedor por meio de intervenção jurisdicional, inclusive.

Como a crítica trazida a lume envolve o descredenciamento durante o tratamento

médico (momento de fragilidade em que, verdadeiramente, o paciente espera ver

correspondida sua expectativa), advoga-se a tese da impossibilidade do plano proceder tal

alteração, o que se afirma não só pela legítima expectativa criada, mas pela soma de outros

fatores a serem tratados a seguir.

2.2 TEMPO INDETERMINADO DE DURAÇÃO DO CONTRATO DE SAÚDE

Fato que deve igualmente ser sopesado quando da análise da questão ventilada, é o

tempo de duração do contrato de plano de saúde, celebrado pelo consumidor.

Destarte, seria desarrazoado exigir que os mesmos profissionais, credenciados junto

ao plano no momento em que o consumidor optou por aderir à proposta formulada, se

mantivessem vinculados ao serviço contratado por período indeterminado. No lapso de dez,

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vinte, trinta anos ou mais, médicos podem ser desligados compulsória ou voluntariamente do

plano por vários motivos que, dentro de uma razoabilidade fática e jurídica, mostrar-se-iam

justificáveis à luz do Princípio da Livre Iniciativa Econômica, previsto pelo Art. 170, caput,

da Constituição Federal. Impossível ao consumidor, como regra geral, exigir que os elementos

da contratação permaneçam incólumes ao tempo.

Entretanto, o que se busca não é a estagnação do rol de médicos credenciados, mas,

sim, o respeito ao Princípio da Confiança, presente desde a pré-contratação, conforme já

abordado, e que deve ser especialmente assegurado quando se inicia tratamento de saúde.

Nesta situação, acredita-se, segundo escolha do constituinte (CF, Art. 170, inc. V), sobrepõe-

se o bem comum da coletividade, representada pela segurança jurídica do consumidor ao ter

consigo, ao menos até o final do procedimento já iniciado, o médico de sua confiança. O risco

de arcar com os ônus decorrentes da continuidade do tratamento são ínsitos à atividade do

fornecedor (NUNES, 2011, p. 103) e não podem ser transferidos ao consumidor.

Sopesando as premissas a acima contrastadas, com escopo no Princípio da

Proporcionalidade, deliberou o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, pela manutenção do

vínculo jurídico, ao menos liminarmente, visando assegurar a integridade do bem jurídico de

maior importância segundo a opção do constituinte, com as seguintes considerações do

relator:

[...] Por conseguinte, tendo em vista o maior interesse dos consumidores, é de bom alvitre manter o vínculo contratual entre as partes até a solução final da lide, pois o princípio jurídico da proporcionalidade permite que diante da tutela de bens jurídicos diversos, (da livre iniciativa, - art. 5º, incisos II e XX da CF-, e a defesa do consumidor – art. 5º XXXII e art. 170, V, da Constituição Federal), opta-se pela maior força do direito social da saúde, arrolado no art. 6º da Magna Carta. [...] (TJPR, 7ª C. Cível, AI 467113-6, Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba, Rel. Des. Luiz Sérgio Neiva de Lima Vieira, j. 03.02.2009)

Neste aspecto, apresenta-se agressiva ao ordenamento jurídico pátrio a substituição

do médico, durante o tratamento respectivo, independentemente de estar ou não o paciente

internado em estabelecimento hospitalar. Também mostra-se irrelevante para tal conclusão o

tempo de duração do procedimento realizado, vez que, para o consumidor, a contratação deu-

se comutativamente, enquanto o fornecedor, detentor do interesse especulativo, segundo a

espécie contratual ajustada, deve suportar a álea o negócio.

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2.3 HIPERVULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR QUANDO DA EFETIVA

UTILIZAÇÃO DOS SERVIÇOS DO PLANO DE SAÚDE PARA TRATAMENTO NÃO

ELETIVO

Consoante já ressaltado alhures, independentemente de qualquer outro aspecto

individualizado, é possível afirmar que todo aquele que se coloca na posição de consumidor

de produto ou serviço, apresenta o mesmo traço comum: a vulnerabilidade. Esta, conforme

esclarece Antonio FMrlos Efing, seria uma decorrênciM da “submissão” e “exposição” do

consumidor às opções dispostas pelo mercado; o atendimento das atuais necessidades da vida

contemporânea, impossíveis de serem auto supridas, retiraram do destinatário final a

prerrogativa de escolher não consumir (EFING, 2011, p. 110-111).

Independentemente de qualquer espécie de comprovação, a fragilidade do

consumidor frente ao fornecedor, seja no aspecto material, formal, econômico ou informativo

(MARQUES e MIRAGEM, 2012, p. 149) foi erigida a categoria de presunção pelo Art. 4.º,

inc. I, do Código de Defesa do Consumidor.

A diferenciação que se pretende ressaltar quando da interpretação de relações

jurídica concretas, envolvendo consumidores, é no sentido de zelar pelo Princípio da

Igualdade entre os contratantes, desigualando-os na proporção de suas diferenças e,

sobretudo, assegurar a dignidade da pessoa humana (MARQUES e MIRAGEM, 2012, p. 149-

150), eleita pelo Art. 1.º, inc. III, da Constituição Federal como princípio que tonifica todo

ordenamento jurídico, efetivando ideias de proteção nascidas após a Segunda Guerra Mundial

sob a rubricM de “metMs políticMs” (BARROSO, 2012, p. 61).

Logo, defender os interesses do consumidor, mesmo que em detrimento da livre

iniciativa econômica (CF, Art. 170, inc. V), é zelar pela prevalência de categoria diferenciada

de direitos, ditos fundamentais (CF, Art. 5.º, inc. XXXII), devendo o Estado assegurar a

implementação de “metas coletiQMs” (BARROSO, 2012, p. 88).

Ao consumir – e todos são consumidores – o ser humano lida com suas fraquezas e

vícios, posicionando-se em situação de desvantagem em relação Mquele que “prepara” o

produto ou serviço parM se mostrar Mtraente Mos possíveis interessados. A “isca”, presente no

apego emocional embutido naquilo que se oferece ao mercado de consumidores, é

confeccionada para melhor seduzir, incutindo em seu destinatário a necessidade de obter o

que ela representa: liberdade, comodidade, saúde, felicidade, etc.

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Não bastasse essa diferença entre os polos da relação de consumo, capazes de

distorcer a manifestação válida de vontade por parte do vulnerável, quando o enfoque é o

consumidor do serviço de plano de saúde, deve-se diferenciá-los em dois momentos.

No primeiro, que se inicia na pré-contratação e segue-se durante o tempo em que o

consumidor não necessitou de outros serviços por parte do plano além daqueles de natureza

preventiva ou eletiva. Nesta seara da contratação, o usuário do serviço de plano de saúde

pouco se diferencia de consumidores de outros serviços ou produtos. Apresenta-se como

vulnerável e possui legítimas expectativas em relação ao que contratara. Entretanto, ainda

dispõe de condições físicas e psicológicas de se informar sobre alterações unilaterais capazes

de comprometer seus interesses e, se for o caso, promover a defesa das prerrogativas que o

ordenamento pátrio lhe conferiu. Dentre as possíveis situações aptas a serem protegidas por

meio jurisdicional ou mesmo administrativamente, encontra-se o descredenciamento de

médicos sem a prévia comunicação do segurado ou a adequada substituição do profissional

por outro de igual especialidade.

Em um segundo prisma, pode-se observar o consumidor em situação de acionamento

do plano por motivos não eletivos, oriundos do fortuito aparecimento da doença e a

necessidade de se submeter a determinado tipo de tratamento. Nesta hipótese, razoável

imaginar que o consumidor já não possui a mesma predisposição para o combate e que, por

vezes, encontra-se entregue às arbitrariedades do fornecedor. O aumento da vulnerabilidade

daquele é proporcional ao agravamento seu estado físico e de espírito, tornando-o mais

suscetível às armadilhas de mercado (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 44), capazes de fazer

com que o consumidor ceda vantagens que sua posição contratual até então lhe assegurava

(BAGGIO, 2012, p. 144).

Na segunda análise, apontada no parágrafo retro, acredita-se estar diante de um

consumidor hipervulnerável (MARQUES e MIRAGEM, 2012, p. 194) e, portanto, merecedor

de proteção diferenciada do primeiro – aquele que, por hora, não necessita da efetiva

cobertura do plano ou a está utilizando para custear tratamento eletivo. Por esta razão,

defende-se a impossibilidade de se impor ao consumidor que esteja em estado de máxima

fragilização, alterações cujo alcance ou efeitos ele não possa avaliar corretamente.

2.4 PROTEÇÃO DA CONFIANÇA EM RELAÇÃO À COBERTURA E AO MÉDICO QUE

VEM ACOMPANHANDO TRATAMENTO JÁ EM CURSO

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Consoante já aventado nos dois primeiros itens deste estudo, o Princípio da

Confiança estabeleceu-se nas relações jurídicas, em especial nas consumeristas, como

corolário ao Princípio da Boa-fé entre os contratantes. Por meio do preceito invocado, o

negócio jurídico entabulado galga maior segurança jurídica, na medida em que a desconfiança

contratual cede espaço para a tranquilidade, seja no que se refere à certeza de cumprimento ou

à qualidade do serviço prestado.

Em relação às contratações com planos de saúde, passível de ser alegado como

elemento de validade da contratação (BAGGIO, 2012, p. 101-104), a crença do consumidor

no atendimento às suas expectativas é fragmentada – porém não diminuída – em duas relações

jurídicas que se apresentam como interligadas, mas com núcleos de confiança distintos, a

saber: confiança depositada junto ao plano contratado, no que tange à garantia de cobertura

dos procedimentos necessários, nos termos da modalidade especificada na formalização da

avença; e convicção em relação ao tratamento bem como no acompanhamento que vem sendo

prestado ao consumidor, o que se reflete na tranquilidade deste em momento de extrema

fragilização.

Sobre os dois aspectos apontados, cumpre discorrer algumas observações, como

forma de melhor entender e, consequentemente, ofertar a tutela mais adequada aos interesses

do consumidor.

A primeira expectativa do consumidor, que, via de regra, contrata os serviços do

plano de saúde em momento de serenidade, volta-se para a garantia de cobertura em possível

situação futura. Aquele que pactua serviços de assistência médica, almeja mantença da

comodidade financeira em situações de falta de disposição física ou mental, devido ao abalo

por moléstia.

Nestas situações, deve o fornecedor corresponder as razoáveis expectativas do

consumidor, sob pena de ser ver obrigado a reparar o abalo extrapatrimonial suportado por

este. Assim, a negativa de cobertura pelo plano de saúde vem sendo entendida como fato

ensejado de dano moral, passível de ser amenizado por valores econômicos oriundos de

condenação judicial. Sobre o assunto, colhe-se o seguinte julgado, da lavra da Terceira Turma

do Superior Tribunal de Justiça:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSO CIVIL. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. NEGATIVA DE COBERTURA DE PLANO DE SAÚDE. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. PRETENSÃO ENCONTRA AMPARO NA JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE SUPERIOR. DANO 'IN RE IPSA'. RESTABELECIMENTO DA SENTENÇA. AGRAVO

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DESPROVIDO. (STJ, 3.ª Turma, AgRg no REsp 1286839/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, , julgado em 19/02/2013, DJe 22/02/2013).

Ressalte-se que, no caso em apreço (negativa abusiva de cobertura por plano de

saúde), não se lida com mero descumprimento contratual, mas sim, com a frustração da

legítima expectativa do consumidor, já exposto à situação de extrema fragilidade. É o que

ressalta o seguinte julgado, relatado pela Ministra Nancy Andrighi, também pela Terceira

Turma do STJ: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS. PLANO DE SAÚDE. RECUSA COBERTURA. DANO MORAL. - Embora geralmente o mero inadimplemento contratual não seja causa para ocorrência de danos morais, é reconhecido o direito à compensação dos danos morais advindos da injusta recusa de cobertura de seguro saúde, pois tal fato agrava a situação de aflição psicológica e de angústia no espírito do segurado, uma vez que, ao pedir a autorização da seguradora, já se encontra em condição de dor, de abalo psicológico e com a saúde debilitada. - Agravo não provido. (STJ, 3.ª Turma, AgRg no AREsp 161.056/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, julgado em 05/02/2013, DJe 14/02/2013).

Evidencia-se, pois, a quebra da confiança depositada junto ao serviço contratado,

merecedora da devida compensação econômica6.

Pelo mesmo princípio, o descredenciamento de médico, durante a realização de

tratamento, deve ser entendido como negativa de cobertura e abordado como tal pelo Poder

Judiciário, sujeitando o fornecedor à indenizar ou promover o reembolso dos valores pagos

para assegurar a continuidade do procedimento, ainda que o plano oferte a substituição por

outro profissional.

O Tribunal de Justiça do Estado do Paraná julgou questão semelhante onde,

entretanto, o ponto nevrálgico consistia no desrespeito à comunicação do consumidor com

antecedência mínima de trinta dias. Como o referido prazo decorreu durante o processo,

6 Nesse sentido, também vem se posicionando o eg. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, conforme se infere do seguinte julgado:

I. - AÇÃO ORDINARIA DE PRECEITO COMINATÓRIO C/C DANO MORAL. PLANO DE SAÚDE.II. - APLICAÇÃO DO ART. 17 § 1º DA LEI FEDERAL Nº.9646. RÉ/APELANTE QUE NÃO RESPEITOU OS LIMITES E DITAMES LEGAIS QUE O REFERIDO DISPOSITIVO EXIGE PARA O DESCREDENCIAMENTO PRÉVIO. AVISO À ANS E AO CONSUMIDOR. AUSÊNCIA DE AVISO COM A ANTECEDÊNCIA DE 30 DIAS. PRECENDETE.III. - RECUSA DE COBERTURA DE PROCEDIMENTO.DANO MORAL CARACTERIZADO. A NEGATIVA DE COBERTURA DE TRATAMENTO NECESSÁRIO À PACIENTE ACOMETIDO COM GRAVE DOENÇA GERA A OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR, POIS É EVIDENTE O ABALO PSICOLÓGICO QUE ELE SOFRE QUANDO, FRAGILIZADO PELO SEU ESTADO DE SAÚDE, SE DEPARA COM A NEGATIVA DE LIBERAÇÃO DA RESPECTIVA GUIA. IV. - O VALOR DE R$5.400,00, PARA INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS NÃO SE MOSTRAQ EXCDESSIVO, PRINCIPALMENTE LEVANDO- SE EM CONSIDERAÇÃO O POTENCIAL ECONÔMICO DA RÉ. V. - RECURSO DESPROVIDO. (TJPR, 8ª C.Cível, AC 902847-9 – Maringá, Rel. Des. Jorge de Oliveira Vargas, unânime, j. 13.09.2012)

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deliberou a 9.ª Câmara Cível do TJPR pela perda do objeto do recurso, assegurando,

entretanto, o direito de reembolso ao consumidor. Veja-se o aresto abaixo:

APELAÇÃO CÍVEL. PLANO DE SAÚDE. CONTRATO ANALISADO DE ACORDO COM AS NORMAS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONDUMIDOR E DA LEI 9656/98. DESCREDENCIAMENTO DOS MÉDICOS E DEMAIS PRESTADORES DE SERVIÇO. CONDUTA OMISSIVA. ABUSIVIDADE. OBRIGAÇÃO DE SUBSTITUIR OS MÉDICOS DESCREDENCIADOS SOB PENA DE MULTA DIÁRIA. ART. 84, §§ 3º E 4º DO CDC. CARÊNCIA CUMPRIDA NO CURSO DA AÇÃO. AUSÊNCIA DE INTERESSE PROCESSUAL. PERDA DO OBJETO. DANOS MORAIS. INOCORRÊNCIA. LIMITAÇÃO DA TABELA DE VALORES EMITIDA PELO PLANO DE SAÚDE. DESVANTAGEM EXCESSIVA AO CONSUMIDOR. REEMBOLSO INTEGRAL. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA QUE PREVALECE SOBRE O DIREITO À LIVRE INICIATIVA. SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. (TJPR, 9ª C. Cível, AC 740490-0 - Francisco Beltrão, Rel. Des. G’arPMgnMn SerpM Sa, Unânime, j. 14.04.2011)

É o que se afirma pelo necessário respaldo ofertado pelo plano de saúde – ainda que

na categoria de dever implícito (BAGGIO, 2012, p. 99) do contrato – para que não seja

rompido o segundo laço de confiança estabelecido pelo consumidor: aquele oriundo da

relação médico-paciente.

Neste ponto reside a segunda expectativa do consumidor, consistente na confiança

depositada junto do profissional que lhe apontou o caminho mais confiável a ser trilhado,

rumo à cura da enfermidade de que está acometido.

Embora muitos consumidores, ao se depararem com a necessidade de buscar auxílio

médico para a cura de doença, se valham das listas profissionais disponíveis, credenciados

pelo plano - por vezes sem conhecer pessoalmente o médico procurado -, é inegável a relação

de confiança estabelecida após a consulta e, especialmente, depois de ter o paciente já se

submetido aos primeiro atos do procedimento.

Considerando ser o tratamento ato necessariamente voluntário e por vezes agressivo

ao organismo do paciente - inclusive com riscos de óbito -, inquestionável o grau de confiança

depositada no profissional médico que prescreve os cuidados que, segundo sua formação e

experiência profissional, entende por necessários.

É para este momento, marcado pelo início de determinado método de cura,

acompanhado das mais diversas intervenções ao organismo do paciente, que se defende a não

interrupção do credenciamento ou a aplicação de soluções capazes de obrigar o fornecedor do

serviço de saúde a custear o trabalho do médico, até o final do procedimento, cujo início,

aliás, já fora consentido pelo próprio plano.

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2.5 LIMITAÇÕES DECORRENTES DA ADESIVIDADE CONTRATUAL

Outro aspecto de deve ser sopesado é o fato da submissão do consumidor aos

ditames do contrato de adesão. Com efeito, embora o contratante dos serviços de cobertura à

saúde aponha seu aceite no respectivo instrumento de ajuste, o fato é que o mesmo, naquele

momento que formaliza o início da relação jurídica entre as parte, era incapaz de dimensionar

as repercussões da cláusula que autoriza o plano a proceder substituições, mediante simples

comunicação do consumidor.

É o que se afirma pela presunção absoluta (MARQUES e MIRAGEM, 2012, p. 185)

de vulnerabilidade do consumidor, não acostumado às práticas e ciente das possibilidades

capazes de gerar interferências negativas e inaceitáveis ao logo da contratação de trato

sucessivo, então assumida. Diante de tais fatores, possui o plano de saúde o dever de agir por

uma espécie de “boM-fé qualificMda”, voltMda para o melhor interesse do consumidor7.

A cláusula que autoriza a substituição, apesar de restritiva aos direitos do consumidor

e, portanto, abusiva (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 170), na prática não vem acompanhada

do destaque previsto pelo § 4.º, do Art. 54, da Lei 8.078/90. Ademais, mesmo que possuísse

tal apresentação gráfica, no que tange à troca unilateral de médico por disposição do plano de

saúde, tal cláusula deveria ser encarada como abusiva, vez que ofende direito básico do

consumidor (Art. 6.º, inc. IV).

É o que se afirma pela subsunção da hipótese em tela (cláusula autorizando a

substituição unilateral de médico, mesmo durante a realização de tratamento) às vedações

trazidas pelo CDC, em especial àquela que considera abusivas as cláusulas que coloquem o

consumidor em desvantagem exagerada e se mostrem incompatíveis com a boa-fé e equidade

esperadas do cumprimento do contrato (Art. 54, inc. IV), ou outra, que dispões sobre a

exorbitância dos poderes do fornecedor, ao assegurar contratualmente a sua possibilidade de

alterar, de forma unilateral, o conteúdo ou a qualidade do contrato (Art. 54, inc. XIII). Pelo

7 CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. PLANO DE SAÚDE. ALTERAÇÃO UNILATERAL DO CONTRATO. INTERNAÇÃO EM HOSPITAL NÃO CONVENIADO. CDC. BOA-FÉ OBJETIVA. 1. A operadora do plano de saúde está obrigada ao cumprimento de uma boa-fé qualificada, ou seja, uma boa-fé que pressupõe os deveres de informação, cooperação e cuidado com o consumidor/segurado. 2. No caso, a empresa de saúde realizou a alteração contratual sem a participação do consumidor, por isso é nula a modificação que determinou que a assistência médico hospitalar fosse prestada apenas por estabelecimento credenciado ou, caso o consumidor escolhesse hospital não credenciado, que o ressarcimento das despesas estaria limitado à determinada tabela. Violação dos arts. 46 e 51, IV e § 1º do CDC. 3. Por esse motivo, prejudicadas as demais questões propostas no especial. 4. Recurso especial provido. (STJ, REsp n.º 418.572/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 10.03.2009)

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Princípio da Conservação do Contrato de Consumo (CDC, Art. 6.º, V e Art. 51, § 2.º), não

poderia o consumidor sofrer impactos negativos (NUNES, 2011, p. 655) em relação ao que

originalmente havia pactuado.

A hipótese descredenciamento de médico pelo plano deveria ser aplicada, apenas,

para os novos contratos ou, ao menos, para contratos em vigência mas que, naquele momento,

seus titulares não estejam em tratamento com profissionais conveniados.

3. SITUAÇÃO DE DESCREDENCIAMENTO REQUERIDA PELO PRÓPRIO

MÉDICO

Hipótese diversa daquela comentada até então, alberga a possibilidade do próprio

médico optar pelo seu desligamento junto ao plano de saúde. Desde que precedida de

comunicação dos pacientes, a solicitação de descredenciamento, motivada pelo próprio

médico, tem sido aceita pelo ordenamento pátrio e, quando muito, tem provocado reações

apenas em face do plano8.

Tal entendimento, todavia, não se coaduna com o disposto pelo item IX, do Capítulo

I do atual Código de Ética Médica, aprovado por meio da Resolução n.º 1931/2009, do

Conselho Federal de Medicina que prescreve: “A Medicina não pode, em nenhumM

circunstânciM ou forma, ser exercida como comércio”.

O médico que se nega a atender o paciente, deixando de dar continuidade ao

tratamento já iniciado, alegando apenas não ser mais credenciado junto ao plano de saúde

mantido pelo consumidor, age segundo interesses meramente comerciais e, portanto, falta

para com o compromisso de ética médica.

Embora o diploma em comento não possua status de lei, em sentido estrito, seu

conteúdo esclarece, para o aplicador das normas, aspectos acerca da (ir)regularidade nas

condutas médicas questionadas em juízo.

Assim como as normativas internacionais, denominadas de soft laws, muito

utilizadas para efetivação dos direitos humanos (PIOVESAN, 1997, p. 263), as orientações

dos órgãos de classe no Brasil vem se mostrando úteis aos escopos do atual viés

constitucional de processo, focado na promoção da justiça. É o que demonstram, por exemplo,

8 Ressalte-se a possível solidariedade existente o plano de saúde e o médico, em casos de interrupção do tratamento, quando ambos tenham contribuído para tanto, nos termos dos Arts. 34 e 25, §§ 1.º e 2.º, do CDC. Sobre a responsabilidade objetiva entre fornecedores diretos e indiretos de serviços: NUNES, 2011, p. 288-291.

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as inúmeras utilizações do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, pelo

Estado-Juiz, quando do enfrentamento de questões envolvendo a matéria de propaganda.

Se não é dada ao plano de saúde, enquanto fornecedor de serviços, limitar o tempo de

internação (STJ, Súm. 302), com vistas a garantir a integridade da saúde do segurado, pelo

mesmo motivo, analogicamente aplicado, não pode o médico interromper tratamento já

iniciado, pelo fato de ter solicitado o seu descredenciamento junto ao plano. Na relação

consumerista estabelecida entre médico e paciente, também deve ser vedado ao primeiro,

deixar seu cliente ao desamparo, permitindo que motivos exclusivamente econômicos se

sobreponham a ética médica e aos valores eleitos pela Constituição Federal.

4. CONCLUSÃO

As peculiaridades da relação jurídica em tela (consumo de massa, caracterizado pela

multiculturalidade de seus agentes – GALEA, 2011, p. 450), firmada entre contratantes

díspares e protegida sobremaneira pela Constituição Federal, acaba por relativizar a aplicação

do brocardo pacta sunt servanda. Não bastasse a vulnerabilidade esperada de todo

consumidor, quando se trata de contratação de plano de saúde, mais do que em qualquer outra

hipótese, o aderente ao modelo de contrato imposto pelo fornecedor acaba se sujeitando a

duas relações de confiança: uma firmada com o plano contratado e outra, igualmente

consumerista, estipulada com o profissional que efetivamente presta serviços em prol do

restabelecimento da saúde do paciente.

Embora a dinâmica das relações humanas demonstre ser impossível a estabilização

das condições originalmente ofertadas pelo plano, ao menos no que se refere à mantença dos

mesmos profissionais credenciados à época da adesão pelo consumidor, tem-se que a remoção

de médico junto ao rol de conveniados do plano deve respeitar certos requisitos.

Além das exigências tratadas pela Lei n.º 9.656/98, em especial o dever de efetiva

comunicação do consumidor com antecedência mínima de trinta dias e substituição do

profissional descredenciado por outro, de igual especialidade, apresenta-se como abusiva a

substituição unilateral de médico, pelo plano de saúde, durante a realização de tratamento ao

qual fora submetido o paciente/consumidor, ainda que “MutorizMda” por contrato.

A assertiva acima (impossibilidade de substituição durante o tratamento médico),

como visto, tanto em relação aos atos unilaterais por parte do plano de saúde, como no que

tange ao pedido de descredenciamento, pelo próprio médico, não podem comprometer a dupla

confiança estabelecida por tais agentes e o consumidor. A proibição em comento decorre de

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diversos fatores, podendo-se apontar, além da confiança derivada do Princípio da Boa-fé dos

contratantes, a natureza continuada ou de trato sucessivo do contrato de saúde, a

hipervulnerabilidade do consumidor quando da efetiva utilização do plano, bem como a

adesividade da alteração proposta.

O que se procura, em verdade, é assegurar ao consumidor, parte presumidamente

mais frágil do ajuste de vontades em comento, proteção a bem jurídico de maior importância

(saúde e vida), ainda que, para tanto, acabem sendo sacrificados interesses de ordem

econômica daquele que assumiu o risco pela atividade desenvolvida.

REFERÊNCIAS

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BAGGIO, Andreza Cristina. O Direito do Consumidor Brasileiro e a Teoria da

Confiança. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional

Contemporâneo: A Construção de um Conceito Jurídico à Luz da Jurisprudência Mundial, Belo Horizonte: Fórum, 2012.

CATALAN, Marcos Jorge. A Hermenêutica Contratual no Código de Defesa do

Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, vol. 62, abr/jun. de 2003, p. 139-140. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Direito do Consumidor. 2. ed., São Paulo: Atlas, 2010.

EFING, Antonio Carlos. Contratos e Procedimentos Bancários à Luz do Código de Defesa

do Consumidor. 2. ed. rev., at. e ampl., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

___, Antônio Carlos. Fundamentos do Direito das Relações de Consumo: consumo e sustentabilidade. 3. ed., Curitiba: Juruá, 2011.

GALEA, Felipe Evaristo dos Santos. Confiança do Consumidor na Sociedade de Risco

Massificada. Revista de Direito Privado, vol. 12, n. 47, jul/2011, p. 451-457.

JACQUES, Daniela Corrêa. A Proteção da Confiança no Direito do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, vol. 45, jan/mar. de 2003, p. 100-128.

MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumido: O novo regime das relações contratuais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

___. MIRAGEM, Bruno. O Novo Direito Privado e a Proteção dos Vulneráveis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

MIRAGEM, Bruno. Eficácia da Oferta e a Proteção das Legítimas Expectativas do

Consumidor nos Contratos Relacionados: direito da operadora de plano de saúde manter o credenciamento de serviços médicos durante o tratamento realizado pelo consumidor. Revista de Direito do Consumidor, vol. 78, abr/jun. de 2011, p. 365-375.

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NUNES, Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor. 6. ed., rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 2011.

PIOVESAN, F. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7. ed. rev., ampl. e atual., São Paulo: Saraiva, 2006.

SANTOS, Paula Ferraresi. Responsabilidade Civil e Teoria da Confiança: análise da

responsabilidade pré-contratual e o dever de informar. Revista de Direito Privado, vol. 13, n. 49, jan/2012, p. 208-224.

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A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 61, § 2º, DA LEI 11.101/2005:

AFRONTA AO ATO JURÍDICO PERFEITO E À COISA JULGADA.

THE UNCONSTITUTIONALITY OF THE ARTICLE 61, § 2º OF THE LAW 11.101/2005:

THE AFFRONT TO THE PERFECT LEGAL ACT AND RES JUDICTA

Giovani Bruno Albertoni1

Sandro Mansur Gibran2

RESUMO

O presente trabalho objetiva demonstrar a prejudicialidade à segurança jurídica que é gerada

pela disposição do artigo 61, § 2º, da Lei 11.101/2005, em razão da afronta à proteção

constitucional ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, positivada no artigo 5º, XXXVI, da

Constituição Federal. Para fins hermenêuticos, pretende-se destacar a função social da

sociedade empresária como principal fundamento da recuperação judicial, bem como a

influência do direito comparado, como fundamental fonte para a edição da nova legislação

falimentar. São objeto de conceituação o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, com o intuito

de comprovar a contradição entre a novação das obrigações do devedor, promovida pela

aprovação do plano de recuperação, com a posterior homologação pelo juízo e a

reconstituição dos direitos dos credores, em caso de convolação em falência, culminando na

consequente inconstitucionalidade da norma, em razão da instabilidade que é provocada pela

transgressão à vontade das partes e à decisão judicial constitutiva de nova ordem jurídica.

Palavras-chave: Recuperação Judicial; inconstitucionalidade; segurança jurídica; ato jurídico

perfeito e coisa julgada.

ABSTRACT

This study aims to demonstrate the prejudice to legal certainty that is generated by the

1 Bacharel em direito 2007/2011 (Unicuritiba); pós-graduando em Direito Civil e Empresarial – PUC/PR – 2012/2014; advogado inscrito na OAB/PR sob o n.61752. http://lattes.cnpq.br/5776022923377749

2 Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (1996); Especialista em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná; mestre em Direito Social e Econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná; Doutor em Direito Econômico e Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná; Professor do Programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário Curitiba – UniCuritiba; Professor Titular de Direito Empresarial e de Direito do Consumidor da Faculdade de Direito do Centro Universitário Curitiba – UniCuritiba; Professor de Direito Empresarial do Centro de Estudos Jurídicos do Paraná; professor de Direito Empresarial da Escola da Magistratura Federal - ESMAFE" e Coordenador da Pós-Graduação de Direito Empresarial do Centro Universitário Curitiba – UniCuritiba. http://lattes.cnpq.br/3242304285536069

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provision of Article 61, § 2, of Law 11.101/2005, because of the affront to constitutional

protection to perfect legal act and the res judicata, positively valued in Article 5, XXXVI of

the Federal Constitution. For hermeneutic purposes, it is intended to highlight the social role

of business associations as the main foundation of Judicial Reorganization, as well as the

influence of comparative law, as a fundamental source for the enactment of new bankruptcy

legislation. The perfect juridical act and res judicata are object of conceptualization, in order

to prove the contradiction between the novation of the obligations of the debtor, promoted by

the approval of the recovery plan, with subsequent approval by the court and the

reconstitution of creditors' rights in case of conversion into bankruptcy, culminating in the

ensuing unconstitutionality of the norm, because of the instability that is caused by breaking

the will of the parties and the court decision that constitutes a new legal order.

Keywords:Judicial Reorganization; unconstitutionality; legal certainty; perfect legal act and

res judicata.

1. INTRODUÇÃO

A problemática sugerida no presente ensaio pretende verificar se a disposição contida

no artigo 61, § 2º, da Lei 11.101/2005 é inconstitucional. A proposta é no sentido de que os

efeitos do comando inserido em tal norma importam em prejuízo ao princípio da segurança

jurídica, notadamente no que se refere à proteção constitucional ao ato jurídico perfeito e a

coisa julgada.

A visualização das contradições, apontadas ao dispositivo legal ora em comento já

iniciam quando da sua confrontação com o artigo 59 da mesma lei, onde há a previsão de que

a aprovação do plano de recuperação implica em novação dos créditos anteriores ao pedido.

Ocorre que a novação é uma forma de extinção da obrigação, o que representa um conflito, ao

menos aparente, com a determinação da reconstituição dos direitos dos credores, alterados

pelo plano de recuperação, em caso de convolação da recuperação judicial em falência.

O contrassenso acima é ilustrativo da instabilidade gerada pelo artigo objeto do

presente estudo, demandando uma análise criteriosa do procedimento adotado pela lei, a fim

de se constatar que tipos de relações jurídicas são instituídas pela aprovação do plano entre

credores e devedor. Para tanto, são objetos de enfoque o processo de Recuperação Judicial,

em especial no que se refere à Assembleia Geral de Credores e ao plano de recuperação, bem

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como os efeitos que emergem da sua aprovação e homologação judicial.

2. A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL À SEGURANÇA JURÍDICA

A questão proposta tem como primeiro alvo a exploração do valor constitucional que

se entende confrontado pela disposição contida no art. 61, § 2º, da Lei nº 11.101/2005, que é a

segurança jurídica. Este princípio está consagrado na Constituição Federal, especificamente

em seu art. 5º, XXXVI, e pretende conferir estabilidade às relações sociais e aos direitos

subjetivos. Trata-se de uma garantia de direito, que tem por finalidade assegurar o exercício e

o gozo dos bens e vantagens - direitos propriamente ditos - de titularidade de um determinado

sujeito.

A segurança jurídica é promovida por alguns critérios, os quais permitem aos sujeitos

inseridos em uma sociedade conhecer antecipadamente as consequências de seus atos, o que é

da máxima relevância para as relações praticadas dentro da dinâmica das sociedades

modernas. A sua efetivação ocorre quando há relativa certeza acerca das ações realizadas sob

o império de uma norma, que devem perdurar e produzir os seus efeitos projetados sem sofrer

influências imprevisíveis.3

Quando uma determinada lei prevê a produção de efeitos em favor de um sujeito,

fala-se na criação de uma situação jurídica subjetiva, ou seja, que um direito integrou o seu

patrimônio. Segundo José Afonso da Silva, se a lei “produziu efeitos em favor de um sujeito,

diz-se que ela criou situação jurídica subjetiva, que poderá ser um simples interesse, um

interesse legitimo, a expectativa de direito, um direito condicionado, um direito subjetivo.”4

Pois bem, o valor ora em comento, por possuir importância defendida na

Constituição Federal, é de observância obrigatória, sujeitando à nulidade qualquer ato que

represente prejuízo para sua realização, ressalvados os casos de colisão de direitos de mesma

ordem, que merecem análise específica sob o prisma do princípio da proporcionalidade. A

segurança jurídica é, pois, um princípio absolutamente imprescindível à realização do Estado

democrático de direito e representa a confiança de que deve dispor qualquer cidadão na

efetivação de seus direitos, tal como foram por ele previstos quando da sua aquisição. Tanto é

que determinados ordenamentos jurídicos (como o alemão), definiram esta tutela em um valor

ainda mais abrangente, chamado de princípio da confiança do cidadão.5

3 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 433.

4 SILVA, loc. cit.5 APPIO, Eduardo. Controle de Constitucionalidade no Brasil. Curitiba: Juruá, 2005. p. 26.

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3. O ATO JURÍDICO PERFEITO

O avanço na argumentação ora exposta demanda algumas considerações preliminares

sobre os institutos preservados pela norma constitucional mencionada anteriormente. A

Constituição Federal determinou à lei a resguarda do ato jurídico perfeito, invocando que

aquela jamais poderá representar prejuízo à fruição dos direitos advindos deste. Segundo o

artigo 6º, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil, reputa-se “ato jurídico perfeito o já

consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.”6 Entretanto, não é este o

conceito pretendido pelo texto constitucional, já que o direito consumado é inatingível pela lei

apenas porque já esgotou a produção de seus efeitos e não por se tratar de ato perfeito.7

O que efetivamente se pretende tutelar na norma em questão é o negócio jurídico, ou

ato jurídico stricto sensu. É, portanto, aquele formalizado sob a disciplina dos requisitos

fundados numa legislação e, assim, capaz de produzir os seus efeitos antevistos. Não é

efetivamente aquele ato jurídico consumado, como referido acima, pois trata de “uma relação

reconhecida pelo Direito que já se completou em sua inteireza, ainda que não tenham

produzido todos os efeitos previstos no momento de sua finalização.”8

Cabe definir o negócio jurídico apontando aquelas relações que se encontram

amparadas pela previsão contida no texto constitucional. Porém, faz-se necessário esclarecer a

distinção entre fato jurídico, ato jurídico e negócio jurídico, pois somente assim é possível

compreender quais relações de fato encontram guarida na norma em comento.

A doutrina denomina como fato jurídico9 todos aqueles eventos ocorridos que geram

uma consequência relevante para o mundo do direito. Ou seja, segundo Washington de Barros

Monteiro, são “os acontecimentos em virtude dos quais nascem, subsistem e se extinguem as

relações jurídicas.”10 Dentre esses fatos, alguns são resultados de eventos naturais,11 enquanto

outros decorrem da ação humana.

Excluindo-se os fatos jurídicos propriamente ditos, restam aqueles casos em que o

evento decorre diretamente da ação humana, que se denominam, na generalidade, ato

6 BRASIL, Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de introdução ao Código Civil Brasileiro. Diário Oficial da União, Brasil, DF, 09 de set. de 1942.

7 SILVA, 2007, p. 435.8 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p.

529.9 Sentido amplo (lato sensu).10 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. v.1. 38 ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

p. 174.11 Estes eventos são denominados fatos jurídicos em sentido estrito (stricto sensu).

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jurídico.12 No entanto, apenas aquelas ações que se conformam com a ordem jurídica integram

esta categoria, pois se houver contrariedade os atos serão ilícitos. Sobre o tema, a lição de

Caio Mário:

Não são todas as ações humanas que constituem atos jurídicos, porém apenas as que traduzem conformidade com a ordem jurídica, uma vez que as contravenientes às determinações legais vão integrar a categoria dos atos ilícitos, de que o direito toma conhecimento, tanto quanto dos atos lícitos, para regular-lhes os efeitos, que divergem, entretanto, dos destes, em que os atos jurídicos produzem resultados consoantes com a vontade do agente, e os atos ilícitos sujeitam a pessoa que os comete a conseqüências que a ordem legal lhes impõe (deveres ou penalidades).13

Dentro deste gênero dos atos jurídicos residem duas espécies, que são os atos

jurídicos stricto sensu e os negócios jurídicos. Embora ambos sejam frutos da vontade

humana, a distinção reside no propósito objetivo de produzir os efeitos decorrentes da ação.

Nos negócios jurídicos o agente manifesta a sua vontade com a intenção específica de criar

resultados, enquanto nos atos jurídicos os resultados decorrem diretamente da lei, sendo a sua

vontade voltada apenas à produção do evento, alheia, portanto, aos resultados.

Neste sentido, denota-se que o fundamento e os efeitos do negócio jurídico estão

assinalados na vontade manifestada em conformidade com os ditames da ordem legal, com a

finalidade exclusiva de produzir o resultado pretendido. Neste ponto é que se constata a

finalidade pretendida na ação como principal elemento da figura em estudo, fundamentada no

princípio da autonomia da vontade, onde todo indivíduo é dotado de capacidade para criar

direitos e contrair obrigações.

Ressalte-se que a vontade capaz de dar origem a um ato jurídico é aquela

exteriorizada pelo indivíduo, aquela que, por um instrumento qualquer, é levada ao

conhecimento do mundo exterior à esfera psíquica do sujeito. É claro, no entanto, que a

simples manifestação de vontade é insuficiente para o estabelecimento do negócio jurídico,

havendo a necessidade de se aliar à lei para produção dos resultados, completando-se os dois

requisitos reciprocamente.

A produção do negócio jurídico demanda a verificação da presença de elementos

essenciais na manifestação de vontade do sujeito, ou seja, aqueles que, ao faltarem, não

operam a consistência jurídica necessária à criação do ato. No plano da validade, afirma-se

então que a existência de agente capaz,14 de objeto lícito e possível e de consentimento é

12 Ato jurídico em sentido amplo (lato sensu).13 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v.1. 19 ed. Rio de Janeiro: Forense,

2002. p. 302.14 São capazes aquelas pessoas dotadas de consciência e vontade, reconhecidas pela lei como

aptas a exercer os atos da vida civil.

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imprescindível para a consecução do negócio jurídico.

4. O DOLO E A BOA-FÉ NO NEGÓCIO JURÍDICO

O primado constitucional depende da existência do negócio jurídico, livre de

qualquer vício, o que demanda a inquirição sobre os defeitos capazes de gerar a nulidade do

negócio jurídico firmado, analise esta que será adiante considerada na interpretação da

temática do presente estudo. Por tal razão, tratar-se-á adiante do dolo e da boa-fé objetiva,

onde aquele é defeito capaz de eivar o ato e gerar a sua anulação e este é requisito

imprescindível a ser observado na formação de qualquer negócio jurídico, sob pena de

nulidade.

O principal pressuposto do negócio jurídico é a manifestação de vontade livre e

consciente do agente, conformada com os ditames da ordem legal. O direito se preocupou em

não admitir qualquer vontade, mas tão somente aquela que representa o real e efetivo querer

íntimo do agente. Desta forma há a previsão, no ordenamento jurídico, de diversos defeitos

capazes de macular o negócio jurídico, pois não representam o verdadeiro interesse do sujeito

da relação jurídica, sendo este o adequado exercício do princípio da autonomia da vontade.

O dolo é um dos vícios da vontade e consiste em meios ardilosos lançados por

determinado agente para conseguir a manifestação de vontade de outra pessoa, a fim de obter

êxito a si ou a terceiro na relação jurídica. Esta figura é caracterizada pela improbidade de

propósito, que visa utilizar um processo perverso para convencer a vítima a declarar uma

vontade que não seria obtida de outra maneira.

O vício em questão pode ser praticado por ação ou omissão, quando de forma ativa

falta com a verdade ou então de forma passiva mantém o silêncio a respeito de fato, condição

ou qualidade que deveria oferecer ao conhecimento da outra parte. Para representar a

anulação do negócio o dolo há de ser determinante para a emissão do querer do prejudicado,

ou seja, é preciso que seja condição determinante do negócio.

Para caracterizar o dolo, a prática ardilosa deve necessariamente ser realizada por um

dos sujeitos integrantes da contratação, pois se for oriunda de um terceiro, gerará apenas a

responsabilidade em indenizar o prejudicado e não afetará a validade e a eficácia do negócio.

É também necessário referir que se ambas as partes agirem com dolo, enganando-se

reciprocamente, a nenhuma delas será possível arguir a anulação do ato, pois do contrário

estariam se beneficiando de sua própria torpeza.

A figura do dolo é específica e tem sua abrangência bem delimitada. Guarda grande

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relação com o princípio da boa-fé objetiva, o qual tem, por sua vez, atuação muito mais

abrangente. A boa-fé está presente tanto na formação dos negócios jurídicos como na sua

interpretação, possuindo observância obrigatória e prezando no Direito Civil os valores

sociais elevados como máximas inafastáveis no ordenamento jurídico.

O princípio da boa-fé, como regra de hermenêutica, está positivado nos artigos 112 e

113 do Código Civil, onde dispõe que a boa-fé deve sempre ser considerada na apreciação dos

negócios jurídicos, superando até mesmo a literalidade da linguagem, pois quando entre elas

houver contrariedade, a linguagem deverá ser preterida. Sobre o assunto, pontificou

Washington de Barros Monteiro que :

A boa-fé é elemento de garantia da prevalência do interesse social da segurança das relações jurídicas, assegurando a observância da lealdade na celebração dos negócios jurídicos. É de se esclarecer que a boa-fé de que cuida este artigo é a chamada boa-fé objetiva, isto é, aquela que inspira a conduta considerada normal e correta para as circunstâncias de cada caso, segundo o critério do razoável. Entretanto, não deve o hermeneuta afastar-se da investigação da boa-fé subjetiva, qual seja, aquela que intimamente pensada pelo declarante da vontade.15

Mas o princípio não se resume à interpretação dos negócios jurídicos, abrangendo até

mesmo a celebração dos atos, balizando a conduta das partes antes mesmo da sua formação.

Neste sentido é o artigo 422 do Código Civil, que determina às partes a observância do

princípio da boa-fé na contratação.

Muito embora o conceito do princípio da boa-fé seja um tanto abstrato, é possível

delimitar o seu significado de forma bastante objetiva, constituindo um princípio normativo e

geral que valora a conduta das partes como honesta, correta e leal, isto é, é a fidelidade que

orienta as relações humanas, sendo obrigatório que se proceda da forma esperada, sem frustrar

esta confiança recíproca. A boa-fé se erige, assim, em verdadeiro princípio geral do direito,

presidindo as relações jurídicas.16

E qual é a sanção que se comina à inobservância do princípio da boa-fé na

constituição de uma relação jurídica? A formação do negócio jurídico pressupõe a

manifestação livre e consciente de vontade voltada à produção de um resultado querido pelo

agente, sendo este então requisito essencial. Portanto, se uma das partes age de má-fé,

certamente este requisito não é cumprido, o que importa na nulidade do ato, ou seja, na sua

inexistência na esfera do direito.

15 MONTEIRO, 2001, p. 197.16 GOMES, Luis Roldão de Freitas. Contrato. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 49.

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5. A COISA JULGADA

A norma constitucional contida no art. 5º, XXXVI, prevê também a proteção à coisa

julgada, impedindo que lei alguma lhe apresente ofensa. A respeito deste dispositivo, dispõe

André Ramos Tavares que “a coisa julgada é o corolário do princípio da segurança jurídica e

estabilidade das relações sociais transportado para o campo judicial.”17

O amparo constitucional diz respeito tão somente à proteção jurisdicional

definitivamente outorgada. O que se pretende, segundo José Afonso da Silva, é a tutela da

“estabilidade dos casos julgados, para que o titular do direito aí reconhecido tenha a certeza

jurídica de que ele ingressou definitivamente no seu patrimônio.”18

Não há grande discussão sobre o resguardo pretendido, que é a estabilidade das

relações sociais. Mas que decisões efetivamente formam a coisa julgada e, por defluência,

encontram-se acolhidas pelo artigo?

A coisa julgada formal compreende apenas a relação processual em que a sentença

foi proferida e seus efeitos são a ela restritos, ou seja, não repercutem fora do processo. Isto

por se tratar de mera preclusão,19 que diz respeito à possibilidade de manejar um recurso

contra a decisão judicial. Em contrapartida, a coisa julgada material é extraprocessual e seus

efeitos repercutem fora da relação processual. Ocorre quando a atividade jurisdicional se

manifesta especificamente sobre a matéria a que versa a lide, dispondo um juízo que diz o

direito incidente sobre o caso concreto, tornando-se definitivo. Logo, a coisa julgada material

naturalmente compreende como pressuposto inafastável a coisa julgada formal (preclusão).

A jurisdição, por sua vez, é a função que diz o direito diante do caso concreto,

reconhecendo quais normas abstratas regem determinada situação. A atuação do Judiciário,

em síntese, compreende o conhecimento dos fatos ocorridos no mundo físico, determinando

após a que normas se subsumam.

Assim, declarado o direito incidente, o conflito de interesses entre as partes estará

sanado, atingindo-se a finalidade fundamental da atividade jurisdicional. Manejados os

recursos que a parte julgar conveniente, de modo que esta faculdade processual reste preclusa,

a declaração judicial se tornará imutável.

Esta imutabilidade que diz respeito à tutela jurisdicional prestada não se deve apenas

à preclusão, mas à própria lógica do sistema jurídico. O ordenamento prevê normas abstratas 17 TAVARES, 2003, p. 529.18 SILVA, 2007, p. 436.19 “Extinção de uma faculdade processual, operada internamente na relação processual”.

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de processo civil: processo de conhecimento. V.2. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 643.

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imutáveis20 para regular a generalidade das condutas sociais. A declaração contida na sentença

representa o juízo máximo da subsunção do fato à norma, manifestando o direito aplicado no

caso concreto. Logo, se a regra abstrata é imutável, também o é a regra concreta.21

E é neste sentido que somente será imutável a sentença que declara a existência ou

não de um direito, isto é, a decisão que se pronuncia a respeito da pretensão material contida

na ação, atingindo a finalidade jurisdicional. Se o Juiz não possui condições para isso, não

ditará qual é o direito incidente sobre o caso concreto e, logo, não haverá a imutabilidade.

Por outro lado, a decisão de mérito torna indiscutível a declaração, por ser a lei

relativa àquele caso concreto. Sobre aqueles fatos não mais se admitirá discussão, mesmo que

em outra relação processual, e aí reside a verdadeira imutabilidade, na coisa julgada material,

sendo somente sobre esta a incidência da proteção constitucional.

Com este conceito em vista, é possível verificar que nem todas as sentenças de

mérito são capazes de formalizar a imutabilidade da coisa julgada material, mas somente

aquelas que manifestam um juízo a respeito dos fatos contidos na sentença, ou seja, apenas

sobre o efeito declaratório da sentença. Sobre o assunto, vale referir a precisão dos

ensinamentos de Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart:

Sendo de mérito a sentença, terá ela condições de receber (desde que, como visto, porte carga declaratória suficiente) a força da coisa julgada material, pouco importando a eficácia preponderante nela residente. Essa observação é importante porque, ao examinar as considerações antes feitas, alguém poderá supor que, como a coisa julgada somente se opera sobre o efeito declaratório da sentença, apenas as sentenças proferidas em ação declaratória poderiam gerá-la. Mas não é assim. Também as sentenças condenatórias, constitutivas, executivas e mandamentais têm carga declaratória em si, mesmo porque fixam, cada qual, uma lei para o caso concreto.22

Conclui-se, enfim, que a proteção constitucional tem relação íntima com a coisa

julgada material como sendo aquela declaração contida na sentença que diz qual é o direito

incidente sobre o caso concreto. Quando a jurisdição manifesta a regra concreta, esta

afirmação se torna imutável e oponível a todos, conferindo estabilidade às relações jurídicas e

certeza ao titular do direito.

6. O PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO

20 Somente pelo processo legislativo e pela introdução de uma nova lei é que ocorre a mudança da norma regente.

21 MARINONI, 2009, p. 644.22 MARINONI, 2009, p. 561.

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A Constituição Federal representa o vértice do ordenamento jurídico. Dela emana

todo o poder do Estado brasileiro e, com efeito, em seu corpo normativo estão dispostos os

princípios basilares do direito nacional, as competências governamentais, além da

estruturação dos poderes legislativo, judiciário e executivo. Naturalmente, em sendo a norma

de mais alta hierarquia, qualquer outro ato normativo somente terá validade se com ela se

conformar, já que é lá que estão estabelecidos os requisitos para sua criação.

A supremacia constitucional é a superioridade de que goza a Constituição no

ordenamento jurídico. Tal princípio encontra fundamento em dois conceitos: I) a distinção

entre poder constituinte e poder constituído; e II) entre constituição rígida e constituição

flexível.23

A questão da flexibilidade ou rigidez da Constituição se reflete na forma como é

prevista a sua reforma. Se o processo legislativo constitucional, de competência do poder

constituinte derivado, for igual ao processo legislativo ordinário, estar-se-á diante de uma

constituição flexível. Por outro lado, a Constituição rígida é aquela que possui processo de

reforma mais rigoroso, refletindo na relativa imutabilidade de suas normas.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 é considerada rígida, classificação esta que

advém de procedimento legislativo diverso e rigoroso previsto para alterações de seu texto,

que inclui maior qualificação do quorum para aprovação da emenda constitucional, além de

limitações materiais e circunstanciais. Por oportuno, citam-se as considerações formuladas

por Eduardo Appio:

No modelo de rigidez constitucional formal, todas as normas constantes da Constituição possuem idêntica hierarquia, na medida em que sua alteração demanda o exercício de um poder de reforma caracterizado por ampliar o quórum mínimo para a aprovação de uma emenda constitucional, além de exigir um procedimento específico de votação nas duas Casas do Congresso Nacional.24

A Supremacia da Constituição está fundada na superioridade do poder constituinte,

de modo que seu produto (a norma constitucional) esteja no topo do ordenamento, servindo

de fundamento de validade para todas as demais normas. A rigidez promove a permanência e

a estabilidade da Lei Fundamental, em contraste com a mutabilidade da legislação ordinária.

Esta é a posição de Luís Roberto Barroso:

23 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 162.

24 APPIO, 2005, p. 89.

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Sintetizando, então, as idéias pertinentes, vai-se ver que a supremacia da Constituição é tributária da idéia de superioridade do poder constituinte sobre as instituições jurídicas vigentes. Isso faz com que o produto do seu exercício, a Constituição, esteja situado no topo do ordenamento jurídico, servindo de fundamento de validade de todas as demais normas.25

E como a Constituição se coloca em posição dominante do ordenamento, inclusive

como fonte primária da produção normativa, ditando competências e procedimentos para a

elaboração dos atos normativos inferiores, nenhuma norma poderá com ela confrontar. Caso

isto ocorra, é deflagrado o mecanismo do controle de constitucionalidade, de competência do

Poder Judiciário, visando à retirada da norma do ordenamento jurídico, por nula que é.

7. A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 61, § 2º DA LEI 11.101/2005 –

PREJUÍZO À SEGURANÇA JURÍDICA

Realizados breves comentários acerca de institutos indispensáveis ao

desenvolvimento da proposta deste ensaio, almeja-se adiante demonstrar a lesão que a

disposição do artigo 61, § 2º, da Lei 11.101/05 importa à segurança jurídica. Em primeiro

lugar, conceituar-se-á o instituto da novação, evidenciando desde já a imprecisão da referida

norma e a problemática que dela surge. Após, será explanado o prejuízo causado ao ato

jurídico perfeito e a coisa julgada, elencando os efeitos que promovem inconsistência às

relações jurídicas, concluindo, assim, pela inconstitucionalidade da regra ora em comento.

7.1 A NOVAÇÃO DAS OBRIGAÇÕES DO DEVEDOR NO PROCESSO DE

RECUPERAÇÃO JUDICIAL

A novação das obrigações do devedor é um dos principais efeitos deflagrados na

recuperação judicial e consequência direta da sua concessão. Fruto do texto do artigo 59, o

plano de recuperação apresentado pelo devedor e aprovado pelos credores constitui novas

obrigações, que extinguem as anteriores, subordinando todos os envolvidos no procedimento.

A constituição destas novas obrigações não se trata nem de transformação nem de

conversão, mas sim da geração de uma relação obrigacional nova, abolindo a anterior. Esta

figura produz o mesmo efeito do pagamento em relação à obrigação que é novada, sendo, por

25 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 163.

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isso, chamada de sucedâneos do pagamento.26

A novação possui natureza contratual e é consequência do acordo de vontade das

partes. A nova obrigação que se constitui em nada é vinculada à anterior, já que sua

composição promove a aniquilação daquela. É, enfim, o estabelecimento de um direito de

crédito inteiramente novo, que se coloca no espaço daquele que o precedeu. O principal efeito

da novação é, portanto, a extinção da primeira obrigação, de modo que somente a nova

relação passa a vincular as partes.

Outro efeito é aquele previsto no artigo 365 do Código Civil, que prescreve a

exoneração dos devedores solidários, salvo se expressamente ratificarem a novação. Bem

assim, também os acessórios e garantias da dívida são extintos, sempre que não houver

ressalva em sentido oposto.

Neste ponto pode-se observar a primeira problemática que se impõe à sistemática

anotada pela lei, pois o instituto da novação dispõe expressamente a necessária extinção das

obrigações anteriores pela constituição de outras novas, mas a Lei 11.101/2005 prevê a

possibilidade da sua reconstituição, se se decretar a convolação da recuperação em falência.

Sobre o tema, Fabio Ulhoa Coelho dispôs a seguinte solução:

As novações, alterações e renegociações realizadas no âmbito da recuperação judicial são sempre condicionais. Quer dizer, valem e são eficazes unicamente na hipótese de o plano de recuperação ser implementado e ter sucesso. Caso se verifique a convolação da recuperação judicial em falência, os credores retornam, com todos os seus direitos, ao status quo ante.27

Já de início começam a surgir as primeiras inconsistências, em razão da natureza do

instituto que deveria extinguir as obrigações anteriores, pois certos negócios jurídicos não

comportam a imposição de condição, mesmo pela lei, em razão de sua própria natureza. Sobre

o tema, a lição de Carlos Roberto Gonçalves:

[...] não comportam condição os negócios jurídicos unilaterais que devam ter eficácia imediata, não admitindo incerteza, como a aceitação e a renúncia de herança, ou legado, a aceitação ou impugnação de inventariante ou testamenteiro, a compensação, os títulos de crédito, a revogação, a denúncia, a existência de pessoa jurídica, a procuração judicial, a interpelação, a fixação de domicílio, a gestão de negócios e a escolha nas obrigações alternativas.28

26 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. V.2. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 314.

27 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial: direito de empresa. V.3. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 425.

28 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Parte Geral V.1. 4. ed. São Paulo:

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E como o legislador concedeu ao devedor a liberdade de propor qualquer meio de

recuperação no plano, é plenamente possível a existência de algum negócio jurídico incapaz

de reconstituição à condição original, mas que ficariam sujeitos à condição resolutiva de

cumprimento do plano prevista no artigo 61, §2º, da lei de recuperação. É de se notar que os

próprios títulos de crédito estão inseridos nesta hipótese, sendo uma das mais comuns fontes

de obrigação do devedor em recuperação.

Como exemplo da situação incerta que se forma com a reconstituição dos direitos

dos credores, ainda que haja a ressalva daquilo que já fora eventualmente cumprido, pode-se

citar a existência de um crédito em que se instituíram novas condições de pagamento, em

parcelas sucessivas e iguais, com a exclusão dos encargos moratórios e, consequentemente,

redução considerável do montante total a ser pago.

Se for decretada a falência do devedor no mês em que foi efetuado o pagamento da

última parcela, a obrigação então estará cumprida e o negócio consumado, sendo inatingível

pela reconstituição à posição anterior. Por outro lado, se a convolação se der no mês anterior,

ainda na iminência do último pagamento, a obrigação será reconstituída aos termos anteriores,

restabelecendo os acessórios que já importariam num montante de grande proporção,

descontando-se apenas o valor efetivamente pago. É, sem dúvida, uma situação de absoluta

volubilidade.

Resta claro que a posição adotada pela legislação, ao contrariar a natureza jurídica do

instituto da novação, criou uma série de incongruências lesivas à estabilidade das relações

jurídicas. Estas observações, aliadas as que adiante serão aduzidas, demonstram o prejuízo

causado ao ato jurídico perfeito, fruto da negociação e do livre exercício da autonomia da

vontade do devedor e dos credores.

7.2. A AFRONTA AO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA

O presente tópico pretende tratar especificamente do problema objeto deste trabalho,

que é a verificação da lesão à segurança jurídica gerada pelo contido no artigo 61, § 2º, da Lei

11.101/2005. Para tanto, a análise abrange duas observações distintas, demonstrando tanto o

prejuízo à coisa julgada como ao ato jurídico perfeito.

Nos termos já consignados, a proteção constitucional ao ato jurídico perfeito diz

respeito ao negócio jurídico, que resulta do exercício da autonomia da vontade realizado pelos

Saraiva, 2007. p. 271.

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agentes envolvidos. No processo de recuperação judicial, isto se dá através da propositura do

plano pelo devedor e da sua aprovação na assembleia geral de credores.

Constituído o ato, pela livre disposição das partes e na forma prevista pela legislação,

sem que haja por eles mesmos o estabelecimento de condição (e diga-se aqui, somente

naqueles negócios que a admitem, como já referido anteriormente), a sua existência, validade

e eficácia são soberanas, já que respeitados os requisitos legais para a formação do acordo,

não se admitindo limitação externa à relação contratual. Sendo lícito o acordo de vontades e

fundado na forma prevista em lei, não há como se admitir a restrição advinda da Lei

11.101/2005.

A reconstituição das obrigações dos credores, no caso de convolação da recuperação

em falência, é uma afronta a diversos princípios e normas já consagrados no ordenamento

jurídico. Permitir a livre aplicação do artigo representaria negativa de vigência às previsões de

formação e produção de efeitos dos negócios jurídicos em geral, que possuem como objeto

direitos disponíveis, implicando na desconsideração das relações contratuais.

As partes possuem capacidade e interesse, os direitos são disponíveis e a forma é

valida, mas ainda assim a lei determina a desconsideração das convenções estabelecidas,

gerando incerteza nas relações em plena eficácia. Ou seja, prever a desconsideração para a

generalidade dos acordos contidos no plano de recuperação é uma verdadeira contradição, já

que devedor e credores possuem total liberdade na negociação e definição das alterações que

julgarem convenientes.

Em se tratando de interesses em litígio, submetidos à jurisdição, compete ao Poder

Judiciário aplicar o direito incidente sobre o caso concreto. No processo de recuperação

judicial, ao Juízo compete tão somente a verificação da legalidade do interesse livremente

manifestado pelas partes, homologando o acordo ao final, em razão do modelo contratualista

adotado pelo legislador, onde impera a autonomia da vontade das partes. Esta decisão é

constitutiva por excelência, estabelecendo todo um novo cenário jurídico. Após o seu trânsito

em julgado, a tutela jurisdicional estará definitivamente outorgada e formará a coisa jurídica

material, conservando-se todas as disposições ali contidas (todas aquelas promovidas pelo

plano), que terão eficácia até mesmo fora da relação processual instaurada.

A sentença de homologação do plano declara a existência de direitos e constitui

diversas relações jurídicas novas, resolvendo a pretensão processual, a causa de pedir.

Consumado a preclusão e a possibilidade de discussão da sentença, seu conteúdo se torna

absolutamente imutável pela formação da coisa julgada material.

Mas permitir a reconstituição do direito dos credores representa verdadeira afronta ao

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instituto da coisa julgada, pois implica na destituição da imutabilidade e da certeza da

existência ou não de um direito, de uma obrigação. E então a relação tida como verdadeira e

imutável é extinta pela superveniência de um fato.

A lei previu um procedimento voltado a possibilitar a negociação entre credores e

devedor, conferindo-lhes a liberdade de exercer a autonomia da vontade e formar qualquer

negócio jurídico que julguem adequado. Quando ocorre a aprovação do plano, uma série de

novas disposições passam a vigorar, introduzindo as partes numa nova ordem jurídica.

Pois bem, a mudança nas relações jurídicas é bastante abrupta, passando ao

cumprimento das obrigações previstas no plano. Mas a convolação da recuperação em

falência promove a extinção das alterações, gerando absoluta e invariável incerteza nas

relações abrangidas, o que certamente é prejudicial para os envolvidos no procedimento.

A lesão à segurança jurídica é clara diante da invariável dúvida provocada nos

sujeitos das relações e nos efeitos econômicos imprevisíveis que dela decorrem. Como

exemplo, o passivo do devedor não será passível de previsão até o efetivo encerramento da

recuperação judicial, pois a qualquer momento seus débitos podem ser alvo de reconstituição,

retomando os acessórios e acrescendo consideravelmente o montante a ser pago pela

sociedade. Com tal acréscimo, em razão da insolvência, vários credores deixarão de receber

os seus créditos, notadamente aqueles que integram categorias com menor privilégio, pois

quanto maior o passivo, mais rapidamente o patrimônio é consumido.

Outra questão é quebra da isonomia entre os credores, afrontando aquele que é

inclusive o fundamento do sistema do processo de falência. O princípio da par conditio

creditorium representa, nas palavras de Gladston Mamede, “a preocupação em garantir que

todos os credores, titulares de créditos de mesma natureza, sejam tratados em igualdade de

condições.”29 Mas com a reconstituição dos créditos, que supostamente pretende resguardar o

interesse dos credores, pode ocorrer a manutenção das novas relações para parte dos credores,

onde já se consumou a obrigação, enquanto aqueles em que ainda há pendência de pagamento

retornarão às condições anteriores.

A previsão legal ora em comento instituiu condição lesiva ao ato jurídico perfeito e a

coisa julgada, promovendo diversas inconsistências avessas ao princípio da segurança

jurídica, voltado à promoção da certeza das relações jurídicas. Representa, assim, verdadeira

afronta ao contido no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal.

29 MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: Falência e Recuperação de Empresas. v.4. São Paulo: Atlas, 2006. p. 33.

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7.3. A INTERPRETAÇÃO SISTÊMICA DO ARTIGO 61, § 2º DA LEI 11.101/2005

A interpretação sistêmica do artigo em referência visa coaduná-lo ao sistema jurídico

como um todo, tendo como obrigação inafastável a sua perfeita interação com as normas de

maior hierarquia. O ponto inicial é, sem dúvida, a intenção do legislador ao instituir referido

dispositivo, a situação que pretende regular e quais efeitos pretende produzir. Tratando

especificamente do assunto e já prevendo as incongruências levantadas anteriormente no

presente trabalho, Sérgio Campinho proferiu o seguinte parecer, merecedor de transcrição

integral:

O texto normativo, traduzido no parágrafo 2º, do artigo 61, ao preconizar o estabelecimento dos direitos e garantias originalmente contratados, a favor dos credores, em virtude da decretação da falência por descumprimento de obrigação assumida no plano, poderia sugerir eventual conflito com a regra que emana de outro dispositivo normativo, o artigo 59, segundo o qual o plano de recuperação judicial implica novação dos créditos anteriores ao respectivo pedido, obrigando devedor e todos os credores a ele sujeitos. Entretanto, conflito real inexiste. A novação é regra que emerge do texto, e sobre ela não se pode ter dúvida. A lei não se vale de palavras vãs. Nenhum credor poderá postular qualquer direito em sua original formação, quando as obrigações previstas no plano forem cumpridas no interregno de dois anos, preconizado no caput do artigo 161 – estado legal de recuperação; nem poderá assim postular em relação àquelas que se vencerem após o citado período, embora não cumpridas, pois o que lhe cabe é requerer a execução específica da obrigação ou a falência do devedor, em ação própria, com apoio no artigo 94, consoante dispõe o artigo 62. Portanto, há novação. O que se deve enxergar na regra do parágrafo 2º, do artigo 61 é o estabelecimento de uma sanção. Uma pena, com finalidade marcantemente coercitiva, de modo a estimular o devedor a apresentar a seus credores um plano verdadeiramente viável, com obrigações que possa realmente honrar no período de dois anos seguintes à concessão da recuperação. Se assim não proceder, presume a lei que não tinha condições de aprovar com seus credores as obrigações contidas no plano, induzindo-os a celebrar um contrato judicial sem que, efetivamente, pudesse cumpri-lo. Vem aqui prestigiada a boa-fé objetiva que todos os contratantes devem guardar ao celebrarem um contrato (Código Civil, artigo 422). Desse modo, o descumprimento de qualquer obrigação prevista no plano, durante o estado de recuperação judicial do devedor, acarretará a convolação da recuperação em falência, sendo o devedor sancionado com o restabelecimento dos direitos e garantias nas condições originalmente contratadas.30

Para Campinho, a previsão do artigo representa uma sanção ao devedor, como forma

de coagi-lo à apresentação de um plano realmente viável, prestigiando o princípio da boa-fé

objetiva, regente de todas as relações contratuais Todavia, tal posição encontra resistência,

porquanto já visto em tópico específico que é nulo todo negócio jurídico onde o agente

30 CAMPINHO, Sérgio Campinho. Falência e recuperação de empresa: O novo regime da insolvência empresarial. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 174.

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manifesta a sua vontade eivada de má-fé, induzindo em erro a parte com quem contrata.

Por esta razão a norma não teria razão de ser, já que bastaria apenas arguir-se a

ausência de boa-fé do devedor, ou ainda o dolo, para que as alterações fossem declaradas

nulas e tomadas como inexistentes. Inclusive, se o anseio do legislador fosse de fato sancionar

o devedor de má-fé, certamente não haveria de ressalvar os atos validamente praticados. A

má-fé na contratação macula o negócio jurídico de forma irreversível, não aproveitando

nenhum de seus efeitos, por nulo que é.

Por outro lado, Fábio Ulhoa Coelho defende que a reconstituição dos créditos à

posição original se deve à proteção do interesse dos credores, uma vez que a aprovação do

plano se dá em prejuízo de seus direitos, através de diversas concessões que reduzem o valor

de seus créditos. Refere ainda que esta alteração só tem razão de ser no interesse público que

há na recuperação do devedor. Com a falência este interesse não mais existiria, motivando a

reconstituição dos créditos.31

Ocorre que a motivação dos credores não se dá exclusivamente em razão do interesse

social que há na manutenção da sociedade empresária e do empresário, mas ainda mais

porque esta representa muitas vezes a única possibilidade de recebimento dos seus créditos,

além de importar na continuação da contratação e, naturalmente, da geração de receita. É

neste sentido que o credor manifesta o seu interesse na aprovação do plano, de forma livre e

consciente.

Além disso, com a convolação da recuperação em falência, de fato não mais subsiste

o interesse social soberano na manutenção da atividade empresária. E é justamente por isso

que não se pode reconstituir os créditos à posição anterior, em razão da ausência de qualquer

motivo a justificar o sacrifício da estabilidade das relações jurídicas.

Esta interpretação é inclusive mais benéfica ao interesse dos credores e da sociedade,

já que o único controle praticado residiria justamente no exame de viabilidade da manutenção

da sociedade empresária. Os credores, buscando o seu efetivo interesse, somente sacrificariam

seus créditos se realmente se convencessem da efetiva capacidade de recuperação.

Bem assim, compete ao judiciário ao conceder o procedimento verificar com

competência a real possibilidade de soerguimento da atividade, economizando importantes

recursos da sociedade. Essa é, em verdade, a melhor interpretação possível para a sociedade,

pois se se verificar a inviabilidade da manutenção proceder-se-á desde logo à sua falência, em

momento muito mais oportuno para isso.

31 COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 209.

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Conclui-se claramente que a disposição do artigo 61, § 2º não possui razão alguma

que justifique a sua manutenção no ordenamento jurídico, em razão do sacrifício da segurança

jurídica e promoção da incerteza. A melhor interpretação seria aquela que entende pela

contradição entre o texto legal e o disposto na constituição, declarando a sua

inconstitucionalidade.

Nesta hipótese, o exame de viabilidade realizado com absoluta seriedade se

encarregaria de decretar a falência daqueles empresários incapazes de se manter no mercado,

economizando recursos. A Assembleia Geral de Credores, no exercício da autonomia da

vontade, negociaria com o devedor as condições de modificação dos créditos, viabilizando a

recuperação da atividade. E, se ainda assim o devedor não fosse capaz de promover o

soerguimento de seus negócios, a falência seria decretada, mantendo-se a situação jurídica em

que ingressou com a homologação do plano de recuperação, prestigiando a estabilidade das

relações jurídicas legalmente contratadas.

Sendo assim, por absoluta contrariedade ao disposto no artigo 5º, XXXVI, da

Constituição Federal, como instrumento de promoção da incerteza nas relações sociais e

prejuízo à segurança jurídica, é o artigo 61, § 2º, da Lei 11.101/2005 inconstitucional.

Considerar o contrário seria interpretar a lei de falências e de recuperação de forma restritiva,

e não sistêmica, desconsiderando as demais disposições contidas no ordenamento jurídico.

8. CONCLUSÃO

A Lei 11.101/2005, que teve como fonte o direito comparado, está fundada na função

social desempenhada pela empresa. A instituição da figura da Recuperação Judicial veio

atender um interesse social soberano, ao qual todos os demais interesses (público ou privado)

devem se conformar.

A fim de viabilizar a retomada da atividade empresarial, a legislação em vigor

superou o antigo sistema da concordata e instaurou procedimentos que visam à negociação

entre credores e devedor no processo de recuperação. Neste sentido, cumpre ao devedor a

apresentação de um plano de recuperação viável, que passará pelo crivo dos credores reunidos

em Assembleia.

Aprovado o plano e homologada a transação pelo Juiz competente, à sociedade

empresária e ao empresário é concedida a recuperação judicial, assim, as pessoas relacionadas

deverão cumprir as obrigações contidas no plano, em detrimento daquelas anteriores ao

pedido de recuperação. Como bem destacado, este procedimento representa a conformação da

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manifestação de vontade do devedor e dos credores, de natureza contratual portanto,

formando novos negócios jurídicos.

E a lei é categórica em classificar estes negócios jurídicos em novações (art. 59), ou

seja, em obrigações supervenientes voltadas à extinção das anteriores. Contudo, tais

obrigações extintas são posteriormente reconstituídas em caso de convolação do

procedimento recuperatório em falência, por força da previsão contida no art. 61, § 2º, da Lei

de Falências e Recuperação de Empresas.

Esta inconsistência é geradora de instabilidade nas relações jurídicas, produzindo

efeitos contrários àqueles previstos pelas partes envolvidas no processo. A disposição legal,

assim, desconsidera por completo a vontade manifestada pelas partes e transgride a

homologação proferida pelo Juízo.

Isto porque as partes contratam no exercício da autonomia da vontade, ainda que em

Juízo e sobre interesses em litígio, vinculados ao interesse social dominante. Mas no caso de

convolação em falência este interesse não mais subsiste, deixando de exercer qualquer

influência sobre as disposições do processo, que passam a vigorar exclusivamente sob a égide

do interesse das partes.

No curso do processo de Recuperação Judicial, as partes convencionam entre si,

formulando novos negócios jurídicos, que são em seguida homologados pelo Juízo

competente, constituindo uma nova ordem jurídica, e formando, por conseguinte, a coisa

julgada. Desta feita, a reconstituição das obrigações dos credores à posição originária

representa verdadeira lesão à segurança jurídica, pois promove grande instabilidade nas

relações jurídicas, resultado da própria natureza das obrigações que passam a vigorar.

Com estas considerações em vista, passa-se à recapitulação da proteção jurídica à

coisa julgada, preconizada no art. 5, XXXVI, da Constituição Federal. Tal norma prevê a

vedação à lesão ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, justamente a fim de manter a

previsibilidade dos efeitos queridos quando da formulação dos negócios jurídicos e da

aquisição de direitos.

Peça essencial da formação e sistematização de todo ordenamento jurídico, a

Constituição Federal é a norma de maior hierarquia, nela estão definidos todos os poderes e

competências do estado democrático de direito brasileiro, ou seja, é somente com base nela

que se pode dizer que determinado exercício de poder é legítimo. E nesta posição de

prevalência, a fim de manter a organização do poder como instituída pela sociedade, a carta

magna é rígida, de modo que a sua revisão só se permite através de um processo com

requisitos legislativos bastante intransigíveis.

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Com base nestas características é que se elucida o princípio da supremacia

constitucional, onde todas as normas de hierarquia inferior devem se conformar à

Constituição, visando à promoção das finalidades máximas definidas pela sociedade

brasileira. Qualquer dispositivo que represente confrontação aos valores lá instituídos deve ser

declarado inconstitucional e, por consequência, nulo.

A interpretação mais adequada à sistemática do ordenamento jurídico, atendendo à

supremacia constitucional, seria aquela que considerasse a reconstituição das obrigações dos

credores inconstitucional. Nesta hipótese, caberia ao exame de viabilidade, como de fato deve

ser, examinar a efetiva possibilidade de cumprimento do plano apresentado.

Se se averiguar que a recuperação da atividade empresária é inviável, o procedimento

é prontamente convertido na falência da sociedade empresária e do empresário, em momento

muito mais oportuno para se promover a realização do ativo. Por outro lado, àqueles viáveis é

concedida a recuperação, com grandes possibilidades de êxito e devido cumprimento das

obrigações contidas no plano.

Mas ainda que constatada a viabilidade da atividade, se o plano não for cumprido, a

convolação da recuperação em falência não deverá acarretar a reconstituição das obrigações

anteriores ao pedido, em homenagem ao princípio da segurança jurídica. Somente em caso de

má-fé do devedor é que se admite a inobservância das disposições formuladas entre as partes,

por nulas que são.

Diante das considerações elencadas ao longo do presente trabalho e em razão da

flagrante lesão à segurança jurídica e à contradição ao art. 5º, XXXVI, da Constituição

Federal, é que se conclui pela inconstitucionalidade do art. 61, § 2º, da Lei 11.101/2205. A

produção de efeitos por esta norma é contrária ao sistema jurídico vigente e produz reflexos

práticos prejudiciais ao regular exercício dos direitos subjetivos.

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O PODER MIDIÁTICO E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS*

MEDIA POWER AND FUNDAMENTAL RIGHTS

Dagmar José Belotto**

Matheus Felipe de Castro***

RESUMO

O presente artigo realiza uma análise da relação assimétrica de poder entre mídia e sociedade,

abordando a natureza sócio-jurídica dos meios de comunicação em massa e traçando um

panorama dos efeitos dessa relação para os Direitos Fundamentais. Realiza tal objetivo

mediante o estudo dos Direitos Fundamentais e liberdades mais amplas envolvidas na relação

mídia-cidadão, ponderando sobre o conflito entre esses princípios constitucionais. Conclui

com a constatação da necessidade de uma ampla reforma midiática no Brasil, que possa

ampliar o direito à informação, não mediante a limitação do direito de imprensa, mas diante

de uma ampliação de seu controle pelo povo efetivo, superando-se a atual oligopolização

desses meios por poucas grandes empresas que vendem à sociedade a sua própria visão de

mundo, permeada por seus próprios interesses.

PALAVRAS-CHAVE: Poder Midiático; Direitos Fundamentais; Conflito entre Direitos

Fundamentais; Regulação da Imprensa.

ABSTRACT

This article provides an analysis of the asymmetrical power relationship between media and

society, addressing the socio-legal means of mass communication and plotting an overview of

the effects of this relationship for Fundamental Rights. Perform this goal through the study of * Artigo produzido no Grupo de Pesquisas Direitos Fundamentais Civis, do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNOESC. ** Dagmar José Belotto é Graduado em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina – UNOESC, câmpus de Videira e pesquisador do Grupo Direitos Fundamentais Civis, do Programa de Pós-graduação em Direito da UNOESC, câmpus de Chapecó. E-mail: [email protected]. *** Matheus Felipe de Castro é Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Maringá-UEM, Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC, professor adjunto II do Departamento de Direito da UFSC, pesquisador do Grupo Direitos Fundamentais Civis, do Programa de Pós-graduação em Direito da UNOESC, câmpus de Chapecó e advogado em Florianópolis. E-mail: [email protected].

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fundamental rights and freedoms involved in the broader media-citizen relationship,

pondering the conflict between these constitutional principles. It concludes with the

realization of the need for a comprehensive reform media in Brazil that could extend the right

to information, not by limiting the right of the press, but before an expansion of its effective

control by the people, beating up the current oligopoly of these media by a few large

companies that sell the company to its own world view, permeated by their own interests.

KEYWORDS: Media Power; Fundamental Rights; Fundamental Rights Conflict between;

Regulating Press.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho busca fixar a compreensão sobre os poderes exercidos pela mídia

e suas consequências para o respeito aos Direitos Fundamentais. A questão central, qual seja,

o exercício indiscriminado de um direito de livre iniciativa, o direito de imprensa, tem sido

alvo de grandes debates políticos, sociais e jurídicos, principalmente no que tange à

regulamentação de um setor que pretende permanecer alheio ao sistema de controle social

exercido pelo Ordenamento Jurídico do Estado, num regime liberal de “laissez-faire”.

No Brasil, após o término do Regime Militar, a imprensa conquistou o direito

constitucional de livremente informar e utilizar qualquer meio para propagar a notícia, sem

exercícios de controles prévios da informação divulgada. Decorrência disso a mídia adquiriu

grande influência em todos os setores da sociedade, mediante seu poder de fixar

comportamentos mediante a divulgação de certos padrões e opiniões valorativos. Desta feita,

a mídia ocupou lugar central na política nacional, desempenhando, outrossim indiscutível

papel na atividade de construir opiniões, propagando consensos criados ou assumidos por ela

mesma.

Essa atividade no Brasil, fruto do regime constitucional e administrativo de

concessões, passou a ser oligopolizada por poucos grupos familiares, que exploram a notícia

com nítidos fins comerciais, acarretando o nascimento da denominada indústria da mídia.

Esse monopólio trata a informação como propriedade particular dos proprietários dos órgãos

informadores, num tempo onde o próprio exercício indiscriminado do direito de propriedade

foi questionado pela sua necessária função social.

É natural que, frente ao direito de informar (livre iniciativa no setor de imprensa) e

de ser informado (titularidade pública do direito à informação), haja o reconhecimento de uma

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esfera inatingível do homem a ser preservada: os chamados direitos da personalidade. Tratam-

se de direito chamados essenciais, emanações diretas da vida em sociedade, entre o direito à

integridade moral do homem, à sua imagem, à sua privacidade e à sua intimidade.

O problema proposto neste trabalho centrou-se na forma da violação de direitos

fundamentais decorrentes da manipulação de informações pelos poderes privados dos Órgãos

de Comunicação em massa e o papel de um Estado de Bem-Estar frente a essa realidade.

Outrossim, o objetivo geral do trabalho é investigar como ocorre a influência

midiática na manipulação da sociedade, suprimindo muitos direitos fundamentais do cidadão

no processo informativo, o que resulta em um conflito de Direitos Fundamentais de quem

informa e de quem é informado, muitas vezes respaldado pela inação do Estado que tem o

dever de regular essa atividade privada como qualquer outra.

PODER MIDIÁTICO E DIREITOS FUNDAMENTAIS

Para além da questão filosófica da existência ou não de verdades absolutas, há muito

já se fixou o pensamento de que em sociedade, as visões de mundo e os fatos são significados

por intermédio de construções sociais complexas que partem das atividades humanas (práxis),

aí incluidas as relações econômicas, as relações de poder e também as relações de linguagem,

significadoras do universo humano, ou seja, daquilo que pode ser historicamente significado.

À já superada questão da distinção entre verdade e falsidade se sobrepõe a questão

da construção social de visões de mundo que induzem certos comportamentos sociais e não

outros. Embora em uma sociedade pluralista o embate de idéias seja saudável e esperado,

poder-se-ia questionar sobre a legitimidade dessa construção por instrumentos privados que

passam ao largo de um controle democrático mais efetivo.

Assim, no caminho da “industrialização da mídia”, a notícia não é mais percebida

sob o signo dual da verdade ou falsidade, mas sim sob os signos sociais da credibilidade,

plausibilidade e confiança, pelos quais para que um fato seja aceito como real (≠ verdadeiro)

basta que apareça como crível ou plausível como visão interpretativa da realidade.

O ponto culminante da industrialização da mídia se operou na medida em que o

exercício da atividade de imprensa se tornou uma atividade de conveniência de pequenos

grupos familiares que exercem um verdadeiro monopólio do setor.1

Esse monopólio dos meios de comunicação suprime dados imprescindíveis para o

bom entendimento do que é noticiado, ocorrendo manipulação da informação. A sociedade,

1 THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

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como um todo, acaba sendo violentada frontalmente em seus direitos, na medida em que pode

acabar por ser controlada pelo pensamento contruído por esses órgãos, na medida em que as

informações são fornecidas como “verdades absolutas” consumidas de forma acrítica.2

Assim, por se tratar de um assunto diretamente ligado a inúmeros bens jurídicos

salvaguardados pela Constituição Federal de 1988, e por haver uma relação de conflito entre

esses direitos decorrentes da pratica abusiva do ofício de informar, vislumbra-se um tema

altamente difundido, problemático e ao mesmo tempo carente de regulamentação.

O PODER PRIVADO DA MÍDIA E A COMUNICAÇÃO SOCIAL NA

CONSTITUIÇÃO DE 1988

A noção atual de imprensa está itrinsecamente interligada com a noção de “opinião

pública”, conceitos correlatos que se desenvolveram principalmente a partir do Iluminismo,

como uma face da resistência do povo frente ao Estado do Ancien Régime. Andrade afirma

que: [...] a condição de base para a conquista da liberdade era a garantia da livre expressão das opiniões no espaço público, o que só será possível com a consolidação e institucionalização legal da opinião pública como uma força social ativa e qualificada contra o poder monárquico.3

Segundo esse autor, Opinião Pública, quer significar é: “o juízo coletivo adotado e

exteriorizado no mesmo direcionamento por um grupo de pessoas com expressiva

representatividade popular sobre algo de interesse geral”.4

Nesse mesmo norte, Chauí ensina que: A opinião pública era um juízo emitido em público sobre uma questão relativa à vida política, era uma reflexão feita em público e por isso definia-se como uso público da razão e como direito à liberdade de pensamento e expressão. 5

O conceito abstrato de opinião pública surge, portanto, como um senso comum

médio do homem burguês frente ao Poder Absolutista, com claras finalidades de resistência

ao Antigo Regime.

Assim, nesse percurso histórico, a mídia se consolidou como importante instrumento

de formação de opiniões no meio social hodierno. Nesse sentido, Silva leciona que diversos

temas “são atravessados e marcados pela influência dos meios de comunicação de massa.

2 ANDRADE, Fábio Martins de. Mídia e Poder Judiciário: a influência dos órgãos da mídia no processo penal brasileiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 47 3 ANDRADE, Fábio Martins de. Op. Cit. p. 36. 4 ANDRADE, Fábio Martins de. Op. Cit. p. 45. 5 CHAUI, Marilena. Simulacro e poder: Uma análise da mídia. São Paulo. Fundação Perseu Abramo. 2006, p. 10.

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Devido aos avanços tecnológicos que fazem com as informações veiculem de forma rápida e

real, o domínio da mídia cresce de forma exacerbada”6.

Evidentemente, tal instituição passou a ser objeto da tutela constitucional, posto que,

passou-se a proteger o direito à informação e a liberdade de expressão. A Constituição da

República Federativa do Brasil, de 1988, reservou espaço especial para normatizar a

comunicação social, em seu art. 220 e seguintes, fixando nesse capítulo o direito do Poder

Executivo outorgar permissões, concessões e autorizações de uso para esses serviços.7

Mas a Constituição de 1988 não se limitou a regular a concessão desse serviço aos

particulares. Em seus artigos 220 a 224, no interior do Título “DA ORDEM SOCIAL”, criou

capítulo específico para normatizar a questão da comunicação social.

Comunicação social na visão de Silva é “[...] a comunicação destinada ao público em

geral, transmitida por processo ou veículo, dito meio de comunicação social”.8 Tal definição é

extremamente simplista visto que suprime a definição dos termos empregados, bem como,

sonega a principal finalidade da comunicação.

Definição mais precisa foi elaborada pela comissão encarregada da elaboração do

anteprojeto constitucional da Constituição Brasileira de 1988, Comissão Afonso Arinos,

formada por 33 (trinta e três) membros e presidida por Afonso Arinos de Melo Franco. Os

constituintes preceituaram no art. 399 daquele projeto o que seria compreendido pelo sistema

de comunicação social. Nesse sentido é a redação do artigo: Art. 399. O sistema de comunicação social compreende a imprensa, o rádio e a televisão e será regulado por lei, atendendo à sua função social e ao respeito à verdade, à livre circulação e à difusão universal da informação, à compreensão mútua entre os indivíduos e aos fundamentos éticos da sociedade.9

O constituinte do anteprojeto constitucional de 1988, na redação do presente artigo,

buscou esclarecer de forma a não restar dúvidas do que seria considerado como comunicação

social. Ademais, já se trabalhava a hipótese da responsabilidade pela informação, tendo esta

que cumprir sua função social conjuntamente com o respeito à verdade.

Além do compromisso com a “verdade”, aqui entendido como confiabilidade,

pensado na elaboração do anteprojeto, outra preocupação surgida foi a de que a informação

deveria ser transmitida de forma uníssona a toda a população. A informação cumpriria com

sua função social consistente em informar todos igualmente e em todos os níveis sociais.

6 SILVA, Ellen Fernanda Gomes da e SANTOS, Suely Emilia de Barros. O impacto e a influência da mídia sobre a produção da subjetividade. Faculdade do Vale do Ipojuca – FAVIP. [2009?] p.3. 7 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 05 out. 1988. 8 SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 3. ed. São Paulo: Malheiros. 2007, p. 823. 9 BRASIL. Anteprojeto Constitucional (1986). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 26 set. 1986.

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Todavia, a função social não se esgotaria em apenas informar a todos, mas sim que todos

tivessem acesso a esta, podendo compreender o seu significado e sentido.

O texto constitucional de 1988 foi aprovado com expressa menção a vedação da

censura, trazendo no artigo 220, § 2º tal dispositivo, sendo, portanto, aprovado conforme o

texto do anteprojeto constitucional de 1986.

No que tange a atual redação da Constituição Federal, quanto aos sistemas de

comunicação social, nenhum de seus dispositivos faz menção expressa ao o que seria esse

sistema, trabalhando apenas a questão da propagação da informação, a não censura, a

proibição de monopólio ou oligopólio, além de questões de políticas públicas para o bem

atendimento da sociedade, bem como os regimes de outorga desse serviço.

Não obstante essa falta de definição da abrangência do sistema de comunicação

social, a Constituição de 1988 previu a livre circulação de notícias e afins, pelos diversos

meios de comunicação, sem que sofressem qualquer restrição. Assim, Moraes preceitua que

“se pretende proteger nesse capítulo é o meio pelo qual o direito individual constitucional

garantido será difundido, por intermédio dos meios de comunicação de massa”.10 Assim, a

atual norma constitucional visou proteger o meio como será difundida a informação e não se

importou em definir o que seria compreendido como comunicação social.

Nesse norte, vê-se claramente que o constituinte buscou tutelar apenas a liberdade de

comunicação. Conceituando liberdade de comunicação, Silva preceitua que: A liberdade de comunicação consiste em conjunto de direitos, formas, processos e veículos que possibilitam a coordenação desembaraçada da criação, expressão e difusão do pensamento e da informação. É o que se extrai dos incisos IV, V, IX, XII e XIV do art. 5º da CF, combinados com os arts. 220 a 224. Compreende ela as formas de criação, expressão e manifestação do pensamento e de informação e a organização dos meios de comunicação [...]11.

Fácil concluir que a CRFB/88 protege de maneira ampla a manifestação do

pensamento, a criação, a expressão e a informação, independentemente do meio utilizado para

a sua propagação. Veda-se então, qualquer forma de restrição que possa causar embaraço ao

pleno exercício da liberdade de informação por intermédio dos meios de comunicação. Nesse

sentido é a redação do art. 220, caput e § 1º, da Constituição Federal:

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

10 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas. 2002, p. 1988. 11 SILVA, José Afonso da. Op. Cit. p. 824.

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§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.12

Dessa redação, resta garantido constitucionalmente a plena liberdade de informações

jornalísticas em qualquer veículo de comunicação social, sendo que qualquer restrição a esse

direito gera possibilidade de reparação do dano proporcional à lesão sofrida.

Não bastasse a possibilidade de reparação do dano, fora estabelecido a vedação a

qualquer tipo de censura. Proibiu-se no texto constitucional, a censura de caráter ideológico,

político ou artístico (art. 5º, inciso IX). Conquanto, não se proíbe a vedação, eventualmente

imposta pelo Poder Judiciário, com fundamento em outros valores constitucionais, posto que,

não se configura censura, em virtude de haver prévia permissão constitucional para tal.

Assim, vedou-se a denominada “censura administrativa”, que seria aquela exercida pelos

órgãos do Poder Executivo.13

Veda-se também a censura prévia que ocorre quando há intervenção oficial

impedindo a divulgação de determinada matéria antes mesmo de sua confecção, e a censura

posterior, consubstanciada na ação após a confecção da matéria e antes da divulgação,

impedindo com isso que a matéria circule livremente.

Além da vedação à censura, os meios de comunicação, por serem veículos de

expressão do pensamento e de informação não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de

monopólio ou oligopólio. Por isso, a União reservou para si a competência para explorar,

direta ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de radiodifusão sonora,

de sons e imagens, que reputou públicos, conforme bem explicitado no art. 21, inciso XII,

alínea a, da Constituição de 1988.

Vê-se que a Constituição, apesar de não tratar com a mesma minúcia do seu

anteprojeto de 1986, reservou atenção especial para o tema da censura. Conquanto, após

passar por um período ditatorial, submetida as arbitrariedades e empecilhos do regime militar,

a imprensa passou a ter seus direitos de atuação garantidos.

A EXPLORAÇÃO DA ATIVIDADE MIDIÁTICA.

A exploração da atividade midiática (serviços de radiodifusão de sons e de imagens),

é outorgada pela União, por intermédio dos instrumentos administrativos da concessão,

12 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 05 out. 1988. 13 SILVA, José Afonso da. Op. Cit. p. 825.

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permissão ou autorização a entidades de direito público estadual e municipal, bem como às

entidades privadas.

A criação de empresas jornalísticas e de radiodifusão deve seguir alguns parâmetros

legais. Diga-se de antemão, que para as empresas conseguirem a permissão para promover a

exploração comercial desse serviço, não poderão prejudicar os interesses coletivos

considerados lato sensu, sendo totalmente legítimo e legal a constituição desse

empreendimento visando lucro. Diga-se ainda, que nos dias hodiernos tal finalidade é

almejada pelos órgãos midiáticos que passaram a adotar verdadeira forma de empresa privada.

Tratando a questão da propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão de sons

e imagens, o art. 222, da CRFB/88, dispõe que: Art. 222. A propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e imagens é privativa de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, ou de pessoas jurídicas constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sede no País. § 1º. Em qualquer caso, pelo menos setenta por cento do capital total e do capital votante das empresas jornalísticas e de radiodifusão sonora e de sons e imagens deverá pertencer, direta ou indiretamente, a brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, que exercerão obrigatoriamente a gestão das atividades e estabelecerão o conteúdo da programação. § 2º A responsabilidade editorial e as atividades de seleção e direção da programação veiculada são privativas de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, em qualquer meio de comunicação social. § 3º. Os meios de comunicação social eletrônica, independentemente da tecnologia utilizada para a prestação do serviço, deverão observar os princípios enunciados no art. 221, na forma de lei específica, que também garantirá a prioridade de profissionais brasileiros na execução de produções nacionais. § 4º. Lei disciplinará a participação de capital estrangeiro nas empresas de que trata o § 1º. § 5º. As alterações de controle societário das empresas de que trata o § 1º serão comunicadas ao Congresso Nacional.14

Através da análise desse dispositivo, vê-se que, o controle diretivo da empresa

jornalística e de radiodifusão de sons e imagens deve pertencer a brasileiros natos ou

naturalizados há mais de dez anos. Em se tratando de pessoas jurídicas, pelo menos 70% do

capital social votante deve pertencer a brasileiros natos ou naturalizados, além de terem sido

constituídas sob a égide das leis brasileiras. Com tais medidas, o constituinte buscou limitar a

participação de estrangeiros, bem como a de capital estrangeiro nessas empresas, todavia

deixou aberto para lei complementar regulamentar a participação desse capital nas empresas.

Regulamentando o parágrafo quarto do citado artigo, o Governo Federal elaborou a

Lei nº 10.610 de 2002, que permitiu a participação de capital estrangeiro nos meios midiáticos

a 30% (trinta por cento) de todo o capital da empresa.

14 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 05 out. 1988.

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Não obstante as exigências constitucionais acima expostas, o pedido de criação da

empresa midiática deve obedecer as exigências normais e comuns de registro a qualquer firma

ou empresa. Assim sendo, o pedido deverá ser encaminhado no Registro Civil das Pessoas

Jurídicas, seguindo o procedimento disposto nos art. 122 a 126, da Lei nº 6.015/73,

apresentando o rol de documentos expressos no art. 123, da referida lei.

Da luta comercial consubstanciada na venda da notícia, tem-se que, nesse duelo de

gigantes para ocupar o topo da representatividade comercial, algumas empresas acabaram

sendo absorvidas por grandes grupos, gerando monopolização e oligopolização nas atividades

de comunicação, o que seria proibido pelo texto constitucional brasileiro.

Para as empresas midiáticas, assim como para qualquer empresa capitalista, o

domínio do mercado é uma meta a ser alcançada. Porém, apesar da vedação legal, verifica-se

que a mídia brasileira é controlada por apenas oito famílias, sendo três grupos nacionais e

cinco regionais. Não obstante esse domínio familiar se constata que apenas três grupos

familiares nacionais, estão em quase 100% do território nacional.15

Elucidando a questão das concessões para grupos familiares, Bayma (2001 apud

CABRAL 2005) leciona que: [...] dentre os maiores beneficiados da distribuição de concessões de radiodifusão destacam-se: em primeiro lugar, a família do ex-presidente José Sarney, tendo, em nome de parentes, 39 concessões de rádios e TVs em cinco cidades do Maranhão. Em segundo, aparece Roberto Marinho como titular de 27 concessões de rádio e TV em 13 cidades. Depois, seguem: o grupo Saad, da TV Bandeirantes, com 18 concessões, mesmo número de Edir Macedo, da Rede Record, e o Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) com cinco concessões.16

Utilizando-se de falhas deixadas pela lei, além de descumprir regras devidamente

positivadas, a mídia usufrui ao seu bel prazer dos serviços de comunicação, sem que o Estado

realize sua função constitucional de regulamentar sua atividade, desenvolvendo parâmetros

mínimos para a regulamentação das normas mais gerais previstas na Constituição.

O prazo de duração das concessões e permissões está disposto no art. 223, § 5º da

Constituição de 1988, sendo de dez anos para emissoras de rádio e de quinze para as de

televisão, sendo que elas tem sido renovadas indefinidamente, sem um debate mais amplo na

sociedade sobre modificações em sua estrutura, embora a própria lei exija o cumprimento de

15 CABRAL, Eula Dantas Taveira. Os grupos de comunicação e o cenário midiático brasileiro. Verso e reverso, revista da comunicação. São Leopoldo, RS. Ano XIX - 2005/2 – N. 41. http://www.unisinos.br/_diversos/revistas/versoereverso/index.php?e=5&s=9&a=42. 16 CABRAL, Eula Dantas Taveira. op. cit.

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certas condições pré-estabelecidas contratualmente, além doencaminhamento de pedido que a

ser analisado pelo Congresso Nacional.17

Na analise do pedido de renovação, o Congresso deverá estar atento às exigências

legais e regulamentares impostas quando do ato de concessão ou permissão. Nesse norte, a

empresa para conseguir a renovação deverá deixar demonstrado que cumpriu com as

finalidades educacionais, culturais e morais a que se obrigou, e que ainda há condições

técnicas para a continuação das atividades e que o interesse público clama pela sua

existência.18

Por todas as exigências apresentadas, nota-se que se trata de um direito

condicionado, por isso, o Presidente da República pode entender que não é o caso de renová-

lo. Contudo, o ato de não renovação, por força do § 2º do artigo 223, só prevalecerá se for

aprovado por pelo menos dois quintos dos membros do Congresso Nacional, em votação

nominal.19

Decorrente das formalidades exigidas pela legislação, a concessão e a permissão de

uso dos serviços de radiodifusão e televisão, estão sujeitas a duas formas de controle de sua

delegação, sendo um controle prévio, onde serão analisados os requisitos para a sua outorga,

devendo a empresa ser selecionada via licitação, e um controle sucessivo, que se concretiza

com a aprovação pelo Congresso Nacional do ato de outorga ou renovação/revogação da

concessão ou permissão.20

DIREITOS FUNDAMENTAIS ENVOLVIDOS NA RELAÇÃO MÍDIA-CIDADÃO

Os direitos fundamentais são frutos de uma progressiva ampliação e transformação

histórica, estando umbilicalmente ligados com a concepção de direitos humanos. Nesse

prisma, se relacionam com a evolução da concepção de dignidade da pessoa humana, bem

como, pelas conquistas das liberdades individuais e coletivas, que constantemente, agregam

novos direitos e valores, necessitando do amparo jurisdicional constitucional. Assim,

constantemente novos direitos nascem e outros direitos padecem, em virtude da mudança do

contexto social, o que de modo algum poderia ser esquecido pelos textos constitucionais, que

devem ter sua redação voltada ao atendimento das realidades sociais.21

17 SILVA, José Afonso da. Op. Cit. p. 832. 18 SILVA, José Afonso da. Op. Cit. p. 832. 19 SILVA, José Afonso da. Op. Cit. p. 831. 20 SILVA, José Afonso da. Op. Cit. p. 831. 21 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.

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Os direitos do homem passam a ter relevância a partir do momento em que se

desloca a primazia da relação do Estado para os indivíduos. Deixa o Estado de figurar em

primeiro plano nas relações com particulares, passando estes a serem considerados como

figuras principais da relação. Nesse norte é a lição de Bobbio “a afirmação dos direitos do

homem deriva de uma radical inversão de perspectiva, característica da formação do Estado

moderno, na representação da relação política, ou seja, relação Estado/cidadão”22. Nesse

sentido, importante transcrever a lição de Sarlet que assim preceitua [...] há que dar razão aos que ponderam que a história dos direitos fundamentais, de certa forma (e, em parte, poderíamos acrescentar), é também a história da limitação do poder, ainda mais se considerarmos o vínculo dos direitos fundamentais com a história do constitucionalismo e do que passou a ser designado de Estado Constitucional.23

O mesmo autor nos fornece um conceito mais preciso de direitos fundamentais da

seguinte maneira: [...] o termo “direitos fundamentais” se aplica àqueles direitos (em geral atribuídos à pessoa humana) reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão “direitos humanos” guarda relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e em todos os lugares, de tal sorte que revelam um caráter supranacional (internacional) e universal.24

Não obstante a existência dos supracitados direitos fundamentais, o presente estudo

baseia-se principalmente em uma ramificação desse direito, que são os direitos da

personalidade. Esses são compostos por direitos que garantam o mínimo necessário e

imprescindível ao exercício da personalidade.

Gomes, conceitua direitos da personalidade como sendo: [...] direitos considerados essenciais ao desenvolvimento da pessoa humana, que a doutrina moderna preconiza e disciplina, no corpo do Código Civil, como direitos absolutos. Destinam-se a resguardar a eminente dignidade da pessoa humana, preservando-a dos atentados que pode sofrer por parte de outros indivíduos.25

Por garantir o mínimo de direitos ao desenvolvimento da pessoa, esses direitos se

irradiam da personalidade, devendo a norma jurídica tutelar as necessidades basilares como a

vida, a liberdade, a honra, a privacidade, a imagem, entre outros direitos na mesma seara.

Direito à honra.

22 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 1. ed. Rio de Janeiro; Campus, 1992, p.4. 23 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Op. cit. p.252. 24 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Op. cit. p.249. 25 GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Rio de Janeiro: Forense. 2001, p. 148.

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A honra compreende a concepção da dignidade pessoal refletida na consideração dos

outros e no sentimento que a pessoa tem por si própria, ou seja, abrange noções como a da

autoestima, da consideração, mas também da boa fama, do bom nome, da reputação que ao

indivíduo se atribui. Essa é a esfera de proteção do direito a honra, ou seja, o conjunto de

atributos concernentes à reputação e ao bom nome da pessoa. 26

É de se esclarecer que a honra, em virtude de sua dupla dimensão, opera tanto como

direito de defesa (direitos negativos), quanto como direito a prestações (direito positivo).

Assim, significa dizer representa que existe o direito de não ser ofendido na sua honra,

dignidade ou consideração social mediante imputação de terceiros, bem como o direito de se

defender dessas ofensas e buscar a reparação do dano experimentado. O fundamento do

direito negativo reveste-se na esfera de proteção de todo cidadão, já o do direito positivo, no

dever de proteção estatal em relação a dignidade da pessoa humana.27

A doutrina tem entendido que a honra, em determinados casos, sofre restrição,

sempre à luz do caso concreto, em favor da liberdade de expressão, mas somente em casos em

que haja interesse público. Assim, na medida em que houvesse a possibilidade de excluir a

ilicitude da ofensa à honra, resultaria no interesse público da questão revelada e não no caráter

público da pessoa atingida ou de sua exposição na esfera pública. Prevalece assim, o

entendimento de que a liberdade de expressão prevalece sobre a honra, assim já decidiu o T.

de Santa Catarina: APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. PUBLICAÇÃO DE CARTA EDITORIAL EM PERIÓDICO COMUNITÁRIO DE DISTRIBUIÇÃO GRATUITA. JORNALISMO INFORMATIVO. ANIMUS INJURIANDI NÃO COMPROVADO. OFENSA À HONRA PESSOAL OU PROFISSIONAL NÃO CARACTERIZADA. PONDERAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DO DIREITO À HONRA. MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO E DO DIREITO DE INFORMAÇÃO. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO PROVIDO. É cediço nesta Corte e no Superior Tribunal de Justiça que o jornalismo informativo não dá ensejo ao dano moral, caso não demonstrada a deliberada intenção de injuriar, difamar ou caluniar a "vítima". Mesmo por que, devem ser ponderados os direitos tutelados, quando se for sopesar a incidência dos direitos fundamentais da liberdade de expressão e do direito à honra e à imagem, principalmente ao tratar de responsabilidade civil. Mesmo porque a liberdade de imprensa é verdadeiro corolário de um Estado Democrático de Direito, mormente por ser uma das únicas ferramentas do cidadão contra os disparates que acontecem "em nome" da administração pública. Nas palavras do Ministro Marco Aurélio, "a liberdade de expressão constitui-se em direito fundamental do cidadão, envolvendo o pensamento, a exposição de fatos atuais ou históricos e a crítica." (STF, HC 83.125, j. Em 16-9-2003). "No que pertine à honra, a responsabilidade pelo dano cometido através da imprensa tem lugar tão-somente ante a ocorrência deliberada de injúria, difamação e calúnia, perfazendo-se imperioso demonstrar que o ofensor agiu com o

26 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Op. cit. p.422. 27 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Op. cit. p.422/423.

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intuito específico de agredir moralmente a vítima. Se a matéria jornalística se ateve a tecer críticas prudentes (animus criticandi) ou a narrar fatos de interesse coletivo (animus narrandi), está sob o pálio das 'excludentes de ilicitude' (art. 27 da Lei n. 5.250/67), não se falando em responsabilização civil por ofensa à honra, mas em exercício regular do direito de informação. (REsp. n. 719.592/AL, Min. Jorge Scartezzini, DJ de 1-2-2006)" (Apelação Cível 494909 SC 2007.049490-9. Relator(a): Carlos Prudêncio. Julgamento:13.12.2011)

Extrai-se desse julgado que a liberdade de imprensa deve “prevalecer” sobre a honra,

devendo apenas ser reprimida essa liberdade em casos de ocorrência deliberada dos crimes

contra a honra descritos no Código Penal, quais sejam, injúria, calúnia e difamação, exigindo-

se, todavia, o dolo específico de atentar contra a moral. Não restando devidamente

comprovada essa conduta, a reparação do dano moral é incabível, pois, na visão dos

julgadores, estar-se-ia resguardando uma garantia fundamental do cidadão que utiliza desse

meio para se “auto proteger” das barbaridades ocorridas no cotidiano social.

Direito à privacidade.

A Constituição Brasileira de 1988, em seu art. 5º, inciso X, declarou invioláveis,

além da honra e imagem das pessoas, sua intimidade e sua vida privada.

Conceituando privacidade, Farias, leciona que pode ser definida “como o modo de

ser da pessoa que consiste na exclusão do conhecimento pelos outros daquilo que se refere a

ela só”28. Assim, concebe-se a privacidade como um direito de o individuo viver a própria

vida sem intervenções.

Ainda que a privacidade seja uma garantia do individuo de manter resguardado do

público parte de sua intimidade, a vida privada é constituída por dois aspectos, um voltado

para o exterior (pública) e outro para o interior (privada). A vida exterior engloba as relações

sociais, profissionais e públicas da pessoa, podendo ser objeto de pesquisas e de divulgações

por terceiros. Já a vida interior é compreendida como aquela que recai sobre a pessoa e os

seus membros familiares e relações particulares, ou seja, envolve a proteção de formas

exclusivas de convivência, sendo essa a esfera de proteção constitucional, pois a comunicação

entre si não deve contar com a participação ou intervenção de terceiros desconhecidos.29

Procurando superar a dúvida suscitada pelo próprio dispositivo constitucional, Silva

adota a expressão direito à privacidade, em sentido amplo, abrangendo todas as manifestações

da vida privada e íntima das pessoas. Para o autor, a privacidade seria entendida como o

28 FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. 3. ed. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor. 2008, p.123. 29 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas. 2008.

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“conjunto de informação acerca do indivíduo que ele pode decidir manter sob seu exclusivo

controle, ou comunicar, decidindo a quem, quando, onde e em que condições, sem a isso pode

ser legalmente sujeito”.30

A tutela constitucional prevista no citado dispositivo legal visa proteger dos

atentados particulares tanto o segredo da vida privada, quanto a liberdade da vida privada. O

primeiro é condição de expansão da personalidade, que somente se torna viável quando a

pessoa tenha liberdade de manter sua vida privada sem perturbação de terceiros, que é a

segunda esfera de proteção.

Decorrente disso é possível acompanhar a lição de Canotilho e Moreira, que

preceituam: [...] que o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar analisa-se principalmente em dois direitos menores: (a) o direito a impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar e (b) o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem. Alguns outros direitos fundamentais funcionam como garantias deste: é o caso do direito à inviolabilidade do domicílio e da correspondência, da proibição de tratamento informático de dados referentes à vida privada. Instrumentos jurídicos privilegiados de garantia deste direito são igualmente o sigilo profissional e o dever de reserva das cartas confidenciais e demais papéis pessoais.31

Após realizar uma pesquisa jurisprudencial, William Prosser resumiu em quatro

categorias as formas de invasão da intimidade que os tribunais usualmente resolvem, a constar

(1) a violação do âmbito da pessoa atinente ao retiro, à solidão ou a assuntos privados, independente dos meios utilizados – físico, visual ou eletrônico; (2) divulgação pública de fatos privados, mormente daqueles aptos a causar embaraço às pessoas; (3) divulgação pública de fatos imputados a um indivíduo; (4) apropriação do nome, imagem ou de outros atributos da personalidade sem o consentimento do interessado, com o ânimo de auferir lucro32.

Vislumbra-se que a maioria dos fatos evidenciados por Prosser possuem relação

direta com a atividade midiática. Ramo este, que representa a enorme potencialidade de

ingresso na vida privada das pessoas, ocorrendo, com o advento da globalização, uma

verdadeira corrosão entre as fronteiras da intimidade e vida privada. Isso afasta, cada vez

mais, a imprensa dos seus propósitos iniciais, que norteavam o desenvolvimento de sua

atividade.

Como os demais direitos pessoais, também o direito à privacidade não é ilimitado e

isento de intervenções restritivas. Todavia, ao não haver expressa previsão legal, reconhece-se

que a Constituição Federal atribuiu um elevado grau de proteção a esse direito, de tal sorte 30 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15. ed. São Paulo: Malheiros. 1998, p.209. 31 CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição Da República Portuguesa Anotada. 1. ED. Portugal: Coimbra Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 467/468 32 FARIAS, Edilsom Pereira de. Op. cit. p.128.

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que uma restrição apenas se justificaria quando necessária a assegurar a proteção de outros

direitos ou bens relevantes.33

Direito à imagem.

O direito à imagem integra, juntamente com o direito à honra, o direito ao nome e o

direito à palavra, o denominado direito à identidade pessoal. No âmbito da Constituição

Federal, o direito à imagem está consagrado no art. 5º, X, mas encontra expressa referência

também no art. 5º, V e XXVIII, a. Esse é o direito que tem suscitado maior dificuldade de

adequação com a liberdade de imprensa.34

O direito à imagem, constitucionalmente previsto, não tem por objeto a proteção da

honra, reputação ou identidade pessoal, mas sim a proteção da imagem física da pessoa e de

suas diversas manifestações. Assim, em linguagem jurídica a imagem compreende a

faculdade que toda pessoa tem para dispor de sua aparência, autorizando ou não a captação e

difusão dela.35

Protege-se, portanto, a imagem física da pessoa com suas diversas manifestações,

seja em conjunto com outras pessoas ou que abranja aspectos particulares, contra atos que

reproduzam ou a representem indevidamente, bem como pela distorção da imagem quando da

sua veiculação em algum local.

A violação a esse direito pode ocorrer quando da captação da imagem sem a

autorização, pela veiculação desautorizada ou injustificada da imagem. Porém, como todos os

outros direitos fundamentais da pessoa, esse também não é absoluto, havendo assim, uma

ressalva onde é presumida a licitude da captação da imagem, qual seja, a das pessoas pública

em local público ou acessível a este. Nesse caso existe, presume-se a autorização, que é

implícita, para a coleta da imagem, sendo assim afastada a ilicitude do uso da imagem, desde

que não utilizada de modo distorcido.

A problemática maior surge quando se questiona quando é o caso de direito à

informação e quando o direito a imagem? A única possibilidade plausível de solução se

processa quando a informação é transmitida genericamente, sem necessidade de recorrer-se à

imagem de determinada pessoa, ou se esta imagem estiver inserida em um contexto mais

33 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Op. cit. p.395. 34 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 05 out. 1988. 35 FARIAS, Edilsom Pereira de. Op. cit. p. 133.

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amplo, não se poderia falar em proteção ao direito de imagem e em indenização por violação

a esta.36

Nessa esteira é a lição de Carvalho: Assim, se a imagem do retratado for captada no contexto do ambiente, aberto ao público, de forma que sua imagem aderisse ao local, ou “àquele acontecimento”, nenhuma lesão à sua imagem. Mas se a fotografia publicada demonstra, ao contrário, que o objetivo da composição fotográfica é, justamente, o de explorar a imagem de alguém, cabe a indenização.37

Como visto, resta devidamente demonstrada que eventuais restrições ao direito à

imagem, deve ser examinada com cautela, sempre respaldada na expressa reserva legal e nos

princípios da proporcionalidade e razoabilidade, não podendo haver uma predominância da

liberdade de impressa (liberdade de informação), mas sim um maior respeito a dignidade da

pessoa humana.

Liberdade de pensamento e de expressão

Foi apenas sob a égide da atual Constituição Federal que as liberdades de expressão e

pensamento encontraram o ambiente propício para a sua efetivação, posto que, o atual texto

constitucional guarda sintonia com o disposto na Declaração Universal dos Direitos Humanos

da ONU, em seu artigo 19, que assim dispõe:

Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.38

A liberdade de expressão e manifestação do pensamento encontra seu fundamento no

princípio da dignidade da pessoa humana, mais especificamente naquilo que diz respeito com

a autonomia e livre desenvolvimento da personalidade do indivíduo. Guarda ainda relação,

em um contexto social e político, com as condições e a garantia da democracia e do

pluralismo político, assegurando uma forma de livre mercado de ideias, deixando evidente

com isso, seu caráter de direito transindividual.39

As liberdades de expressão e pensamento decorrem de outra liberdade, qual seja, a

liberdade de opinião, que, em apertada síntese, nada mais é do que senão a própria liberdade

de pensamento em suas várias formas de expressão.

36 CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de. Liberdade de informação e o direito difuso à informação verdadeira. Rio de Janeiro. Renovar. 2003, p. 61-62. 37 CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de. Op. cit. p. 62. 38 BRASIL. Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU. 10 dez.1948. 39 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Op. cit. p.441.

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Assim, liberdade de pensamento é a liberdade de expressar juízos, conceitos,

convicções e conclusões sobre alguma coisa. A liberdade de opinião constitui-se em direito

fundamental do cidadão, envolvendo o pensamento, a exposição de fatos atuais ou históricos e

a crítica. 40

Já a liberdade de expressão tem como fundamento a liberdade de pensamento, da

qual é uma decorrência lógica, sendo o direito de expressão o direito de manifestação das

sensações, sentimentos ou criatividade do indivíduo. A ideia é garantir a todos a liberdade de

produzir e revelar as suas realizações, independentemente de licença ou censura.41

A atual Constituição Federal buscou tutelar todas as formas de manifestação do

pensamento e de expressão, desde que não violentas. Daí poder se falar que somente com esse

texto constitucional essas liberdades encontram ambiente propício para sua efetivação, pois

fora com este que se possibilitou a maior proteção dessas liberdades.

Em virtude dessa enorme proteção proporcionado pelo texto constitucional, vê-se

que não existe um dever de verdade quanto aos fatos expostos. Nessa linha, Canotilho e

Moreira (2007, p. 572) negam existência de um dever de verdade quanto aos fatos, assim

como afastam, em princípio, qualquer tipo de delito de opinião, ainda que se cuide de

opiniões que veiculem posições contrárias a ordem constitucional democrática, ressalvando

que eventuais distorções dos fatos e manifestações que atinjam direitos fundamentais e

interesses de terceiros e que representem incitação ao crime, devem ser avaliadas quando da

solução dos conflitos entre normas de direitos fundamentais.42

A liberdade de expressão do pensamento enlaça a noção de indiferença ou tolerância

na medida em que ninguém pode ser discriminado ou sofrer sanções pelas convicções

externadas. Reclama-se assim, uma postura neutra, indiferente ou tolerante dos indivíduos e

do próprio Estado, garantindo ao particular o direito de expressar suas opiniões sem o risco de

sofrer penalidades.

Assim como os outros direitos fundamentais, a liberdade de expressão do

pensamento não configura um direito absoluto, sofrendo algumas limitações. Isso decorre da

sociedade com indivíduos ostentando opiniões divergentes que devem ser respeitadas. Assim,

a pretexto de defender um ponto de vista qualquer, não pode uma pessoa física ou jurídica

disseminar notícias falsas ou externar juízo depreciativo sobre certo indivíduo ou grupo de

40 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. 3. ed. Salvador: JusPodivm. 2009, p.666. 41 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Op. cit. p.666. 42 CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Op. cit. p. 572.

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pessoas, sob pena de se sujeitar ao direito de resposta e arcar com eventuais danos morais e

materiais causados.43

Resta evidente que a liberdade de expressão possui relação direta com o direito de

informação e não rara às vezes, colide com direito à honra, à imagem e à privacidade das

pessoas, o que demanda uma harmonização dos interesses envolvidos e colidentes. De fato,

quando exercida de forma irresponsável, a liberdade de opinião se transforma em uma

poderosa fonte de problemas e se degenera especialmente com a difusão e exploração

sensacionalista de notícias inverídicas.

Direito à liberdade de informação

O direito à liberdade de informação foi tratado na Constituição de 1988 no artigo 5º,

incisos XIV e XXXIII, bem como no artigo 220. Esse direito deve compreender,

necessariamente, o direito que a pessoa tem de se informar, de comunicar e de exteriorizar sua

opinião, podendo utilizar-se de qualquer meio e sem dependência de censura, respondendo,

todavia, pelos abusos que vier a cometer. É de se acrescentar que essa liberdade constitui um

direito coletivo do povo de ser bem informado.

Tem-se que o direito de informar constitui um direito individual, porém com traços

coletivos. Nesse sentido: [...] o direito de informar; como aspecto da liberdade de manifestação do pensamento, revela-se um direito individual, mas já contaminado de sentido coletivo, em virtude das transformações dos meios de comunicação, que especialmente se concretiza pelos meios de comunicação social ou de massa, envolve a transmutação do antigo direito de imprensa e de manifestação do pensamento, por esses direito, em direitos de feição coletiva.44

Assim, a imprensa moderna, livre de mecanismos repressivos impostos pelo Estado,

buscando a implementação de um Estado social democrático, deve manter sua autonomia no

processo de informação, porém esse direito deveria contar com a participação ativa do público

na elaboração do processo informativo. Ademais, esse componente social, constante na

participação do público, deve nortear o trabalho do informador, que no seu labor deve primar

pela veracidade de fatos, publicando matérias isentas de opinião própria.

Nessa esteira possibilitar-se-ia ao informado escolher o que ler, além de participar do

processo de criação da notícia. Essa é a lição de Carvalho: [...] O componente social será o responsável pelo direito do informador de pesquisar e pelo dever de o Poder Público permitir ser pesquisado, pelo direito do público de receber informação, pelo direito desse público de selecionar a informação a

43 PUCCINELLI JÚNIOR. André. Curso de Direito Constitucional. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 220. 44 SILVA, José Afonso da. Op. cit. p. 248.

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informação que deseja receber e, talvez o mais importante, pelo direito do público à informação verdadeira.45

Esses são os aspectos que devem constar no direito de informação contemporâneo.

Deste modo, vislumbrar-se-ia o auge da imprensa, que passou da total repressão onde não

tinha voz para nada, para uma liberdade incondicional livre de repressões e sem

comprometimento algum, chegando em fim a ter compromisso com a sociedade e com o

poder público, de informar o que realmente ocorre, livre de interesses. Todavia, se está longe

de conseguir esse fim almejado, dada a grande subjetividade do conceito verdade, conforme

supra exposto.

Direito de Informar

É um direito fundamental de primeira geração, de caráter negativo, porquanto

consiste num poder de agir, livre de qualquer freio estatal. Pode ser exercido por qualquer

pessoa, sendo exteriorizado, via de regra, através dos meios de comunicação pelos órgãos

midiáticos.

O direito de informar compreende dois direitos distintos, quais sejam o direito de

veicular ideias, conceitos e opiniões; e o direito de transmitir notícias atuais sobre fatos

relevantes e de interesse coletivo e sobre elas formular os respectivos comentários ou críticas.

Todavia, o direito de informar tem contornos interessantes e polêmicos, visto que, ao lado do

direito de informar está a faculdade de não informar. A faculdade de informar é justificada

pela delegação tácita efetuada pela população aos órgãos de imprensa, que passaram a deter a

competência para propagar e divulgar o que lhe convém, aspecto esse do direito de não

informar. 46

A existência da faculdade de não informar, liberalidade mais evidente na imprensa

que possui a possibilidade de selecionar o que vai ser divulgado, emitindo assim, um prévio

juízo de valoração sobre a notícia a ser propagada, é uma garantia fundamental para o bom

desenvolvimento da atividade. Porém, a divulgação jornalística da informação assegura a

difusão pública de notícias e o correspondente direito de crítica, tanto de quem recebe, quanto

de quem emite a notícia, que conjuntamente ao ato de emitir a notícia pode exteriorizar sua

opinião, criticando a mesma.

Sobre a crítica jornalística, salutar é a transcrição da lição de Cunha Júnior: A crítica jornalística consiste num juízo de valoração, favorável ou desfavorável, acerca dos fatos noticiados. [...]

45 CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de. Op. cit. p. 82. 46 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Op. cit. p.669.

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A crítica, de ver-se, revela um conceito ou uma opinião subjetiva sobre fatos objeto de uma notícia jornalística, que reflete pensamento pessoal de seu autor. A crítica jornalística pode incidir sobre variadas situações, de modo que se pode falar de crítica a arte, à literatura, à ciência e à política.47

Vê-se que, aliado ao poder de informar está o de criticar. Nos dias hodiernos,

constata-se que a grande maioria dos fatos são emitidos com “pareceres” de seus emissores.

Tal prática deveria ser a exceção e não a regra, posto que, decidir se algo seria bom ou ruim

deveria ser um juízo de valoração emitido pelo “consumidor” da informação e não algo que

vem pronto a este que não pensa mais o que é informado.

Ainda é de se acrescentar que o direito de informar só é verdadeira e praticamente

alcançável por pouquíssimas pessoas ou grupos que disponham de condição econômica para

arcar com um enorme custo para sua manutenção. Disso decorre a dominação da imprensa,

que hoje é exercida por uma elite de pequenos grupos familiares conforme exposto alhures,

fato esse que a legislação não poderia tolerar, mas que se mantém silente, resulta na

manipulação do que será informado. A possível solução seria a disponibilização de acesso à

população aos meios midiáticos, o que poderia acarretar a propagação de uma opinião pública

livre, resultando na atenuação da dominação exercida pelos órgãos midiáticos.

Direito difuso à informação verdadeira.

Após emitir um prévio juízo de valoração sobre a notícia a ser publicada e optando

por sua divulgação, entra em cena um novo direito, o direito do leitor à informação

verdadeira. Esclareça-se que o sentido de informação aqui empregado é a transmissão de

fatos, acontecimentos recém-ocorridos e não o de criação/propagação de opiniões, críticas ou

frutos da imaginação humana. Em virtude disso, essa transmissão deve se restringir ao fato

em si, devendo ser verídica, autêntica e isenta de opiniões. 48

A transmissão da informação pelos órgãos midiáticos, tem se tornado numa

verdadeira propagação de informação consentida, ou seja, a informação poderá ser filtrada,

selecionada, ou até mesmo distorcida para atender a interesses de classes, grupos ou

segmentos sociais, não sendo mais pensada pelo recebedor da notícia, mas sim, consentida

por esse que aceita passivamente esse tipo de conduta dos órgãos midiáticos. Todavia, a

notícia consentida pode ser controlada pelo Direito, desde que, passe a exigir por parte da

imprensa um dever de verdade na propagação da notícia.

47

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Op. cit. p. 670. 48 CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de. Op. cit. p. 91.

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A exigência de verdade, no plano prático, apresenta inúmeros problemas, posto a alta

subjetividade desse conceito, conforme supra exposto. Assim, para evitar que esse requisito

seja considerado inócuo, o dever de verdade deve ser entendido como um requisito específico

de diligencia sobre o informador. Portanto, o jornalista deve ser diligente na busca de obter a

verdade dos fatos, filtrando a fonte de que recebe a notícia, primando sempre por fontes

idôneas.

Em propagando informações inverídicas e sabendo que são, nasce o dever de

indenizar os danos que vier a cometer. Para evitar isso, a imprensa tem o dever de averiguar a

veracidade da notícia e por isso da obtenção da notícia por fontes idôneas. Se, todavia,

demonstrar diligencia na obtenção da informação não haverá o dever de indenizar, tendo em

vista que há o rompimento do nexo de causalidade entre a conduta e o dano, visto que não

teria agido em nenhuma das modalidades de culpa existentes no Brasil.

É de se acrescentar que inúmeras notícias são inexatas, mas não causam qualquer

tipo de dano pessoal a ninguém. Apenas atentam contra a credibilidade do jornal que a

divulgou. Não raro, a imprensa dá informações absolutamente equivocadas sobre o Direito, a

Medicina, a Economia, a política, levando a erro inúmeros leitores. Outras vezes, os fatos são

distorcidos para forjar a opinião pública de uma ou de outra maneira. E não há, nesses casos,

qualquer direito à indenização. Há, contudo, séria mácula na imprensa como instituição.49

Visando diminuir os danos dessa mácula no processo informativo, deve ser

possibilitado a qualquer pessoa com conhecimento técnico sobre o assunto, vir a público e

desmentir ou corrigir o que foi publicado, devendo o órgão ser obrigado a divulgar a correção

e, em não o fazendo, deveria ser compelido através de decisão judicial a fazer.

No que tange a qualidade da informação expressa no texto constitucional, salutar a

transcrição da lição de Carvalho, que assim dispõe: A liberdade de informação pretendida pelo constituinte brasileiro vai além da liberdade formal para uma liberdade material, que importa em uma verdadeira qualidade da notícia transmitida: a qualidade da verdade. Esta é a liberdade garantida, a que presta o serviço público de contribuir para a democracia, para a participação, para a igualdade, para a justiça, valores todos compatíveis com a verdade. Esta é que é a liberdade que deve ser perseguida. 50

Para atingir esse objetivo, qual seja, a propagação de informações verdadeiras, deve

ser encontrada uma fórmula legal que permita a determinadas pessoas contradizer os fatos,

ampliando e aplicando o direito de resposta, ficando o órgão que publicou a notícia, obrigado

49 CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de. Op. cit. p. 96/97. 50 CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de. Op. cit. p. 98.

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a publicar, com destaque e se procedente, o direito de resposta e reavaliar o que publicou

anteriormente.

Por todo o exposto, resta evidente que o direito a informação verdadeira se encontra

no rol de direitos difusos, posto que, atinge uma quantidade indeterminada de pessoas. Isso

assim o é, porque a informação jornalística é destinada a todas as pessoas que se proponham

recebe-la, sem que se possa individualizar ou dividir qual informação será difundida e para

quem. Assim, todos os titulares são submetidos à tutela do Estado para proteção de seu direito

de receber a notícia verdadeira sobre os fatos.

Liberdade de imprensa

No estado atual de desenvolvimento da imprensa, onde essa garante a liberdade de

informação, conjuntamente com o direito a informar e de ser informado, se posiciona a

imprensa, que nada mais é, do que o órgão que assegura a veiculação de informações para

tornar do conhecimento da grande massa populacional.

O conceito de liberdade de imprensa evoluiu com o passar dos anos, sendo hoje

amplamente difundido. Nesse sentido, salutar a transcrição da lição de Godoy [...] tem-se hoje a liberdade de imprensa como a de informação por qualquer meio jornalístico, aí compreendida a comunicação e o acesso ao que se informa. Ou seja, preservando-se, de um lado, a perspectiva individual do direito à informação, que dá à liberdade de imprensa ainda uma dimensão de direito de manifestação do pensamento assegurado ao indivíduo. Mas, de outro, garantindo-se um direito, que é verdadeiramente coletivo, de acesso à informação.51

Assim, é certo que a liberdade de imprensa existe para facilitar o acesso à

informação, principalmente nos dias atuais de grande globalização, onde a notícia deve se

propagar de forma rápida e o indivíduo que não se mantém informado não possui meios

eficazes de desenvolver a sua personalidade e cidadania.

CONFLITOS ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Na relação envolvendo imprensa e direitos da personalidade por inúmeras vezes

ocorrem colisões entre direitos fundamentais, seja entre o direito de informar ou de expressão

com o direito a honra, intimidade ou imagem, conforme supra exposto.

Com base nisso, tem-se que a colisão dos direitos fundamentais pode suceder

basicamente de duas maneiras. Nesse sentido é a lição de Farias, que assim dispõe: A colisão dos direitos fundamentais pode suceder de duas maneiras: (1) o exercício de um direito fundamental colide com o exercício de outro direito fundamental

51 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Op. cit. p. 52.

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(colisão entre os próprios direitos fundamentais); (2) o exercício de um direito fundamental colide com a necessidade de preservação de um bem coletivo ou do Estado protegido constitucionalmente (colisão entre direitos fundamentais e outros valores constitucionais).52

Na relação entre mídia e consumidores da notícia, vislumbra-se a ocorrência da

primeira hipótese descrita acima, qual seja, a colisão entre dois direitos fundamentais. Assim,

por todos os direitos fundamentais não serem ilimitados, inúmeras vezes um deve ceder um

pouco de espaço para a aplicação de outro direito, quando em situações de conflito.

Porém, para o bom entendimento da problemática apresentada, fundamental tecer

alguns comentários iniciais, principalmente no que tange a distinção entre regras e princípios.

Essa distinção é a base da teoria da fundamentação dos direitos fundamentais e uma chave

importantíssima para a solução de problemas sobre a dogmática dos direitos fundamentais.

Sem ela não pode haver uma teoria adequada sobre as restrições a direitos fundamentais, nem

sobre colisões e nem uma teoria suficiente sobre o papel dos direitos fundamentais no sistema

jurídico.53

De início, cabe salientar que regra e princípio são decorrentes do gênero norma, visto

que ambos dizem o que deve ser feito, podendo ser formulados por meio de critérios básicos

entre permissão e proibição. Deste modo para a eficaz distinção entre princípios e regras, os

primeiros são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida do possível e

dentro das possibilidades jurídicas de cada caso, ao contrário das regras que devem ser sempre

satisfeitas ou não, não havendo, portanto, critérios de ponderação.

Deixando mais evidente essa distinção Alexy leciona: [...] Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes. [...] Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa, e não distinção de grau. [...].54

Quando há colisões entre princípios e entre regras, o ordenamento jurídico demanda

soluções diversas para tais. No caso de conflito entre regras, esse somente poderá ser

resolvido se uma das regras tiver uma cláusula de exceção que elimine o conflito, ou se uma

das regras for declarada inválida, e com isso excluída do ordenamento jurídico, visto que, não

52 FARIAS, Edilsom Pereira de. Op. cit. p. 105. 53 ALEXY, Robert. Colisão de direitos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Malheiros. 2008, p. 85. 54 ALEXY, Robert. Op. cit. p. 90/91.

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pode haver em vigor, regras contraditórias entre si. Tal conflito poderá ser resolvido através

de três critérios, sendo o cronológico, o hierárquico e o da especialidade.

Pelo critério cronológico a lei posterior revoga a lei anterior, vem esculpido pelo

brocardo “lex posterior derogat priori”. Já o critério hierárquico é aquele que pode ser

resolvido com a aplicação da lei hierarquicamente superior, vem esculpido no brocardo “lex

superior derogat lex inferior”. E por último, o critério da especialidade onde a lei especial

revoga lei genérica, expresso no brocardo “lex specialis derogat generali”. 55

Diversa é a solução envolvendo conflitos entre princípios. Nesta não haverá extinção

de qualquer princípio, mas em virtude de sua limitabilidade, um deverá ceder em prol do

outro. Assim, ambos permanecem válidos, sendo, apenas em dado momento, um restringido

em favor do outro.

Visando estabelecer critérios para a solução do conflito envolvendo princípios, Alexy

leciona que tal deve ser resolvido “por meio de um sopesamento entre os interesses

conflitantes”.56 O objetivo desse “sopesamento” é definir qual dos princípios teria maior peso

no caso concreto ou sofreria menos constrição do que o outro. Todavia, a doutrina nacional,

com expoente em Barroso, trabalha essa questão de conflitos de princípios não como

sopesamento, mas sim como ponderação de direitos.

Nesse sentido, Sarmento assim leciona: A ponderação de interesses tem de ser efetivada à luz das circunstâncias concretas do caso. Deve-se, primeiramente, interpretar os princípios em jogo, para verificar se há realmente colisão entre eles. Verificada a colisão, devem ser impostas restrições recíprocas aos bens jurídicos protegidos por cada princípio, de modo que cada um só sofra as limitações indispensáveis à salvaguarda do outro. A compressão a cada bem jurídico deve ser inversamente proporcional ao peso específico atribuído ao princípio que o tutela, e diretamente proporcional ao peso conferido ao princípio oposto. Nestas compressões, deve ser utilizado como parâmetro o princípio da proporcionalidade, em sua tríplice dimensão.57

A tríplice dimensão do princípio da proporcionalidade acima citado, engloba a

adequação, necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Em outras palavras, deve

buscar o interprete/aplicador da norma um ponto de equilíbrio entre os interesses postos,

devendo atender aos seguintes imperativos: (a) restrição a cada um dos interesses deve ser

idônea para garantir a sobrevivência do outro; (b) a restrição deve ser a menor possível para a

proteção do interesse contraposto e (c) o benefício com a restrição do outro interesse deve

compensar o grau de sacrifício. Todavia, no processo de ponderação de direitos fundamentais

55 FARIAS, Edilsom Pereira de. Op. cit. p. 107. 56 ALEXY, Robert. Op. cit. p. 95. 57 BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional, Vol. 1., 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar. 2002, p.364

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não se pode atribuir primazia ou eficácia absoluta a um ou outro princípio ou direito, posto

que não há qualquer relação de hierarquia entre as normas constitucionais.58

Trazendo para a realidade brasileira, vislumbra-se que as normas constitucionais

estatuíram os direitos considerados fundamentais, possuindo uma dupla natureza, tanto de

regras como de princípios. Essa é a lição de Alexy, ao afirmar que “por meio das disposições

fundamentais, sejam estatuídas duas espécies de normas – as regras e os princípios – é o

fundamento do caráter duplo das disposições de direitos fundamentais”59. Como os direitos

fundamentais são garantidos por normas jurídicas que possuem em seu núcleo essencial as

características de princípios, em casos de conflitos entre esses deve ser utilizado o critério

acima exposto, qual seja, o de ponderação dos princípios.

Após realizada esses esclarecimentos, visualiza-se viável a aplicação desses critérios

para resolver os conflitos envolvendo os direitos da imprensa em contrapartida aos direitos da

personalidade. Nessa seara, tanto a liberdade de expressão quanto a de informação encontram

limites constitucionais, que via de regra são os direitos da imagem, honra e privacidade.

Nesse ponto, a questão específica da busca de equilíbrio entre a liberdade de

expressão e o direito à intimidade tem sido objeto de diversos estudos doutrinários, dentre os

quais o de Carvalho, que assinalou: Tanto a liberdade de expressão quanto a de informação encontram limites constitucionais [...] Vivemos em um Estado em que o exercício dos vários direitos devem ser harmônicos entre si e em relação ao ordenamento jurídico. Desse modo, a liberdade de expressão também se limita pela proteção assegurada constitucionalmente aos direitos da personalidade, como honra, imagem, intimidade, etc.60

Nessa mesma linha, prossegue o citado autor:

Qualquer restrição deve ser determinada por ordem judicial, mediante o devido processo legal. E, mesmo o Poder Judiciário, só deve impor qualquer restrição à liberdade de expressão quando for imprescindível para salvaguardar outros direitos que não possam ser protegidos ou compostos de outro modo menos gravoso. Especialmente, a concessão de liminares só deve ocorrer em casos muitíssimos excepcionais. Na maioria das vezes, o direito invocado pode ser perfeitamente composto com a indenização por dano moral, o que é melhor solução do que impedir a livre expressão. [...] não se nega, pois, a possibilidade de limitação, mas por determinação fundamentada da autoridade judicial e após criterioso exame61.

Com base no exposto, se demonstra necessário nos casos de decisão, demonstrar qual

interesse deve ceder, levando-se em consideração a configuração típica do caso e suas

circunstâncias especiais. Assim, duas normas, se isoladamente consideradas, levam a 58 ALEXY, Robert. Op. cit. 59 ALEXY, Robert. Op. cit. p. 141. 60 BARROSO, Luís Roberto. Op. cit. p.366. 61 BARROSO, Luís Roberto. Op. cit. p.366.

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resultados contraditórios entre si. Nenhuma delas é inválida, nenhuma tem precedência

absoluta sobre a outra.

Tanto direitos da personalidade podem ceder, quanto direitos da imprensa. Deve-se,

portanto, decidir, com base na analise de casos concretos, utilizando-se dos critérios acima

expostos, a fim de resguardar o direito que deve prevalecer. O que vale depende da forma

como será decidida a precedência entre elas sob a luz do caso concreto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como resultado da pesquisa chega-se à conclusão de que o direito de liberdade de

imprensa é um direito eminentemente conflituoso, no sentido de que seu exercício em geral

pode colocar em risco vários outros direitos fundamentais constitucionalmente assegurados,

configurando uma superposição que precisa ser mediada pelo Poder Judiciário, a fim de,

através da ponderação de valores, equilibrar a relação entre particulares, evitando que a

assimetria de poderes existente na sociedade possa gerar uma situação de abuso de direito por

parte das empresas midiáticas.

Na transformação da base principiológica da imprensa, operou-se a mudança de

conceito sobre verdade ou falsidade de uma notícia. Com a industrialização da mídia, a

notícia passou a ser analisada por critérios de credibilidade ou plausibilidade, ou seja, algo é

verdadeiro porque foi emitido por alguém de suposta confiança e parece possível a sua

existência. Isso é altamente prejudicial para a sociedade, pois, através dessa prática o discurso

se prolifera sem uma análise da veracidade criando conceitos errôneos.

O grande problema que se coloca para a sociedade contemporânea é a manipulação

da notícia pelos órgãos midiáticos, construindo versões da realidade que vendem uma imagem

ideológica parcial, criando obstáculos para que, numa sociedade pluralista, os cidadãos

possam formar seu pensamento próprio de forma livre e voluntária.

O direito de resposta anteriormente regulamentado pela Lei nº 5250/67, se encontra

sem qualquer regulamentação. Nesse norte, as pessoas acabam por não exercer o direito de

resposta, pleiteando em juízo apenas a indenização devida, e muitas vezes sem obter êxito,

dada a prioridade do direito de liberdade de expressão do pensamento adotada pelos tribunais

brasileiros, medida que restou evidente no voto do Ministro Carlos Britto no julgamento da

ADPF 130, onde este justifica a prioridade ao direito de manifestação do pensamento através

da imprensa por ser essa o braço da democracia.

Hoje não existe legislação específica regulamentando a imprensa, que se encontra

livre no seu exercício, fazendo uso indiscriminado dos meios que possui para obter, criar,

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manipular a informação. Não há nem previsão para o surgimento de uma legislação que

positive essa atividade de maneira séria, não a reprimindo, como ocorria antigamente, nem a

deixando livre, como ocorre hoje. As únicas propostas passíveis de aprovação são as que

tratam a questão do direito de resposta, tendo em vista que o projeto de lei que tenta criar uma

nova lei de imprensa a muito já está defasado e se aprovado causará novo retrocesso

legislativo.

A mídia vigente na sociedade que se mostra dominante é aquela que estabelece

formas e normas sociais, fazendo um grande número de pessoas enxergarem o mundo por

suas lentes. Para isso expõe notícias baseadas em pré-conceitos dos responsáveis pela seleção

da notícia, que elegem um fato através de suas próprias convicções e ideologias. A

informação vem maculada em suas origens, o que dificulta a identificação de qual ponto e

qual momento houve a manipulação da informação.

Em resposta à questão problemática do presente trabalho, confirma-se, em parte, a

hipótese apresentada. A violação de direitos fundamentais do cidadão ocorre sim pela

manipulação das informações pelos editores das notícias, mas não só por isso. A violação

também ocorre pelo não respeito aos direitos da personalidade, sendo a honra, imagem e

privacidade. Desta feita, não há limites para a atividade da imprensa, sendo irrelevantes e

sequer observados.

Além de violar os direitos do cidadão, a imprensa possui o poder de direcionar

vontades para alcançar determinado fim. A parte final da hipótese apresentada também se

confirmou, pois o papel do Estado perante os órgãos midiáticos é de relativa omissão. O

Estado, através do Poder Judiciário, na resolução dos conflitos entre direitos fundamentais,

com base no critério da ponderação, tem dado preferencia à liberdade de informação e

expressão do pensamento em detrimento dos direitos da personalidade em conflito com os

direitos da imprensa.

Vivemos em uma sociedade democrática. Num Estado democrático de direito. E esse

conceito abrange exatamente a submissão de todos os cidadãos a um mínimo de

regulamentação socialmente aceita que permita a vida em sociedade. Não é possível que

hajam setores sociais que se coloquem à margem da lei. A imprensa brasileira tem realizado

grande campanha contra a regulamentação do seu setor, tachando qualquer tentativa nesse

sentido como “censura”. Não é disso que se trata.

Na verdade, uma reforma do setor midiático seria muito bem-vinda no Brasil. Uma

reforma que ampliasse o direito à informação dos cidadãos e ampliasse a participação popular

na execução do sistema de comunicação social. Hoje, o sistema de comunicação social está

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oligopolizado nas mãos de poucas empresas e a ampliação do direito de imprensa não

significaria a restrição desse direito, mas a ampliação dele superando-se esse atual estado de

coisas, permitindo que as organizações da sociedade civil pudessem participar em igualdade

de condições nesse sistema.

REFERÊNCIAS

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ANDRADE, Fábio Martins de. Mídia e Poder Judiciário: a influência dos órgãos da mídia no processo penal brasileiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. 445 p.

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DEMOCRACIA, AUTONOMIA E AÇÃO COMUNICATIVA: A TEORIA DO DISCURSO DE JÜRGEN HABERMAS E A TUTELA DA

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

(DEMOCRACY, AUTONOMY AND COMMUNICATIVE ACTION: JÜRGEN HABERMAS'S THE THEORY OF COMMUNICATIVE ACTION AND

THE PROTECTION OF THE HUMAN PERSON'S DIGNITY)

Kenza Borges Sengik

http://lattes.cnpq.br/7164532926932814

José Roberto Tiossi Junior

http://lattes.cnpq.br/2597973890730478

RESUMO: O presente artigo tem o escopo de analisar a Teoria do Discurso de Jürgen Habermas, demonstrando a sua importância na valorização da autonomia do indivíduo e da influência desses conceitos na abrangência da dignidade da pessoa humana. Em um primeiro momento a Teoria da Ação Comunicativa de Habermas é analisada, para que haja o entendimento do agir comunicativo e da autonomia pelo filósofo, bem como o de democracia. É nesse contexto de conceitos que se defende a dignidade da pessoa humana dentro de uma coletividade em que a autonomia individual e a comunicação são importantes para que haja consenso e efetivação dos direitos dentro de uma ordem democrática e comunicativa. A conclusão final é a de reconhecer a importância da democracia participativa e valorizar a autonomia privada dentro de uma coletividade em prol da dignidade da pessoa humana.

PALAVRAS-CHAVES: Teoria do Discurso. Autonomia. Dignidade da Pessoa Humana.

ABSTRACT: This article has the scope to analyze the Discourse Theory of Jürgen Habermas, demonstrating their importance in the valuation of individual autonomy and influence of these concepts in the scope of human dignity. At first the Theory of Communicative Action Habermas is analyzed, so there is an understanding of communicative action and autonomy by the philosopher, as well as democracy. It is in this context that supports the concepts of human dignity within a community in which individual autonomy and communication are important to reach a consensus and enforcing rights within a democratic and communicative. The final conclusion is to recognize the importance of participatory democracy and enhance private autonomy within a community for the sake of human dignity.

KEYWORDS: Theory of Communicative Action. Autonomy. Human dignity.

Mestranda em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário de Maringá – CESUMAR, advogada, Conselheira

da Ordem dos Advogados do Brasil, Subseção de Maringá-PR, gestão 2013-2015, assessora jurídica da Rede Feminina de Combate ao Câncer de Maringá-PR, gestões 2010-2012, 2013-2015. Endereço eletrônico: <[email protected]>

Mestrando em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário de Maringá – CESUMAR, advogado, professor da Escola Superior de Advocacia do Paraná (ESA/PR), consultor credenciado do SEBRAE/PR nas áreas de Políticas Públicas e Apoio à Legislação das ME/EPP. Endereço eletrônico: < [email protected]>.

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NOTAS INTRODUTÓRIAS

O estudo da filosofia de Jürgen Habermas está a cada dia mais atual, demonstrando a

importância de sempre se voltar a ele na tentativa de entender as necessidades da Justiça e da

tutela dos direitos, em especial, na defesa do ser humano em sua totalidade, começando pela

própria autonomia de resolver seus conflitos.

A intenção do presente artigo é demonstrar que as ideias de discurso, de democracia,

de consenso, de agir comunicativo, de Justiça Comunicativa são necessárias no Direito atual,

em que o homem se envereda nas novas tecnologias, na biomedicina, no biodireito, nas

diversidades sociais, sexuais e culturais, colocando cada vez mais o ser humano em conflito

entre si, dentro de uma coletividade rica e complexa.

A Teoria do Discurso de Habermas é muito analisada quando se fala em democracia,

denominada por ele de Justiça Comunicativa; o agir comunicativo defendido pelo filósofo

alemão como forma de legitimar o Direito.

Partindo da análise da teoria, passando pelo agir comunicativo e entendendo o que o

filósofo defende como autonomia, o estudo chega à apreciação da dignidade humana, também

examinada a partir dos conceitos da Teoria do Discurso, de maneira a contribuir com uma

visão comunitária e pluralista do Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana.

O objetivo é analisar a referida teoria, bem como seus conceitos de agir

comunicativo e autonomia, demonstrando que dentro de uma coletividade, ou seja, de uma

pluralidade de indivíduos, há de amparar a dignidade da pessoa humana, num contexto social,

de modo que a cada um seja dado o direito de comunicar, de discutir e de decidir o que é

melhor para si, inclusive na elaboração de uma norma, assim como, e mais essencial ainda, na

solução de um conflito.

A visão atual dos poderes, em especial em relação ao Poder Judiciário, em suas

inúmeras crises e críticas, faz o mundo jurídico se questionar sobre algumas formas de

solução, seja no número de processos, nas questões financeiras, nas normas processuais, na

aplicação dos direitos materiais, enfim, busca-se um meio para mudanças.

É nesse contexto que se busca a Teoria Comunicativa de Habermas, em que o

cidadão é visto como ser autônomo, sujeito ativo na elaboração legislativa e na elaboração da

ordem intersubjetiva, bem como defesa da dignidade humana, sendo essa vista dentro de um

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aspecto plural e social, de forma a reconhecer o ser humano como indivíduo responsável por

suas escolhas.

1 TEORIA DO DISCURSO: O AGIR COMUNICATIVO DE HABERMAS

O filósofo alemão, Jürgen Habermas, entende que o homem é destinatário e autor de

seus direitos, de modo que a soberania do povo toma papel fundamental. Para ele, “são

válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu

assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais”1.

A argumentação é fundamental para Habermas, na sua teoria racional, afim de se

buscar o entendimento no consenso e não na força - racionalidade comunicativa. Sobre o

assunto, a jurista Córa Hisae Hagino observa de maneira clara:

A teoria da racionalidade de Habermas está ligada a uma prática da argumentação, que é uma opção quando não há consenso, capaz de produzir entendimento, sem apelar para o uso da força ou ação estratégica. A argumentação constitui um importante processo de aprendizagem, pois a racionalidade submetida à crítica pode ser melhorada, identificando-se os erros e os corrigindo. A racionalidade comunicativa aponta para a argumentação quando não se pode ou não se consegue resolver uma situação através da comunicação corriqueira. Seu objetivo é alcançar entendimento, através do consenso. Para que haja entendimento, não pode haver coerção, somente o convencimento motivado pela razão pode ser utilizado.2

Exatamente sobre a racionalidade comunicativa e o agir comunicativo de Habermas,

Flavio Beno Siebeneichler defende:

O conceito “razão comunicativa” ou “racionalidade comunicativa” pode, pois, ser tomado como sinônimo de agir comunicativo, porque ela constitui o entendimento racional a ser estabelecido entre os participantes de um processo de comunicação que se da sempre através da linguagem, os quais podem estar voltados, de modo geral, para a compreensão de fatos do mundo objetivo, de normas e de instituições sociais ou da própria noção de subjetividade.3

1 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, 2003. v. I. Trad. Flávio Siebeneichler. 2 HAGINO, Córa Hisae Monteiro da Silva. Democracia e participação no espaço público: uma análise da teoria

de Habermas sobre o Conselho Municipal de Política urbana de Niterói e as conferências das cidades. XVII Encontro Preparatório para o Congresso Nacional do CONPEDI - Salvador, 2008, Salvador, BA. Anais eletrônicos do XVII Congresso Brasileiro do CONPEDI. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/cora_hisae_monteiro_da_silva_hagino.pdf >. Acesso em 25 jan. 2013. p. 2539.

3 SIEBENEICHLER, Flavio Beno. Jürgen Habermas: razão comunicativa e emancipação. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. p.66.

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Habermas defende que os valores do Direito são normatizados – normatização dos

princípios jurídicos – e, ainda, que a legitimação do processo de positivação jurídica tem

participação da sociedade, de modo que há uma integração entre fato e norma, sendo o valor

já previsto pelo Direito. A Teoria do Agir Comunicativo se dá justamente na formação do

Direito pela sociedade de modo que a sociedade é composta por “parceiros de direito, livres e

iguais”4

Os grupos sociais como agentes de transformação cultural indicam que a consciência jurídica deve assumir uma postura natural, fazendo com que a legislação seja fruto de participação ou crítica popular, satisfazendo um estilo de autora e público do direito edificado. E por essa razão as normas não ganham o desdenho da comunidade, passando pelo crivo do grupo social, do legislador, da justiça e da administração.5

Em sua teoria, Habermas distingue dois tipos de discursos: o discurso de

fundamentação e o discurso de aplicação, que de forma resumida, pode-se dizer que o

primeiro trata da criação das normas enquanto o segundo, da aplicação delas ao caso em

concreto.6 Demonstrando, dessa forma, a ampla aplicação de seu estudo, não se limitando à

criação das normas positivadas, mas, também, das “normas” a serem cumpridas dentro de

uma intersubjetividade.

A Teoria do Discurso se baseia na ação comunicativa dos cidadãos, como membros

de uma sociedade livre, de maneira que a legitimação de uma norma se dá com o agir

comunicativo, ou seja, com a participação ativa dos cidadãos na elaboração das normas - a

chamada democracia participativa de Habermas.

Nesse aspecto, sabiamente resume Gustavo Silveira Siqueira:

É através da ação comunicativa, que Habermas, acredita que os cidadãos agem quando desejam legitimar as prevenções normativas. Quando os cidadãos participam da elaboração da lei, através de um processo discursivo, em uma sociedade livre, pode-se dizer que ali está configurado o princípio

4 ZENNI, Alessandro Severino Valler. O Agir Comunicativo em Habermas e a Nova Retórica de Perelman.

Revista Jurídica Cesumar. v. 7, n. 2, p. 461-470, jul./dez. 2007. Disponível em: http://www.cesumar.br/pesquisa/periodicos/index.php/revjuridica/article/view/578/495. Acesso em: 19 Ago. 2012. p. 463-464.

5 ZENNI, Alessandro Severino Valler. O Agir Comunicativo em Habermas e a Nova Retórica de Perelman. Revista Jurídica Cesumar. v. 7, n. 2, p. 461-470, jul./dez. 2007. Disponível em: http://www.cesumar.br/pesquisa/periodicos/index.php/revjuridica/article/view/578/495. Acesso em: 19 Ago. 2012. p. 464.

6 GOMES, Frederico Barbosa. As contribuições de Kant, de Rousseau e de Habermas para o estudo da automia no âmbito do Direito. In: Direito Civil: atualidades II – da autonomia privada nas situações jurídicas patrimoniais e existenciais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 47.

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democrático de elaboração do direito, que Habermas pontifica ser necessário para legitimar o direito positivo. Neste patamar, o direito legítimo, é aquele que vem de um processo democrático discursivo de elaboração legislativa. A importância desta conexão é a influencia na eficácia do direito.o cidadão que legitima o direito, é o cidadão que cumpre a norma por dever, que age de acordo com o agir comunicativo.7

Importante a visão atual de Luiz Bernardo Leite Araujo sobre a Teoria do Discurso:

(...) a Teoria do Discurso se funda na intuição simples de que o reconhecimento dos indivíduos como pessoas responsáveis consiste em tomá-las seriamente como agentes que podem e devem ter voz na validação de normas e leis às quais eles próprios estão sujeitos. Neste sentido, a enorme influência de Habermas no debate contemporâneo se deve ao modo inovador com que procura responder à questão fundamental da filosofia moral e política, surgida de nossa compreensão moderna do mundo, quanto à possibilidade da existência de uma comunidade política formada por pessoas razoáveis mas profundamente divididas pelo pluralismo, não apenas inevitável mas também desejável, das visões de mundo e dos modos de vida. Uma resposta que, de resto, aplica-se não apenas a âmbitos locais e da qual o autor extrai implicações profundas para diversos problemas atuais, tais como o do futuro do Estado Nacional numa era de globalização, o de uma política global de direitos humanos e o das correspondentes instituições políticas supranacionais, além dos temas do multiculturalismo e dos direitos das minorias culturais. Em tais aspectos, como era de se esperar, Habermas continua esgaravatando .à procura dos vestígios de uma razão que reconduza, sem apagar as distâncias, que una, sem reduzir o que é distinto ao mesmo denominador, que entre estranhos torne reconhecível o que é comum, mas deixe ao outro a sua alteridade.8

O agir comunicativo de Habermas fundamenta o seu conceito de democracia. Para

ele, o direito legítimo é aquele em que houve um processo democrático discursivo na

elaboração das normas, constituindo a autolegislação por cidadãos livres. “O cidadão que

legitima o direito, é o cidadão que cumpre a norma por dever, que age de acordo com o agir

comunicativo.”9 Para o filósofo alemão, a comunicação delineia as condutas humanas. “É

7 SIQUEIRA, Gustavo Silveira. A ação comunicativa para construção democrática e legitima do Estado de

Direito. Anais do II Congresso da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política. Belo Horizonte: Compolítica, 2007. Disponível em: http://www.fafich.ufmg.br/compolitica/anais2007/sc_dc-gustavo.pdf. . Acesso em: 19 ago. 2012.

8 ARAUJO, Luiz Bernardo Leite. “Moral, Direito e Política – Sobre a Teoria do Discurso de Habermas”. In: Oliveira, Manfredo; Aguiar, Odilio; Sahd, Luiz Felipe (Org.). Filosofia política contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2003. v 1. p. 232-233.

9 SIQUEIRA, Gustavo Silveira. A ação comunicativa para construção democrática e legitima do Estado de Direito. Anais do II Congresso da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política. Belo

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através da comunicação que as relações humanas serão fundamentadas, e é esta comunicação,

voltada ao entendimento que descreverá o procedimento de construção da democracia”10.

Outro aspecto interessante da Teoria do Agir Comunicativo, destacado pelo jurista

Alessandro Zenni, é a relação intersubjetiva que Habermas vê entre “as fontes materiais do

direito, fatos e valores comunitários, com suas fontes formais e os dirigentes do poder formal,

dando destaque ao Poder Legislativo”11. O Judiciário tem a função de adequar a lei ao caso

concreto, corrigindo eventuais equívocos legislativo, num processo de diálogo, na

argumentação e na retórica atingir o convencimento.

Assim, com a discussão entre os grupos, num processo de consenso político e social,

há a defesa de seus interesses no Direito de forma que a diversidade social que a modernidade

traz e, com ela, o amplo surgimento de novos problemas sociais, é resguardada pela interação

e compatibilização do Direito e a sociedade com o fim de se alcançar soluções razoáveis,

tanto no Judiciário como no Legislativo12. Completa-se que a legitimidade do direito se nutre da solidariedade dos indivíduos no mundo da vida, e no processo de autolegislação os participantes se convencem das forças dos argumentos substanciais, e chegam ao consenso racional motivado, legitimador das leis, e podem ser aceitos pelos implicados nesse processo (...). 13

Habermas dá ao agir comunicativo um valor emancipatório ao sujeito ativo, que se

comunica. A interação entre os sujeitos envolvidos, caracterizada pela comunicação e pelo

agir, tem a finalidade de gerar entendimento e emancipação, resultados da atitude racional que

Horizonte: Compolítica, 2007. Disponível em: http://www.fafich.ufmg.br/compolitica/anais2007/sc_dc-gustavo.pdf. . Acesso em: 19 ago. 2012.

10 SIQUEIRA, Gustavo Silveira. A ação comunicativa para construção democrática e legitima do Estado de Direito. Anais do II Congresso da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política. Belo Horizonte: Compolítica, 2007. Disponível em: http://www.fafich.ufmg.br/compolitica/anais2007/sc_dc-gustavo.pdf. . Acesso em: 19 ago. 2012.

11 ZENNI, Alessandro Severino Valler. O Agir Comunicativo em Habermas e a Nova Retórica de Perelman. Revista Jurídica Cesumar. v. 7, n. 2, p. 461-470, jul./dez. 2007. Disponível em: http://www.cesumar.br/pesquisa/periodicos/index.php/revjuridica/article/view/578/495. Acesso em: 19 Ago. 2012. p. 460.

12 ZENNI, Alessandro Severino Valler. O Agir Comunicativo em Habermas e a Nova Retórica de Perelman. Revista Jurídica Cesumar. v. 7, n. 2, p. 461-470, jul./dez. 2007. Disponível em: http://www.cesumar.br/pesquisa/periodicos/index.php/revjuridica/article/view/578/495. Acesso em: 19 Ago. 2012. p. 467.

13 ZENNI, Alessandro Severino Valler. O Agir Comunicativo em Habermas e a Nova Retórica de Perelman. Revista Jurídica Cesumar. v. 7, n. 2, p. 461-470, jul./dez. 2007. Disponível em: http://www.cesumar.br/pesquisa/periodicos/index.php/revjuridica/article/view/578/495. Acesso em: 19 Ago. 2012. p. 464.

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fez afastar qualquer misticismo e quaisquer formas de solução impostas, combatendo a coação

interna ou externa.14

Por fim, importante salientar que a procura do consenso não afasta a existência do

conflito, já que o conflito é importante para a busca do consenso. O discurso busca o

entendimento, representando que a pessoa tem condições de racionalizar e objetivar. O

discurso representa um direito. Ademais, para Habermas, pela sua teoria comunicativa, “os

direitos só se tornam socialmente eficazes quando a comunidade for suficientemente

informada e capaz de atualiza-lo em certas situações”15.

2 4 A AUTONOMIA

Para iniciar, pertinente a análise do vocábulo “autonomia” feito por André Rüger:

“Autonomia” é palavra de origem grega (autonomia) derivada da aglutinação das palavras “autós”, que significa próprio, individual, pessoal, incondicionado, e do verbo “nomía”, que denota conhecer, administrar. O sentido originário da palavra, herdada da tradição, representa o poder de estabelecer por si, e não por imposição externa, as regras da própria conduta. É poder de se autogovernar, e, por consequência, o detentor de autonomia tem a faculdade de se reger por um sistema de regras próprio e ter tais regras reconhecidas pelos demais. 16

O conceito de autonomia muitas vezes está ligado ao “poder de autodeterminação do

homem, marcado pela liberdade de tomar decisões”17. Sendo essa liberdade dividida em

liberdade política (como cidadão nas escolhas do Estado) e liberdade individual (autonomia

privada). Frederico Barbosa Gomes conceitua autonomia como “a possibilidade de cada um

14 Analisar HAGINO, Córa Hisae Monteiro da Silva. Democracia e participação no espaço público: uma análise

da teoria de Habermas sobre o Conselho Municipal de Política urbana de Niterói e as conferências das cidades. XVII Encontro Preparatório para o Congresso Nacional do CONPEDI - Salvador, 2008, Salvador, BA. Anais eletrônicos do XVII Congresso Brasileiro do CONPEDI. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/cora_hisae_monteiro_da_silva_hagino.pdf >.

Acesso em 25 jan. 2013. p. 2540. 15 ZENNI, Alessandro Severino Valler. O Agir Comunicativo em Habermas e a Nova Retórica de Perelman.

Revista Jurídica Cesumar. v. 7, n. 2, p. 461-470, jul./dez. 2007. Disponível em: http://www.cesumar.br/pesquisa/periodicos/index.php/revjuridica/article/view/578/495. Acesso em: 19 Ago. 2012. p. 467.

16 RÜGER, André; RODRIGUES, Renata de Lima. Autonomia como princípio jurídico estrutural. In: Direito Civil: atualidades II – da autonomia privada nas situações jurídicas patrimoniais e existenciais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 3-4.

17 FARIA, Roberta Elzy Simiqueli de. Autonomia da vontade e autonomia privada: uma distinção necessária. In: FIUZA, César; DE SÁ, Maria de Fátima Freire; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Direito Civil: atualidades II – da autonomia privada nas situações jurídicas patrimoniais e existenciais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 58.

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poder definir o seu projeto de felicidade, influir em decisões públicas, a partir da sua

participação em processos públicos decisórios e poder traçar o rumo de sua vida”.18

Já sobre autonomia privada, o jurista Daniel Sarmento entende que é “a capacidade

do sujeito de direito de determinar seu próprio comportamento individual.”, acrescentando

que “Compete a cada homem ou mulher determinar os rumos de

sua existência, de acordo com suas preferências subjetivas e mundividências; respeitando as

escolhas feitas por seus semelhantes”19

Numa vertente um pouco diversa, Taisa Maria Macena de Lima que afirma: “O

princípio da autonomia privada justifica a resistência do indivíduo à intromissão do Estado no

espaço que dever ser só seu, na legítima tentativa de ser feliz”.20 O filósofo Ronald Dworkin

remete à concepção de autonomia centrada na integridade:

Segundo Dworkin, essa concepção pressupõe que o valor da autonomia deriva da capacidade que protege: a capacidade de alguém expressar seu caráter – valores, compromissos, convicções e interesses críticos e experienciais – na vida que leva. Reconhecer ao homem um direito à autonomia permite a autocriação, ou seja, permite que cada um de nós seja responsável pela configuração de nossas vidas de acordo com nossa própria personalidade – coerente ou não, mas de qualquer modo distinta. O direito à autonomia protege e estimula essa capacidade em qualquer circunstância, permitindo que as pessoas que a têm decidam em que medida, e de que maneira, procurarão concretizar esse objetivo21.

18 GOMES, Frederico Barbosa. As contribuições de Kant, de Rousseau e de Habermas para o estudo da

autonomia no âmbito do Direito. In: FIUZA, César; DE SÁ, Maria de Fátima Freire; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Direito Civil: atualidades II – da autonomia privada nas situações jurídicas patrimoniais e existenciais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 26.

Referido autor analisou a complexidade do tema sob a perspectiva de três grandes pensadores: Kant, Rousseau e Habermans. A visão de autonomia para Kant tinha viés de autonomia privada, entendendo que cada um teria liberdade e a dignidade de estabelecer seu projeto de vida e a sua ação moral a ser seguida. Rousseau já considerava autonomia numa visão pública, ligada à atividade política deliberativa. Já Habermans une o conceito de autonomia privada com o de pública definindo uma relação entre os direitos humanos e soberania popular (GOMES, 2007, p. 37, 44 e 50.).

19 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 175-176.

20 LIMA, Taisa Maria Macena de. A nova contratualidade na reconstrução do Direito Privado nacional. Revista Virtuajus. Belo Horizonte, ano3, n.1, jul. 2004. Disponível em: http://www.fmd.pucminas.br/Virtuajus/1_2004/A%20NOVA%20CONTRATUALIDADE%20NA%20RECONSTRUCAO%20DO%20DIREITO%20PRIVADO%20NACIONAL.pdf. Acesso em 29.08.2012.

21 DWORKIN, Ronald. Domínio da vida. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 319. Apud: FARIA, Roberta Elzy Simiqueli de. Autonomia da vontade e autonomia privada: uma distinção necessária. In: FIUZA, César; DE SÁ, Maria de Fátima Freire; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Direito Civil: atualidades II – da autonomia privada nas situações jurídicas patrimoniais e existenciais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p.68.

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O doutrinador Daniel Sarmento salienta a importância da autonomia privada mesmo

perante a sociedade como um todo, em especial, num sistema fundado na dignidade da pessoa

humana: Cada pessoa é um fim em si mesmo, e em cada homem ou mulher, pulsa toda a Humanidade! Por isso, as pessoas são titulares de direitos inalienáveis, que podem ser exercidos inclusive contra os interesses da sociedade. Num sistema constitucional antropocêntrico, fundado na dignidade da pessoa humana, não parece legítimo resolver possíveis tensões entre a liberdade existencial da pessoa e os interesses da coletividade sempre em favor dos segundos. 22

Pode-se entender que “o princípio da autonomia privada escora-se no direito

fundamental à liberdade, englobando seus mais diversos aspectos, inclusive, o de fazer

escolhas no âmbito da própria vida”23. A autonomia privada está relacionada à efetivação dos

direitos fundamentais do homem24 e por isso a sua relevância.

Habermas traz uma visão mista da autonomia. Para o filósofo, a autonomia privada e

pública andam juntas, vez que um cidadão só poderá exercer sua autonomia pública se tiver

garantida a autonomia privada, que, por sua vez, só será reconhecida em debates públicos, no

exercício da sua autonomia pública. Assim, as duas existem paralelamente, existindo as duas

por si mesmas, não existindo supremacia entre elas, mas sim um nexo interno de existência.25

De forma a resumir o tema, Habermas afirma:

O princípio da soberania popular expressa-se nos direitos à comunicação e participação que asseguram a autonomia pública dos cidadãos do Estado; e o domínio das leis, nos direitos fundamentais clássicos que garantem a autonomia privada dos membros da sociedade civil. O direito legitima-se dessa maneira como um meio para o asseguramento equânime da autonomia pública e privada.26

22 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p.

65. 23 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Envelhecendo com autonomia. In:

Direito Civil: atualidades II – da autonomia privada nas situações jurídicas patrimoniais e existenciais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 77-78.

24 RÜGER, André; RODRIGUES, Renata de Lima. Autonomia como princípio jurídico estrutural. In: Direito Civil: atualidades II – da autonomia privada nas situações jurídicas patrimoniais e existenciais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 18.

25 GOMES, Frederico Barbosa. As contribuições de Kant, de Rousseau e de Habermas para o estudo da autonomia no âmbito do Direito. In: FIUZA, César; DE SÁ, Maria de Fátima Freire; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Direito Civil: atualidades II – da autonomia privada nas situações jurídicas patrimoniais e existenciais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

26 HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro – estudos de teoria política. São Paulo, SP: Loyola, 2002.

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Nesse sentido, importante as palavras do próprio Habermas:

Dessa maneira, a autonomia privada e a pública pressupõem-se mutuamente. O nexo interno entre democracia e Estado de direito consiste em que se, por um lado os cidadãos, só podem fazer uso adequado da sua autonomia pública se forem suficientemente independentes em virtude de uma autonomia privada assegurada; por outro, só podem usufruir uniformemente a autonomia privada se, como cidadãos, fizerem o emprego adequado dessa autonomia política. Por isso, direitos fundamentais liberais e políticos são inseparáveis. A imagem da exterioridade e da interioridade é enganosa - como se existisse um âmbito nuclear de direitos elementares à liberdade, como a prerrogativa de poder pleitear prioridade diante dos direitos à comunicação e à participação. Para o tipo de legitimação ocidental, a co-originariedade entre direitos políticos fundamentais e direitos individuais fundamentais é essencial.27

Continuando:

[...] os cidadãos só podem fazer um uso adequado de sua autonomia pública quando são independentes o bastante, em razão de uma autonomia privada que esteja equanimemente assegurada; mas também no fato de que só poderão chegar a uma regulamentação capaz de gerar consenso, se fizerem uso adequado de sua autonomia política como cidadãos do Estado.28

O jurista Frederico Barbosa Gomes destaca resumindo as passagens citadas

anteriormente de forma contumaz:

A leitura de Habermas do conceito de autonomia não se refere a um espaço privado reservado ao indivíduo para a busca da dignidade de sua vida, tampouco se baseia em processos públicos de deliberação e de auto-entendimento ético de uma dada comunidade, mas sim se baseia numa equiprimordialidade entre as esferas pública e privada, na medida em que somente assim a ideia de autonomia poderá ser lida de forma adequada e abrangente.29

27 HABERMAS, Jürgen. Sobre a legitimação pelos direitos fundamentais. In: MERLE, Jean-Crhistophe,

MOREIRA, Luiz (Org.). Direito e legitimidade: escritos em homenagem ao Prof. Dr. Joaquim Carlos Salgado por ocasião de seu decanato como professor titular de teoria geral e filosofia da faculdade de Direito da UFMG. São Paulo: Landy, 2003.

28 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre factividade e validade. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003 v. I. Trad. Flávio Siebeneichler.

29 GOMES, Frederico Barbosa. As contribuições de Kant, de Rousseau e de Habermas para o estudo da autonomia no âmbito do Direito. In: FIUZA, César; DE SÁ, Maria de Fátima Freire; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Direito Civil: atualidades II – da autonomia privada nas situações jurídicas patrimoniais e existenciais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 46.

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A noção de autonomia, privada e pública por Habermas, atinge os conceitos de

vigência e eficácia da norma, como destaca o jurista Alessandro Severino Valter Zenni:

A grande interrogação posta por Habermas está na hipotética tensão entre eficácia e vigência da norma, contemporizada com o aspecto da aceitação, onde se possibilita uma aproximação entre autonomia privada, designada direito subjetivo, e autonomia pública, referida ao direito objetivo. 30

Reafirmando o estudado no item anterior sobre a teoria comunicativa, Habermas, por

sua teoria, afirma a coexistência da autonomia privada e pública, com objetivo final ético para

diminuição da desigualdade material e da qualificação dos cidadãos. Abrindo o tema do

próximo ponto do estudo, utilizando as palavras de Alessandro Zenni, “num visionar

ampliado e subsequente, a sociedade justa está implicada com a garantia de emancipação de

dignidade humana e atingimento do bem comum”31

O importante do estudo da autonomia de Habermas na atualidade é o de entender o

porquê da relevância que as leis tenham participação do cidadão que tende a vê-la como algo

externo e oposto a sua vontade. Do mesmo modo, com relação à solução dos conflitos, em

que dá-se a um terceiro o poder de decisão, sem qualquer participação dos litigantes.

Nesse ponto, mostra-se necessário outro ponto essencial da filosofia de Habermas

que é a dignidade da pessoa humana, como princípio norteador, vez que para o filósofo o

direito válido é o positivado e a legitimidade existe quando há a participação efetiva da

sociedade, ou seja, quando é fruto da atividade do grupo social.

3 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Pela teoria do discurso estudada anteriormente, tem-se que a comunicação necessária

para a livre democracia e para a legitimidade do direito só será atingida se os direitos

fundamentais dos cidadãos participantes forem realmente garantidos. Assim, além de se

proteger a autonomia, inclusive com elaboração de normas que a defendam, é necessária a

positivação dos direitos fundamentais.

30 ZENNI, Alessandro Severino Valler. O Agir Comunicativo em Habermas e a Nova Retórica de Perelman.

Revista Jurídica Cesumar. v. 7, n. 2, p. 461-470, jul./dez. 2007. Disponível em: http://www.cesumar.br/pesquisa/periodicos/index.php/revjuridica/article/view/578/495. Acesso em: 19 Ago. 2012. p. 467.

31 ZENNI, Alessandro Severino Valler. O Agir Comunicativo em Habermas e a Nova Retórica de Perelman. Revista Jurídica Cesumar. v. 7, n. 2, p. 461-470, jul./dez. 2007. Disponível em: http://www.cesumar.br/pesquisa/periodicos/index.php/revjuridica/article/view/578/495. Acesso em: 19 Ago. 2012. p. 468.

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Assim, tem-se que as normas legítimas, ou seja, que passam por um processo de

discurso social, devem proteger a autonomia dos cidadãos e os direitos fundamentais,

representados pela cláusula geral da dignidade da pessoa humana. Nesse aspecto, a jurista

Jaqueline Mielke Silva destaca de forma contumaz a filosofia de Habermas no processo de

discussão sobre um problema e o uso da linguagem:

A base da teoria de Jürgen HABERMAS é uma pragmática universal que tenta reconstruir os pressupostos racionais, implícitos no uso da linguagem. Segundo ele, em todo ato de fala, dirigido à compreensão mútua, o falante erige uma pretensão de validade, quer dizer, pretende que o dito por ele seja válido ou verdadeiro num sentido amplo. O falante tem de escolher uma expressão inteligível para que ele e o ouvinte possam entender-se mutuamente. O falante tem de ter a intenção de comunicar um conteúdo proposicional verdadeiro para que o ouvinte possa participar do seu saber. O falante tem de querer manifestar as suas intenções verazmente para que o ouvinte possa crer no que ele manifesta. Ou seja, é preciso que o ouvinte confie no falante. Finalmente, o falante deve escolher a manifestação correta, com relação às normas e valores vigentes, para que ele e ouvinte possam coincidir entre si no que se refere ao cerne normativo conhecido.32

Percebe-se que a teoria do discurso não é vista apenas para Habermas como

norteadora da legitimidade do Direito, mas também como forma de contraditório que deve

haver entre litigantes e, pode-se acrescentar, como forma de resguardar os princípios

fundamentais dos envolvidos, legitimando a decisão por eles alcançada.

Habermas enfatiza o procedimento mais que a decisão final, defendendo o processo

democrático e participativo dos cidadãos, tanto na esfera privada como na pública, numa

visão deontológica do Direito, no que é devido. Ao passo que defende o discurso, também

afirma que a validade do direito está na positivação e, com esse entendimento, “quem deve

constituir a sociedade é a própria Constituição, na medida em que será ela quem deverá

refletir e assegurar todos os que a ela se submetem a possibilidade de cada um construir a

dignidade do seu projeto de vida”.33

Para Habermas a dignidade humana não se limitava à natureza, mas englobava a

reciprocidade e o respeito mútuo nas relações interpessoais, “de tal sorte que apenas no

âmbito do espaço público da comunidade da linguagem o ser natural se torna indivíduo e

32 SILVA, Jaqueline Mielke. O direito processual civil como instrumento de realização de direitos. Porto

Alegre, RS: Verbo Jurídico, 2005, p. 255-256. 33 GOMES, Frederico Barbosa. As contribuições de Kant, de Rousseau e de Habermas para o estudo da

autonomia no âmbito do Direito. In: FIUZA, César; DE SÁ, Maria de Fátima Freire; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Direito Civil: atualidades II – da autonomia privada nas situações jurídicas patrimoniais e existenciais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 50.

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pessoa dotada de racionalidade”34. Assim, a dignidade humana tem de ser respeitada pelo

Estado e pela comunidade dentro da intersubjetividade e pluralidade do convívio, onde o ser

humano é considerado nas relações humanas.

Seguindo a estudada Teoria do Discurso, o agir comunicativo de Habermas, fácil

entender que para ele a “dignidade necessariamente dever ser compreendida sob perspectiva

relacional e comunicativa, constituindo uma categoria da co-humanidade de cada

indíviduo”35. É justamente enxergando o ser humano comunicativo, inserido numa

comunidade, de seres livres e autônomos, que se pode visualizar a dignidade numa

perspectiva comunicativa, na existente relação do ser humano com os outros e com o planeta.

No Direito Brasileiro, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é conhecido

como cláusula geral de proteção dos Direitos da Personalidade, fundamento do Estado

Democrático de Direito Brasileiro, previsto no artigo 1º. de nossa Carta Magna. Muito

utilizado na discussão de questões jurídicas, de Direito e na análise de casos em concreto,

referido princípio deve ser analisado em todas as suas amplitudes.

A idéia de que todo o ser humano é possuidor de dignidade é anterior ao direito, não necessitando, por conseguinte, ser reconhecida juridicamente para existir. Sua existência e eficácia prescinde de legitimação, mediante reconhecimento expresso pelo ordenamento jurídico. No entanto, dada a importância da dignidade, como princípio basilar que fundamenta o Estado Democrático de Direito, esta vem sendo reconhecida, de longa data, pelo ordenamento jurídico dos povos civilizados e democráticos, como um princípio jurídico fundamental, como valor unificador dos demais direitos fundamentais, inserido nas Constituições, como um princípio jurídico fundamental.36

Entendimento idêntico é abordado pelo professor Clayton Reis:

A dignidade da pessoa humana constitui-se em uma conquista que o ser humano realizou no decorrer dos tempos, derivada de uma razão ético-jurídica contra a crueldade e as atrocidades praticadas pelos próprios humanos, uns contra os outros, em sua trajetória histórica.

34 SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: uma compreensão jurídico-

constitucional aberta e compatível com os desafios da biotecnologia. In: Direitos Fundamentais e Biotecnologia. SARLET, Ingo Wolfgang; LEITE, George Salomão (Org.). Três Lagoas: Método, 2009, p. 25.

35 SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: uma compreensão jurídico-constitucional aberta e compatível com os desafios da biotecnologia. In: Direitos Fundamentais e Biotecnologia. SARLET, Ingo Wolfgang; LEITE, George Salomão (Org.). Três Lagoas: Método, 2009, p. 26.

36 SZANIASKI, Elimar. Direitos da personalidade e sua tutela. 2. ed. São Paulo: RT, 2005. p. 141-142.

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O fato de o princípio da dignidade da pessoa representar uma conquista do homem torna-se ainda mais preciosa e mais merecedora de proteção do que se tivesse sido outorgada por uma razão divina ou natural.37

Paulo Bonavides assevera que "Quando hoje, a par dos progressos hermenêuticos do

direito e de sua ciência argumentativa, estamos a falar, em sede de positividade, acerca da

unidade da Constituição, o princípio que urge referir na ordem espiritual e material dos

valores é o princípio da dignidade da pessoa humana".38

Aparentemente, o princípio da dignidade humana se limita às características naturais

do homem, para os naturalistas, e também que se trata dos direitos reconhecidos pelo homem

e positivados em códigos e leis, para os positivistas. Aqui, nesse trabalho, após o estudo de

algumas ideias do filósofo alemão Habermas, tem-se que a dignidade também está inserida no

contexto da comunicação e da autonomia da comunidade, num todo.

O ser humano deve ser tratado dignamente desde as suas necessidades mais

humanas, fisiológicas, naturais, físicas e químicas, em busca da sua sobrevivência digna e,

também na sua autodeterminação, na sua personalidade, inclusive dentro de uma comunidade,

na pluralidade de seres, de ideias, de necessidades, seja na realização de uma lei, legitimando

o Direito, seja na solução de um conflito, respeitando sua autonomia pública e privada e,

mais, respeitando o seu discurso num contexto de comunicação e de consenso.

NOTAS CONCLUSIVAS

Muito pertinente a conclusão feita por Frederico Barbosa Gomes sobre a visão de

Habermas, conjugando as principais ideias trazidas no presente estudo, o que justifica a

citação literal, mesmo sendo nas notas conclusivas, do presente texto:

Verifica-se, assim, que Habermas com seu pensamento, traduz a real complexidade que envolve não apenas o processo de criação legítimo e democrático do direito, mas também da sua própria aplicação nesses termos. A partir disso, conclui-se que por meio da teoria discursiva e procedimental do direito por ele elaborada, é possível construir uma ordem jurídica democrática, a partir de uma nova consideração entre a autonomia pública e

37 VAZ, Wanderson Lago, REIS, Clayton. Dignidade da pessoa humana. Revista Jurídica Cesumar - Mestrado,

América do Norte, 7, out. 2007. Disponível em: http://www.cesumar.br/pesquisa/periodicos/index.php/revjuridica/article/view/522/380. Acesso em: 29 Ago. 2012. p. 190.

38 BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da democracia participativa: por um Direito Constitucional de luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 234.

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a autonomia privada e da relação entre os direitos humanos e soberania popular, na medida em que se requer uma maior participação popular nos processos decisórios, sem que isso implique em renúncia ao pluralismo no seu mais amplo conceito ou mesmo a diluição do discurso jurídico num superdiscurso moral ou ético.39

A Teoria do Discurso de Habermas está cada vez mais atual, demonstrando que a

participação da sociedade, seja na elaboração das leis, na defesa dos direitos de um grupo ou

na solução de seus conflitos, e, mais, destacando a importância da valorização da autonomia,

é cada mais essencial, tanto no cumprimento das normas, no cumprimento dos ajustes entre

litigantes e no respeito à dignidade humana.

Toda pessoa, no geral, é dotada de discernimento para tomar decisões em prol da

sociedade, garantindo o princípio da dignidade humana, não somente com relação a si mesmo,

mas também dentro de uma pluralidade. Se cada ser humano tiver o pensamento que possui a

capacidade e o poder de se autodeterminar, de decidir seu destino, de defender seus interesses

e os interesses de seu grupo, praticando sua autonomia e discutindo para um fim maior, os

problemas serão vistos de outra forma e solucionados de maneira mais célere e efetiva.

A autonomia e a efetivação do Direito a partir do Discurso pregadas por Habermas

devem ser amplamente discutidas e colocadas em prática pelo mundo jurídico. Legitimar um

direito a partir da participação geral da comunidade em um processo de comunicação e

argumentação racional, buscando-se, sempre, o consenso dentro da coletividade, de modo a

respeitar a dignidade humana de cada cidadão e em prol desse direito fundamental é algo que

Habermas defende e que se mostra latente e essencial no panorama jurídico atual.

Reconhecer a importância da democracia participativa e do processo comunicativo e

valorizar a autonomia privada dentro de uma coletividade em prol da dignidade da pessoa

humana é a semente que se pretende plantar com o presente estudo. O texto ora analisado tem

o escopo de aflorar discussões, pelo menos internas no leitor, já iniciando a teoria harbesiana

num processo comunicativo, mesmo que privado, mas sempre buscando um consenso.

39 GOMES, Frederico Barbosa. As contribuições de Kant, de Rousseau e de Habermas para o estudo da

autonomia no âmbito do Direito. In: FIUZA, César; DE SÁ, Maria de Fátima Freire; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Direito Civil: atualidades II – da autonomia privada nas situações jurídicas patrimoniais e existenciais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 50.

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DIREITOS DA PERSONALIDADE E LESÃO EM FACE DA AUTOEXPOSIÇÃO NEGOCIADA1

“RIGHTS OF PERSONALITY AND INJURY IN FACE OF NEGOTIATED AUTO EXPOSURE”

Paulo Henrique Silveira Robert2 RESUMO O estudo num primeiro momento mostra o contrato como instrumento para realização de direitos. Para tanto, o trajeto dos direitos do indivíduo aos direitos deste como ser humano se mostra por intermédio de uma breve digressão histórica, a fim de demonstrar a evolução do direito da personalidade desde uma pretensa igualdade formal até uma busca da igualdade substancial para um melhor convívio em sociedade. Direitos da personalidade outrora patrimoniais são vistos com fins existenciais. A personalidade é vista como fonte de um direito geral e originário da personalidade com vários desdobramentos, enquanto que a noção personalista do direito é a que trata do indivíduo como uma pessoa no sentido material. Chega-se ao enfoque da renúncia e suas possíveis consequências, mostrando na renúncia um núcleo essencial fundamental intangível. Por fim, trata-se das lesões geradas pela renúncia aos direitos personalíssimos. Apontando alguns casos cujas consequências estão para além do que se espera em sociedade, e levanta um questionamento importante sobre a necessidade de buscar soluções que tenham a pessoa como centro do nosso ordenamento, predominando os interesses existenciais sobre os patrimoniais. Palavras-chave: contrato; direitos personalíssimos; renúncia; auto exposição; lesão. ABSTRACT The study initially shows the contract as an instrument for the realization of rights. Therefore, the path of the rights of the individual to her rights of the human being as shown by a brief historical digression in order to demonstrate the evolution of the right of personality from a pretense formal equality to a search of substantive equality for better living in society. Provision and property rights of personality are seen once existential purpose. Personality is seen as a source of a general right of personality and originating with various developments, while personalist concept of the right is dealing with the individual as a person in the material sense. Come to the focus of the renunciation and its possible consequences, showing on an essential core fundamental renunciation intangible. Finally, we treat the lesions generated by the renunciation of personal rights. Pointing some cases the consequences are beyond what is expected in society, and raises an important question about the need to seek solutions that take the person as the center of our planning, predominantly existential interests on assets. Keywords: contract; personal rights; resignation; auto exposure; lesion.

1 Tema da Monografia apresentada para obtenção do título de especialização. EMAP - Escola

Da Magistratura Do Paraná - XXX Curso De Preparação À Magistratura. 2012. Núcleo De Curitiba. 2 Egresso do curso de Direito das Faculdades Unidas do Brasil – UNIBRASIL, colaborador do

Núcleo de Pesquisa em Direito Civil e Constituição do Programa de Mestrado em Direito das Faculdades Integradas do Brasil, com área de concentração em Direitos Fundamentais e Democracia.

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INTRODUÇÃO

No intuito de desvelar a trajetória do homem tido como sujeito de direito ao

homem qualificado e reconhecido como pessoa sujeito de direitos, imprescindível se faz

a utilização de um instrumento, que seja capaz de aferir, não só a realização, como

também a forma pela qual ocorrem esses direitos fundamentais. Esse instrumento se

perfaz no contrato e seu contexto histórico em face das relações travadas por intermédio

dele.

O contrato mostra-se dentro do contexto das relações sociais e jurídicas, como

instrumento de suma importância devido à grande possibilidade que teve ao longo do

tempo por permitir uma maior circulação de riquezas.

Contrato como instrumento por excelência, que no direito romano exigia um

vínculo formal “solo consensu” (acordo de vontades); que no período Justiniano,

tornou-se atípico com uma ideia de autonomia; que do direito canônico trouxe a ideia do

“Pacta Sunt Servanda” hoje mitigado.

Contrato que partindo da ideia de consenso de Hobbes, Locke e Rousseau,

servindo como instrumento da sociedade liberal burguesa, modificado ao longo da

história pelo Estado intervencionista, e que agora, frente ao Estado de bem-estar social,

serve como um instrumento de aplicabilidade de direitos fundamentais.

Essa aplicabilidade ocorre não só nas relações entre Estado e particulares,

como também entre particulares, quando procuram concretizar a satisfação de

necessidades existenciais, no momento em que se busca uma igualdade substancial.

Uma igualdade, que visa à diminuição das desigualdades sociais ao mesmo tempo em

que procura a justiça social mais próxima da justiça distributiva, e, que esteja de acordo

com o princípio “inciviliter agere”, ou seja, ao proibir comportamentos que violem o

princípio da dignidade humana, nas relações contratuais, e conforme os ditames do

Estado Democrático de Direito.

Enfim, o contrato se mostra não só como instrumento de realização como

também de aferição de direitos fundamentais, principalmente, dentro de uma ordem

jurídica desse Estado democrático de direito, que coloca a dignidade da pessoa humana

como princípio fundamental, ligado à ideia de construir uma sociedade livre, justa e

solidária, onde os direitos fundamentais visam a assegurar o exercício dos direitos

sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a

igualdade e a justiça.

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1 DOS DIREITOS DO HOMEM AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Portanto, nada melhor do que o contrato como instrumento para aferir os

direitos do homem, direitos da personalidade e direitos fundamentais nas relações

jurídico privadas, tratando do sujeito de direito ao direito do sujeito como pessoa

humana.

Pensar em direitos do homem, na história da humanidade, significa perceber que esses

direitos não estavam correlacionados a todos os homens, refletindo situações de grande

descompasso com a igualdade substancial. Historicamente, surgem dois ramos do

direito da personalidade: o primeiro sob o ponto de vista do direito público como

direitos inerentes ao homem, para salvaguardá-lo das ingerências estatais, e o segundo,

sob o ponto de vista do direito privado, para proteger o homem dele mesmo.

Para Milton FERNANDES3 os direitos do homem estão situados dentro do

âmbito das relações verticais entre Estado e indivíduos, ou seja, são destinados ao

espaço das relações públicas onde ocorre a tutela no âmbito estatal, enquanto que

direitos da personalidade estão situados dentro das relações de eficácia horizontal, ou

seja, são tratados dentro do âmbito da relação entre particulares, regendo as relações

interprivadas.

Pensar em direitos da personalidade, importa saber que existe uma tendência atual a

afirmar que esses direitos são em si cada vez mais direitos fundamentais e vice-versa

pela sua característica intrínseca e inerente ao indivíduo como ser humano e, pelas

relações jurídicas estarem atreladas ao bem jurídico maior - a vida - desse ser humano

como indivíduo e sujeito de direitos.4

Relacionar os direitos do homem aos direitos da personalidade faz emergir do

contexto histórico as transformações sociais que ocorreram da passagem do indivíduo a

pessoa humana. Período em que o indivíduo adquire direitos sobre si, em que passa de

sujeito de direito ao sujeito de direito a ter direitos, que passa da situação de direitos que

propalam uma igualdade formal, a possibilidade, sendo concretizada, na busca de

direitos que almejam a igualdade material.

3 FERNANDES, Milton. Direitos da personalidade e estado de direito. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 50, p. 161, jan. 1980. 4 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Campinas: Bookseller, 2000. t. 7, p. 31.

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São essas transformações sociais as responsáveis pelas novas formas de pensar

o direito, alterando o pensamento da autonomia privada patrimonialista para uma

autonomia pautada num conteúdo existencialista. A dignidade da pessoa humana se

mostra como sendo fonte de novos interesses existenciais.

Atualmente, o entendimento sobre direitos fundamentais, sua aplicabilidade –

validade e eficácia –, extrapola a esfera verticalizada entre Estado e indivíduos que o

compõe, de maneira que, podemos verificar a possibilidade de exigir de outro indivíduo

e não apenas do Estado o cumprimento desses direitos, denominado pela doutrina

contemporânea de eficácia horizontal. 5

O contrato, juridicamente, passa a ser lido à luz da Constituição com atribuição

de realização de direitos fundamentais.6 Como também passa a ser o “ponto de encontro

de direitos fundamentais”.7

Direitos fundamentais, aplicados nas relações interprivadas, são lidos conforme

a tábua axiológica constitucional, de tal sorte que todos os direitos da personalidade

seguem um viés constitucional e por ele são aferidos. A não observação dos preceitos

dispostos na nossa Carta Magna sugere a possibilidade da ocorrência de lesões aos

direitos da personalidade.

Ao trabalharmos com lesões aos direitos da personalidade importa saber que o

Brasil adota a corrente Monista dos direitos da personalidade, ou seja, existe um direito

geral da personalidade com vários desdobramentos. A priori, os direitos da

personalidade são direitos “erga omnes”, oponíveis contra todos, o que não significa

que sejam ilimitados.

O entendimento dessa possível limitação se traduz na máxima “Dê ao homem

alguma parcela de poder e é o que basta para que surja algum tipo de abuso”, e, faz

perceber que a noção de direitos da personalidade só pode ser entendida, da mesma

forma que os direitos do homem, se à luz de uma noção de pessoa com conteúdo

5 De acordo com: SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2003. p. 356. No Estado clássico e liberal de direito, os direitos fundamentais só faziam sentido nas relações entre indivíduo e Estado, pois “...os direitos fundamentais, na condição de direitos de defesa, tinham por escopo proteger o indivíduo de ingerências por parte dos poderes públicos na sua esfera pessoal e no qual, em virtude de uma preconizada separação e entre Estado e sociedade, entre o público e o privado...”

6 PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. O “mínimo existencial” no contrato: desenhando a autonomia contratual em face dos direitos fundamentais sociais. p. 7. Fonte. Disponível em: <compedi.org/manaus/arquivos/anais/salvador/rosalice_fidalgo_pinheiro.pdf> acesso em: 05 nov. 2008.

7 Idem.

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substancial, longe do sentido esvaziado da visão histórica, positivista e reducionista,

noção que a transformava em um centro de imputação de direitos e deveres.

De acordo com OLIVEIRA, José Lamartine Correa e MUNIZ, Francisco José

Ferreira8: “...o ser humano não é visto como átomo isolado em face do Estado, nem em

visão competitiva de ser contra o outro; mas como ser com o outro.”. 9

2 O ELEMENTO VOLITIVO NA AUTONOMIA PRIVADA LIGADA AOS

CONTRATOS E A POSSIBILIDADE DA RENÚNCIA

Aqui começa o mote de nosso estudo estampada pela utilização e regulação das

relações pelo contrato

Historicamente, caminha-se do Estado Liberal, passa-se ao Estado Social até o

Estado Democrático de Direito, estruturando-se a relação indivíduo e direitos

fundamentais e as transformações oriundas do Direito à liberdade a liberdade a ter

direitos. Parte-se de um Estado ausente de preocupação para um Estado prestacional e,

desse a um Estado preocupado com o social. Parte-se do indivíduo à pessoa, do contrato

volitivo para adentrar em uma nova teoria contratual pautada em um contrato com

conteúdo em que somente a vontade não basta. Parte-se de um desserviço do Estado em

face do indivíduo a um Estado de serviço em prol da pessoa humana.

Assim, a vontade, ou melhor, a autonomia da vontade encontra-se no centro

das atenções desde os mais longínquos tempos, mas tem sua valoração diferenciada nos

diversos contextos em que se encontra. E, mais ainda, a autonomia negocial, que faz

movimentar as relações socioeconômicas entre os indivíduos tem consequências no

âmbito do direito da personalidade que permitem e possibilitam discussões infindáveis e

ricas sobre o tema.

A autonomia da vontade poderia ser pensada como a superioridade do direito

subjetivo sobre o direito objetivo, mas inverte seu sentido devido a sua má utilização na

busca de uma igualdade que não passava de formal e que não mais pode ser admitida

nos contratos modernos.10

A Autonomia da vontade (autonomia privada) que em síntese apertada

significa a liberdade do indivíduo de praticar atos de acordo com um interesse que lhe

8 OLIVEIRA, José Lamartine Correa; MUNIZ, Francisco José Ferreira. O estado de direito e os direitos da personalidade. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 532, p. 11-23. 2002. p. 16. 9 Idem. 10 FERNANDES NETO, Guilherme. O abuso do direito no código de defesa do consumidor. Cláusulas, práticas e publicidades abusivas. Brasília: Brasília Jurídica, 1999.p.52.

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traga a satisfação desejada, ou também, como sendo a capacidade que tem o sujeito de

direito de determinar-se conforme seu livre arbítrio. Essa autonomia da vontade,

delineada por alguns autores como sendo autonomia privada é de certa forma um termo

muito abrangente, cabendo nesse sentido falar-se de autonomia em sentido existencial e

em sentido patrimonial para melhor compreensão do tema.

O sentido patrimonial é a que sempre se perquiriu por toda existência humana,

pois o “ter” sempre teve grande significado nas relações de poder e sobrevivência.

Envolve aspectos econômicos que refletem as relações contratuais interprivadas

propriamente ditas11

Todavia o sentido existencial veio à tona nas últimas décadas com a

valorização do indivíduo como pessoa, como ser que é, e que não basta apenas viver e,

sim, viver com dignidade. É a sobreposição do “ser” sobre o “ter” na sua mais fina

essência. Enfim, consiste em escolhas de ordem pessoal, de esfera intima ligada ao

indivíduo em si e questões existenciais do mesmo. 12

Existem autores que tratam da autonomia privada, mas num sentido mais

restrito, como no caso de Ana PRATA13, designando a autonomia privada como

autonomia negocial14, quando vai tratar de liberdade. Para Pietro PERLINGIERI15,

autonomia privada alcança tanto as relações patrimoniais como as ‘não-patrimoniais’.

Patrimoniais vinculadas a bens que possuem valores pecuniários passíveis de serem

transmitidos e, não patrimoniais que também podem ser denominadas de natureza

pessoal e existencial.

Dessa liberdade decorrem normas estabelecedoras de parâmetros da autonomia

negocial.16 Essa autonomia negocial, no espírito de Estado Liberal de Direito era quase

absoluta conforme visto anteriormente. Veio a ser limitada após o intervencionismo

estatal e, atualmente está limitada pelo princípio da função social inserido no bojo dos

contratos pela CF/88.

11 PERLINGERI, Pietro. Perfis do direito civil. Trad. Maria Cristina de Cico. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 17-19. 12 Idem. 13 PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada. Coimbra: Almedina, 1982. p. 13-17. 14 Idem. 15 PERLINGERI, Pietro. Op. cit., p. 17-19. 16 ZANIN JUNIOR, Hernani. Autonomia privada e liberdade de contratar. Disponível em:<http://www.conjur.com.br/2009-jan-28/nao-real-distincao-entre-autonomia-vontade-liberdade-contratar>. Acesso em: 03 out. 2012.

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Portanto, importa por demais a manifestação do ato volitivo e como este

ocorre, principalmente, no que tange a assuntos que tratam de direitos personalíssimos e

sua íntima relação, objeto do presente estudo. Pretende-se instigar o enfrentamento do

tema, em um de seus particulares, como a possível autolesão à exposição da imagem,

dentro de nosso ordenamento, sem a pretensão de exaurir seu conteúdo por completo.

No entanto, para estabelecer, desde já, uma crítica e um possível

direcionamento apontando um norte a ser seguido, em face do poder conferido pela

autonomia negocial, temos que esse poder, outrora absoluto no Estado Liberal se mostra

hoje compartilhado por toda sociedade, todavia utilizado apenas por grandes grupos

econômicos. O monopólio do monarca foi substituído pelo monopólio desses grupos,

cabendo ao Judiciário decidir pela aplicação de limites às relações interprivadas para

coibir abusos.17

O individuo nesse contexto fica à mercê da força de grupos, e, em situação de

desigualdade, devido ao desiquilíbrio econômico-sócio-cultural em que se encontra, de

forma que o mesmo renuncia a direitos em prol de um bem da vida que

momentaneamente julga necessário.

Portanto, faz-se necessário estabelecer no que consiste a renúncia a direitos

postos como fundamentais, quando e como pode ocorrer, bem como seus limites.

Pedro Augustin ADAMY18 dispõe que a renúncia a direito fundamental “é a

situação definida em lei, em que o titular de direito fundamental, expressamente,

renúncia a determinadas posições ou pretensões jurídicas garantidas pelo direito

fundamental, ou consente que o Poder Público restrinja ou interfira mais intensamente,

por um determinado espaço de tempo e a qualquer momento revogável, tendo em vista

um beneficio proporcional e legitimo direto ou indireto, pessoal ou coletivo.”19

Essa renúncia nas relações entre particulares pode ser possível em certos

limites, cabendo duas maneiras de visualização desse fenômeno. Uma como forma de

exercer um direito ligado à liberdade e livre desenvolvimento da personalidade e outra

como forma de restrição/limitação desse direito permitindo ao Estado a interferência no

direito ou bem jurídico renunciado. Mais ainda, quando é possível perceber que a

renúncia passa a se referir a direitos de uns em relação a outros. 17 SCHOEMBAKLA, Carlos Eduardo Dipp. A autonomia privada em face da eficácia dos direitos Fundamentais no contrato. <Disponível em: www.unibrasil.com.br/sitemestrado/_pdf/dipp.pdf>. Acesso em: 26. Out. 2012. 18 ADAMY, Pedro Augustin. ADAMY, Pedro Augustin. Renúncia a direito fundamental. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 58. 19 Idem.

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Lógico que a finalidade do presente estudo está em buscar compor as zonas de

inter-relações, que geram conflitos, entre os diversos direitos fundamentais em

confronto, e, no presente caso importa no espaço de liberdade individual e suas

consequências em função dos anseios que movem a vida em comunidade.

Cabe ao jurista visualizar no caso concreto quais são os direitos fundamentais

ou bens juridicamente tutelados em conflito, para possibilitar o “sopesamento” de

valores, sem que com isto venha-se a mitigar na sua totalidade um direito fundamental

em detrimento de outro.

Importa salientar que a renúncia ao restringir/limitar direitos não pode ser

ampla, geral e irrestrita, sob pena, de ferir outro princípio fundamental como a

liberdade. O que existe é sempre um limite intangível da dignidade da pessoa humana,

de forma a proteger o indivíduo, até de seus próprios atos.

Em vista disso, a renúncia não deve e não pode atingir o núcleo essencial do

direito fundamental, de maneira que venha a transformá-lo, imprescindivelmente, de

cunho existencial em mero objeto de cunho patrimonial.

Além disso, a renúncia deve ser livre voluntária e consciente, sem qualquer

tipo de coação, induzimento, como aquelas que poderiam acontecer quando presentes

situações de desigualdades fáticas ou de poder social. Deve a renúncia ser por tempo

determinado e revogável a qualquer tempo.20

Como também, imprescindível constar que a renúncia pelo indivíduo só é

possível com relação ao exercício do direito. De forma alguma é possível dispor da sua

titularidade por se tratar de direito de cunho personalíssimo.

Assim, o instrumento do contrato nas relações interprivadas com relação à

renúncia, permite aferir em que condições são tratados os acordos privados, definindo

os seus contornos. Esses contornos, ora estabelecem restrições, ora estabelecem

possibilidades. Quando ocorrem restrições, geralmente, temos o princípio da dignidade

da pessoa humana preponderando. Quando a renúncia é possível e permitida temos a

autonomia preponderando sobre outros princípios.

Além do mais, a análise da renúncia de direitos que nos é permitida por

intermédio do contrato, a principio, parece ser de pouca importância, uma vez que,

como no caso da renúncia ao exercício de direitos da personalidade dentro dos “realities

20 NOVAIS. Jorge Reis. Renúncia a direitos fundamentais. In: MIRANDA, Jorge (Org.).Perspectivas constitucionais nos vinte anos da constituição de 1976. Coimbra: Coimbra, v. I, 1996. p. 270-273.

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shows”, da forma como se apresenta por qualquer dos participantes, demonstra uma

aceitação até prazerosa da veiculação pública da sua vida privada. Todavia, essas

relações precisam ser visadas e revisadas quando direitos são mitigados com intuitos

meramente patrimoniais.

3 DA PERDA DE VALORES NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

A sociedade contemporânea tem presenciado uma perda de valores com o

surgimento de comportamentos aportados nas redes mundiais de internet, por

intermédio das veiculações cada vez mais ousadas, como o caso dos dois adolescentes

brasileiros, em meados de 2005, que registraram em tempo real, na internet, cenas

íntimas de um deles com sua namorada, sem o conhecimento e consentimento da

mesma.

Consternada com o fato e com os danos irreparáveis a sua personalidade, a

adolescente não conseguiu fazer com que o vídeo não mais circulasse pela internet.

O Ministério Público no uso de suas atribuições, por mais que tentasse,

reconheceu a impossibilidade de retirar o filme, pois o mesmo já havia proliferado por

toda a rede em escala mundial. “Esse vídeo, infelizmente, já se encontra fora de

controle, ele pode estar no Camboja, na Ásia, Rússia, América do Norte. Quando

alguma coisa é reproduzida na rede mundial de computadores, você perde o controle”,

diz o Promotor de Justiça Romero Lyra.21

Essa perda de valores não se mostra mais de forma insignificante, uma vez que

a indiscrição de um ato por um adolescente, nesses moldes, ultrapassa a simples e mera

conduta inofensiva. Toma vulto, frente à amplitude gerada pela profusão crescente dos

meios de comunicação e sua capacidade de produzir efeitos cada vez mais lesivos, e,

isso ocorre, numa escala crescente e exponencial.

O resultado no cotidiano das pessoas dessa lesividade crescente importa numa

nova reconstrução do entendimento do direito em si, uma vez que o crescente

desenvolvimento tecnológico leva a novas formas de lesão a interesses existenciais e,

que esses, são gerados por mais das vezes, por situações outras também tuteladas pelo

nosso ordenamento jurídico.

21 Noticiado na folha online na data de 02 de julho de 2005. Disponível em: <

http://forum.darkside.com.br/vb/showthread.php?t=1669> Acesso em: 23 jul. 2012.

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Da necessidade da aplicação de um método capaz de discernir a graduação que

deve ser dada à aferição da lesão ao direito da personalidade surge como possibilidade a

ponderação.

Nesse sentido, em se tratando de lesões à personalidade, Ingo Wolfgang

SARLET22 indica a necessidade da ponderação de valores principiológicos, no caso

concreto, quando os mesmos se encontram em conflito. Como no caso de lesões

causadas à imagem, à honra e a intimidade pessoal, interferindo nos direitos da

personalidade, os quais, imprescindivelmente, devem ser apurados buscando a exata

dimensão dos interesses em colisão.

Nessa ponderação, Anderson SCHREIBER23 destaca que: “...o jurista deve

empregar o método ponderativo em sua mais genuína essência. No balanceamento de

interesses contrapostos, há de identificar as circunstâncias relevantes a cada

conflito...”24

Para tal, não basta verificar apenas o que definem as normas versus os

interesses conflitantes, mas, sim, buscar o conteúdo valorativo, em sua essência, dos

direitos da personalidade. Principalmente, por se tratar, no mais das vezes, da disputa de

direitos que embora antagônicos possuam um ponto em comum – a dignidade da

pessoa humana – a ser tratado não apenas na subsunção do fato a norma, mas na

valoração das cláusulas abertas e dos conceitos indeterminados dos interesses

conflitantes.

4 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

A dignidade não tem valoração, pois se sobrepõe a mensuração, de forma que

não há como substituir a sua perda em face de sua característica intrínseca ao indivíduo

como pessoa humana. E, assim diz: Carmem Lúcia Antunes ROCHA "Toda pessoa

humana é digna."25

22 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na

constituição federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2001. p. 38-39. 23 SCHREIBER, Anderson. Os direitos da personalidade e o código civil de 2002. Disponível em:< http://www.andersonschreiber.com.br/Anderson_Schreiber/Artigos_files/Schreiber%20-%20Persona.pdf>. Acesso em: 22-jul-2012. p. 27.

24 Idem. 25 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão

social. Disponível em: < http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/32229-38415-1-PB.pdf >. Acesso em: 09 mai 2012. p. 4.

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A dignidade e a pessoa humana são conceitos interligados de forma que uma

completa e se locupleta na outra. Uma não existe sem a coexistência com a outra.

Quando questionamos, a possibilidade, ou não, de restringir direitos fundamentais,

dentro de um Estado Democrático de Direito, ou mais ainda, quando questionamos a

possibilidade de restringir a renúncia a esses direitos pelo seu titular, estamos a nos

referir à possibilidade de interferir em parâmetros da dignidade da pessoa humana.

A reflexão encontra respaldo na construção histórica do entendimento do

significado do sentido da “dignidade”, bem como nas conquistas de direitos para uma

vida com mais qualidade. Aqui, o homem descobre que viver sem dignidade não é

viver. Descobre que não basta pensar individualmente, pois o coletivo é um reflexo do

indivíduo, principalmente quando não se protege o indivíduo, essa proteção atinge o

coletivo em sua individualidade. Nesse sentido Cármen Lúcia Antunes ROCHA26 A revivificação do antropocentrismo político e jurídico volta o foco das preocupações à dignidade humana, porque se constatou ser necessário, especialmente a partir da experiência do holocausto, proteger o homem, não apenas garantindo que ele permaneça vivo, mas que mantenha respeitado e garantido o ato de viver com dignidade. A história, especialmente no curso do século XX, mostrou que se pode romper o ato de viver e mais ainda, de viver com dignidade, sem se eliminar fisicamente, ou apenas fisicamente, a pessoa. Nesse século se demonstrou também que toda forma de desumanização atinge não apenas uma pessoa, mas toda a humanidade representada em cada homem. Por isso se erigiu em axioma jurídico, princípio matricial do constitucionalismo contemporâneo, o da dignidade da pessoa humana. (grifos nossos).27

A humanização ou a desumanização dos atos influencia os comportamentos

humanos e afeta as relações no sentido de que melhoram ou pioram a qualidade de vida.

Um exemplo a se comentar está nos dizeres da Ministra Carmen Lúcia, ao

tratar da dignidade da pessoa humana e da exclusão social, quando busca a reflexão da

condição do homem como um fim em si mesmo ou como produto do meio.28 Como fim

em si mesmo como da dignidade por si só. Como produto do meio por ser agente capaz

de sofrer interferências na sua dignidade. E assim dispõe ao fazer uma correlação com o

caso do aborto anencefálico:

"Toda pessoa humana é digna. Essa singularidade fundamental e insubstituível é ínsita à condição humana do ser humano, qualifica-o nessa categoria e o põe acima de qualquer indagação. Quando se questiona, nestes chamados tempos modernos, se se há de permitir, ou não, o nascimento de um feto no qual se detecte a existência de anomalia a impossibilitá-lo para uma vida autônoma, está-se a infirmar aquela assertiva e a tornar a humanidade um meio para a produção de resultados e a desconhecer ou desprezar a condição do homem

26 Idem. 27 Idem.

28 Idem.

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de ser que é fim em si mesmo e digno pela sua própria natureza. Aquilo traduz-se, pois, como injustiça contra os que não se apresentam em iguais condições psicofisiológicas, intelectuais etc. É a injustiça havida na indignidade revelada na desumanidade do tratamento dedicado ao outro. É a injustiça do utilitarismo que se serve do homem e o dota de preço segundo a sua condição peculiar, que se expressa numa forma ao invés de se valer pela essência humana de que se dota." (grifos nossos) 29

Pois bem, ao relacionarmos essa consideração da Ministra com a indagação de

permitir ou não, a renúncia dos direitos inerentes à personalidade em face da sociedade

e das mudanças constantes, que possam interferir em aspectos mais íntimos do

indivíduo, poderíamos por assim dizer que “está-se a infirmar aquela assertiva e a

tornar a humanidade um meio para a produção de resultados e a desconhecer ou

desprezar a condição do homem de ser que é fim em si mesmo e digno pela sua

própria natureza”30

Ora, a dignidade é inerente ao ser humano, faz parte do ser humano, não se

desagrega do indivíduo, ou seja, é indissociável.

Discutir, atualmente, a possibilidade de permitir ou não, a renúncia, em face da

sociedade, por nós “sociedade”, estaríamos tornando a humanidade um meio para a

produção de resultados e dessa forma, não reconhecendo como característica inerente à

qualidade da pessoa como ser fim em si mesmo e digno pela sua própria condição

humana.

Todavia, não podemos menosprezar situações de desproteção dessa

integridade. A dignidade pode ser considerada, em alguns casos, como sendo o único

bem capaz de ser disponibilizado pelo seu titular, contudo, a possibilidade dessa

disposição deve de algum modo ser controlada. O motivo desse controle é que além de

dizer respeito ao próprio indivíduo, pode extrapolar a esfera individual, e, gerar efeitos

na esfera de direitos de outros. Não podemos olvidar que a liberdade sem limite não é

liberdade, pois acaba por interferir na liberdade de outrem.

Essa interferência pode extrapolar a esfera individual e não possibilitar um

retorno ao status quo ante, devido à gravidade da situação deflagrada. Assim

exemplifica Luís Roberto BARROSO31 com a colaboração de Ana Paula

BARCELLOS: No caso de violação à honra: se a imputação de um crime a uma pessoa se revelar falsa, o desmentido cabal minimizará a sua consequência. Mas no caso da intimidade, se se divulgar

29 Idem. 30 Idem. 31BARROSO, Luís Roberto. Op. cit., passim.

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que o casal se separou por disfunção sexual de um dos cônjuges – hipótese que em princípio envolve fato que não poderia ser tornado público – não há reparação capaz de desfazer efetivamente o mal causado.32(grifos nossos) Ademais, quando nos referimos a liberdade não podemos deixar de pensar que

o homem é um ser gregário que vive em sociedade, e assim sendo, a dignidade deve ser

pensada dentro das situações sociais. Nesse sentido, aponta Edilsom Pereira FARIAS33: A dignidade pessoal postula o valor da pessoa humana e exige o respeito incondicional da sua dignidade. Dignidade da pessoa a considerar em si e por si, que o mesmo é dizer a respeitar para além e independentemente dos contextos integrantes e das situações sociais em que ela concretamente se insira. Assim, se o homem é sempre membro de uma comunidade, de um grupo, de uma classe, o que ele é em dignidade e valor não se reduz a esses modos de existência comunitária ou social. Será por isso inválido, e inadmissível, o sacrifício desse seu valor e dignidade pessoal a benefício simplesmente da comunidade, do grupo, da classe. Por outras palavras, o sujeito portador do valor absoluto não é a comunidade ou a classe, mas o homem pessoal, embora existencial e socialmente em comunidade e na classe.34

No mesmo sentido, Clèmerson Merlin CLÈVE35 demonstra que o princípio da

dignidade da pessoa humana é considerado a base essencial de todo o ordenamento

jurídico e de todo o sistema de direitos fundamentais, constituindo-se como valor

supremo, e argumenta no sentido de que: “... os direitos fundamentais sociais devem ser

compreendidos por uma dogmática constitucional singular, emancipatória, marcada pelo

compromisso com a dignidade da pessoa humana e, pois, com a plena efetividade dos

comandos constitucionais”.36

Ao pensar em “dignidade” como um todo e seus reflexos, pautados nos direitos

da personalidade, eis que surge um questionamento, com relação à possibilidade de

existir limites a que estaria restrita essa dignidade. Será que todos podem dispor da

própria imagem da maneira que melhor lhe convém. E mais, ainda, será que a

disposição do próprio corpo ou de parte dele tem algum limite em face do ordenamento

jurídico pátrio. Por esse motivo trazemos à colação, em síntese apertada, alguns

apontamentos sobre o direito à disposição da própria imagem (integridade moral) e do

próprio corpo (integridade física), com exemplos paradigmáticos cuja finalidade se

32 Idem. 33 FARIAS, Edilsom Pereira. Colisão de Direitos. A honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. Porto Alegre: Ed. Fabris, 2000. p. 60. 34 Idem. 35 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A eficácia dos direitos fundamentais sociais. Boletim Científico – Escola Superior do Ministério Público da União. Brasília: ESMPU, Ano II, n. 8. jul – set. 2003, p. 152-153. 36 Idem.

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perfaz em demonstrar certa interferência no âmbito de abrangência dos direitos da

personalidade.

5 DO DIREITO À DISPOSIÇAO DA PRÓPRIA IMAGEM E DO PRÓPRIO

CORPO

Anderson SCHREIBER37 coloca que quando tratamos de direito à imagem,

estamos a pensar sob que forma a informação pode ser ou não passada em veículos de

divulgação em massa, como no caso de programas televisivos, e, de que maneira

podemos tratar a possibilidade de uma lesão à imagem individual.

Independente da autorização da exposição da imagem deve-se considerar que

essa veiculação pode ser considerada como licita ou ilícita. Licita se realizada como

simples ato informativo e, ilícita se realizada com intuito comercial para além do

simples fato de buscar informar.

SCHREIBER comenta a “impossibilidade de uma regulação rígida para os

direitos da personalidade...”38, e, espera que o legislador possa orientar o Poder

Judiciário, bem como as autoridades administrativas no sentido de soluções pautadas na

“concreta avaliação dos interesses colidentes.”39 Pois, considera insuficiente a postura

adotada pelo CC/2002 ao adotar em algumas hipóteses o engessamento por intermédio

de soluções pré-formatadas a alguns direitos da personalidade. Como ocorre quando

resta a interpretação com base nos bons costumes.

5.1 O LIMITE DOS BONS COSTUMES

O artigo 13 do CC/2002 mostra a vontade do legislador ao expor que: “Salvo

por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar

diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.”, ou seja,

da interpretação literal do artigo tem-se que é permitida a redução da integridade física,

desde que não permanente, restando como limite apenas os bons costumes.

37 SCHREIBER, Anderson. Op.cit., p. 4

38 Idem. 39 Idem.

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Utilizar o critério “bons costumes” como limite não traz segurança, pois é um

termo muito amplo. Em realidade, trata-se de um limite que não demonstra qualquer

referência de gradação entre lesão leve ou grave impingida ao próprio corpo. Não

determina se esse limite pautado nos bons costumes diz respeito à disposição para um

fim patrimonial ou existencial. Também nada diz se a disposição é para si ou para

outrem. Além de outras indagações que não estariam evidenciadas com o fim em si

mesmo, dessa disposição, atrelando-a a dignidade do indivíduo como pessoa e não

como mero expectador de direitos.

A insuficiência de critérios mais elucidativos pode permitir a ocorrência no

direito brasileiro do direito à disposição do próprio corpo em casos reais que

surpreendem a imaginação e causam no mínimo estranheza acerca das possibilidades

criadas nas relações contratuais. Relações pactuadas que mudam o foco de atenções ao

dispor da integridade física, moral e psicológica com fins outros que não voltados para

interesses existenciais e, sim apenas, na busca de interesses meramente patrimoniais

como no caso implante microchip e no caso plasmaferesis.

5.2 CASO IMPLANTE MICROCHIP EM BAJA BEACH CLUB

Caso da vida real de clientes que para ter o acesso à área VIP da boate Baja

Beach Club, em Barcelona permitem o implante de um microchip no seu próprio braço.

Esse microchip emite ondas de radiofrequência identificadas por intermédio de um

scanner que permite a identificação do cliente, servindo como forma de controle da

consumação.40

A interpretação literal e por exclusão do artigo 13 do CC/2012 de que a

diminuição não permanente estaria autorizada, pode levar a afirmação de que partes

regeneráveis do corpo humano mereceriam menor proteção do que as partes

irrecuperáveis. Saber que partes destacáveis do corpo humano (saliva, sêmen, fio de

cabelo, cutícula, unhas), transportam características genéticas capazes de mostrar

detalhes íntimos de cada indivíduo faz com que se mostre necessário um conceito mais

abrangente do corpo humano para salvaguardar sua proteção.41

Não se deve ficar apenas na literalidade de um artigo de lei, uma vez que essa

interpretação pode ser muito restritiva e não albergar direitos fundamentais, mesmo,

40 Idem. 41 Ibidem, p. 8.

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ainda que esses direitos não possam ter sido amplamente discutidos, pois, com a

evolução estratosférica dos meios de comunicação e sua divulgação existem parâmetros

a serem observados na defesa da vida com dignidade.

5.3 CASO PLASMAFERESIS, NA NICARAGUA

A falta de uma posição jurídica mais firme pode levar a coisificação do ser

humano em termos de disponibilidade para fins comerciais. “o perigo de que na

ausência de uma firme posição jurídica, o interesse comercial acabe por estimular a

disposição de tais partículas.”42

Caso do laboratório Plasmaferesis, na Nicarágua, que coletava sangue,

mediante pagamento, arbitrariamente, de pessoas desfavorecidas da sociedade, além de

militares subalternos e, exportava sob o apoio do governo de Anastácio Somoza para os

EUA e Europa algo em torno de 300 mil frascos por ano, entre 1973 e 1977.43

Assim, somam-se muitos outros casos de exploração comercial de partes

destacadas do corpo, alguns com anuência do indivíduo que interessa ao nosso estudo

em questão e outros sem a anuência os quais, no mais das vezes, constituem um ilícito

penal no nosso ordenamento pátrio.

5.4 EXPLORAÇÃO COMERCIAL DO CORPO E DA IMAGEM

Da exploração comercial do corpo ou de partes dele com a devida anuência do

próprio indivíduo, temos de considerar diversos fatores com significado relevante no

que tange os direitos da personalidade, tais como: Autoexposição negociada;

manipulação midiática exagerada; explorado e explorador na questão da exploração

versus não informação; direito a informação versus direito à intimidade e a dificuldade

da mídia controlar isso.

5.4.1 Autoexposição negociada

Atinge limites de exposição da imagem chegando a suprimir quase por

completo a privacidade quando expõe toda intimidade como no caso do reality show “A

42 Ibidem, p. 9. 43 Idem.

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Fazenda” e “Big Brother Brasil”. Isso torna transparente todas às relações existentes

dentro de um quadro de produção de um recinto fechado e impõe ao mesmo tempo uma

cláusula de sigilo que impede os participantes de comentar sobre as possíveis

interferências ocorridas no âmbito de suas esferas mais intimas.

Caso do Big Brother na versão da África do Sul exibindo estupro ao vivo.

Ocorre que “As câmeras indiscretas flagraram o estudante de cinema Richard

Bezuidenhout, de 24 anos, originário da Tanzânia, atacando a auxiliar de enfermagem

Ofunneka Molokwu, de 29 anos, nascida na Nigéria e que estava bêbada no momento

da agressão sexual.” 44

A Autoexposição negociada importa na liberdade do indivíduo contratar.

Segundo Maria Celina BODIN DE MORAIS a “liberdade significa, hoje,

poder realizar, sem interferências de qualquer gênero, as próprias escolhas individuais,

exercendo como melhor convier”45

Carlos Alberto BITTAR afirma que liberdade é a “faculdade de fazer, ou

deixar de fazer, aquilo que a ordem jurídica se coadune. Vale dizer: é a prerrogativa que

tem a pessoa de desenvolver, sem obstáculos, suas atividades no mundo das relações”46.

Todavia, essa liberdade não significa expor sua intimidade a seu bel prazer,

assim porque existe uma diferença entre expor a intimidade e expor a vida privada do

indivíduo. A intimidade esta ligada a uma esfera mais introspectiva do individuo e que,

geralmente, tem a ver com aspectos que o individuo pretende resguardar para si ou, se

for o caso, para um número restrito de pessoas a quem tem confiança. Enquanto que,

expor aspectos da sua vida privada geram uma preocupação por parte do individuo,

todavia, não da mesma forma e com a mesma intensidade que teria ao expor fatos

íntimos.

Nesse sentido, a maior parte da doutrina está de acordo com Tércio Sampaio

FERRAZ JR, no que diz respeito aos aspectos que diferenciam o significado de seu

significante dado ao vocábulo intimidade, contraposto à vida privada propriamente dita,

e, nestes termos assim dispõe:

44 A imagem de uma participante do Big Brother sendo estuprada por outro interno na casa televisiva de Johanesburgo embrulhou o estômago de milhões de espectadores do programa sul-africano, de acordo com a revista "First Post". Disponível em:<http://oglobo.globo.com/blogs/pagenotfound/?a=88&periodo=200711> Acesso em: 24 jul. 2012. 45 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro. Editora Renovar, 2003. p. 107. 46 BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 7ª edição, 2006. p. 105.

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[...] a intimidade é o âmbito do exclusivo que alguém reserva para si, sem nenhuma repercussão social, nem mesmo ao alcance de sua vida privada que, por mais isolada que seja, é sempre um “viver entre os outros”, enquanto a vida privada abrange situações em que a comunicação é inevitável (em termos de relação com alguém que, entre si, trocam mensagens) das quais, em princípio, são excluídos terceiros.47

5.4.2 Da manipulação midiática exagerada

Essa manipulação midiática exagerada faz com que os “paparazzi” busquem

desenfreadamente notícias, fotos sobre todo e qualquer tipo de celebridade divulgando

muitas vezes em tabloides de fofocas e todo tipo midiático que lhes possa gerar algum

ganho pecuniário, sem se preocupar com a invasão da privacidade e as possíveis lesões

à imagem ou à honra dessas personalidades. Aliás, quanto mais invasiva melhor, pois

rende mais frutos, tantos quantos maior for a degradação da intimidade.

Essa atitude, sem duvida alguma invasiva, pois sem o consentimento da parte,

acaba por expor imagens intimas, sendo muito das vezes acobertada sob o manto da

justificativa lícita do “caráter publico da divulgação”, quer seja pelo fato notório da

pessoa em si ser considerada pública, quer pela consideração de que a exposição tenha

sido realizada em local público.

Todavia, temos duas considerações a serem ressaltadas nas palavras de

SCHREIBER48: uma que “a invocação da publicidade do local afigura-se evidentemente

imprópria em situações onde o uso da tecnologia configura artificio inesperado e até

malicioso”, e, duas que “a qualificação de qualquer pessoa como pública, a sugerir que

nenhum aspecto de sua vida privada permanece a salvo de lentes indiscretas”.

Nesse sentido, uma questão é tirar uma foto de um casal namorando em uma

praia, outra questão consiste, de fazê-lo de modo diferente, em utilizar-se de artifícios

para obter maiores detalhes dessa relação, ou seja, confronta com algo que ultrapassa da

esfera de vigilância esperada, que o casal presume ser possível de manter a sua

intimidade, mesmo estando em local público.

Além do mais, deve-se levar em conta que o interesse de informação tem de ser

legítimo a que se pretende passar adiante para possibilitar a prevalência do direito à

informação sobre o direito à privacidade por si só.49

47 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Sigilo de dados: o direito à privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado. Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas. São Paulo: RT, v. 1, p. 141-154, out./dez. 1992. p. 143. 48 SCHREIBER, Anderson. Op. cit., p. 14. 49 Idem.

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5.4.3 Do explorado e do explorador na questão da exploração versus não informação

A questão da exploração da informação tem significado quando a intromissão

no âmbito da privacidade assume caráter meramente comercial e a especulação já não

visa única e exclusivamente o interesse existencial da pessoa sujeito de direito.

Muito comum nos programas televisivos, quando se utiliza a imagem de

artistas a fim de cativar e prender a atenção do telespectador, trazendo uma percepção

da realidade fantasiosa e falaciosa, quer pelos meios empregados, quer pela não

informação.

No que diz respeito aos meios, consiste na exposição exacerbada da

privacidade, tanto do próprio participante como também dos reflexos dessa participação

na privacidade de terceiros.

Com relação a não informação, refere-se por um lado ao direito de não ver

exposta sua intimidade (não ver informado detalhes tão íntimos e privados) e, por outro

lado, tem a ver com a prestação de uma informação que não condiz com a realidade e,

por isso falaciosa, pois essa falsa representação da realidade ao mesmo tempo denigre a

imagem pessoal. Essa representação se dá pelo fato de que em geral, a priori, os

indivíduos engendram papeis como no caso dos realities shows como uma mera

representação – por mais que tenha uma vontade livre, consciente e de fato queira,

intimamente, ninguém quer se expor ao ridículo, muito menos expor detalhes que

possam trazer desconforto ao seu intimo - mas, pelo acontecimento dos fatos e no calor

das emoções acabam por transpor barreiras da sua vida privada que, em situações

normais, jamais deixariam ocorrer.

Da exploração e constrangimento da privacidade, segundo Raymundo de

LIMA50, ao referir-se aos programas televisivos de coparticipação, expõe que são

invadidos, a todo o momento, não só o espaço físico como o psicológico do individuo,

bem como o próprio individuo permite a evasão da privacidade ao oferecer o que tem

disponível para poder participar. Em suas palavras, assim dispõe:

O que há de comum nesse tipo de programa é que todos os candidatos abrem mão de sua privacidade e é autorizada transgredir a privacidade alheia. Os espaços físicos e psicológicos são invadidos a todo o momento. Um exemplo mais forte do Big Brother que causou

50 LIMA, Raymundo de. Big brother: invasão e evasão de privacidade na tv. Disponível

em:<http://br.monografias.com/trabalhos906/big-brother-invasao/big-brother-invasao.shtml>. Acesso em 25 jul. 2012.

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constrangimento entre os participantes e na audiência, foi quando o grupo entrou no carro para testar a resistência física e psíquica para ganhar o carro, o que só foi conseguido após 14 horas de permanência dentro do veículo. Tudo isso quando somada a uma hollywoodização de cenário, dando a ilusão ao telespectador estar tendo acesso ao "mundo real" dos outros como se fosse o "mundo verdadeiro". Qualquer ingênuo sabe que há algo de teatralismo histérico e exibicionismo dos participantes, já que todos sabem que estão sendo filmados, mas um quantum de gozo é obtido em ver. O voyerismo banal e compulsivo do telespectador certamente é maior (76%) que qualquer interesse científico ancorado na Psicologia Social, Antropologia ou Sociologia, até porque os personagens são uniformes (do meio artístico, logo mesma linguagem, mesma banalidade, etc) não tem história diferente pra contar e muito pouco podem oferecer de lição de vida. (grifos nossos).51

Tanto a invasão como a evasão da privacidade é um bom negócio, no primeiro caso para os donos e empregados da programação, e, segundo, no caso da "evasão", para quem deseja participar dela oferendo o que tem como valor de troca. No caso do reality shows, as pessoas se ofereceram participar mais como meio de ascensão social, de obter no futuro próximo fama, prestígio para participar de uma novela, ficar famoso, etc, que pelos 500 mil do final. (grifos nossos).52 ...ao oferecer o circo como substituto da necessidade de pão, a ideologia que rege a televisão, acredita que as pessoas demandam viver mais de ilusão que de realidade. (grifos nossos). 53

5.4.4 Do direito a informação versus direito à intimidade e da dificuldade de controle

pela mídia.

Como se sabe, tanto o direito à informação quanto o direito à intimidade,

nenhum dos dois direitos é absoluto, devendo, portanto serem relativizados no caso

concreto, todavia podemos salientar que a intimidade esta ligada à imagem da pessoa e

vice versa. Assim sendo, devem-se adotar precauções, interferindo, a ponto de não

permitir a ocorrência de lesão à imagem pessoal, não permitindo que venha a causar

danos irreparáveis.

Todavia, essa redoma protetiva, não deve ser tal que proíba toda e qualquer

forma de interferências, no sentido de coibir a liberdade de informação a que terceiros

tenham o direito, pois, vive-se dentro de uma sociedade em que a informação é

elemento essencial das relações sociais.

Por outro lado, importante por demais salientar que a liberdade de informação

não deve subjugar a intimidade, imiscuindo-se na intersubjetividade da pessoa, sem que

o interesse público esteja evidentemente realçado e seja de relevante significado para a

sociedade. Salvo quando a imagem não tenha sido captada espontaneamente ou em

51 Idem. 52 Idem. 53 Idem.

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cenário publico e, desde que, dentro dos parâmetros de normalidade que se espera do

homem médio, sem o artificio de tecnologias que superem o normal.

Esse é o entendimento exposto no acórdão do recurso especial RESP 58101

(1994/0038904-3 - 09/03/1998) abaixo:

CIVIL. DIREITO DE IMAGEM. REPRODUÇAO INDEVIDA. LEI Nº 5.988/73. Art. 49, I, “f”). DEVER DE INDENIZAR. CODIGO CIVIL. (Art. 159). A imagem é a projeção dos elementos visíveis que integram a personalidade humana, é a emanação da própria pessoa, é o eflúvio dos caracteres físicos que a individualizam. A sua reprodução, consequentemente, somente pode ser autorizada pela pessoa a que pertence, por se tratar de direito personalíssimo, sob pena de acarretar o dever de indenizar, que, no caso, surge com a sua própria utilização indevida. É certo que não se pode cometer o delírio de, em nome do direito da privacidade, estabelecer-se uma redoma protetora em torno de uma pessoa para torná-la imune de qualquer veiculação atinente a sua imagem; todavia não se deve exaltar a liberdade de informação a ponto de se consentir que o direito à própria imagem seja postergado, pois a sua exposição deve condicionar-se `a existência de evidente interesse jornalístico, que, por sua vez, tem como referencial o interesse publico, a ser satisfeito, de receber informações, isso quando a imagem divulgada não tiver sido captada em cenário publico ou espontaneamente.54

Sem dúvida que existe uma dificuldade de controle pela mídia, principalmente

com o crescimento exponencial das relações privatistas, todavia não nos é permitido

deixar de pensar no indivíduo como pessoa e como o centro das relações. De tal sorte

que a proteção à privacidade deve suplantar os interesses econômicos, sendo posta em

questão, se e somente se, houver interesse existencial em conflito. Para tal, necessário

explicitar o termo privacidade para sua melhor compreensão.

O significado do termo privacidade, de acordo com a Convençao do Estado de

Montana/USA, pode ser assim definido pela forma como foi ratificada pela sua

população como sendo: “O direito à privacidade individual é essencial para o bem-estar

de uma sociedade livre e não deve ser infringido sem a exibição de um interesse estatal

convincente.”55

Embora a perda de alguns valores na sociedade contemporânea seja algo

constatado, não podemos deixar de lado que a privacidade tem seus fundamentos

54 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Civil. Recurso Especial nº58.101-SP (94/0038904-

3), Relator Ministro Cesar Asfor Rocha – julgamento – 16/set/1997 – publicação – 09/ mar/ 1998. Disponível em: < http://www.stj.gov.br/webstj/Processo/imagem/Acordaos.asp?num_registro=199400389043&dt_publicacao=09/03/1998# >. Acesso em: 24 jul. 2012.

55 “USA. Montana Constitution, Article II, Section 10. Right of privacy. Disponivel em : < http://data.opi.mt.gov/bills/mca/Constition/II/10.htm> Acesso em: 22 mar. 2012. Section 10. Right of privacy. The right of individual privacy is essential to the well-being of a free society and shall not be infringed without the showing of a compelling state interest.”. Constituição seção 10 do Estado de Montana, USA. Aprovadas pela convenção constitucional 22 de marco de 1972, e ratificado pelo povo, 6 de junho de 1972, Referendo NÃO.

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iniciais em um lado patrimonialista, mas termina, nos dias atuais, por se complementar

em valores existencialistas.

O lado, patrimonialista, remonta a uma lógica individualista, advinda de um

modelo de Estado Liberal, pautado na propriedade como um dogma, a não permitir

ingerência nela da mesma forma que não se permitia ingerências na vida privada.

O outro lado, existencialista, contempla um direito por si só, mais amplo, mais

aberto às mudanças, voltado aos valores sociais, de forma que abrange, hoje, categorias

destinadas inclusive a proteção de dados pessoais a resguardar à imagem individual que

cada um tem, como se cada indivíduo tivesse, e tem, dentro de si uma representação

virtual pura e simplesmente sua - “um avatar” nas palavras de Danilo Doneda56 - que

merece e precisa mais do que a simples omissão estatal no que tange a deveres

negativos, como também uma atuação positiva de concreção de novos direitos. Assim,

percebe-se a necessidade desses direitos serem albergados por interesses que

transcendem a esfera individual e, mais, voltados à proteção da pessoa humana.

Além do mais, a proteção à privacidade tem escopo na CF/88, em seu Art. 1º,

III, buscando zelar pela integridade dos valores da pessoa sujeito de direitos,

incumbindo ao jurista brasileiro discernir o real do venial, de forma que “Somente a

segura distinção entre a lógica do ter e a do ser pode tutelar adequadamente a pessoa

humana, de modo a cumprir, plenamente, o elevado projeto constitucional ”57:

Assim, no dizer de Sidney Guerra58:

O direito à honra está intimamente relacionado aos valores mais importantes da pessoa, de poder andar de cabeça erguida, de ter um nome, das pessoas terem uma boa referência desta pessoa, enfim de poder se olhar no espelho e verificar que, de fato, trata-se de um homem honrado. No direito à honra, a pessoa é tomada, frente à sociedade, em função do valor que possui dentro daquele contexto social. Ocorrendo então a lesão da honra, de imediato a pessoa cujo direito foi violado se sente diminuída, desprestigiada, humilhada, constrangida, tendo perdas enormes tanto no aspecto financeiro, como no aspecto moral, pois a lesão se reflete de imediato na opinião pública, que logo adota uma postura negativa contra a pessoa implicando nestas perdas mencionadas.59 Portanto, essa proteção da privacidade, a que se busca, tem a ver com o valor

que possui no contexto social o direito a honra do indivíduo, para que o mesmo não se

56 DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.2.

57 SCHREIBER, Anderson. Op. cit., p. 25. 58 GUERRA, Sidney César Silva. A liberdade de imprensa e o direito à imagem. Biblioteca

das teses. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.p. 49-50. 59 Idem.

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sinta lesado em sua esfera mais intima, quer moralmente, quer financeiramente, tendo

em vista que esses transtornos podem, e têm repercussão na opinião pública.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os direitos da personalidade estão intrinsicamente imbrincados com o

individuo e afetos a uma área muito delicada da sua convivência em sociedade. Pensar

em renúncia a esses direitos, sem uma devida proteção, pode levar o indivíduo a

situações inimagináveis de descompasso com os direitos e garantias conquistados ao

longo dos tempos.

Ademais, deve o individuo ser protegido no mais das vezes até de si mesmo,

mas sem imiscuir em seu livre arbítrio ao ponto de tolher a sua liberdade, ferindo o

núcleo essencial do individuo como pessoa.

Portanto, no que tange a assuntos inerentes aos direitos da personalidade,

devemos estar abertos a novas considerações, em conformidade com a nossa

hermenêutica constitucional, permitindo dessa forma assimilar novos direitos e novas

interpretações, sempre que mais favoráveis ao sujeito de direito, na qualidade de pessoa

humana que é.

Ao aplicador do direito, ao mesmo tempo em que extrai do objeto a norma

aplicável deve, a todo o momento, preocupar-se com o sujeito e com os novos

parâmetros insculpidos na nossa Carta Magna, que propalam cada vez mais o individuo

como o centro das atenções e, não apenas como objeto das relações contratuais.

Enfim, direitos da personalidade e lesão em face da Autoexposição negociada

demonstra ser um tema tão abrangente quanto importante, e, que merece um estudo

mais aprofundado na medida em que cada vez mais frequente em nosso cotidiano.

7 REFERENCIAS

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LIBERDADE DE IMPRENSA E INVIOLABILIDADE DA INTIMIDADE DA PESSOA HUMANA:

necessidade de harmonização no caso concreto

FREEDOM OF PRESS AND INVIOLABILITY OF HUMAN BEING’S INTIMACY:

need for harmonization in the specific case

Ana Sylvia da Fonseca Pinto Coelho*

Cristiane Rêgo* *

RESUMO O presente artigo analisa brevemente o possível conflito de princípios em análise de casos concretos. Assim, o ensaio se restringirá ao exercício do direito fundamental da liberdade de imprensa e a proteção deferida à intimidade, à vida privada, honra e imagem das pessoas, todos eles, direitos fundamentais insertos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Para tanto, serão abordados os aspectos mais relevantes destes princípios. A solução sugerida neste estudo é no sentido de se aplicar a teoria da ponderação de valores proposta por Robert Alexy de forma que um princípio cederá lugar ao outro no caso concreto. PALAVRAS-CHAVES: Conflito de princípios; Liberdade de imprensa; Proteção à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem; ponderação de valores.

ABSTRACT This essay gives a brief analysis about the possible conflict between principles in hard cases. Thus, the paper will give special attention into the rights of freedom of press and protection granted to the privacy, the private life, the honor and the image of persons, all of them, fundamental rights expressed on the Brazilian Constitution. Therefore it will discuss the most relevant aspects of these principles. The solution that is suggested in this study is, in fact, applying the theory of weighting values, proposed by Robert Alexy so that one will give way to the other principle in the specific case. KEYWORDS: Conflict of principles; Freedom of the press; Protection of privacy, private life, honor and image; weighting values

* Advogada. Professora contratada de Direito do Trabalho I e II e Processo do Trabalho da PUC-MG. Graduada em Direito pela Universidade FUMEC. Pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Faculdade de Direito Milton Campos. Mestranda em Direito do Trabalho pela PUC-MG. * * Advogada. Professora contratada de Direito Empresarial II (Sociedades) e IV (Falências e Recuperação de Empresas) da PUC-MG. Graduada em Direito pela PUC-MG. Pós-graduada em Direito Privado pela Universidade Cândido Mendes (UCAM). Mestranda em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos.

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1 INTRODUÇÃO

A liberdade de imprensa consiste em um direito fundamental, previsto no art. 5°,

inciso X, da Constituição da República de 1988. De acordo com esse dispositivo, as

manifestações de pensamento não poderão sofrer repressões prévias, ou seja, não estarão

sujeitas a nenhum tipo de censura, seja essa de natureza política, ideológica e artística.

Não obstante a previsão do direito à liberdade de imprensa estar elencado no rol do

art. 5° do mencionado diploma, que trata dos direitos e garantias fundamentais, o legislador

constitucional optou por regulamentá-lo também no art. 220 caput e § 1º, no qual dispôs

novamente que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob

qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, demonstrando a

importância dessa garantia para a sociedade e para o exercício pleno da cidadania. (BRASIL,

1988)

Nota-se, no entanto, que referido dispositivo constitucional não é considerado de

caráter absoluto e por essa razão está sujeito a algumas limitações impostas pela própria

Constituição da República de 1988. Tais limitações são, por exemplo, as concernentes ao

direito à inviolabilidade, à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem, assegurado o

direito de indenização pelo dano decorrente àquele que for lesado, sendo necessária a

subsistência de todas essas garantias dentro da ordem jurídica vigente, uma vez que se trata de

um Estado Democrático de Direito, que tem por base fundamental a própria Constituição da

República.

Dada a complexidade do tema, o presente estudo terá como pano de fundo o conflito

existente entre o direito à privacidade e a liberdade de imprensa e as suas conseqüências

práticas, uma vez que, tem sido comum a super valorização da chamada “indústria da

indenização” decorrente de responsabilidade civil.

Para tanto, será feita uma apreciação crítica sobre este assunto do ponto de vista

doutrinário e jurisprudencial, levando em conta à análise do julgamento da Ação de

Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 130, realizada pelo Supremo Tribunal

Federal (STF), a fim de se possibilitar uma melhor compreensão acerca desta proposição.

Cumpre ressaltar que não é objeto deste trabalho um estudo sobre hermenêutica

constitucional, mas tão somente apontar insumos para uma análise mais profunda acerca do

problema apresentado.

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2 DIREITOS A PERSONALIDADE - BREVES CONSIDERAÇÕES

Os direitos da personalidade são direitos subjetivos, que têm por objeto os elementos

que constituem a personalidade de seu titular, considerada em seus aspectos físico, moral e

intelectual. Ademais, visam proteger as qualidades e os atributos essenciais da pessoa

humana, de forma a impedir que os mesmos possam ser apropriados ou usados por outras

pessoas distintas de seus titulares. São direitos inatos e permanentes, uma vez que nascem

com a pessoa e a acompanha durante toda a sua existência.

Segundo o Código Civil Brasileiro, em seu art. 2º, a personalidade civil do homem

inicia-se com o nascimento com vida, ressalvados os direitos do nascituro. Portanto, é correto

afirmar que os direitos da personalidade estão visceralmente ligados à humana, pois passam a

existir a partir do momento em que a personalidade civil é adquirida, ou seja, quando o sujeito

passa a ser sujeito de direitos e obrigações. (BRASIL, 2002)

Tais direitos, positivados constitucionalmente sob o regime dos direitos

fundamentais encontram também fundamento na teoria das liberdades públicas. Possuem,

ainda, regime jurídico próprio caracterizado pela necessidade de se garantir ao cidadão a

liberdade de manter exclusividade quanto às deliberações acerca das escolhas que lhe

identificam como ser humano e determinam a sua singularidade vital.

Os direitos da personalidade são, em regra, caracterizados como extrapatrimoniais,

relativamente indisponíveis, irrenunciáveis, intransferíveis, inalienáveis, inexecutáveis,

impenhoráveis, inexpropriáveis, imprescritíveis e oponíveis erga omnes. Na verdade,

representam categoria especial dentre os direitos fundamentais, como os do art. 5º da

Constituição da República de 1988, embora sua distinção por vezes seja complexa.

Direito a vida, a honra, ao corpo, à imagem, à liberdade, à intimidade, ao estado

civil, ao trabalho, aos produtos da pessoa (direitos autorais), ao segredo das correspondências,

são algumas das manifestações dos direitos da personalidade, uma vez que o elenco destes

direitos não estão previsto em um rol taxativo, podendo ser ampliados pelo Poder Constituinte

Reformador.

Para o estudo proposto, importa a análise das garantias referentes à liberdade de

imprensa e à privacidade (intimidade), no sentido de se estabelecer uma ponderação de

valores no caso concreto, quando eles aparentemente se colidam e garantir a máxime

efetividade aos direitos constitucionais assegurados.

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3 A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DE INFORMAÇÃO

O desenvolvimento de uma sociedade democrática depende, dentre vários outros

fatores, do desenvolvimento da comunicação entre os seus indivíduos, uma vez que ressalta "a

necessidade que cada indivíduo tem de expressar, de comunicar seu pensamento" (Gilberto

Haddad Jabur, 2000, p.151).

Conforme entende Paulo Gustavo Gonet Branco, “a liberdade de expressão é um dos

mais relevantes e preciosos direitos fundamentais, correspondendo a uma das mais antigas

reivindicações dos homens de todos os tempos”. (BRANCO, 2007, p. 349) Assim, ainda

segundo o autor, a liberdade de expressão torna-se importante instrumento que possibilita o

funcionamento e preservação do sistema democrático, uma vez que o pluralismo de opiniões é

fundamental para a formação de vontade livre.

Nesse sentido, a liberdade de expressão e de informação consiste na faculdade de

expressar livremente o pensamento, através da exteriorização de idéias e opiniões, bem como

o direito de transmitir e receber informações verdadeiras sobre fatos, sem que haja qualquer

tipo impedimento ou de censura previamente estabelecida pelos poderes públicos.

A censura por ser uma imposição unilateral e autocrática de idéias e opiniões impede

o livre exercício da liberdade de expressão e informação, sobretudo da liberdade de imprensa,

e por essa razão, torna-se incompatível com os regimes democráticos. É necessário para o

regular funcionamentos destes regimes o pluralismo político, a livre circulação de idéias,

opiniões, notícias sobre as mais diversas materiais, etc. No direito de expressão caberia, então,

“(...) toda mensagem, tudo o que se pode comunicar – juízos, propaganda de idéias e notícias

sobre fatos”. (BRANCO, 2007, p. 351)

Na visão de Gilberto Haddad Jabur, em sua obra Liberdade de Pensamento e Direito

à Vida Privada:

O respeito à liberdade de expressão, permitindo a exposição de idéias e opiniões, doutrinas e críticas, traduz-se em respeito ao pluralismo político e ideológico, elementos inseparáveis da democracia. Não atua ela em uma única zona da vida social. É multiforme e expansiva, de acordo com a necessidade, interesse e criatividade humanas. Reflete a participação do individuo no seio social; enobrecendo-o, como também pode denegri-lo, porque afinal, está-se diante de uma liberdade. (JABUR, 2000, p.155)

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A Constituição da República de 1988, em observância aos princípios fundamentais

do Estado Democrático de Direito, regula a liberdade de expressão e informação nos artigos.

5° e 220.

Através destes dispositivos é possível verificar que a proteção constitucional quanto

à liberdade de expressão e de informação compreende tanto os atos inerentes à própria

comunicação, quanto o de receber livremente informações diversificadas e corretas. Com isso,

busca-se proteger não só o emissor, mas também, o receptor do processo de conhecimento.

A liberdade de expressão e informação, consagrada nos textos constitucionais,

constitui uma característica vital e construtora das atuais sociedades democráticas. É relevante

notar que essa liberdade pode ser vista como um indicador do regime democrático, uma vez

que o livre exercício deste direito fundamental não pode ser obstacularizado por nenhum tipo

de censura prévia. Essa liberdade tem, sobretudo, um caráter de pretensão a que o Estado não

exerça censura. Importa ressaltar que não cabe ao Estado estabelecer quais opiniões merecem

ser tidas como válidas e aceitáveis, mas sim, ao público a que essas manifestações se dirigem,

sendo o este direito, como já dito, de índole marcadamente defensiva”. (BRANCO, 2007, p.

351)

Em outras palavras: a democracia é tanto maior quanta mais ampla a liberdade de

expressão.

Manuel da Costa Andrade, em sua obra Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade

Pessoal afirma que:

De forma axiomática, a liberdade de imprensa emerge, ela própria, como um direito fundamental e (hoc sensu) como uma instituição - "uma instituição moral e política" (...) - basilar e irrenunciável da sociedade democrática e do Estado de Direito. Que, na caracterização intencionalmente carregada do Tribunal Constitucional Federal alemão um "elemento essencial" ou ainda "pura e simplesmente constitutivo" (69) de um estado assente na liberdade. (ANDRADE, 1996, p.39)

Há que se ressaltar que a liberdade de impressa, objeto de estudo, desponta como um

elemento inerente à liberdade de expressão e de informação, ou seja, consiste em um das

formas de manifestação deste direito fundamental de maneira independente e imparcial e

sobretudo, afastada de qualquer censura prévia por parte do poder público. Ressalte-se,

entretanto, que a proibição de censura não obsta, porém, a que o indivíduo assuma as

conseqüências, não só cíveis, como igualmente penais do que se expressou. (BRANCO, 2007)

O vocábulo imprensa não tem apenas o significado restrito de meio de difusão de

informação impressa, uma vez que engloba também os demais meios de divulgação de

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informação que, através dos modernos e poderosos veículos de difusão como o rádio, a

internet e a televisão, alcançam a grande massa de maneira ilimitada.

Conforme afirmado pelo Ministro Carlos Ayres Britto, no julgamento da Argüição

de descumprimento de Preceito Fundamental n. 130 pelo Supremo Tribunal Federal, o

vocábulo imprensa significa:

(...) objetivamente, uma atividade. Uma diferenciada forma do agir e do fazer humano. Uma bem caracterizada esfera de movimentação ou do protagonismo dessa espécie animal que Protágoras (485/410 a.C) tinha como “a medida de todas as coisas”. Mas atividade que, pela sua força de multiplicar condutas e plasmar caracteres, ganha a dimensão de instituicaoideia. Locomotiva sócio-cultural ou ideia-força. Nessa medida, atividade (a de imprensa) que se põe como a mais rematada expressao do jornalismo; quer o jornalismo como profissão, quer o jornalismo enquanto vocação ou pendor individual (...). (...) Já do ângulo subjetivo ou orgànico, a comprovação cognitiva é esta: a imprensa constitui-se num conjunto de órgãos, veículos, “empresas”, “meios”, enfim, juridicamente personalizados (§ 5º do art. 220, mais o § 5º do art. 222 da Constituição Federal). Logo, subjetivamente considerada, a imprensa é instituição - entidade, instituição-aparelho, instituição-aparato. Mas seja a imprensa como objetivo sistema de atividades, seja como subjetivados aparelhos, a comunicação social e mesmo o seu traco diferenciador ou signo distintivo. (ADPF 130)

Pelo exposto, ainda de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o

papel da imprensa é o de comunicar, transmitir, repassar, divulgar, revelar informações ou

notícias de coisas acontecidas no mundo do ser, que é o mundo das ocorrências fáticas, bem

como o pensamento, a pesquisa, a criação e a percepção humana em geral, estes situados nos

escaninhos do nosso cérebro, identificado como a sede de toda inteligência e de todo

sentimento da espécie animal a que pertencemos. A modalidade de comunicação que a

imprensa exprime se dirige ao público em geral, constituindo-se em fonte de informações que

habilitam os seres humanos a fazer avaliações e escolhas no seu concreto dia a dia. (BRASIL,

2010.)

Assim, concluiu-se que a imprensa livre contribui para a concretização dos princípios

constitucionais e da democracia, possuindo uma liberdade de atuação ainda maior que a

liberdade de pensamento e de expressão dos indivíduos em si mesmos considerados.

(BRASIL, 2010.)

Mas, cumpre destacar que o exercício de tais liberdades não implica uma fuga do

dever de observar todos os incisos igualmente constitucionais, tais como vedação do

anonimato; direito de resposta; direito à indenização por dano material ou moral a intimidade,

a vida privada, a honra e imagem das pessoas; livre exercício de qualquer trabalho, oficio ou

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profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer; direito ao resguardo

do sigilo da fonte de informação, quando necessário ao exercício profissional.

Dessa forma, conforme já explicitado, o direito fundamental de liberdade de

expressão, ou de imprensa, não pode ser concebido como direito abso1uto. Os direitos, ou

estão limitados por outros direitos, ou estão limitados por valores coletivos da sociedade

igualmente amparados pela Constituição.

Assim, em que pese a liberdade de imprensa estar prevista na Constituição da

República de 1988, também, com a mesma intensidade devem ser garantidas a proteção à

honra, à vida privada e à imagem de todas as pessoas (inclusive jurídicas) envolvidas em urna

matéria jornalística.

Embora pareça paradoxal essas garantias individuais também são "indicadores" da

democracia: é correto afirmar, também, que a democracia é tanto maior quanta mais ampla a

proteção dos direitos e garantias individuais.

Neste sentido manifesta-se Manuel da Costa Andrade (1996)

(...) nada menos adequado do que a representação da liberdade de imprensa como

um direito ou valor absoluto e, como tal, invariavelmente legitimada a impor-se e

sobrepor-se a todos os direitos ou valores. Este é um atributo que a ordenação

jurídica democrática não reconhece a qualquer direito. Em circunstancias e sob

pressupostos que caberá a definir com a aproximação e o rigor possíveis, também a

liberdade de imprensa será, não raro, de ceder perante a salvaguarda de valores ou

interesses pessoais. (ANDRADE, 1996, 45)

A liberdade de impressa tem como limite interno a veracidade dos fatos que serão

repassados à sociedade, bem como a observância ao interesse público ao se veicular uma

determinada matéria. Exige-se do profissional diligência e apreço pela verdade, no sentido de

que seja informada a fonte dos fatos noticiáveis e verificada a seriedade da notícia antes de

qualquer divulgação.

De acordo com Paulo Gustavo Gonet Branco, “O requisito da verdade deve ser

compreendido como exigência de que a narrativa do que se apresenta como verdade fatual

seja a conclusão de um atento processo de busca de reconstrução da realidade”. (BRANCO,

2007, p. 362)

É necessário que seja feita uma distinção entre a divulgação de fatos de relevante

interesse público e a divulgação de condutas íntimas e pessoais, protegidas pela

inviolabilidade a vida privada. Em relação àquelas, pode-se afirmar que em se tratando de

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informações que interessam de fato à sociedade é dever da imprensa torná-las públicas.Há,

aqui, um dever de cautela imposto ao comunicador, que deverá ser diligente ao noticiar os

fatos, sob pena de responsabilidade pelo material divulgado.

Por outro lado, condutas de foro íntimo, que na maioria das vezes interessam

somente ao seu titular, não podem ser divulgadas de forma vexatória e humilhante, pois em

nada contribuem para sociedade. Assim, o respeito à honra de terceiros pode ser considerado

como outro limite à liberdade de imprensa.

As informações veiculadas pela imprensa devem acrescentar, educar, desvendar e

esclarecer o seu público alvo e não ferir, ofender e vulgarizar os cidadãos envolvidos em uma

determinada matéria, de maneira que seja atendida a indiscrição de uma pequena parcela da

sociedade. Isso não quer dizer que devam-se noticiar apenas notícias agradáveis. Algumas

informações podem parecer ofensivas, mas sçao divulgadas com o intuito de informar o

interesse público, não se tornando ilícitas.

Além disso, o exercício da liberdade de imprensa deve ser compatível com os

direitos fundamentais dos cidadãos afetados pelas opiniões e informações, ressaltando-se a

dignidade da pessoa humana, bem como, com os outros bens constitucionalmente protegidos,

tais como: moralidade pública, saúde pública, segurança pública, integridade territorial, etc.

Nos dizeres de Gilberto Haddad Jabur “a informação mal difundida, porque

desconexa, desvirtuada, ou alterada, dificilmente se apaga da memória de quem a recebe”

(JABUR, 2000, p. 164).

Ainda neste sentido manifesta-se o referido Autor em sua obra amplamente citada:

No terreno dos direitos personalíssimos, uma simples guinada do órgão de

comunicação social , com poucas e breves menções, imagens ou sons, é suficiente

para fulminar uma ou varias reputações. A informação veiculada pela imprensa é

vigorosa formadora de opinião. Seu alcance é extraordinariamente prejudicial, bem

mais que o posterior desagravo ou composição civil dos danos, meros paliativos.

(JABUR, 2000, p.188)

Contudo, em que pesem as últimas considerações, vale ressaltar que, pelo fato da

liberdade de imprensa figurar como um direito fundamental, uma vez que decorre da

liberdade de expressão e de informação, qualquer restrição, par parte do Poder Público, ao

âmbito de proteção dessa liberdade devera ser justificada quanto à sua necessidade.

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3.1 A indústria da indenização

A pretexto de exercer a liberdade de imprensa, alguns operadores dos meios de

comunicação de massa violam os direitos individuais dos cidadãos, e com isso, causam danos

aquelas pessoas que estão diretamente ou indiretamente envolvidas naquela matéria

jornalística.

Muitas informações veiculadas pela imprensa dizem respeito às ocorrências

policiais, notoriamente aquelas que causam explosão emocional e firmam a opinião pública

sobre as vertentes da sociedade criminalizada. Esta parte da mídia, vulgarmente denominada

de "imprensa marrom" ou sensacionalista, se preocupa em veicular notícias chocantes e

escandalosas, na maioria das vezes expondo as pessoas diretamente ligadas aquele fato,

agredindo com isso os seus direitos fundamentais, sobretudo os da personalidade. Ademais,

existem casos de informações falsas, forjadas, que expressam claramente a manipulação

política da mídia, que além de exagerar fatos, falseia-os.

É sabido que a mídia exerce um grande poder de esclarecimento e até mesmo de

educação, sobre a sociedade. Entretanto, a ideologia embutida em cada notícia,

principalmente as que tratam de assuntos policiais, bem como o desrespeito aos direitos da

personalidade, tais como a intimidade, a honra e a imagem, leva esse poder de ensinamento a

um a disfunção da mídia, uma vez que é passado para a população o entendimento de que

certas pessoas não tem direito de preservar sua intimidade.

Violada a esfera de intimidade de uma pessoa, será devida a esta, caso se sinta

prejudicada com tal intromissão, uma indenização pecuniária a ser arbitrada pelo juiz de

acordo com a gravidade da lesão, as circunstâncias em que ocorreu, a posição social e

econômica das partes.

Por essas razões, o poder Judiciário tem sido provocado intensamente para a

apreciação das ações relativas ao dano moral, tendo em vista que a própria Constituição da

República de 1988 prevê a responsabilização civil em caso de violação aos direitos da

personalidade (art. 5º, inciso X), desde que esteja devidamente comprovado nos autos, a culpa

do réu, o dano sofrido pelo autor e o nexo causal entre ambos (art. 186 do Código Civil).

Por outro lado, verifica-se o crescimento da chamada indústria da indenização, uma

vez que muitas destas ações são propostas com o único objetivo de proporcionar qualquer tipo

de ganho para aquele que se sentiu lesado. Esta situação pode acabar gerando o cerceamento

da liberdade de imprensa, tendo em vista a sobreposição da coletividade, em seu interesse

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máximo pela informação, torna a imprensa uma publicadora de artigos e posições ideológicas

que podem atingir um ou outro cidadão sob a acusação de ter feito um ato i1egal ou imoral.

Diante deste impasse, juízes e Tribunais procuram tomar uma posição cautelosa no

julgamento destas ações para que não haja uma supervalorização da indústria da indenização e

consequentemente o cerceamento ou a intimidação da imprensa em seu livre direito de

informar.

É preciso traçar os limites entre o direito constitucionalmente assegurado da

liberdade de expressão, de informação e de imprensa no Estado Democrático e os abusos

condenáveis que não devem ser tolerados nem ficar impunes.

Diante desta situação é preciso alcançar o difícil - ao menos em tese- equilíbrio entre

a liberdade imprensa e o direito à reparação de danos em relação aos cidadãos que se sentem

atingidos por notícias a seu respeito veiculadas pela mídia.

4 PRIVACIDADE - A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA INTIMIDADE

Em uma primeira análise Manuel da Costa Andrade define a privacidade como

sendo a necessidade de entricheiramento do homem contemporâneo nos espaços de ação e

interação pessoais, densificados de “encantamento” e emoção e sem direta valência sistêmico

– social. (ANDRADE, 1996, p.88)

A discussão acerca da natureza da privacidade ou, da própria limitação entre os

espaços público e privado não é recente. Georges Duby (1990), por exemplo, através de um

estudo sobre o poder privado e o poder público analisa o conceito de privatus sobre várias

perspectivas.

Primeiramente a idéia de privado e de privacidade é concebida dentro de certos

limites físicos (fronteiras espaciais) onde todo o poder de mando é reservado ao chefe de

família.

Nos dizeres de Georges Duby:

Nos dicionários da língua francesa compostos do século XIX, ou seja, no momento

em que a noção de vida privada adquiria seu pleno vigor, descubro de inicio um

verbo, o verbo privar , significando domar, domesticar (...).

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Descubro em seguida que o adjetivo privado, considerado de maneira mais geral,

também conduz à idéia de familiaridade, agrega-se a um conjunto constituído em

torno da idéia de família, de casa, de interior.

Entre os exemplos que escolheu, Litté cita a expressão que se impunha ao seu

tempo: “A vida privada deve ser murada”, e propõe esta glosa em minha opinião

bastante expressiva: “ Não é permitido procurar e dar a conhecer o que se passa na

casa de um particular”. (DUBY, 1990, p.19)

Segundo Georges Duby o vocábulo privatum correlaciona-se com a idéia de

propriedade:

agir privatum (opondo-se esse advérbio a publice) é agir não enquanto magistratus, investido de um poder emanado do povo, mas como simples particular, em outro território jurídico e igualmente não é agir fora aos olhos de todos n fórum, mas em seu domicílio, no interior de sua casa, isoladamente, separadamente. Quanto ao substantivo privatum designa os recursos próprios (novamente a idéia de propriedade), o uso próprio e, finalmente, ainda o em casa (in privado, ex privado: em ou fora da casa). (DUBY, 1990, p.20)

É certo que os limites físicos, protetores da família e da própria privacidade são de

grande importância. Entretanto, a privacidade também deve ser resguardada fora dos limites

do lar, ou seja, no espaço físico dito público.

Neste contexto é necessário criar mecanismos contra uma possível intervenção do

Poder Público na vida dos indivíduos. Encontra-se, neste ponto, uma nova perspectiva da

privacidade, o right to be alone. Há uma tendência marcante em limitar a intervenção do

Estado na vida particular, coibindo abusos em relação aos homens. Na medida que os espaços

individuais crescem, o intervencionismo tem sido mitigado demonstrando assim a expansão

dos direitos concernentes à privacidade.

Diante disso, o debate entre o público e o privado assume nova conotação, qual seja,

o limite do poder: “É preciso admitir que a oposição entre a vida privada e a vida pública é

menos uma questão de lugar que de poder” (Duby: 1990, p. 23).

Mais recentemente, a doutrina ligada à temática da privacidade tem se atentado para

a violação da privacidade não só por parte do Poder Público, como também pela invasão pelos

próprios particulares à esfera privada dos demais indivíduos.

Por essa razão, é necessário conter a invasão social na esfera particular das pessoas,

uma vez que os efeitos produzidos podem ser tão perversos, quanto o intervencionismo

desmedido por parte do Poder Público.

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4.1 O fenômeno da estigmatização - notas sobre a identidade distorcida pelo

uso abusivo da informação

Na historia da humanidade, desde os tempos mais remotos, verifica-se que a

aceitação de um indivíduo na sociedade esta condicionada à sua imagem e sua apresentação

social. Por essa razão, no que diz respeito ao relacionamento entre os indivíduos, é

interessante o estudo acerca do fenômeno da estigmatização e suas repercussões sociais.

Considera-se uma pessoa estigmatizada aquele indivíduo que por alguma razão não

tenha se adequado ao modelo estereotipado apresentado pela sociedade na qual está inserido.

Os gregos criaram o termo “estigma” como sendo um indicativo àqueles sinais

corporais que demonstravam o status moral e social daqueles que os possuíam. De acordo

com estas marcas corporais era possível certificar que uma determinada pessoa era um

escravo ou ate mesmo um criminoso e a partir desta convicção este individuo seria banido de

seu grupo social.

Ao longo dos anos, o estigma foi adquirindo várias conotações distintas. Na Era

Cristã, o estigmatizado era aquela pessoa que possuía algum sinal corporal que, em alguns

casos, poderia representar a graça divina. Por outro lado, tais sinais poderiam corresponder a

certos distúrbios físicos.

Na atualidade, utiliza-se o termo estigma para representar a própria desgraça ou o

infortúnio de um indivíduo, deixando de ser utilizado apenas como um indicativo acerca do

estado físico desta pessoa.

As pessoas ao serem inseridas em um grupo social são, quase inexoravelmente,

automaticamente divididas em classes, nas quais são definidas as características comuns e

naturais dos seus membros.

Neste sentido,manifesta-se Erving Goffman, em sua obra Estigma:

quando um estranho nos é apresentado, os primeiros aspectos nos permitem prever

a sua categoria e os seus atributos, a sua "identidade social" - para usar um termo

melhor do que "status social", já que nele se incluem atributos como "honestidade",

da mesma formas que os atributos estruturais, como "ocupação". (GOFFMAN,

1988, p.12)

Diante disso, uma pessoa deixa de ser vista como comum, em virtude de uma

característica que a difere dos demais. Neste caso, a sociedade considera esta pessoa incapaz

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para a realização de certos atos da vida cotidiana. Este elemento diferenciador será um

estigma, principalmente, se o descrédito decorrente desta marca for facilmente perceptível.

De acordo com Erving Goffman este termo é utilizado como:

(...) referência a um atributo profundamente depreciativo, mas o que é preciso, na

realidade, é uma linguagem de relações e não de atributos Um atributo que

estigmatiza alguem pode confirmar a normalidade de outrem, portanto, ele não é,

em si mesmo, nem honroso nem desonroso. (GOFFMAN, 1988, p.13)

E para este caso, cita como exemplo:

(...) alguns cargos na America obrigam os seus ocupantes que não tenha a educação

esperada a esconderem isso; outros cargos, entretanto, podem levar os que os

ocupam e que possuem uma educação superior a manter isso em segredo para não

serem considerados fracassados ou estranhos". (GOFFMAN, 1988, p.13)

Assim, a idéia do que possa ser um estigma, ou em outras palavras, daquilo que

possa representar um traço negativo na personalidade de uma pessoa, pode variar em razão do

seu decurso de tempo, de lugar, das pessoas, da cultura, etc.

Segundo o referido autor o estigma pode se manifestar de três maneiras:

Podem-se mencionar três tipos de estigma nitidamente diferentes. Em primeiro

lugar, ha as abominações do corpo- as várias deformidades físicas. Em segundo, as

culpas de caráter individual, percebidas como vontade fraca, paixões tirânicas ou

não naturais, crenças falsas e rígidas, desonestidade, sendo essas inferidas a partir

de relatos conhecidos de, por exemplo, distúrbio mental, prisão, vício, alcoolismo,

homossexualismo, desemprego, tentativas de suicídio e comportamento político

radical. Finalmente, há os estigmas tribais de raça, nação e religião, que podem ser

transmitidos através de linhagem e contaminar por igual todos os membros de uma

família. (GOFFMAN, 1988, p.14)

Em todos estes casos verifica-se que a não aceitação de um indivíduo na sociedade,

e consequentemente, seu afastamento do grupo, impede que os seus demais atributos sejam

percebidos. Acredita-se que o estigmatizado não seja uma "pessoa completamente humana" e

por essa razão, passa a ser vítima de discriminação por parte dos demais membros da

sociedade, tendo em vista que uma serie de imputações são feitas a partir da sua imperfeição

original.

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É o que ocorre quando uma pessoa portadora de alguma deficiência física é tida

como inválida para qualquer situação, ainda que esta não tenha nenhuma relação com a sua

deficiência. Quando a idéia de estigma se encontra consolidada na sociedade, as demais

características de estigmatizados passam a ser imperceptíveis. Pode ocorrer que este

deficiente físico não possua condições para ser um jogador de futebol. Contudo, nada impede

que esta pessoa seja um exímio magistrado.

Por outro lado, existem também as pessoas que ao perceberem que são estigmatizas

não se sentem diminuídas ou envergonhadas, uma vez que se consideram como pessoas

normais. Neste caso verifica-se uma situação de indiferença à causa que o afastou daquilo que

efetivamente era exigido para o convívio dentro de seu grupo social. Os ciganos são exemplos

de pessoas que não se menosprezam em virtude do estigma que carregam, ao contrario, se

orgulham por serem diferentes.

Quanto às pessoas que convivem com o estigmatizado, percebe-se que a este não lhe

é dado o devido respeito e consideração. É certo que este tratamento diferenciado em relação

ao estigmatizado decorre de um atributo considerado impuro, que o afasta da normalidade.

Assim, diante desta repulsa social e da falta de consideração, o estigmatizado passa a sentir

vergonha da de sua situação.

Para tentar reverter esta situação, o estigmatizado pode corrigir diretamente aquilo

que é visto como defeito. Isto ocorre quando alguma anomalia física é reparada através de

uma cirurgia plástica. Indiretamente, esta correção pode ser feita quando o estigmatizado

procura despender um grande esforço individual ao domínio de certas áreas tidas como

privativas dos “normais”. Essas áreas são consideradas como fechadas, tanto por motivos

físicos (aptidão física), como circunstanciais. É possível vislumbrar essa reinserção social

quando um deficiente físico passa a dominar um certo esporte ou quando um deficiente visual

se torna um artista plástico consagrado.

O estigma, em alguns casos, pode ser utilizado como um meio para a obtenção de

ganhos secundários, no qual o atributo diferencial e a principio vergonhoso passa a ser

manejado de forma não convencional. É o que ocorre quando uma pessoa se fundamenta no

estigma para justificar os seus fracassos, suas insatisfações, angústias, etc. Ao corrigir direta

ou indiretamente um defeito haveria uma perda da proteção individual que aquele atributo lhe

proporcionava. Ainda neste sentido, descobre-se que a vida daqueles que não possuem mácula

não é tão fácil, como era imaginado.

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Do ponto de vista religioso é possível que o estigmatizado veja nas suas privações

uma manifestação divina ou uma benção secreta e com base nesta crença, enxerga o

sofrimento como um meio de aprendizagem acerca da própria vida e a dos demais indivíduos.

Encarando o estigma desta forma este individuo passa a limitar as condições dos

normais, valorizando a sua própria postura perante os outros.

É relevante para o estudo da estigmatização o contato na mesma realidade social

entre os indivíduos estigmatizados e aqueles que naquele momento são considerados normais.

Neste sentido, manifesta-se Erving Goffman (1988, p.23):

quando normais e estigmatizados realmente se encontram na presença imediata um dos outros, especialmente quando tentam manter uma conversação, ocorre uma das cenas fundamentais da sociologia, porque, em muitos casos, esses momentos serão aqueles em que ambos os lados enfrentarão diretamente as causas e efeitos do estigma. ( ... ) surge no estigmatizado a sensação de não saber aquilo que os outros estão "realmente" pensando dele (...). GOFFMAN, 1988, p.23

A partir deste contato é possível alcançar as mais diversas formas de se lidar com o

estigma. Entretanto, o que se percebe é que o estigmatizado, na maioria da vezes, se sente

banido da sociedade em razão da existência de um determinado atributo incomum.

Diante disso, a necessário repensar acerca do controle da informação, não do ponto

de vista da censura e sim, levando-se em consideração que a aceitação de uma pessoa em seu

grupo social depende da informação que é transmitida aos outros sobre a sua identidade.

Assim, a imprensa, por ser um meio de difusão de informação, deve se preocupar, e

muito, com a imagem do indivíduo que esta sendo reproduzida com aquela matéria

jornalística e, consequentemente com as repercussões sociais que esta matéria poderá trazer

àquelas pessoas que estão direta ou indiretamente envolvidas nela.

Esta previsão se torna necessária, uma vez que a divulgação de um determinado

atributo incomum ou de uma postura não convencional pode tirar uma pessoa do anonimato e

lançá-lo na sociedade com uma pessoa estigmatizada.

Vale ressaltar que esta proteção à privacidade e à imagem de uma determinada

pessoa, não tem o objetivo de isolá-lo de seu grupo social.

Por essa razão, pode-se dizer que o escopo da privacidade consiste na preservação da

intimidade do ser humano, para que a sua inserção na comunidade, bem como o seu

relacionamento não esteja prejudicado em virtude de uma mácula na sua imagem.

Sob este fundamento parece legítimo justificar a necessidade de um mínimo de

controle sobre o trafego de informação, tendo em vista que a preservação de certos aspectos

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íntimos do indivíduo garante o seu bom relacionamento com a comunidade na qual se

encontra inserido.

Assim, o escopo da privacidade consiste no aperfeiçoamento das relações sociais do

indivíduo na sua comunidade e não o isolamento deste ser humano.

Nos Estados Democráticos de Direito, a privacidade é erigida com uma norma de

direito fundamental de maneira que a mera ameaça a qualquer uma de suas manifestações, tais

como a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem, podem causar grande comoção e

movimentação social.

No Brasil, com o advento da Constituição da República de 1988, a proteção à

privacidade recebeu um tratamento diferenciado, uma vez que restou consagrada no

ordenamento jurídico brasileiro como um direito fundamental no já mencionado art. 5º, X.

Para o presente trabalho, o estudo acerca da intimidade é de grande importância,

tendo em vista que o livre exercício da liberdade de imprensa pode ser obstado, no caso

concreto, tendo em vista uma possível violação a este direito constitucional fundamental.

A intimidade na visão de Rosângelo Rodrigues de Miranda (1996) consiste num

concêntrico de menor raio subordinado ao conceito de privacidade, ou seja, entende-se que o

conceito de intimidade está contido no conceito de privacidade.

Leciona o autor:

A intimidade diz respeito ao direito de estar só, aspecto que se acredita ser comum à toda pessoa. Exemplificando: o diário íntimo, o segredo sob juramento, as próprias convicções, as situações devassáveis de pudor pessoal, o segredo intimo cuja mínima publicidade constrange. Ou ainda, as circunstâncias da vida familiar como o nascimento, matrimonio, divórcio, enfermidade, falecimentos, e a vida amorosa.” (MIRANDA, 1996, p.82)

Celso Bastos assim define a intimidade:

intimidade consiste na faculdade que tem cada individuo de obstar a intromissão de estranhos na sua vida privada e familiar, assim como de impedir-lhes o acesso a informações sobre a privacidade de cada um, e também impedir que sejam divulgadas informações sobre esta área da manifestação existencial do ser humano· (BASTOS, 1989, p.63)

Com efeito, todo ser humano possui dados e informações que, de acordo com o seu

ponto de vista, não devem chegar ao conhecimento de terceiros. Tais assuntos devem ser

preservados por parte de seu titular sem que haja qualquer necessidade de uma explicação

prévia.

Neste sentido manifesta-se Gilbert Haddad Jabur:

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Querer revelar ou não aspectos próprios que ao mundo pouco importa (apenas saciam a curiosidade ou alimentam os espíritos pobres e vis) é decisão que deve ser acatada pelos demais (...). Trata-se de uma faculdade a todos oponível, de mesurar o que se vai desnudar, como, quando e em que circunstâncias. É poder excluir de terceiros do conhecimento daquilo que guarda relação estreita ou estreitíssima com si próprio e em nada engrandece, contribui, ou resolve quando apreendido pelo universo exterior. Apenas a curiosidade alheia é dessentada. (JABUR, 2000, p.253)

Sobre este assunto manifesta-se José Adércio Leite Sampaio que “(...) o homem tem

um direito de controlar impressões sensitivas advindas do exterior. Em suas linhas gerais,

pode ser identificado com o clássico "direito a ser deixado em paz" ou, na versão de

Bostwick, como a liberdade de não ser perturbado ou excitado." (SAMPAIO, 1998, p.364)

Assim sendo, é de se esperar que o respeito à intimidade seja uma das grandes

preocupações por parte da imprensa quanto à divulgação de suas informações.

Restando violada a esfera de intimidade de uma pessoa, tanto por parte da imprensa,

como de terceiros, será devida ao prejudicado com tal intromissão uma indenização

pecuniária a ser arbitrada pelo magistrado de acordo com a gravidade da lesão, as

circunstancias em que ocorreu, a posição social e econômica das partes, conforme dispõe o

art. 5, inciso X da Constituição da República de 1988, cumulado com art. 186 Código Civil.

Infere-se, portanto, que o dano moral, no bojo de princípios éticos e morais que norteiam

nossa sociedade, emana de violação a direitos não patrimoniais, a exemplo da imagem, da

honra, da privacidade, da auto-estima, da integridade psíquica, do nome, etc.

Cumpre ressaltar que, em se tratando de pessoas dotadas de notoriedade, em razão

do exercício de suas atividades, pode ocorrer que certos atos referentes a sua intimidade sejam

revelados em função do atendimento ao interesse público. É o caso em que há autorização por

parte do Judiciário de quebra de sigilo bancário de um determinado político para a apuração

da suposta irregularidade ou corrupção. Nesta hipótese, há uma redução espontânea dos

limites da privacidade em prol do interesse público.

A intimidade, assim como os demais direitos fundamentais, não são nem ilimitados

e nem absolutos, tendo em vista a variedade de aspectos e projeções axiológicas de tais

direitos que conduzem a um aparente conflito principiológico que deverá ser solucionado em

cada caso concreto.

Toda e qualquer restrição a direitos fundamentais, no caso, o direito à intimidade,

deverá ser fundamentada na prevalência do interesse coletivo.

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Desta forma, é possível impor limites à normal esfera da privacidade, ainda que

contra a vontade do indivíduo, sempre que observado o interesse público.

Nesses casos deverá ser feita uma análise minuciosa a respeito da prevalência do

interesse público ao se divulgar aspectos da intimidade de um indivíduo, no caso concreto.

Segundo Jose Adércio Leite Sampaio, o direito à intimidade não é absoluto, uma vez

que encontra suas fronteiras em outros direitos ou bens constitucionais. Essa limitação pode

ocorrer de duas maneiras, quais sejam, por atuação legislativa ou por intervenção jurisdicional

(SAMPAIO, 1998, p.383).

A limitação através de atuação legislativa é explicada da seguinte maneira segundo

este autor: Nenhuma medida restritiva da intimidade poderá ser adotada sem ter uma base legal (principio da legalidade). Não apenas. Essa lei deverá ter por fundamento uma disposição constitucional, enunciadora de outro direito ou bem protegido. Vale dizer que a referida restrição se pode fazer: -diretamente: através de uma lei que incida imediatamente sobre o âmbito de proteção do direito à intimidade, desde que haja autorização constitucional expressa neste sentido. Tal é o caso da reserva de lei restritiva da inviolabilidade de comunicações telefônicas (art. 5º, XII, CF/88). - indiretamente: a partir da conformação ou concretização de outro direito, de uma competência ou bem constitucional. Assim, em princípio, pode haver a permissão legislativa de quebra de sigilo bancário em nome da segurança (art. 144, CF/88). (SAMPAIO, 1998, 385)

Manifesta-se o autor quanto à intervenção jurisdicional:

Podemos destacar dois momentos de atuação restritiva dos órgãos jurisdicionais: a autorização de medidas derrogatórias de aspectos do direito à intimidade e na solução de conflitos entre esse direito e outro bem, interesse ou direito constitucionais, com prejuízo daquele. A autorização de medidas derrogatórias decorre da própria natureza jurisdicional, devendo, destarte, conter-se no âmbito de uma autorização legislativa, que em sua aplicação ao dependa como sempre o fará de um juízo de ponderação prévio à sua concretização. ( ... ) Na solução de conflitos entre direitos fundamentais apenas, envolvendo pretensões diretamente fundadas na Constituição, mesmo não havendo lei em sentido formal a disciplinar o assunto, estará o juiz obrigado a realizar um prudente balancing, a menos que a Constituição tenha exigido expressamente a interveniência do legislador. (SAMPAIO, 1998, 389)

Entretanto, em alguns casos esses mecanismos de limitação não tem sido suficientes

para evitar conflitos aparentes de princípios fundamentais. Diante desta situação, é necessário

recorrer às teorias criadas para solucionar conflitos desta natureza.

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5 CONFLITO EXISTENTE ENTRE A PRESERVAÇÃO DA INTIMIDADE E A

LIBERDADE DE IMPRENSA

A Constituição da República de 1988, em seu artigo 5°, inciso X, buscando

resguardar os direitos da personalidade dispõe que: “são invioláveis a intimidade, a vida

privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito à indenização pelo dano

material ou mora/decorrente de sua violação”. (Brasil, 1988)

O direito à intimidade é visto por parte da doutrina como sendo equivalente ao

direito à privacidade. Contudo, conforme já mencionado, tais termos não podem ser vistos

como sinônimos, tendo em vista que a própria Constituição os distingue ao separar no artigo

supracitado a intimidade das outras manifestações da privacidade (da vida privada, da honra e

da imagem).

A intimidade pode ser definida como o modo de ser da pessoa, constituindo um

direito de excluir do conhecimento de terceiros os seus assuntos privados que só a ela

interessa.

Nos dizeres de Rosangelo Rodrigues de Miranda (1996, p. 82) a intimidade diz

respeito ao direito de estar só, aspecto que se acredita ser comum a toda a pessoa.

É característico do direito a intimidade, uma conduta de ordem negativa, ou seja,

impõe-se a não exposição ao conhecimento de terceiros de elementos particulares da esfera

reservada de seu titular. Assim, certas opções, tais como sexuais e ideológicas dizem respeito

somente ao seu titular, não podendo este, sofrer qualquer tipo de represália em virtude de suas

convicções.

Por outro lado, o direito a informação também é definido na Constituição da

República de 1988 como sendo um direito fundamental uma vez que a expressão da atividade

intelectual, artística, científica e de comunicação não pode sofrer nenhum tipo de censura ou

estar condicionada a alguma autorização prévia (art. 5, inciso IX, CF/88).

A Constituição da República de 1988 explicitou a liberdade de informação no artigo

5º em seus incisos IV (liberdade de pensamento); IX (liberdade de expressão) e XIV (acesso à

informação) e no artigo 220, parágrafo 1° (liberdade de informação propriamente dita).

Embora esteja expressamente vedada qualquer tipo de censura (§2°, art. 220 da

CF/88), restou determinado no §1° do art. 220 da Carta Magna que nenhuma lei poderá

obstacularizar a plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de

comunicação social, observado o disposto no art. 5°, incisos IV, V, X, XII e XIV. A regra

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contida neste artigo visa resguardar a privacidade do indivíduo, sujeitando o exercício da

liberdade de informação à observância de outros direitos fundamentais esculpidos no art. 5º da

Constituição da República vigente.

Assim, verifica-se que de um lado existe a proteção à liberdade de informação e de

outro, a idéia de que é legítimo o interesse que toda pessoa tem de salvaguardar sua

intimidade e os segredos de sua vida privada.

Observa-se, pois, que ha uma colisão, em abstrato, de princípios concernentes à

informação e privacidade.

Nos Estados Democráticos de Direito a imprensa precisa ser livre, forte e

independente, porque sem estes atributos ela não atenderá os objetivos concernentes aos

estados democráticos. Contudo, essa liberdade não pode permitir que o veículo de

comunicação social agrida outros direitos atribuídos à pessoa (direito à inviolabilidade da

honra, da vida privada e da imagem) , tendo em vista que nenhum direito pode ser visto como

absoluto).

Havendo o conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o

intérprete pode utilizar-se da ponderação de valores, afim de coordenar os bens jurídicos em

conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros. Assim, deve ser feita uma

redução proporcional do âmbito de alcance de cada um destes princípios, afim de se alcançar

o verdadeiro significado da norma e a harmonia do texto constitucional.

Entretanto, deve ser levado em consideração que a respeito da colisão de princípios

algumas teorias foram formuladas na tentativa de solucionar este problema de grande

repercussão pratica.

Destaque-se para efeito deste trabalho a teoria de Robert Alexy1. Entende o Autor

que os princípios não são aplicados integralmente e plenamente em todas as conjunturas.

Assim como as regras, os princípios são normas jurídicas e, ao contrario daquelas, são normas

jurídicas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das

possibilidades jurídicas e reais existentes (Alexy, 1993, p.86).

Sobre a colisão de princípios entende Robert Alexy que quando dois princípios se

colidem em um caso concreto, tal como ocorre quando a mesma situação parece estar

protegida por um princípio e no outro parece estar sujeito a uma limitação, um dos princípios

tem que ceder diante do outro.

1 Note-se que não é objetivo deste trabalho tratar das teorias acerca da colisão de princípios.

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Isto não significa que um dos princípios será declarado inválido ou que tenha que

incluir uma cláusula de exceção para se tornar válido e eficaz. O que ocorre é que em certas

situações um princípio precederá ao outro. Já em outras situações e diante do conflito dos

mesmos princípios, a precedência pode ser resolvida de maneira inversa.

Assim, entende-se, no caso concreto, os princípios terão pesos diferentes, e naquela

situação um terá um peso maior do que o outro.

Assim, através da lei de ponderação, Alexy, demonstra que o conflito entre

princípios só existe e é solucionado em cada caso devendo ser verificado, qual dos interesses,

abstratamente do mesmo nível, possui maior peso no caso concreto (Alexy, 1993, p. 90).

Cumpre ressaltar que o presente trabalho não visa analisar minuciosamente as

teorias referentes aos princípios jurídicos nos Estados Democráticos de Direitos, razão pela

qual foram feitas apenas algumas colocações acerca das mesmas para melhor entendimento

do tema ora proposto.

No caso em exame, ou seja, para a solução do conflito entre a liberdade de imprensa

e a preservação da intimidade dos indivíduos devem ser feitas algumas considerações. Deve-

se ter em mente que o jornalista, no exercício de sua profissão, não pode utilizar do material

jornalístico de modo oportunista, assim como não pode estar movido por sentimentos de

despeito, animo ou ciúme.

Ademais, é direito da própria sociedade exigir deste profissional a revelação de

certos fatos importantes para um dado momento histórico. Finalmente, ao se veicular uma

notícia na imprensa, deve ser levado em conta a relevância social daquela informação que

estará sendo repassada para a sociedade.

Ademais, a intromissão da vida privada se revela inevitável quando verdadeiramente

essencial para a compreensão da notícia ditada pelo interesse público. Conforme assegura

Luiz Alberto David de Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior “a liberdade de informar só

existe diante de fatos cujo conhecimento seja importante para que o indivíduo possa participar

do mundo em que vive”. (ARAÚJO, NUNES JÚNIOR, 1988, p. 78)

Assim, a divulgação de matérias e fotos de caráter depreciativo e injurioso não

podem ser passíveis proteção constitucional, uma vez que não atendem ao interesse público e

não acrescentam em nada a informação coletiva, Neste caso, restando provada a violação à

intimidade, à vida privada, à imagem e à honra a Constituição da República de 1988, em seu

art. 5º, inciso X , assegura ao titular deste direito à personalidade direito à indenização pelo

dano moral e material.

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Por outro lado, pode ocorrer que a veiculação de uma determinada matéria

jornalística coloque em evidência a esfera privada daquela(s) pessoa (s) envolvida(s) naquele

fato. Esta exposição será lícita desde que não tenha ocorrido de maneira exagerada e que haja

comprovação quanto à observância do interesse social na divulgação daquela noticia.

Assim, a solução da colisão desses direitos deve ser examinada em cada caso

concreto, levando-se em conta o princípio da proporcionalidade, ou seja, através de uma

ponderação entre os interesses opostos envolvidos naquela situação, para que seja possível

alcançar um resultado plenamente satisfatório.

De acordo com o autor Hidermberg Alves da Frota, em citação à autora Mônica

Neves Aguiar da Silva Castro, seria papel do Poder Judiciário:

(...) aplicar o princípio da proporcionalidade, ao inocular em todos os direitos fundamentais o máximo de eficácia apropriado ao caso concreto, impondo as limitações inarredáveis sem desnaturar a essência de quaisquer dos direitos fundamentais considerados e os balanceando de forma que os efeitos benéficos oriundos da maior proteção ao direito fundamental naquele contexto mais denso compensem os sacrifícios impostos ao direito fundamental de menor peso. (FROTA, 2006, p.109)

Note-se, no entanto que, apesar da análise da aplicação dos princípios e da correção ou

não do exercício da ativadade jornalística se dar no caso concreto, em razão das

particularidades dos envolvidos, pessoas públicas ou não, veracidade da informação e

interesse da notícia veiculada, esse exame autalmente é tornado mais difícil em razão da “ (...)

multiplicação dos meios de comunicação (diversidade de mídias), o aumento da circulação de

informações, bem como o ambiente de pluralismo que permite maior contraposição e debates

de ideias e posicionamentos distintos”. (MIRAGEM, 2010, p.61)

Portanto, repita-se, a solução será encontrada mediante um juízo de ponderação, pela

aplicação do princípio da proporcionalidade no caso concreto, cuidando-se de uma detida

análise de suas particularidades.

6 A POSIÇÃO DO STF: UMA BREVE ANÁLISE DO JULGAMENTO DA ADPF N. 130

Conforme se depreende do julgamento da Arguição de Preceito Fundamental (ADPF)

n. 130, o exercício do direito fundamental de liberdade de expressão, ou ainda, liberdade de

imprensa é fundamental para o exercício da democracia no Brasil.

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A imprensa livre é instituição de interesse primário da sociedade democrática. Sua garantia tem sede constitucional. Tudo quanto se lhe atalhe, há de ser considerado incompatível com o sistema fundamental democrático vigente. É ela, assim, uma das garantias das liberdades públicas.(BRASIL, 2010, p.182)

Sendo, portanto, um direito fundamental e essencial à democracia, este direito

mereceu proteção especial pelo Constituinte de 1988, garantindo-o contra qualquer censura

prévia por parte das autoridades públicas. Assim, vale ressaltar alguns trechos do julgamento

da ADPF 130 que demonstram sua importância, como exposto a seguir:

A liberdade de imprensa é manifestação da liberdade, considerada em sua amplitude humana. Sem a liberdade de manifestação do pensamento para informar, se informar e ser informado, garantia de cada um, compromete-se a dignidade da pessoa humana. (...) A mesma imprensa que, livre para os que me acometem, é igualmente livre para os que me defendem. Necessário será sempre que essas duas liberdades coexistam (...) Porque opostas restrições à liberdade ampla de manifestação do pensamento, não é a liberdade honesta a que prevalecerá: é a liberdade, sempre cara ao poder, a liberdade, o privilégio, o monopólio dos aduladores, dos mercenários (...) se instituirdes a inquisição da palavra escrita, o que teres feito, é banir do jornalismo os homens de alma, as penas independentes, os caracteres ilibados, os escritores mais capazes. (...) Deixai a imprensa com as suas virtudes e os seus vícios. Os seus vícios encontrarão corretivos nas suas virtudes”. (BRASIL, 2010, p. 183)

Destarte, sendo a liberdade de imprensa tão cara ao Estado Democrático de Direito,

possuindo “(...) a função de controle do poder político e um dos mais eficazes instrumentos

de realização do direito difuso à informação (...)” (MIRAGEM, 2010, p.68), essa garantia

deve ser preservada. No entanto, conforme já dito anteriormente, há de se ponderar, no caso

concreto, entre os direitos fundamentais em conflito, cabendo referida avaliação ao Poder

Judiciário.

Neste sentido também é o entendimento desse Supremo Tribunal Federal, para o qual

a ponderação faz-se necessária diante de cada caso:

Torna-se importante salientar, neste ponto, presente o contexto em exame, que a superação dos antagonismos existentes entre princípios constitucionais – como aqueles concernentes à liberdade de informação, de um lado, e à preservação da honra, de outro – há de resultar da utilização, pelo Poder Judiciário, de criterios que lhe permitam ponderar e avaliar, “hic et nunc”, em função de determinado contexto e sob uma perspectiva axiológica concreta, qual deva ser o direito a preponderar em cada caso, considerada a situação de conflito ocorrente, desde que, no entanto, a utilizacao do método da ponderação de bens e interesses nao

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importe em esvaziamento do conteúdo essencial dos direitos fundamentais (...).(BRASIL, 2010, p. 99)

Em virtude do exposto, reconheceu o referido Tribunal, mesmo enfatizando a

importância da liberdade de imprensa, que os direitos da personalidade, como direito a

intimidade, honra e dignidade da pessoa humana, representam limitações constitucionais

externas à liberdade de expressão, ou, ainda, “verdadeiros contrapesos à liberdade de

informação”, a qual não pode e nem deve ser exercida de modo abusivo.

7 CONCLUSÃO

É preciso ter em mente que tanto a privacidade com a liberdade de imprensa por

serem direitos fundamentais e, consequentemente previstos na Constituição da República de

1988 como direitos fundamentais não são absolutos e sofrem auto limitações, tendo em vista

que os direitos fundamentais recebem o mesmo tratamento constitucional, podendo-se afirmar

que não existe nenhuma hierarquia entre eles.

Em uma sociedade democrática de direito a imprensa não pode estar sujeita a

nenhuma censura previa ou qualquer forma de licença, assim como a intimidade das pessoas

devem ser preservadas, uma vez que determinados aspectos particulares da vida destas

pessoas somente interessam a elas. A imprensa ao divulgar uma determinada notícia deverá

fazê-lo como máxima cautela, buscando passar para a sociedade a informação verdadeira,

visando sempre atender o interesse público.

Reportagens sensacionalistas e que acabam criando pessoas estigmatizadas nas

sociedades devem ser reprimidas, não através da censura, mas de uma análise minuciosa por

parte do Poder Judiciário que analisará se houve ou não atentado à intimidade das pessoas à

intimidade das pessoas. Por outro lado, as indenizações milionárias também devem ser

barradas, uma vez que esta prática pode acabar impedindo o livre exercício da liberdade de

imprensa por parte dos órgãos de comunicação.

Deve o magistrado, ao julgar estas ações indenizatórias procurar esgotar toda a fase

probatória, de maneira que não existam dúvidas acerca das razões e dos motivos que levaram

à publicação daquela notícia e do efetivo dano moral e material sofrido pela vítima com a

veiculação daquela matéria a ser julgada abusiva.

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A fim de solucionar o conflito aparente entre princípios constitucionais vários

doutrinadores, dentre eles, Robert Alexy desenvolveram teorias neste sentido. Neste trabalho

foi adotado a teoria de Robert Alexy sem o intento de cotejá-las com as demais teorias

formuladas acerca deste tema.

Assim, o conflito entre a liberdade de imprensa e a intimidade devera ser analisado

no caso concreto, de modo que em alguns casos prevalecerá a liberdade de imprensa, uma vez

que o interesse público pode ser visto como balizador da liberdade de imprensa e, em outros

casos, a violação à intimidade não poderá ser permitida, tendo em vista que determinadas

notícias em nada contribuem para a sociedade.

Tal conflito devera ser resolvido através da ponderação de valores, defendida por

Robert Alexy, ou seja, o conflito de princípios deverá ser resolvido através de uma

hierarquização dos mesmos no caso concreto, e não no ordenamento jurídico, levando-se em

consideração o peso destes princípios no caso em análise. Daí porque em alguns casos

prevalecerá a liberdade imprensa e em outros a preservação da intimidade pelas razões

demonstradas no capitulo anterior.

Ao se chegar ao termino deste artigo é possível perceber que o debate acerca do

confronto entre o direito à privacidade e liberdade de imprensa, ou seja, entre a preservação da

intimidade e o direito coletivo de obter informações verdadeiras, esta longe de chegar a termo.

Ao contrario, pelos indicadores disponíveis, este tema ainda será muito discutido, tendo em

vista que o crescente desenvolvimento dos sistemas de informação nas sociedades

contemporâneas, assim como a necessidade de preservação da privacidade também tem se

demonstrado evidente.

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O DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE CONTRATUAL E O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE À LUZ DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DAS

RELAÇÕES PRIVADAS

THE FUNDAMENTAL RIGHT TO FREEDOM OF CONTRACT AND THE PRINCIPLE

OF AUTONOMY OF THE WILL IN THE LIGHT OF CONSTITUTIONALIZATION OF

PRIVATE RELATIONS

Tainah Simões Sales1

Resumo: O trabalho busca analisar o direito à liberdade contratual e o princípio da autonomia da vontade face à constitucionalização das relações privadas. Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, percebe-se a transformação do Direito Civil, não mais pautado no individualismo e no patrimonialismo, mas em consonância com os valores, regras e princípios constitucionais, priorizando a dignidade da pessoa humana e a garantia dos direitos fundamentais. Não se pode admitir a interpretação e aplicação do Direito Civil em desconformidade com as diretrizes constitucionais. Trata-se de assunto relevante, merecendo proeminência e fomento a discussões aprofundadas sobre a temática. Palavras-chave: Liberdade contratual. Autonomia da vontade. Constitucionalização das relações privadas. Abstract: The paper aims to analyze the right to freedom of contract and the principle of autonomy of will from the perspective of constitutionalization of private relations. After the promulgation of 1988 Federal Constitution, we can realize the transformation of civil law, no longer guided in individualism and patrimonialism, but in line with the constitutional values, rules and principles, prioritizing human dignity and fundamental rights guarantee. We can not accept the interpretation and application of civil law without consider the constitutional guidelines. It is a relevant subject, deserving prominence and promotion of deep discussions about it. Key-words: Freedom of contract. Autonomy of will. Constitutionalization of private relations.

1 Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC). Pesquisa financiada pela Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Ceará. Email: [email protected]

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1 Introdução

Anteriormente, verificava-se forte dicotomia entre os Direitos Público e Privado.

O Código Civil era como a Constituição das relações privadas e previa ampla proteção ao

indivíduo, principalmente sob o ponto de vista de sua atuação como contratante e proprietário,

bem como às relações patrimoniais. O Direito Público e constitucional não interferia na esfera

privada.

Após um longo período de transição, a partir da percepção de que essa realidade

não mais se coadunava com as demandas sociais e da promulgação cada vez mais frequente

de leis extravagantes e descodificadas, passou-se à fase da constitucionalização das relações

privadas, sobretudo após a promulgação da Constituição Federal de 1988.

Mediante essa evolução, verificou-se que a Carta Magna tornou-se o ponto de

referência das relações privadas, priorizando a dignidade da pessoa humana e os direitos

fundamentais dela decorrentes. Busca-se, assim, uma unidade de sentido no ordenamento, um

sistema coerente e de acordo com os valores constitucionais.

As regras e os princípios que regem as relações privadas devem refletir a

normativa constitucional, devem ser interpretados conforme a Lei Maior. No presente

trabalho, objetivou-se analisar, sob esse aspecto, o direito à liberdade e o princípio da

autonomia da vontade, ambos corolários do Direito Privado.

Realizou-se pesquisa bibliográfica, documental e pura. Inicialmente, analisou-se a

teoria dos direitos fundamentais. Após, estudou-se o direito à liberdade e o princípio da

autonomia da vontade. Pesquisou-se a evolução do Direito Civil até a fase da

constitucionalização das relações privadas, destacando os principais aspectos desse momento

histórico e os seus efeitos sobre a liberdade e a autonomia da vontade. Por fim, analisou-se o

entendimento jurisprudencial no âmbito do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal

de Justiça a respeito do assunto.

Trata-se de tema relevante e atual. Não se pode permitir a interpretação de normas

em desconformidade com os valores, princípios e regras constitucionais. O ordenamento

jurídico é uno, não podendo ser aplicado de forma incoerente, sob pena de incorrer em graves

injustiças e de ferir a dignidade e os direitos fundamentais de outrem.

2 A Teoria dos Direitos Fundamentais

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A ideia de um Estado Liberal, após a queda dos regimes absolutistas, pautou-se na

visão de que o interesse geral resultava espontaneamente da soma dos interesses pessoais.

Ainda, primou-se pelo liberalismo, ou seja, pela intervenção mínima do Estado na economia e

pela concepção do constitucionalismo clássico, no qual a Constituição deveria prever, tão

somente, as limitações dos poderes do Estado.

Nesse diapasão, a Revolução Francesa de 1789 exprimiu, como lema, três

princípios que albergavam todos os direitos fundamentais, quais sejam: liberdade, igualdade e

fraternidade, que passaram a se manifestar, na ordem jurídica, mediante três gerações

sucessivas, com base nos postulados revolucionários. Karal Vasak, estudioso tcheco, foi o

precursor da teoria dos direitos fundamentais, associando os princípios da Revolução

Francesa aos direitos fundamentais em 1979.1

De acordo com a teoria dos direitos fundamentais, a partir do surgimento do

Estado Liberal, originam-se, então, os chamados direitos fundamentais de primeira dimensão.

Trata-se dos direitos civis e políticos. São direitos com status negativo, uma vez que existem

para limitar a atuação do Estado, baseados na não intervenção2. Constituem garantias para os

indivíduos em face da atuação do Poder Público. A liberdade, então, é o principal elemento

dos direitos fundamentais de primeira dimensão.3

Os direitos de segunda dimensão, por sua vez, baseiam-se na igualdade. Surgiram

a partir do advento do Estado Social, no século XX, e englobam os direitos sociais, culturais e

econômicos, bem como os direitos coletivos4. Possuem status positivo, tendo em vista que são

direitos que demandam ações do Estado.

A fraternidade comporta os direitos fundamentais de terceira dimensão, quais

sejam: os direitos ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à propriedade e o direito

sobre o patrimônio comum da humanidade. Paulo Bonavides5 critica, posteriormente, a

inclusão do direito à paz nessa dimensão, propondo, assim, que este faça parte da quinta

dimensão de direitos fundamentais.

Em razão da globalização e do neoliberalismo crescentes no fim do século XX,

que interferem na esfera normativa e na sociedade, surgem os direitos fundamentais de quarta

dimensão, albergando os direitos à democracia participativa, à informação e ao pluralismo.

Deve-se salientar que os direitos fundamentais possuem a característica da

interdependência, no sentido de que se completam e subsistem concomitantemente. Assim, a

antiga denominação das “gerações” dos direitos fundamentais, tal como sugerida por Karal

Vasak, pode ser substituída por “dimensões”, já que a primeira concepção pode exprimir,

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erroneamente, a ideia de caducidade dos direitos das gerações antecedentes, de acordo com

uma ordem cronológica.6

Após uma análise geral da teoria dos direitos fundamentais, cumpre destacar que

o enfoque do presente trabalho encontra-se nos direitos fundamentais de primeira geração,

mais especificadamente na liberdade, uma vez que esta é valor norteador das relações

privadas.

3 O direito à liberdade

O liberalismo clássico iniciou-se na Inglaterra, a partir da obra de Adam Smith7

intitulada “A Riqueza das Nações”, em 1776. A partir da crença no individualismo, seria

possível assegurar ao homem o progresso geral. “O indivíduo, na concepção de Smith, é

guiado por uma mão invisível para promover um fim que não fazia parte de sua intenção.” 8

Robert Malthus9, teórico da doutrina liberal, tornou-se conhecido pelo “Ensaio

sobre a população”, em 1798. Na obra, apresentou a discordância entre o poder de reprodução

da espécie humana e a capacidade de produção dos meios de subsistência. Enquanto a

população aumenta numa progressão geométrica, os meios de subsistência aumentam de

acordo com uma progressão aritmética.

Jeremy Bentham, por sua vez, foi reconhecido como importante filósofo

utilitarista, entre os séculos XVIII e XIX, formulando o “princípio da utilidade”, segundo o

qual “o critério que deve inspirar o bom legislador é o de emanar leis que tenham por efeito a

maior felicidade do maior número.” 10 Sobre o utilitarismo, cumpre destacar o seguinte:

os princípios utilitaristas têm por base apenas as utilidades e, embora os incentivos possam de fato ser levados em conta em seu aspecto instrumental, no final a única base considerada apropriada para a avaliação de estados de coisas ou para a avaliação de ações ou regras são as informações sobre utilidade. (...) Jeremy Benthan define utilidade como prazer, felicidade ou satisfação (...) questões potencialmente importantíssimas como a liberdade substantiva individual não podem influenciar diretamente uma avaliação normativa nessa estrutura utilitarista. Podem ter papel indireto apenas por meio de seus efeitos sobre os números relativos à utilidade (...) Ademais, a estrutura agregativa do utilitarismo não tem interesse na distribuição das utilidades (...) a concentração se dá inteiramente sobre a utilidade total de todos considerados em conjunto.11

Importa destacar o papel de John Stuart Mill na transição da Escola liberal para o

Socialismo no século XIX. O autor, também difusor do utilitarismo, foi liberal e democrata,

uma vez que considerou a democracia como o desenvolvimento natural e consequente dos

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princípios liberais. Ressaltou, ainda, a importância da doutrina utilitarista e iniciou uma nova

ordem de preocupações, como a busca da “justiça social”.

No século XX, destacam-se os ensinos de Keynes12 em sua obra “Teoria do

emprego, do juro e da moeda”. Para o autor, a intervenção do Estado deve se dar de maneira

mais ou menos permanente, com maior ênfase numa política de manipulação monetária.

Assim, seria possível a criação de uma política tributária no qual o imposto seria um elemento

ativo na distribuição dos rendimentos e na orientação da atividade econômica.

A partir da análise dos pensamentos dos teóricos acima descritos, percebe-se que

o liberalismo clássico sofreu diversas alterações com o passar dos anos. O próprio termo

“liberalismo” ganhou diversos significados, de acordo com o momento histórico. Hoje,

percebe-se uma certa confirmação da visão clássica: “O liberalismo é a doutrina na qual a

conotação positiva cabe ao termo ‘liberdade’, com a consequência de que uma sociedade é

tanto melhor quanto mais extensa é a esfera da liberdade e restrita a do poder.”13

Nesse sentido, a liberdade deve ser ampliada. Entretanto, destaca-se que esta

ampliação não deve ocorrer de forma ilimitada. Observa-se a esfera de liberdade desde que

não haja danos aos outros indivíduos. Isso porque a liberdade pressupõe a vida em sociedade,

já que “sendo a liberdade termo relacional, ninguém pode ser livre sozinho.”14 Conforme

ensina John Stuart Mill15, “o único propósito para o qual o poder pode legitimamente ser

exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra sua própria vontade, é

impedir que se faça dano a outros.”16

A ampliação das liberdades pode ser verificada na medida em que o indivíduo tem

maiores possibilidades de escolher a vida que deseja levar, a partir de suas próprias

convicções. Seriam as oportunidades de tornar real aquilo que o indivíduo considera possível

e relevante. Ou, ainda, uma liberdade “vista sob a forma de capacidades individuais para fazer

coisas que uma pessoa com razão acredita.” 17 Trata-se da necessidade de ampliar a

capacidade de o indivíduo perceber o que é possível, desejar e tornar real18.

José Afonso da Silva19 conceitua a liberdade como a “possibilidade de

coordenação consciente dos meios necessários à realização da felicidade pessoal.” A

liberdade, nesse sentido, relaciona-se com o subjetivismo de cada indivíduo, com a ideia de

realização pessoal e autodeterminação, a partir da possibilidade de o indivíduo escolher a vida

que deseja levar, de acordo com suas próprias razões. A liberdade, enfim, permite a

transformação em realidade daquilo que o indivíduo pensa ser possível.

Atualmente, afirma-se que a liberdade é um dos pressupostos e a concretização

direta da dignidade da pessoa humana, uma vez que consiste na autonomia de escolher os

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rumos de sua própria existência. Nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet20, “sem liberdade

(negativa e positiva) não haverá dignidade, ou, pelo menos, esta não estará sendo reconhecida

e assegurada”. Arnaldo Vasconcelos21, por sua vez, associa a liberdade ao princípio de tudo e

explica que é pressuposto para a formação do Direito e da democracia. É inegável, portanto, a

relevância desse direito e a sua necessidade de proteção e efetivação.

É importante destacar que o direito à liberdade, consolidado no caput do art. 5º e

em diversos outros dispositivos da Constituição Federal de 1988, abrange diversas formas de

atuação. Fala-se em liberdade de locomoção, liberdade de pensamento, liberdade de

expressão, liberdade de associação, liberdade de ação profissional, liberdade econômica,

liberdade contratual, entre outras22. Embora os âmbitos de atuação sejam distintos, o sentido

nuclear do termo “liberdade” não é alterado. Todos eles expressam a possibilidade de atuação

conforme a consciência do indivíduo.

Para o presente trabalho, em virtude da sua finalidade e da necessidade de

delimitação da temática a ser abordada, mais interessa a liberdade contratual, por ser

fundamento das relações jurídico-privadas. Eis o que será analisado a seguir.

4 A liberdade contratual e o princípio da autonomia da vontade

Desde os primórdios do Direito Romano, os indivíduos são livres para contratar

como quiser, quando quiser e com quem desejar. O poder dos contratantes de estabelecer os

termos do pacto a ser realizado, disciplinando o conteúdo do contrato de acordo com os

interesses das partes, consiste na liberdade contratual23, uma das formas de exercício das

liberdades, conforme já esclarecido.

No âmbito do exercício do direito à tal liberdade, encontram-se princípios

fundamentais e norteadores do Direito Civil contratual. O princípio da autonomia da vontade,

que estabelece a possibilidade e a faculdade de os indivíduos pactuarem sem a interferência

do Estado, é o alicerce da liberdade de contratação.

Para a doutrina francesa, o princípio da autonomia da vontade é fundamento do

direito à liberdade contratual, sendo “la liberté de faire un acte juridique quelconque et on

devrait en principe garder présente à l’esprit l’ampleur du domaine à explorer”24. Pode-se

afirmar o seguinte:

L’individu est libre de contracter ou non, de choisir son cocontractant, de déterminer le contenu et la durée du contrat... Le consentement est l’élément essentiel, si bien que le formalisme doit rester exceptionnel, et que la loi doit

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demeurer, en principe, supplétive de volonté, ou interprétative, la régle impérative ne devant intervenir que dans le cas où elle s’avère absolument indispensable25.

Corroborando esse entendimento, ressalta-se que, no Direito brasileiro, o princípio

da autonomia da vontade fundamenta o desenvolvimento das relações privadas e é pautado

nas ideias de consentimento26, convergência das vontades dos contratantes (o que não se

confunde com a semelhança de interesses, pois, muitas vezes, estes são opostos), bem como

na liberdade de escolher o conteúdo, o tempo e os sujeitos do pacto a ser realizado.

Deve-se esclarecer que a liberdade contratual e o princípio da autonomia da

vontade não são plenos, absolutos. Não se pode permitir, por exemplo, que estes justifiquem

arbitrariedades e ofensas aos direitos e à dignidade alheia ou que estes prevaleçam sobre os

interesses da coletividade. Fala-se, assim, na relativização ou na limitação desses valores, a

fim de garantir uma ordem jurídica justa, em atendimento à isonomia e aos direitos

constitucionais fundamentais.

A supremacia da ordem pública, a moral, os bons costumes e as liberdades dos

demais indivíduos devem ser observadas. Nesse diapasão, o art. 421 do Código Civil

brasileiro dispõe que: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da

função social do contrato”. Verifica-se, assim, que os pactos firmados estão sujeitos às

limitações impostas pela ordem jurídica vigente e devem observar a sua função social27,

partindo do pressuposto de que interesses individuais não podem violar interesses sociais mais

relevantes.

A relativização do princípio da autonomia da vontade e da liberdade contratual

encontra respaldo nas teorias referentes à constitucionalização das relações privadas, no

sentido de que, atualmente, o Direito Civil deve ser revisado e transformado em razão da

normativa constitucional, não podendo mais ser estudado e aplicado como um bloco separado.

O ordenamento jurídico brasileiro é um todo coerente. Não se poderia permitir a plenitude e a

intangibilidade da autonomia da vontade, em detrimento da dignidade e dos direitos

fundamentais das partes contratantes.

5 Constitucionalização do Direito Civil

Anteriormente, o Direito Civil era marcado, essencialmente, por características

patrimonialistas e apartadas dos valores constitucionais. O Código Civil de 1916,

influenciado, sobretudo, pelo Código de Napoleão, apresentava características de um

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ordenamento individualista e voluntarista28, com ênfase aos papeis dos contratantes e dos

proprietários. Afirmava-se que o Código Civil era a Constituição do Direito Privado.

A esfera privada não sofria interferências do Direito Público e pautava-se na

segurança e na estabilidade das relações. O que determinaria o sucesso ou as falhas de um

negócio seria a maior ou menor capacidade e astúcia dos contratantes29, uma vez que as regras

permaneciam praticamente imutáveis. A liberdade de contratação era ampla e o princípio da

autonomia da vontade prevalecia no Direito Privado.

Com o passar do tempo, essa visão não mais conseguia atender às demandas e às

necessidades sociais. Passou-se por um processo de transformação, anunciando os primórdios

de um Direito Civil Constitucional. A Constituição Federal de 1946 consolidou, em seu

corpo, temas antes reservados à esfera privada, como a função social da propriedade, a família

e as limitações das atividades econômicas30. Leis extravagantes passaram a ser editadas com

freqüência cada vez maior, superando a exacerbada importância conferida ao Código Civil da

época.

Entretanto, somente a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 foi

possível verificar uma nova fase do Direito Civil, que passou a ser analisado e valorado

conforme os ditames e princípios constitucionais. Observa-se a etapa de polissistemas ou

microssistemas do Direito Privado, sobretudo caracterizados pela maior quantidade e

importância conferida aos estatutos31. Para Natalino Irti, é a chamada “era da

descodificação”32. E a Constituição tem, nessa leitura, o papel de unificar os sistemas e

harmonizar a diversidade de fontes normativas encontradas33.

Para Pietro Perlingieri, o ordenamento só pode ser concebido enquanto uno e

sistemático34. A Constituição é a norma que possibilita o equilíbrio e a uniformidade de

valores e princípios. É, nas palavras de Konrad Hesse35, “a ordem geral objetiva do complexo

de relações da vida”.

Nesse diapasão, as relações privadas não podem ser analisadas somente sob o

prisma do Direito Civil. Os princípios, os valores e as regras da Constituição devem lhes

conferir legitimidade e delimitá-las, sob pena da existência de uma ordem jurídica incoerente

e injusta.

Tem-se, portanto, a era da constitucionalização das relações privadas ou a

formação de um Direito Civil Constitucional. Dentre as consequências da evolução da

doutrina civilista, apontam-se as seguintes: a unificação da ordem jurídica, com as normas

constitucionais atuando como fundamento dos demais ramos do direito e a relativização da

dicotomia entre Direito Público e Privado; e a simplificação do ordenamento jurídico, a partir

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da adoção da Constituição como referência para interpretação e aplicação das diferentes

normas vigentes36.

Não se pretende, contudo, afirmar que o Direito Civil perdeu a importância ou que

as regras do Código Civil não mais possuem eficácia. Apenas se defende a uniformidade do

ordenamento, uma coerência axiológica e a interpretação das normas de Direito Privado

conforme os valores constitucionais explícitos ou implícitos na Constituição.

5.1 A liberdade e a autonomia da vontade face à constitucionalização das relações

privadas

A Constituição Federal de 1988 priorizou a proteção à dignidade da pessoa

humana, à sua personalidade e elencou inúmeros direitos e garantias fundamentais. Sabe-se

que os princípios e direitos lá consagrados devem ser aplicados em todas as esferas de atuação

jurídica. Em outras palavras, tem-se “a irradiação dos efeitos das normas (ou valores)

constitucionais aos outros ramos do direito”37. As normas civilistas, portanto, devem ser

harmonizadas conforme os ditames da Carta Magna.

Fala-se de uma era de “despatrimonialização” do Direito Privado. A proteção à

propriedade e à atividade empresária, por exemplo, deve ser observada em razão de sua

função social; a regulamentação e o exercício da atividade econômica devem atender aos

princípios constantes, sobretudo, no art. 170 da Lei Maior; as políticas de desenvolvimento

urbano devem buscar o bem estar dos habitantes, etc. Verifica-se, assim, que as normas do

Direito Privado passam a demandar uma interpretação conforme os valores contidos nas

normas constitucionais38.

Com o princípio da autonomia da vontade e o direito à liberdade contratual não

seria diferente. Conforme já exposto, trata-se de premissas não absolutas, cujos limites visam

à efetivação de relações justas, solidárias e dignas39, e ao atendimento aos direitos

fundamentais, justamente em consonância com o disposto na Constituição.

Ademais, importa destacar que os direitos fundamentais previstos na Carta Magna

são essenciais não só na limitação dos diversos direitos e princípios relativos ao Direito

Privado, como também na sua aplicação e efetivação. São, ainda, relevantes instrumentos e

vetores de interpretação e de concretização de suas cláusulas gerais. Claus-Wilhelm Canaris40

afirma, nesse sentido, que “os direitos fundamentais sempre podem produzir efeitos como

princípios gerais de direito com nível infraconstitucional”.

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Atualmente, o Direito Civil não caminha sozinho. Não é uma esfera

absolutamente apartada das diretrizes que regem o Direito Público, tampouco pode ser

interpretado de maneira isolada, sem considerar o sistema unitário no qual está inserido. Não

se pode admitir, assim, um princípio da autonomia da vontade que prejudique a dignidade de

outrem41, que não atenda à função social do contrato, que imponha obrigações degradantes

para uma das partes, enfim, que não seja condizente com as normas constitucionais que regem

a sociedade.

Desse modo, a delimitação da autonomia da vontade ou a sua relativização

objetivam atingir o equilíbrio da relação contratual, a isonomia entre as partes e a proteção

dos direitos de terceiros. Seguindo o mesmo raciocínio, torna-se inadmissível um

ordenamento justo cuja liberdade é exacerbada e garantida ao extremo. A ordem pública e a

moral, por exemplo, são institutos que limitam o direito à liberdade, assim como a vedação de

práticas discriminatórias, degradantes e a inibição de condutas que atentam à boa-fé e à ordem

econômica e ambiental.

A Constituição Federal garante a proteção e o direito à propriedade, porém o

indivíduo não tem o poder de utilizá-la da forma como bem entender, sem observar a sua

função social. Não pode criar associações de caráter paramilitar, mesmo sendo garantida a

liberdade de associação. Ademais, embora seja garantida a liberdade de expressão, não se

pode permitir a divulgação de imagens ou dizeres discriminatórios ou que denigram a vida

íntima de outrem. Por fim, destaca-se que, apesar de a liberdade de contratar ser prevista no

ordenamento, as partes não podem dispor sobre conteúdos ilícitos ou que atentem contra a

moral ou a ordem pública.

Todos os exemplos demonstram que a liberdade encontra tanto garantia quanto

limitação no corpo constitucional. Nesse diapasão, as relações e as normas de Direito Privado

devem ser aplicadas e interpretadas de acordo com as diretrizes e os valores que regem a

Constituição Federal, sendo esta a norma maior, que estabelece o equilíbrio no sistema

jurídico e apresenta-se como o eixo de ligação entre as diferentes espécies normativas.

5.2 A jurisprudência e a constitucionalização das relações privadas

Não só a doutrina defende a consolidação da era da “despatrimonialização” do

Direito Privado. Os Tribunais, em seus mais diversos julgados envolvendo relações entre

particulares, também passaram a admitir essa nova realidade e a interpretar as demandas

conforme os ditames da constitucionalização do Direito Civil.

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A emblemática decisão do Supremo Tribunal Federal, no RE 477554, julgado em

16 de agosto de 2011, que reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo, reflete a

evolução da interpretação e da aplicação do Direito Civil segundo os valores, regras e

princípios resguardados pela Constituição Federal42.

Em fevereiro de 2012, o Superior Tribunal de Justiça proferiu decisão no REsp

1183378/RS reconhecendo o direito ao casamento de pares homoafetivos, baseando-se nos

direitos constitucionais à liberdade, à isonomia, à não discriminação e ao livre planejamento

familiar, bem como no princípio da dignidade da pessoa humana43. Os artigos do Código

Civil referentes à entidade familiar devem ser interpretados conforme a Constituição Federal,

não havendo óbice à união estável ou ao casamento homoafetivo.

Destaca-se que, em 2005, o Supremo Tribunal Federal já se posicionava em prol

da necessidade de compatibilização entre o Direito Privado e os direitos fundamentais. No

julgamento do RE 201819, houve menção expressa à vinculação direta dos direitos

fundamentais não só às relações entre o indivíduo e Estado, mas igualmente às relações

travadas entre particulares, sejam pessoas físicas ou jurídicas44. A autonomia da vontade,

segundo o Ministro Gilmar Mendes, não pode ser invocada em prejuízo dos direitos

fundamentais de terceiros e nem autoriza o descumprimento dos mandamentos

constitucionais.

No âmbito das relações contratuais, a realidade não é diferente. Quanto aos pactos

de seguro de saúde, o Superior Tribunal de Justiça se posicionou, em maio de 2012, no

sentido de não ser possível a aplicação do prazo de carência contratual para restringir o

custeio dos procedimentos de emergência relativos a tratamento de tumor cerebral, uma vez

que se trata de violação ao direito fundamental à vida45.

Ademais, as operadoras de plano de saúde não estão autorizadas a limitar as

alternativas possíveis para o restabelecimento da saúde do segurado, cabendo somente ao

médico determinar o tratamento adequado ao paciente. Desse modo, conforme o

entendimento do Superior Tribunal de Justiça no REsp 1053810/SP, a seguradora não pode

escusar-se de conferir cobertura a um transplante de órgãos se este é o tratamento que poderá

salvar a vida do indivíduo46.

Para os contratos bancários, a jurisprudência também admite a revisão das

cláusulas contratuais e a relativização do pacta sunt servanda, diante dos princípios

constitucionais, da boa-fé objetiva, da função social do contrato e da era do dirigismo

contratual. Como exemplo, verifica-se o julgamento do Ag 1394166/SC em 08 de maio de

2012, pelo Superior Tribunal de Justiça, em que decidiu-se que não se deve admitir a

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cumulação da comissão de permanência com correção monetária, juros remuneratórios, juros

moratórios ou multa contratual, ainda que tenha sido avençado entre as partes47.

Ainda em relação aos contratos bancários, ressalta-se a decisão do mesmo

Tribunal, no REsp 1223838/RS, que reconheceu a legalidade da limitação de 30% do

desconto em folha de pagamento referente à contratação de empréstimos consignados, em

razão da natureza alimentar do salário e do princípio da dignidade da pessoa humana48. O

particular, assim, não é absolutamente livre para dispor de sua remuneração, se isso significar

atentado contra a sua dignidade.

Conforme já verificado, não se pode permitir que a autonomia da vontade e a

liberdade contratual prevaleçam em detrimento de outros valores priorizados pela

Constituição Federal. Trata-se de entendimento não só doutrinário, mas de uma realidade já

perceptível nos mais diversos julgados do país.

6 Considerações Finais

Vive-se a era da constitucionalização do Direito Civil, sobretudo após o advento

da Constituição Federal de 1988. Nessa fase, admite-se o ordenamento jurídico como um todo

uniforme, sistemático, axiológico, cuja Carta Magna se apresenta como o eixo central,

determinando os vetores de interpretação e limitação das diferentes espécies normativas

infraconstitucionais.

As relações privadas, nesse diapasão, não podem ser observadas sem exprimir os

valores, princípios e regras constitucionais. A propriedade, a empresa, a família e os

contratos, por exemplo, não devem ser concebidos como antigamente, considerando aspectos

unicamente individualistas e patrimoniais. Atualmente, a dignidade da pessoa humana e os

direitos fundamentais são aspectos essenciais dessa leitura, não sendo possível a sua exclusão.

O presente trabalho buscou a análise do direito à liberdade, sobretudo a contratual,

e do princípio da autonomia da vontade face à constitucionalização da esfera privada,

mediante pesquisa doutrinária e jusrisprudencial. Conclui-se que qualquer norma ou cláusula

contratual deve refletir a normativa constitucional, que prioriza a dignidade da pessoa humana

e a garantia de um rol extenso de direitos fundamentais. Assim, a liberdade e a autonomia da

vontade não são institutos absolutos, plenos e intangíveis, pois encontram limitação no corpo

constitucional.

Com isso não se afirma que o Direito Civil está ultrapassado ou que perdeu a

importância. Apenas defende-se a sua aplicação segundo os princípios e direitos priorizados

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pela Lei Maior. Busca-se um sistema jurídico justo, uno, sem contradições e consoante os

valores primordiais albergados pelo ordenamento jurídico e compartilhados pela sociedade.

1 BONAVIDES, Paulo. A quinta geração de direitos fundamentais. Direitos fundamentais e Justiça, Porto Alegre, n. 3, abr-jun., p. 83, 2008. 2 LIMA, Francisco Gérson Marques de. Fundamentos constitucionais do processo: sob a perspectiva de eficácia dos direitos e garantias fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 34. 3 BONAVIDES, Paulo. Op. Cit., p. 517. 4 ALBUQUERQUE, Ana Paula Martins; MATIAS, João Luís Nogueira. A vida em conlfito. In: MATIAS, João Luís Nogueira (Org.). Neoconstitucionalismo e direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2009, p. 240-258, p. 246. 5 BONAVIDES, Paulo. Op. Cit., p. 85. 6 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 3. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2003, p. 47. 7 Adam Smith via a origem das riquezas no trabalho do homem. A eficácia do trabalho quanto ao rendimento era mais importante que a quantidade de trabalho empregado. Se a divisão do trabalho proporcionasse altos rendimentos, era fator de bem-estar para o indivíduo e de riqueza para o país. SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 8 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução por Laura Teixeira Mota. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 326. 9 MALTHUS, Robert. Ensaio sobre a população. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 283. 10 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Brasiliense, 2005, p. 63. 11 SEN, Amartya. Op. Cit., p. 81. 12 KEYNES, John Maynard. A teoria geral do emprego dos juros e do dinheiro. São Paulo: Nova Cultural, 1985. 13 BOBBIO, Norberto. Op. Cit., p. 89. 14 VASCONCELOS, Arnaldo. Direito e força: uma visão pluridimensional da coação jurídica. São Paulo: Dialética, 2001, p. 54. 15 MILL, John Stuart. A liberdade. In: MORRIS, Clarence (Org.). Os grandes filósofos do direito. Tradução por Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 364-399, p. 385. 16 John Rawls, nesse mesmo sentido, destaca: “a única razão para restringir as liberdades fundamentais e torná-las menos extensas é que, se isso não fosse feito, interfeririam umas nas outras.” RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. Tradução por Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 77. 17 SEN, Amartya. Op. Cit., p. 80. 18 MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Fundamentos do Direito. São Paulo: Atlas, 2010, p. 129. 19 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 33 ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 233. 20 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição de 1988. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 102. 21 VASCONCELOS, Arnaldo. Direito, humanismo e democracia. São Paulo: Malheiros, 2008. 22 Conforme ensina Hans Carl Nipperdey, “a liberdade é um todo indivisível, no qual, à liberdade política, religiosa, espiritual e conômica, a liberdade humana original do particular em todos os âmbitos da vida tem de associar-se.” DÜRIG, Günter; SCHWABE, Jürgen; NIPPERDEY, Hans Carl. Direitos fundamentais e direito privado. Organização de Luiz Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2012, p. 70. 23 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, v. III, p. 20. 24 CABRILLAC, Rémy; ROCHE-FRISON, Marie-Anne; REVET, Thierry (Org.). Libertés et droits fondamentaux. 15 ed. Paris : Dalloz, 2009, p. 684. 25 Ibid., p. 685. 26 BITTAR, Carlos Alberto. Curso de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994, v.1, p. 455. 27 De acordo com Nelson Nery Junior, “a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral, a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito.” Sobre a função social do contrato e o princípio da relatividade dos efeitos do contrato, ler NERY JUNIOR, Nelson. Contratos no Código Civil: apontamentos gerais. In: O novo código civil: estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale. FRANCIULLI NETTO, Domingos; MENDES, Gilmar Ferreira; MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva (Org.). São Paulo: LTr, 2003, p. 423.

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28 TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 4 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 2. 29 IRTI, Natalino. La edad de la descodificación. Tradução de Luís Rojo Ajuria. Barcelona: Jose Maria Bosch, 1992, passim. 30 TEPEDINO, Gustavo. Op. Cit., p. 7. 31 Ibid., p. 11. 32 IRTI, Natalino. Op. Cit. 33 TEPEDINO, Gustavo. Problemas de Direito Civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 13. 34 PERLINGIERI, Pietro. Complessità e unitarietà dell’ordinamento giuridico vigente. In: Rassegna di diritto Civile, v. I, p. 191-192, 2005. 35 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1991, p. 18. 36 SILVA, Virgílio Afonso. Constitucionalização do direito. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 48-49. 37 Ibid., p. 38. 38 MORAES, Maria Celina Bodin. A caminho de um Direito Civil Constitucional. Revista Estado, direito e sociedade, v. I, 1991. Disponível em: < http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/ anexos/15528-15529-1-PB.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2012. 39 Conforme ensina Canaris, “as leis de Direito Privado têm, em numerosos casos, uma clara natureza ofensiva – e isto, nalgumas circunstâncias, de forma massiva. Então constitui um imperativo de coerência controlá-las, nessa medida, em princípio também à luz da proibição de excesso. Em CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e Direito Privado. Tradução de Ingo Wolfgang Sarlet e Paula Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2006, p. 33. 40 Ibid., p. 75. 41 Nesse diapasão, destaca-se o ensinamento de Ingo Sarlet: “todas as entidades privadas e os particulares encontram-se diretamente vinculados pelo princípio da dignidade da pessoa humana, o que implica a existência de deveres de proteção e respeito também na esfera entre particulares.” Em SARLET, Ingo Wolfgang. Op. Cit., p. 133. 42 A decisão fundamentou-se, principalmente, no princípio da dignidade da pessoa humana, na dimensão constitucional do afeto e no direito constitucional à busca pela felicidade, que decorre, implicitamente, do núcleo de que se irradia o postulado da dignidade da pessoa humana. RE 477554 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 16/08/2011, DJe-164 DIVULG 25-08-2011 PUBLIC 26-08-2011 EMENT VOL-02574-02 PP-00287. 43 REsp 1183378/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 25/10/2011, DJe 01/02/2012. 44 Nas palavras do Relator, Ministro Gilmar Mendes: “As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. [...] A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais.” RE 201819, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 11/10/2005, DJ 27-10-2006 PP-00064 EMENT VOL-02253-04 PP-00577 RTJ VOL-00209-02 PP-00821. 45 REsp 962.980/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 13/03/2012, DJe 15/05/2012. 46 “Com vistas à necessidade de se conferir maior efetividade ao direito integral à cobertura de proteção à saúde – por meio do acesso ao tratamento médico-hospitalar necessário –, deve ser invalidada a cláusula de exclusão de transplante do contrato de seguro-saúde, notadamente ante a peculiaridade de ter sido, o segurado, submetido a tratamento complexo, que incluía a probabilidade – e não a certeza – da necessidade do transplante, procedimento que, ademais, foi utilizado para salvar-lhe a vida, bem mais elevado no plano não só jurídico, como também metajurídico.” REsp 1053810/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/12/2009, DJe 15/03/2010. 47 AgRg no Ag 1394166/SC, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 08/05/2012, DJe 04/06/2012. 48 AgRg nos EDcl no REsp 1223838/RS, Rel. Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), TERCEIRA TURMA, julgado em 03/05/2011, DJe 11/05/2011.

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REFERÊNCIAS

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BITTAR, Carlos Alberto. Curso de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994, v.1.

BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. 6. ed. Tradução por Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Brasiliense, 2005.

BONAVIDES, Paulo. A quinta geração de direitos fundamentais. Direitos fundamentais e Justiça, Porto Alegre, n. 3, abr-jun. 2008. CABRILLAC, Rémy; ROCHE-FRISON, Marie-Anne; REVET, Thierry (Org.). Libertés et droits fondamentaux. 15 ed. Paris: Dalloz, 2009. CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e Direito Privado. Tradução de Ingo Wolfgang Sarlet e Paula Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2006. DÜRIG, Günter; SCHWABE, Jürgen; NIPPERDEY, Hans Carl. Direitos fundamentais e direito privado. Organização de Luiz Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2012. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 6 ed. v. III. São Paulo: Saraiva, 2009. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2003. IRTI, Natalino. La edad de la descodificación. Tradução de Luís Rojo Ajuria. Barcelona: Jose Maria Bosch, 1992. KEYNES, John Maynard. A teoria geral do emprego dos juros e do dinheiro. São Paulo: Nova Cultural, 1985. HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1991. MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Fundamentos do Direito. São Paulo: Atlas, 2010. MALTHUS, Robert. Ensaio sobre a população. São Paulo: Abril Cultural, 1983. MILL, John Stuart. A liberdade. In: MORRIS, Clarence (Org.). Os grandes filósofos do direito. Tradução por Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 364-399.

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MORAES, Maria Celina Bodin. A caminho de um Direito Civil Constitucional. Revista Estado, direito e sociedade, v. I, 1991. Disponível em: < http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/15528-15529-1-PB.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2012. NERY JUNIOR, Nelson. Contratos no Código Civil: apontamentos gerais. In: O novo código civil: estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale. FRANCIULLI NETTO, Domingos; MENDES, Gilmar Ferreira; MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva (Org.). São Paulo: LTr, 2003. PERLINGIERI, Pietro. Complessità e unitarietà dell’ordinamento giuridico vigente. In: Rassegna di diritto Civile, v. I, Napoli, 2005. RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. Tradução por Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2008. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição de 1988. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução por Laura Teixeira Mota. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 120. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 33 ed. São Paulo: Malheiros, 2010. SILVA, Virgílio Afonso. Constitucionalização do direito. São Paulo: Malheiros, 2005. SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. São Paulo: Martins Fontes, 2003. TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 4 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. ___________. Problemas de Direito Civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. VASCONCELOS, Arnaldo. Direito e força: uma visão pluridimensional da coação jurídica. São Paulo: Dialética, 2001. ___________.. Direito, humanismo e democracia. São Paulo: Malheiros, 2008.

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DIREITO E GLOBALIZAÇÃO: A CRISE DA DEMOCRACIA E SEUS SISTEMAS DE DIREITO

LAW AND GLOBALIZATION: THE CRISIS OF DEMOCRACY AND ITS SYSTEMS

LAW

Ana Laura Teixeira Martelli*

Elve Miguel Cenci**

RESUMO

O presente trabalho buscou demonstrar, através de uma abordagem teórica, os prejuízos trazidos pelo mundo unificado aos institutos democráticos. Não se pretende demonizar o processo de mundialização, mas proceder a uma análise crítica sobre os reflexos da abertura dos mercados aos institutos relacionados à democracia, cidadania e sistemas de proteção social. A atuação do Estado frente aos atores econômicos internacionais e transnacionais também foi objeto de pesquisa, além das pressões exercidas por essas empresas transnacionais e globais sobre a criação de mecanismos que favorecem a competitividade e concorrência, com vistas a assegurar a eficácia do mercado, dentre eles a redução das garantias e sistemas de proteção social.

Palavras-chave: Globalização. Democracia. Sistemas de direito. Crise.

ABSTRACT

The present study sought to demonstrate, through a theoretical approach, the losses brought the world to the unified democratic institutes. This is not to demonize the process of globalization, but undertake a critical analysis on the effects of the opening of markets to institutions related to democracy, citizenship and social protection systems. The role of the state in the face of international and transnational economic actors was also the object of research, beyond the pressures exerted by these transnational corporations and global on creating mechanisms that promote the competitiveness and competition, in order to ensure market efficiency, including reduction guarantees and social protection systems.

Keywords: Globalization. Democracy. Systems of law. Crisis.

*Mestranda em Direito Negocial – relações negociais no direito privado, pela Universidade Estadual de Londrina. Especialista em Direito do Estado pela Universidade Estadual de Londrina. Professora Titular da Faculdade de Direito de Presidente Prudente - Faculdades Integradas Antonio Eufrásio de Toledo. E-mail: [email protected]

** Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professor nos cursos de graduação e pós graduação lato e stricto senso da Universidade Estadual de Londrina.

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1 INTRODUÇÃO

Um olhar retrospectivo que se paute na experiência política humana, associado aos

recentes acontecimentos políticos mundiais poderia conduzir ao questionamento da atual crise

da democracia e seus institutos de direito.

O avanço das novas tecnologias, a superação das fronteiras e a interação entre os

povos têm cooperado para o processo de unificação do mundo. Cada vez mais, decisões

importantes são tomadas além das fronteiras dos Estados Nacionais e seus cidadãos suportam

seus efeitos sem nunca terem participado do processo político de legitimação.

Com isso, o indivíduo tem questionado seu papel na sociedade, sentindo-se muitas

vezes em situação de isolamento e solidão, quando percebe sua pequenez diante da imensidão

do globo e que inúmeras decisões são tomadas, sobre as quais é impossível participar porque

fogem à órbita do voto do cidadão.

Além disso, percebe-se o enfraquecimento dos sistemas de proteção social, que

sucumbem às pressões dos atores econômicos transnacionais, como fundamento de

favorecimento da exploração econômica e eficácia do mercado.

Uma abordagem teórica sobre o tema é pertinente ao passo que realiza a análise

crítica dos benefícios e prejuízos trazidos pelo contexto de mundialização.

2 GLOBALIZAÇÃO: O ENCOLHIMENTO DA TERRA

Atualmente, milhões de pessoas de todos os países possuem um sentimento de

encolhimento da Terra, não na concepção geográfica, mas pode-se afirmar que sua superfície

restringiu-se (LACOSTE, 2004). Isto porque muitos indivíduos experimentam e participam

das diversas representações geopolíticas, o que o mesmo autor denomina globalização.

A filósofa francesa Monique Canto-Sperber afirma que não existe uma globalização,

mas globalizações, que se manifestam na realidade de um mundo que se tornou comum. O

desenvolvimento das civilizações não mais se sustenta pelo isolamento como ocorria outrora,

v.g. aquelas dos maias, astecas e incas, da Índia ou da China.

Pode-se afirmar que o mundo unificou-se. Para tanto, contou com a colaboração de

vários eventos históricos tais como “os grandes descobrimentos, a constituição dos impérios

coloniais europeus e depois a exploração da África e das ilhas do Pacífico” (CANTO-

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SPERBER, 2004, p. 50)1.

Essa nova concepção de mundo unificado, foi consolidada pela notória revolução

tecnológica, com escopo de facilitar a interação entre pessoas e culturas, em níveis

planetários, através de redes mundiais de televisão, da Internet, das multimídias e das

infovias.

Ressalta-se o apontamento da contrarrevolução fracassada do império soviético, em

que o presidente da república russa, do alto de um tanque, fez um ousado discurso direcionado

à população moscovita contra os comunistas sublevados, transmitido ao mundo via satélite

pela CNN, no entanto, não veiculados pelas próprias estações de rádio soviéticas, dominadas

pelos velhos comunistas (BECK, 1944).

Outro exemplo de superação de barreiras geográficas extraído da obra de Ulrich

Beck (1999, p.43) é a exportação de postos de trabalho, através da cooperação transnacional

ou até mesmo transcontinental. O autor cita o serviço de comunicação do aeroporto berlinense

de Tegel, que é transmitido online desde a Califórnia depois das dezoito horas locais, por

questões de conveniência econômica, pois neste país não se remunera o adicional por serviço

noturno e seus custos salariais são muitos inferiores ao da Alemanha para a mesma atividade.

O chamado encolhimento da Terra (LACOSTE, 2004) também é evidenciado pela

atividade de turismo, que configura, na atualidade, uma das primeiras atividades econômicas

mundiais, reveladas no mundo dos negócios transnacionais, nas agências turísticas que

exploram as atrações de diversos países por vários dias, atraindo uma considerável clientela.

Acontecimentos surpreendentes e importantes, desastres naturais e tragédias são

transmitidos em tempo real ao mundo inteiro. Os estragos causados pelo Tsunami no Japão

puderam ser assistidos em diferentes pontos do mundo, alguns flagrados no exato momento

de sua ocorrência. Do mesmo modo, milhões de pessoas testemunharam de suas casas ou

trabalho o choque do segundo avião na segunda torre do World Trade Center, veiculado por

vários canais televisivos a níveis mundiais.

No Brasil, a tragédia de Santa Maria/RS2 foi destaque nas manchetes internacionais.

1 A autora afirma ainda, como fator operante de colaboração da extinção da compartimentação das civilizações

os eventos ocorridos na Europa, a exemplo, da influência da cultura europeia e o fascínio despertado nos países recém-abertos para o mundo, no que tange à sua modernidade científica e técnica. Além da dominação da América “toda-poderosa”, sem rival no plano militar e ideológico.

2 A cidade de Santa Maria, localizada a 293 km da capital gaúcha, foi cenário de uma grande tragédia. No dia 27

de janeiro de 2013, por volta das 02h30min, em uma boate denominada Kiss, durante a apresentação de uma banda gaúcha, o vocalista deu início a um incêndio, ao utilizar um sinalizador impróprio a ambientes fechados. Segundo depoimento de alguns sobreviventes, do equipamento conhecimento como Sputnik, saíram faíscas que atingiram a espuma de isolamento acústico, do teto do recinto, ocasionando o incêndio que se espalhou em

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O velório coletivo dos corpos das vítimas do sinistro e o sofrimento dos familiares foram

objetos de destaque da emissora americana CNN. Na América do Sul, a nação argentina

acompanhou a tragédia pelo seu diário “La Nación”, o que aconteceu também com a

população espanhola, por intermédio do jornal “El Mundo”, os britânicos com a BBC, a

França, através do diário “Le Monde” e o povo árabe pela emissora al-Jazerra.

Assim, a telecomunicação também contribuiu para o sentimento de encolhimento da

Terra. Além disso, tem-se a internet e o telefone celular que permite a comunicação e

interação de pessoas do mundo inteiro, sendo irrelevante a distância entre elas. Registre-se

ainda, a contribuição da expansão do transporte aéreo, que em poucas horas, deslocam

pessoas a diferentes lugares, que outrora, pareciam muito distantes.

Desse modo, nas últimas décadas, vários fatores têm colaborado com a superação de

barreiras territoriais, tais como o turismo, os meios de telecomunicações, internet, celular,

transporte aéreo e isto causa a sensação de diminuição da superfície terrestre ou encolhimento

da Terra como denomina o geopolítico francês, Yves Lacoste.

Isso possibilita interações de diversas maneiras entre os povos, quer no plano

econômico e financeiro, quer no político e científico. Neste contexto de mundo integralmente

conhecido, com considerável redução de distâncias, sem compartimentação de civilização, a

discussão crítica a respeito da globalização sob o ponto de vista do Direito, torna-se

irrefutável.

3 GLOBALIZAÇÃO, DEMOCRACIA E CIDADANIA

Neste processo de unificação de mundo, num contexto de modernidade, não se pode

olvidar a influência trazida pela globalização no âmbito da democracia e cidadania. A esse

respeito, sabe-se que cada vez mais as atividades econômicas desempenhadas num dado

contexto social dependem de tomadas de decisões realizadas a vários quilômetros de

distância, em detrimento da própria modernidade política, que no dizer de ROUANET (2002,

p.238), significa “plena capacidade de exercer cidadania, num estado de direito que assegure a

vigência integral da democracia”.

Isto porque houve o fenômeno da internacionalização, em que se globalizou,

inclusive, a dimensão política, num processo de relativização das soberanias nacionais, segue

poucos minutos, que causou a morte de pouco mais de duzentos e trinta e cinco pessoas e cento e quarenta e três feridos.

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o mesmo autor, impõem aos estados nacionais o desempenho do mesmo modelo de ação

estatal, fundado na abertura dos mercados, privatização e na desregulamentação.

Neste cenário, as decisões políticas mais relevantes para a vida do cidadão, foram

tomadas além das fronteiras de seu Estado, sendo que aquele que sofrerá os efeitos dessa

tomada, não participou do processo político que originou sua adoção.

Oportuno registrar a afirmação de FERRAJOLI a respeito do tema:

(...) significa essencialmente crise da soberania estatal, que se manifesta na transferência de cotas crescentes de poderes e funções públicas, tradicionalmente reservadas aos Estados, para fora de seus limites territoriais. Na idade da globalização o futuro de cada país depende cada vez menos da política interna e sempre mais de decisões externas, tomadas em sedes políticas supranacionais ou por poderes econômicos globais.

Assim, o professor italiano aponta um rompimento do nexo democracia/povo e poder

decisional/Estado de direito, “tradicionalmente mediado pela representação e pelo primado da

lei e da política através da qual a lei se produzia”.

O modelo de democracia política realizada por intermédio do sufrágio universal

implica na participação dos interessados nas decisões políticas – legislativas, ou na escolha de

seus representantes para a tomada dessas decisões. Logo, as normas jurídicas direcionadas à

população, contaram com sua participação no processo decisional para sua elaboração.

Certamente, a democracia é tida como um instrumento viabilizador de inclusão e

inserção social do indivíduo, sendo que sua participação e a garantia de liberdade política

consistem em fatores imprescindíveis para o desenvolvimento humano, o que, inclusive, já foi

consagrado pela Organização das Nações Unidas.

Neste contexto, importante destacar a afirmação de VIAL (2007, p. 90) ao apontar a

conduta do mundo ocidental no sentido de apregoar a democracia como a fórmula para a

felicidade e de justiça social, organizando movimentos a fim de expandi-la em todos os

lugares.

Entrementes, observa-se que no cenário de mundo globalizado, como já afirmado,

existe a subtração da participação dos cidadãos no processo de elaboração da legislação,

atinentes às decisões tomadas a níveis internacionais, por conseguinte, encontra-se na

contramão do próprio discurso de expansão da democracia, como instrumento viabilizador de

inclusão e de realização de justiça social.

A sujeição desse indivíduo aos efeitos da decisão tomada, sem sua participação,

causa a sensação de sua impotência e reflete sua pequenez diante do universo globalizado,

diminuindo seu papel ativo na sociedade e exercício da cidadania.

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Desta feita, importante trazer à baila, o tema relevante atinente à relação existente

entre a globalização e cidadania, que por vezes, figura uma relação desencontrada e instável.

Isto porque a concepção de cidadania encontra-se intimamente ligada à ideia de nacional, em

contraposição à globalização, que se refere à abertura do Estado, a superação de fronteiras e

unificação de mundo.

Por intermédio do controle que a cidadania exerce sobre as paixões humanas, no

dizer de SCHNAPPER (2004, p.79), é possível um zelo maior e a adoção de medidas de

proteção dos fracos, sob standards de igualdade de dignidade destes em relação aos mais

fortes, num processo de humanização, viabilizada pelo Estado Nacional em sociedades

democráticas.

Entrementes, as paixões humanas tratadas pelo autor, não se referem apenas a um

dado contexto social de um Estado Nacional, mas estão relacionadas às paixões

transnacionais. Neste ponto, salta aos olhos uma questão interessante, relativa à possibilidade

ou não de haver influência da cidadania sobre esses interesses transnacionais.

Importante destacar o papel da cidadania referendado por SCNAPPER (2004, p. 80):

Somente por um combate permanente de todos os cidadãos é que a cidadania pode continuar a controlar efetivamente as paixões ético-religiosas dos homens. Mas, pelo menos, ela fornece o instrumento pelo qual os cidadãos podem lutar para que as democracias não traiam em demasia os valores que apregoam. Nas democracias estabilizadas, existem tradições e instituições dentro das quais os cidadãos podem exercer seus direitos e batalhar para que os princípios que lhes servem de referencia não sejam ultrajados.

Entretanto, o controle exercido pela cidadania nas tendências humanas se esbarra no

problema da influência e existências de tendências transnacionais, que, não raras vezes, não

coincidem com valores, tradições e princípios defendidos pelo Estado Nacional, o que gera o

enfraquecimento dos sistemas constitucionais de garantia e proteção do cidadão.

Primeiro porque, destaca-se novamente, a cidadania é nacional e sistemas de

proteção do cidadão de um Estado foram devidamente legitimados pela participação, ainda

que indireta, desse indivíduo no processo político de elaboração, decisão e construção desses

sistemas, enquanto que outras muitas decisões que refletem na vida desse cidadão foram

tomadas além da circunscrição territorial do Estado e ausente a participação dessa pessoa no

processo político.

Em segundo momento, é plenamente natural, num processo de unificação de mundo,

a abertura do mercado, no sentido de favorecer a exploração de atividades econômicas além

de suas fronteiras, com vistas a possibilitar às empresas buscar melhores condições de mão-

de-obra, incentivos fiscais e a conquista de novos mercados a níveis mundiais.

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Com isso, surgem as empresas transnacionais que em muitos casos possuem

faturamento bruto maior do que o produto interno bruto dos próprios países em que exploram

a atividade, sendo que em algumas áreas a produção ocorre em série e em diferentes países,

surgindo a figura da empresa global.

A empresa global consiste naquela pessoa jurídica que fragmenta ou

compartimentaliza o processo de produção de seus produtos, mercadorias e serviços, no

sentido de espalhar filiais em diferentes países, para que, cada filial participe do processo de

produção, a fim de fabricar partes do mesmo produto que, após a conclusão serão montados

em uma das filiais já existentes.

Sabe-se que estas empresas anseiam por melhores condições para a exploração de

sua atividade e o oferecimento dessas condições por parte de um Estado Nacional, possibilita

a instalação dessa pessoa jurídica em seu território.

Percebe-se, então, que o Estado, em muitos casos, objetivado no favorecimento do

crescimento e desenvolvimento econômico, perde o controle econômico e cede às pressões e

exigências da empresa global.

Assim, a bem do mercado, reduzir-se-á a proteção de determinados grupos de

indivíduos. O economista e professor francês FITOUSSI (2004, p. 101) afirma que “o duplo

trinfo do individualismo e do mercado obrigaria a reduzir as pretensões redistributivas das

sociedades (a resistência do contribuinte) e as pretensões intervencionistas dos governos”.

Isto porque o crescimento externo revestido pela lógica da rentabilidade em curto

prazo possibilita o aparecimento de empresas de grandes portes, denominadas atores

econômicos, que o economista citado designa de “quase chefes privados”.

Surge, então, o discurso de que a intensificação da livre concorrência beneficia os

consumidores (cidadãos do estado nacional), no entanto, deve-se realizar uma análise crítica a

respeito dos discursos de alguns atores econômicos, que tendem cada vez mais, a mascarar e

camuflar suas reais intenções, tais como a redução de garantias sociais.

Assinale-se a forte crítica da autora VIAL (2007, p. 88):

O mercado tornou-se, desta forma, a grande força „integradora‟, cujo anverso tem sido a precarização da vida social (desregularização da mão-de-obra assalariada, terceirização da economia, marginalização estrutural de ambos os setores da sociedade), o que tem gerado e promovido estratégias individualistas que debilitam as já frágeis expectativas históricas de reciprocidade, aumentando a incerteza ao desmoronar as garantias individuais que brindaram historicamente o Estado de compromisso.

Neste cenário de proteção dos mercados, as pressões exercidas pelos “chefes

privados” e a redução da pretensão redistributiva da sociedade contribuem para o

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enfraquecimento da democracia, à medida que modificam o sistema de equidade da

sociedade. O foco não se encontra na igualdade e justiça dentro da sociedade, mas isonomia e

equidade no mercado, reduzir-se-á a democracia em favor da eficácia do mercado, colocando-

a em estado de prevalência sobre a própria democracia.

Ressalta-se o apontamento do professor francês FITOUSSI (2004, p.102): A legitimação do crescimento das desigualdades entre os países no seio de cada país, pela globalização – princípio transcendental? -, enfraquece a democracia e presta um mau serviço à própria globalização. Em si a globalização não é um problema, já que pode gerar benefícios importantes, mas ao produzir-se dentro de um desiquilíbrio das relações de força entre os atores, gera sofrimento social.

Dessa feita, a ideologia da competividade e concorrência na verdade corresponde a

uma relação de força, ou seja, disputa pelo maior poder econômico, que pode ocasionar

diversos prejuízos sociais, principalmente quando o Estado deixa de mediar essa relação,

escondendo-se debaixo do manto da “impotência política” sob o pretexto da tutela dos

mercados.

Além da ausência de mediação dos Estados nas relações de poder entre os atores

econômicos, outro fator que contribui para o apagamento da democracia, é a exigência desses

atores na desregulamentação do mercado de trabalho, por conseguinte, o enfraquecimento do

sistema de proteção social.

Urge destacar o posicionamento de VIAL (2007, p. 83), quando observa que este

fenômeno tem trazido problemas tanto no sistema da política, quanto no do direito. A autora

ressalta que no sistema político existe uma corrupção cada vez mais crescente e refinada e,

igualmente no sistema de direito, quando as relações de independência entre si encontram-se

envolvidas por relações de dominação, consequentemente de corrupção entre os próprios

sistemas.

Ainda em relação aos sistemas de direito, os aspectos econômicos chamam a atenção em decorrente contração do setor público. Prossegue a autora:

No entanto, tem se deixado de lado a percepção da globalidade das mudanças ocorridas, fundamentalmente aquelas que têm relação com a desarticulação e o desmantelamento dos mecanismos de intervenção estatal e sua repercussão nas formas de coordenação social em uma sociedade cada vez mais complexa.

O sistema de proteção social é enfraquecido à medida que o Estado acaba por reduzir

direitos sociais, em especial dos trabalhadores, em prol do princípio da eficácia do mercado,

direitos estes conquistados após lutas, revoluções, reivindicações ao longo de anos, pleno

exercício de cidadania.

Esses direitos sociais foram inseridos no ordenamento jurídico do Estado Nacional,

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devidamente legitimados no processo político decisivo, através da participação dos cidadãos,

numa autêntica reprodução da democracia segundo o modelo ocidental. Além dos direitos

sociais, tem-se o interesse difuso dos consumidores e usuários dos serviços e produtos

disponibilizados pelos atores econômicos.

Nesta seara, importante anotar ainda, a colocação feita por GEIB (2012, p. 187)

quando discorria sobre as causas de vulnerabilidade do consumidor nos contratos de consumo

internacional, ao afirmar que numa relação jurídica dessa espécie, o consumidor adere ao

contrato em razão da oportunidade, confia no fornecedor, inclusive, possibilitando o acesso

aos seus dados, tendo em vista a crença de uma proteção do Estado, que em muitos casos é

insuficiente.

Além disso, encontra-se presente a existência de ordenamentos jurídicos e judiciários distintos, que contribui para o sentimento de insegurança jurídica, conforme GEIB (2012, p. 181):

Diante desta multiplicidade de contatos internacionais entre sujeitos privados, é importante frisar que cada ordenamento jurídico é uno, é um sistema autônomo e diferente, mas como o mesmo status que os demais. Não existe hierarquia de leis estatais.

Essa pluralidade de ordenamentos jurídicos importa a pluralidade de soluções

jurídicas para o mesmo fato e problema da vida do indivíduo particular, por conseguinte

persiste um conflito de leis no espaço.

Ante essa vulnerabilidade do consumidor, sempre coube ao Estado realizar a

intervenção necessária no sentido de reestabelecer o equilíbrio e igualdade entre as partes,

disciplinar limites para a autonomia privada e impor normas imperativas.

Os direitos do consumidor, que goza de status de direito fundamental3, foram

introduzidos no ordenamento jurídico a fim de coibir abusos pela parte mais forte em

detrimento dos hipossuficientes nas relações jurídicas de consumo. Mais uma vez, a previsão

desses direitos no ordenamento jurídico foi legitimada pelo processo democrático, no entanto,

em termos pragmáticos, não possuem tamanha força diante de um agente econômico, “cujo

poder nada tem a invejar no dos governos” FITOUSSI (2004, p. 104)4.

3 A proteção aos direitos do consumidor consiste em direito fundamental, previsto no artigo 5º, inciso XXXII, da

Constituição da República Federativa do Brasil. Ingo W. Sarlet (2012, p. 266) conceitua direitos fundamentais como “posições jurídicas reconhecidas e protegidas na perspectiva do direito constitucional interno dos Estados”. Esses direitos encontram-se fundamentalidade simultaneamente formal e material. Direito qualificado com fundamentalidade formal, tendo em vista que possui ligação com o direito constitucional positivado, explícita ou implicitamente. Do mesmo modo, encontra fundamentalidade material a medida que importa o conteúdo e significado, ainda que não formalmente prevista pela carta constituinte.

4 Importante destacar qual o grau de interferência ou temor criado por um grupo de pessoas, devidamente representados por seu sindicato, que reivindicam seus direitos preteridos por esses agentes econômicos, quando

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Não se pretende olvidar o novo paradigma do pluralismo jurídico, por intermédio do

qual assevera a existência de outras fontes normativas, negando o fundamento de que o

Estado seja a única e exclusiva fonte de todo o direito, além da defesa da supremacia de

fundamentos ético-sociológicos sobre critérios meramente tecnoformais. Esse modelo teórico

estabelece a priorização de produção normativa multiforme, com conteúdos concretos,

advindas de várias instâncias, corpos e/ou movimentos organizacionais que compõe a vida

social.

No entanto, pertinente a anotação de Noberto Bobbio a respeito do pluralismo com o

perigo da ocultação de uma ideologia revolucionária, com vistas a colaborar com a

progressiva libertação dos indivíduos e grupos oprimidos pelo Estado, como também, de uma

ideologia tida como resposta interpretada como um episódio de desagregação ou de

substituição do Estado, que pode implicar em regime iminente de anarquia.

Além disso, Miguel Reale já nos advertia que determinadas funções não poderiam

ser delegadas ou exercidas por indivíduos ou associações particulares. Isto pode corresponder

a um grave perigo para a manutenção da ordem social e o próprio aniquilamento do Estado.

Assim, afirma o autor que existem competências que são inerentes à soberania do Estado e

não podem ser delegadas à terceiros, vg. a segurança interna, a possibilidade de legislar, o

exercício de jurisdição, dentre outras.

Dessa feita, em que pese o pluralismo jurídico ser uma possível alternativa à crise da

democracia, não pode ser a única, pois o Estado ainda possui funções que lhe são privativas,

não passíveis de delegação aos movimentos sociais organizacionais, carecendo de outra

resposta à desregulamentação e pressões dos grandes atores econômicos.

É certo que existem benefícios trazidos pela globalização, como a interação dos

povos, a comunhão de novas tecnologias, o acesso universal aos bens e serviços, dentre

outros. No entanto, a mundialização pode causar dependência e enfraquecimento dos Estados

e, consequentemente, seus sistemas de direito.

O Estado perde não somente o controle de suas fronteiras, mas também às próprias

regras de direito, pois quando se encontram contrárias aos interesses dos atores

transnacionais, estes começam a produzir suas próprias regras, que, evidentemente, estão mais

ajustadas aos seus próprios interesses.

na verdade o faturamento bruto de tais ultrapassam ao próprio produto interno bruto do país, ou qual o grau de intimidação causada por conselhos de defesas de consumidores ou intervenção do próprio Estado, a uma empresa global que possui filiais no mundo inteiro, sendo este apenas mais um país aonde ela explora essa atividade.

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Obviamente este fator favorecerá certos interesses de uma determinada classe, a dos atores econômicos, e não de todos, gerando um complexo de inclusões e exclusões. Pertinente a observação feita por MARTY (2004, p. 271):

Neste mundo governado por uma plutocracia cosmopolita suficientemente flexível e móvel para marginalizar ao mesmo tempo os Estados, os cidadãos e os juízes, a democracia precisa ser reinventada tanto sob sua forma tradicional de democracia representativa quanto a forma mais recente de democracia participativa.

Assim, no contexto de mundo unificado é necessário repensar a eficácia dos sistemas

de proteção social diante dos atores transnacionais, a fim de diminuir as desigualdades sociais,

assegurar a efetividade das decisões tomadas no processo democrático, contando com a

participação popular, ainda que indireta e por representação.

É preciso adotar técnicas que viabilize a harmonia entre a democracia e a

globalização e abandonar o manifesto de que a democracia e a esfera política consistem em

verdadeiras barreiras ao desenvolvimento e crescimento econômico do país. A adoção de

valores universais e organismos mundiais que exerçam o controle e imponham limites na

atuação aos agentes transnacionais, com legitimação, inclusive, para a imposição de sanção no

caso de descumprimento desses valores, inibiria as pressões exercidas por estas empresas aos

governos no sentido de desregulamentação, devolveria parcela do poder estatal e garantiria

maior efetividade às normas legitimadas pelo processo democrático.

4 CONCLUSÃO

O processo de mundialização, com superação das fronteiras, interação entre os povos

e o avanço das novas tecnologias causam a estranha sensação de encolhimento da Terra. É

plenamente possível a interação com um indivíduo localizado do outro lado do globo em

tempo real.

A aquisição de bens e serviços produzidos em outros países ocorre a todo o tempo e

o crescimento do mercado externo aumenta a cada dia. A exportação de postos de trabalhos,

em processos de cooperação continental e transcontinental, torna-se cada vez mais comum.

Decisões importantes são tomadas em âmbito mundial, que certamente refletirão na

vida do cidadão “nacional”, no entanto, sem sua participação no processo decisório.

Tudo isso remete à análise a respeito da atual crise da democracia frente ao processo

de unificação de mundo, tendo em vista que o Estado perde parcela da sua soberania e mais

que isso, não exerce efetivamente qualquer espécie de poder econômico diante dos atores

transnacionais, que exploram suas atividades econômicas, muitas vezes, fragmentando a

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cadeia produtiva em diversas filiais espalhadas por toda parte do globo.

O Estado esconde-se sob o manto da impotência política diante do poder econômico

e padece pressões desses atores, consubstanciados em seus discursos de favorecimento da

livre concorrência e competitividade, que segundo eles, prestigiam os interesses dos próprios

cidadãos.

No entanto, é imprescindível a análise crítica desse discurso, a medida que sob

pretexto de assegurar o acesso universal a estes bens e serviços, pleiteiam a redução do

alcance dos sistemas de proteção social, gerando sofrimento à sociedade.

Assim, mais uma vez o cidadão é marginalizado, quando se depara com a

sucumbência de seu poder decisório, uma vez que estes sistemas de direito e proteção social

foram devidamente inseridos no ordenamento jurídico, após legitimação no processo

democrático, com sua participação, sucumbido às pressões e atendimento de interesses

econômicos das empresas transnacionais e globais.

Não se pretende demonizar a globalização, no entanto, questionar seu standard de

eficácia do mercado, colocando a democracia como obstáculo para o crescimento e

desenvolvimento econômico.

O foco não deve ser o capital, o mercado, até mesmo porque tais, não existem por si

só, carecem e são movimentados pelo ser humano. É necessário o resgate da valorização do

homem, o fenômeno da humanização.

Essa humanização somente é possível com a garantia de efetividade dos sistemas

democráticos. Valorizar o homem, também é prestigiar sua opinião e afiançar sua participação

nas tomadas decisões sob as quais os efeitos recairão sobre si.

Dessa forma, faz-se necessária a criação de técnicas e medidas que visem a

compensação e harmonização entre a democracia e a própria globalização de forma que uma

não prevaleça sobre a outra de forma a aniquilá-la ou reduzi-la sobremaneira.

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_____. Democracia e formas de inclusão – exclusão política nos sistemas políticos brasileiro, mexicano e italiano. Constituição, Sistemas Sociais e hermenêutica: programa de pós-graduação em Direito da UNISINOS: mestrado e doutorado/orgs. Lenio Streck, José Luis Bolzan de Morais; Vicente de Paulo Barreto ... [et al]. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora; São Leopoldo: UNISINOS, 2007. WOLKMER. Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma Nova Cultura no Direito. 2ª ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1997. ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia. Colección Estructuras y Procesos – serie derecho. Giulio Einaudi editore, S.p.a., Torino, 1992.

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A CRISE DO ESTADO MODERNO E AS AGÊNCIAS REGULADORAS

THE CRISIS OF THE MODERN STATE AND THE REGULATORY AGENCIES

Clodomiro José Bannwart Júnior1 Diogo Diniz Lopes Sola2

Resumo:

O presente artigo busca analisar os efeitos negativos decorrentes do processo de globalização econômica e como estes têm repercutido nos Estados-Nações, principalmente no que diz respeito às imposições e pressões realizadas pelo mercado externo, que levam os Estados a sofrerem com a mitigação da possibilidade de autorregulação, em detrimento do capital, situação que, por si só fragiliza a capacidade do Ente Estatal de implementar diretrizes peculiares, necessárias a seu desenvolvimento, o que acaba por diminuir a capacidade de implementação de políticas públicas voltadas à solução dos assuntos internos. Contudo, a intervenção direta do Estado no domínio econômico pode contribuir para amenizar os efeitos negativos decorrentes da globalização econômica nos Estados subdesenvolvidos e em desenvolvimento, quando direcionada para investimentos em políticas públicas que, ao contrário do imposto pelo mercado externo, atendam aos interesses nacionais, e não aos interesses da economia mundial e dos grandes conglomerados transnacionais. Nesse ponto, o surgimento das agências Reguladoras amenizou a crise do Estado moderno e possibilitou o aumento da capacidade de implementar novas funções regulatórias. Palavras-chave: Intervenção do Estado. Globalização econômica. Efeitos da globalização. Direito Econômico. Agências Reguladoras. Abstract:

This paper aims to analyze the negative effects from the economic globalization process and also how these effects are reflected at Nations-States, mainly about the impositions and pressures from the external market, taking these States to suffer with the mitigation of the self regulation, over the capital. This situation weakens the State ability to implement peculiar guidelines, important to development, which reduces the capacity to implement public policies aimed at solving the internal affairs. However, direct state intervention in the economic domain can contribute to mitigate the negative effects from economic globalization

1 Professor do Programa de Mestrado em Direito Negocial na Universidade Estadual de Londrina. 2 Mestrando em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina. Pós-graduado em Direito do Estado – área de concentração: Direito Administrativo – da Universidade Estadual de Londrina (2010-2011). Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – Campus Londrina.

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in the underdeveloped and developing countries, when directed to investments in public policies that, not imposed by the external market, meet national interests – not the global economy or the huge transnational conglomerate interests. At this point, the creation of regulatory agencies decreased the crisis of the modern state and helped to grow the capacity to create new regulatory functions. Key-words: State intervention. Economic globalization. Globalization effects. Economic Law. Regulatory Agencies.

INTRODUÇÃO

Os fenômenos da globalização e da desagregação social alteraram os então paradigmas

sob os quais se sustentavam o Estado, ou seja, Soberania e a nítida separação entre as matérias

afetas aos setores público e privado. Tais fenômenos fizeram com que mudanças ocorressem,

principalmente quanto a capacidade estatal de intervenção sobre a seara econômica da vida,

da sociedade, colocando ao Estado um enorme desafio a ser enfrentado.

Assim, buscou-se solucionar a crise do Estado Moderno (limitação do poder de

decisão) por meio da assunção de novos papéis, ligados mais à intervenção indireta mediante

entes descentralizados a regularem as atividades econômicas e menos à atuação direta, como

um Estado empresário.

Neste passo, as agências reguladoras surgem como uma importante alternativa de

substituição das antigas estruturas estatais centralizadas e unitárias, podendo exercer com

maior capacidade técnica e conhecimentos específicos de cada setor a tarefa de proceder à

composição e mediação dos diversos interesses públicos existentes e, ao mesmo tempo, agir

na tutela de interesses difusos ou daqueles considerados como hipossuficientes. A dúvida que

se coloca, neste momento da discussão, é quanto ao grau de legitimidade que as agências

reguladoras brasileiras possuem a partir da formatação que adquiriram no processo de reforma

de Estado ocorrido na última década do século XX.

Com o objetivo de buscar respostas ao problema proposto nesta pesquisa, será

utilizada como recurso metodológico a análise de textos que intercalam a reflexão nas áreas

de conhecimento que dialogam interdisciplinarmente com o Direito. Do ponto de vista dos

objetivos, a pesquisa terá um caráter exploratório contando com recursos de levantamento

bibliográfico, tendo como base de dados os periódicos disponíveis na temática, livros de

Direito e afins que permitam circunscrever o objeto previamente delimitado. Do ponto de

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vista do procedimento técnico, a pesquisa será bibliográfica (materiais diversos – livros,

internet, etc.) e documental, contando com as fontes primárias, além de posições doutrinárias.

DA FORMAÇÃO À CRISE DO ESTADO MODERNO

O Estado como espaço de exercício político, onde existe o controle e a direção da

sociedade, surge com o Estado Moderno, o qual tem como elementos fundamentais: o poder

soberano ou o princípio da soberania estatal, governo (quem exerce o poder), território

delimitado e o povo (STRECK, MORAIS, 2003, p. 24).

O entendimento do processo de surgimento do Estado Moderno é importante para

analisar o Estado enquanto ambiente propício para decisões, no qual o poder é exercido dentro

de uma “perspectiva governativa” de condução e coordenação da sociedade, conforme

descreve Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto (2002, p. 28 e 29).

Utiliza-se, portanto, da sistematização organizada pelo referido autor (Floriano

Peixoto) quanto à consideração de três pontos essenciais que se podem verificar no

desenvolvimento do Estado Moderno: i) a concentração do poder decisório, relativamente à

afirmação da Soberania estatal; ii) a delimitação do poder decisório, que implica na separação

do espaço político entre esferas pública e privada e iii) a legitimação do poder decisório,

remetendo a atenção para as finalidades do Estado.

Foram estes diferentes acontecimentos que formaram as características do Estado

Moderno, os quais serviram de base para toda a estrutura política e jurídica que, a partir de

então, se formou, quais sejam: a afirmação da soberania, a separação entre os âmbitos

públicos e privados e a delimitação das finalidades estatais visando atender os interesses

públicos.

Ocorre que o Estado Moderno, acima referido, a partir da década de 70, passa a

enfrentar problemas devido ao processo de globalização e de desagregação da sociedade,

fatores que levaram à superação dos conceitos de soberania absoluta do Estado e da noção, até

então vigente, de que as searas públicas e privadas poderiam ser precisamente delimitadas,

uma totalmente separada da outra.

A realidade contemporânea tem se reconfigurado numa autocompreensão de

“sociedade complexa” com a consciência das fragilidades do Estado liberal e, também, do

Estado social experimentadas ao longo do século XX. É notório que a atuação do Estado

contemporâneo tem perdido, aos poucos, a autonomia diante das transgressões que

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extrapolam os seus limites, como a questão ambiental, o crime organizado, a atuação das

Ongs e a crescente quantidade de negociações operacionalizadas por instituições paraestatais.

Sem contar que diante da alta mobilidade das empresas e o deslocamento transnacional das

mesmas, o Estado tende a diminuir sua capacidade de intervenção.

Nesse aspecto, cabe notar que a estrutura social complexa e plural da

contemporaneidade, associada aos dilemas transnacionais impetradas pela globalização,

coloca a leitura das estruturas de poder fincada em relação bastante movediça, na qual o

Estado, a economia, o direito e a própria sociedade demandam análises de caráter

interdisciplinar.

Assim, diante desse novo cenário que se apresenta, deve-se analisar os fenômenos que

contribuíram para a superação dos antigos conceitos que sustentavam o Estado e, com isso,

verificar quais são os novos padrões que devem ser atribuídos ao poder estatal para que este

continue em seu papel moderador e, principalmente capaz de atender as diretrizes públicas

por ele mesmo propostas.

Há correntes que cintilam na defesa da globalização, quando, por outro lado, também

há correntes que deflagram a renúncia desse processo que conduz à configuração de uma

aldeia global. Os defensores da globalização creem, de forma positiva, na desterritorialização

e na ampliação das fronteiras do Estado. Apoiados na visão neoliberal, os defensores da

globalização percebem o Estado como um empreendedor, como se o mesmo fosse um Estado

empresarial ocupado em assegurar a efetivação de infraestrutura como condição de

competição no cenário global. O Estado, nesse caso, agiria baseado em critérios de

rentabilidade e de eficiência de mercado para atrair o maior número possível de empresas em

seu território. Nesse diapasão, a atuação do Estado se limitaria para com os seus cidadãos, os

quais teriam resguardas as condições de usarem suas liberdades negativas para perseguirem

seus interesses individuais e atuarem de forma competitiva em escala mundial. A leitura da

globalização nessa perspectiva coloca-a numa base eminentemente econômica, fazendo girar

e gravitar as relações sociais, políticas e empresariais no denominador comum de uma

economia ortodoxa.

Já os contrários à globalização, afetos ao protecionismo territorial e, em grande

medida, defensores de posturas etnocêntricas, enxergam o processo de integração

transnacional de forma negativa. Por adotarem posturas nacionalistas e atitudes que buscam

evitar a fragmentação social e a decomposição de padrões éticos e culturais, acabam

inexoravelmente se posicionando contra os fundamentos igualitários e universalistas próprios

da democracia.

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O filósofo alemão Jürgen Habermas aponta que entre os favoráveis e os contrários à

globalização abre-se uma terceira via com duas possíveis perspectivas: a primeira parte do

pressuposto de que o capitalismo já não pode mais ser domesticado politicamente, visto que

na arena global o capital não encontra mais limites. Para esta primeira perspectiva, defende-se

que o capital deve ser amenizado nos limites e nas forças disponíveis do Estado nacional. A

segunda perspectiva aponta como possível estruturar uma força política no plano

supranacional para alcançar o mercado que fugiu ao controle dos Estados nacionais.

(HABERMAS, 2003, p. 112)

A primeira perspectiva da chamada “terceira via” defende que o Estado nacional não

deve assumir apenas uma postura defensiva em relação ao processo de globalização e aos

efeitos dos mercados mundializados. Deve, pois, adotar o Estado uma postura reativa,

assumindo uma atitude ativa por meio de políticas públicas que permitam qualificar seus

cidadãos para competirem no mercado global. Em suma, a idéia de que “política pública”

deve expressar a ‘qualificação de cidadãos’ com capacidade de assumirem os riscos impostos

pela concorrência.

Assim, o Estado passa a se ocupar de fomentar uma sociedade em que os atores –

cidadãos, instituições, empresas, etc. – estejam aptos a assumirem riscos e, sobretudo,

responsabilidades pelas suas tomadas de decisões. Trata-se, fundamentalmente, de um modelo

de Estado que se ocupa menos da igualdade social e mais da igualdade de oportunidades.

Enfim, um Estado tipicamente liberal onde se “espera que todo cidadão se forme para ser ‘o

empresário de seu próprio capital humano’” (HABERMAS, 2003, p. 114). Por fim, a segunda

perspectiva da terceira via aposta na prioridade da política, na medida em que requer o

exercício da política à lógica de mercado; a deliberação democrática à imposição sistêmica da

economia.

O aspecto mais negativo desse processo, do ponto de vista estatal, é a ampliação do

déficit democrático. Diz Habermas: “O Estado, cada vez mais emaranhado nas

interdependências da economia e da sociedade mundial, perde, não somente em termos de

autonomia e de competência para a ação, mas também em termos de substância democrática”

(HABERMAS, 2003, p. 106).

A perda de autonomia do Estado significa que o mesmo já não mais dispõe de força

suficiente para a proteção de seus cidadãos quanto aos efeitos de decisões provenientes do

âmbito externo, sobretudo, da esfera econômica. “Um capital que está atrás de novas

possibilidades de investimento e de lucros especulativos não se submete à obrigação de se

fixar numa nação, transitando livremente para cá e para lá” (HABERMAS, 2003, p. 109).

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As organizações empresariais passaram de multinacionais a transnacionais, de forma a

não fixarem matriz em determinado país, operando de forma interligada a partir de bases no

mundo todo. Com isso, internacionaliza-se o próprio processo produtivo, bem como o

mercado consumidor, com o apoio das novas e avançadas redes de comunicação em massa, de

amplitude mundial (FARIA, 2004, p. 73-77).

O desenvolvimento de uma economia globalizada, onde a interdependência entre

nações aumenta dia-a-dia, relaciona-se também com o surgimento da preocupação com

questões ambientais e sociais, cuja incidência exige cada vez mais a busca por soluções aos

problemas surgidos. Não há duvidas de que o desenvolvimento dos mercados e também dos

mecanismos de comunicação em massa, propiciados principalmente pelas grandes inovações

tecnológicas, geraram o aumento do consumo no mundo todo. (SANTOS JUNIOR, 2009, p.

27)

Diversos fatores compõem esta quadra em que se desenvolveu, de forma intensa, a

globalização. Mas, sem dúvidas, o principal deles é o econômico. (SANTOS JUNIOR, 2009,

p.28)

Deve-se destacar que diante deste novo panorama os Estados ficaram mais

interdependentes, pois os capitais estão mais transnacionais, ou seja, percorrem o mundo em

busca do local mais favorável à expansão financeira, e também pela dinâmica do processo de

produção e comércio internacionais.

Essas transformações econômicas exigiram e ainda exigem uma nova estruturação do

Direito Internacional, as quais já podem ser facilmente notadas, como é o caso da atribuição

da competência a órgãos arbitrais especializados para solucionar conflitos entres os entes

econômicos mundiais, ou transnacionais. Da mesma forma e, também, com relação à tutela

dos direitos humanos, destaca-se também a criação de uma jurisdição internacional com

competência para julgar eventuais violações de direitos humanos, como o Tribunal Penal

Internacional e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, dentre outras.

Os processos de globalização e de desagregação da sociedade acabam por desafiar

aquele poder decisório exercido pelo Estado Moderno em seus pilares, principalmente em se

tratando da concentração de poder.

O impacto da globalização no poder decisório dos Estados nacionais está interligado,

necessariamente, ao aspecto econômico. O novo contexto de economia global de

interdependência econômica de escala internacional de empresas transnacionalizadas, cujo

processo produtivo é dividido em várias partes do globo sem se vincarem definitivamente em

um único país, de concorrência acirrada em função de mercados de trabalho e de políticas

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econômicas no sentido de atrair os investimentos privados – acabam por deslocar o poder

decisório, que antes era de exercício exclusivo do Estado, para os mercados econômicos e

financeiros, tanto no sentido da “desterritorialização” quanto no da fragmentação deste poder

decisório (FARIA, 2004, p. 106-107).

Portanto, a fragmentação social e a globalização, processos que se desenrolaram na

contemporaneidade, na medida em que mitigam a soberania clássica sobre a qual se fundou o

Estado Absolutista, solapam a exclusividade do Estado quanto ao exercício do poder

decisório, de deliberação em torno dos interesses públicos, confinando-o à uma atuação no

sentido de coordenar e adequar os interesses, como assevera Celso Lafer, citado por Marques

Neto (2002, p. 133).

O capitalismo se desenvolveu a partir da ótica liberal, que pugnava pela não ingerência

do Estado nos assuntos privados, principalmente, no campo econômico, ou seja, a separação

entre público e privado. Porém essa separação entre público e privada foi eliminada

novamente no período em que se formulou o Estado do bem-estar social, ou Welfare State.

Não há duvidas sobre o desenvolvimento econômico oriundo da aplicação desta

ideologia (bem-estar social), porém sérios problemas sociais aos Estados Nacionais

emergiram, demandando deste a realização de novas funções no sentido de atender às

reivindicações por justiça social e promover a diminuição da desigualdade de classes,

advindas do capitalismo. A intervenção do Estado no domínio econômico, campo até então

restrito à iniciativa privada, fez-se necessária “para suavizar algumas das consequências mais

penosas da desigualdade econômica” (DALLARI, 2003, p. 279).

Vale mencionar também que a globalização econômica contribuiu para essa

aproximação entre o público e o privado. O Estado não consegue mais exercer soberanamente

seu poder decisório desconectado da nova realidade econômica mundial. As contingências

econômicas externas impõem-lhe margens as quais não podem ser ultrapassadas sob pena de

cessarem os investimentos, retirarem-se de seu território o processo produtivo, etc.

Com isso, o poder decisório não é mais exercido pelo Estado, mas sim, pelos

mercados financeiros e pelos grandes conglomerados econômicos (cujos objetivos são

justamente a proteção e o incremento dos mercados), em outras palavras, o Estado acaba

refém das grandes empresas, o que acaba conduzindo o mesmo a uma necessária

republicização em seus processos de aferição e exercício do poder decisório em prol do

interesse coletivo.

É alusão corrente de que cada vez mais ocorrem tomadas de decisões, fruto de

negociações interestatais, firmadas por interesses de grupos e de instituições privadas,

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destituídas da formação democrática da opinião e da vontade. Se, por um lado, o Estado

perdeu aos poucos o substrato que lhe coube por séculos, a saber, o de mantenedor das

instituições democráticas, por outro, é preciso ampliar, em um novo contexto e cenário, a

inserção dos pressupostos democráticos à novos personagens – como é o caso das Agências

Reguladoras – que possam dispor de significativo poder de decisão.

As autarquias reguladoras autônomas, também chamadas de agências reguladoras

independentes, as quais, como se verá, albergam em sua estrutura jurídica e em seu modo de

funcionamento os atributos que um Estado mais público (no sentido do termo

‘republicização’, de Floriano Marques Neto) deve demonstrar, a partir do novo contexto de

economia globalizada, de mitigação da soberania absoluta do poder estatal, tanto no âmbito

interno quanto no externo e, também, a partir da visualização de uma sociedade em que não é

possível juntar todos os interesses dela provenientes e deixar como responsável apenas um

órgão, mesmo que este seja o Estado.

Nesse momento, as Agências reguladoras surgem como solução a essa busca por uma

nova postura do poder público no sentido de atuação e poder de decisão, pois é um órgão

específico de defesa dos interesses difusos e/ou hipossuficientes, o qual, ao mesmo tempo,

fortalece a intervenção indireta do Estado sobre o domínio econômico e também reduz sua

interferência direta no mercado (visto que essa ultima era um problema ao Estado, pois se

encontrava mitigada pelo processo de globalização, conforme acima mencionado).

AS AGÊNCIAS REGULADORAS

A estrutura administrativa pelo qual o Estado moderno foi fundado tornou-se incapaz

de atender às demandas da sociedade e acabou por sofrer significativas modificações, dentre

essas a legitimidade do poder público não ficou mais limitada apenas ao sistema de

representatividade política, de viés estritamente formal.

O conceito de soberania absoluta do Estado veio à falência, e isso ocorreu devido ao

processo de globalização econômica e cultural e a afirmação jurídica dos direitos humanos em

nível supranacional. Verificou-se que interesses e demandas externas influenciam

profundamente as decisões que o poder estatal deve tomar em âmbito interno.

As Agências Reguladoras Independentes apareceram para fins de atender os anseios

dessa sociedade que busca uma nova postura do poder público no sentido de atuação

decisória. Um Estado que caminha rumo à sua republicização, compatibilizando seus

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procedimentos com o regime democrático, possibilitando a participação das ramificadas e

diferentes entidades representativas de interesses públicos e, ao mesmo tempo, protegendo os

interesses difusos ou hipossuficientes, como por exemplo, os direitos dos consumidores, a

defesa do meio-ambiente, a prevalência da livre-iniciativa e da livre-concorrência na ordem

econômica, etc.

Demonstra-se, portanto, a tendência do Estado em reduzir sua interferência direta no

mercado, ou seja, sua interferência enquanto Estado empresário e, ao mesmo tempo,

fortalecer sua intervenção indireta sobre o domínio econômico por meio da regulação e

fiscalização dos fatos que ocorrem nesta esfera, mediando os interesses dos indivíduos

participantes do setor regulado e protegendo os interesses daqueles que, embora dele não

sejam participantes diretos, sofrem o impacto das diretrizes albergadas neste ou naquele nicho

econômico.

Nesse sentido, as Agências Reguladoras atuam e realizam, como o próprio nome

supõe, as funções de regulação do mercado e proteção dos interesses sociais difusos, na

medida em que, por meio delas, o Estado se aproxima dos setores regulados com maior

precisão, especializando-se em dado setor da ordem econômica (por exemplo, o setor de

telecomunicações, de energia elétrica, da saúde, e assim por diante), o que, a toda evidência,

pode oferecer à sociedade, desde que se criem mecanismos eficazes de participação, a

oportunidade de acesso ao ambiente decisório do Estado, democratizando-o e republicizando-

o. (SANTOS JUNIOR, 2009, p. 50)

Esse processo de republicização, não tem nada a ver com a negação da democracia

porque a formulação da política pública continua a cargo dos poderes políticos, cujas

autoridades foram legitimadas pelo voto popular para desempenharem esta tarefa, não

havendo, portanto, uma substituição das autoridades políticas pelas autoridades

administrativas. Assim, não se viola o princípio da democracia ao se estabelecer que, uma vez

formulada a política pública, ela deva ser executada por técnicos que representem o

conhecimento sobre aquele segmento. (SILVA, 2006, p. 45)

O doutrinador Marçal Justen Filho (2002, p. 51) descreve que o exercício das funções

regulatórias só pode se desenvolver de forma plena se este não partir das “estruturas estatais

tradicionais”, ou seja, demanda a tomada de novas estruturas, das agências reguladoras, de

autonomia e independência perante o poder público.

Entretanto, a autonomia qualquer entidade da Administração Pública indireta tem.

Mesmo as empresas estatais conservam um grau de autonomia, ainda que abrandada pela lei

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de responsabilidade fiscal. Então, a autonomia não é o elemento característico de uma agência

reguladora.

Sem dúvida que o elemento diferenciador está na independência que as agências

reguladoras possuem em relação aos demais Poderes do Estado, cujo interesse esta na

importância de se proteger de influências político-partidárias que se revelem nocivas ao bom

andamento do setor o qual esta sendo regulado. Assim, para que as agências reguladoras

exerçam com isonomia e eqüidade as suas atribuições, que, em razão da complexidade e da

tecnicidade dos seus atos, podem contrariar uma gama de interesses particulares, previram-se

determinadas garantias para que os seus objetivos sejam efetivamente alcançados. (SILVA,

2006, p. 39)

Ainda sobre a independência das agências reguladoras, o doutrinador Luis Roberto

Barroso descreve que a mesma é necessária para que as agências possam desempenhar suas

atribuições, uma vez que se essas (agências reguladoras) estivessem sob o crivo e

interferência do poder público, falhariam em sua missão de buscar a melhoria da qualidade

dos serviços públicos. Vale mencionar também que tal independência deve ser tanto no

âmbito das decisões político-administrativas quanto da capacidade financeira das agências.

(BARROSO, 2002, p. 121).

As agências se mostram mais próximas do contexto específico do setor do mercado

que regulam e por terem maior capacidade técnica podem atender de forma mais satisfatória e

mais ágil os interesses provenientes da sociedade. Além de que, as agências possibilitam uma

maior participação dos envolvidos no processo de aferição das prioridades para tomadas de

decisões políticas.

Para dar um exemplo, pode-se citar o caso da ANAC (Agência Nacional de Aviação

Civil) que, além de mediar os interesses das empresas prestadoras de serviço, deve também

regular o setor da aviação civil sempre procurando defender os interesses dos usuários,

mesmo aqueles usuários em potencial, que nunca foram, efetivamente, passageiros, mas que

têm garantido o direito ao acesso a tal serviço. (SANTOS JUNIOR, 2009, p. 51)

Para cumprir suas obrigações sem a interferência política, a Agência Reguladora

necessita, portanto, de algumas perspectivas distintas de autonomia. A primeira delas é a

autonomia administrativa, sendo esta aquela que determina que a investidura do cargo deve se

dar por tempo certo de seus dirigentes, ou seja, que eles somente podem ser afastados do

cargo que ocupam antes do vencimento do prazo previsto mediante o cometimento de falta

grave, apurada esta em processo administrativo ou judicial, e desde que observados o

contraditório e a ampla defesa.Vale mencionar também, que essa investidura por tempo certo

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dos dirigentes não podem ser coincidentes entre si, e, muito menos, com o ciclo eleitoral.

Além de que o cargo deve ser ocupado por técnicos especializados no setor e existe todo um

processo de aprovação, desde a nomeação pelo chefe do Poder Executivo até a argüição

pública no Senado Federal.

O segundo fator importante de autonomia da Agência Reguladora é a de ordem

financeira, da qual decorre de sua função regulatória (fiscalizar) a qual, por obvio, não se dá

de forma gratuita, ficando as empresas atuantes em determinado setor sob-regulação estatal

sujeitas à cobrança de uma taxa referente ao serviço prestado, a chamada “taxa de

fiscalização”, cujos dividendos se incorporam diretamente ao patrimônio da Agência

Reguladora.

E por ultimo a autonomia técnica da Agência, que caracteriza pelo fato da

impossibilidade de se interpor recurso hierárquico impróprio contra as decisões emanadas dos

seus dirigentes. Essa restrição é oriunda do exercício de sua função quase judicial, que

determina que o Conselho diretor das próprias agências funcione como última instância

administrativa na solução de conflitos de interesses entre o delegante, o delegatário e os

usuários de um determinado serviço.

Entretanto, é importante chamar a atenção para o fato de que a agência reguladora não

é um quarto poder, mas sim um ente integrante da própria Administração Pública indireta e,

portanto, submetida aos comandos do administrador, com a vantagem de estar protegida

contra interferências de ordem política sobre a sua atuação, que deve ser técnica.

Por ter natureza autárquica, as Agências Reguladoras estão também sujeitas a algumas

formas de controle comuns às autarquias. Dentre eles podemos destacar o sistema de freios e

contrapesos, surgido em substituição à separação estanque de tarefas (executivas, legislativas

e judicantes), o controle exercido por um Poder sobre o outro tem sido um importante

elemento inibidor do seu exercício arbitrário por quem lhe seja titular.

Floriano Marques Neto (2002, p. 207), a respeito de tal mister, descreve em seu livro

“para que tal permeabilidade se torne possível faz-se necessária a introdução de instrumentos

jurídicos voltados à transparência da atividade regulatória”.

Assim, três instrumentos principais auxiliam na formatação deste exercício para dar

maior transparência. São eles: i) a criação de mecanismos que possibilitem aos indivíduos

participar com maior efetividade do processo regulatório, por exemplo, as consultas públicas

e a publicidade dos atos. A adoção de tais medidas evita que interesses especiais e particulares

tomem para si o exercício do poder político; ii) o estabelecimento de procedimentos a serem

seguidos pelas entidades reguladoras para que se tenham bem delimitados os meios pelo quais

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elas exercerão o poder decisório, afastando, desta feita, a arbitrariedade e iii) a formulação de

mecanismos de controle das atividades das agências reguladoras, inclusive com a obrigação

de prestações periódicas de contas aos poderes legislativo e executivo e a possibilidade de se

responsabilizar pessoalmente os sujeitos que estiverem à frente do agir regulatório.

No caso do Brasil, as agências reguladoras foram instituídas sob a forma de autarquias

especiais. Só pela condição de autarquia, pode-se concluir desde já que possuem

personalidade jurídica própria e de direito público, “do que deriva titularidade de patrimônio

jurídico autônomo, constituindo-se em centro de imputação de direitos e deveres”. (JUSTEN

FILHO, 2002, p. 387).

Porém, quanto à expressão ‘especial’ a mesma reporta à idéia de independência das

autarquias com relação à tomada de decisões e a pratica de atos incluídos no rol de suas

competências. Evidente que, não haveria de se falar em agências reguladoras independentes

se seus atos tivessem que passar pelo crivo de outro ente componente da administração

pública ou dele dependesse de ratificação. Apesar de se sujeitarem ao controle do Ministério a

que se vinculam, “como autarquias de regime especial, seus atos não podem ser revistos ou

alterados pelo poder Executivo” (DIPIETRO apud JUSTEN FILHO, 2002, p. 391).

Como já analisado acima, as agências reguladoras possuem garantia legal de maior

independência administrativa em sua atuação, sendo que sua função primordial é a de regular

os serviços públicos concedidos à iniciativa privada ou as atividades econômicas que,

conquanto próprias da iniciativa privada, assumem grande relevância no contexto social. Esta

função reguladora liga-se, principalmente, ao poder normativo de que somente as agências

reguladoras são dotadas. (SANTOS JUNIOR, 2009, p. 62)

As agências reguladoras de atividades econômicas em sentido estrito têm campo de

atuação mais delimitado do que as agências reguladoras de serviços públicos, e, portanto se

diferenciam na medida em que a função regulatória da primeira corresponde mais em

“fiscalizar o cumprimento das normas editadas pelo Poder Legislativo”.

As agências reguladoras de atividades econômicas em sentido estrito atuam em

ambientes próprios da iniciativa privada e, portanto, estão vinculadas ao princípio da livre

iniciativa, da legalidade e aos demais princípios da ordem econômica nacional, conforme

leciona Fernando Quadros da Silva (2007, p. 111). São exemplos desta modalidade de

agências a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), a ANA (Agência Nacional

das Águas) e a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar).

Já a atividade reguladora de serviços públicos concedidos a empresas tem uma

abrangência maior do que a mera fiscalização da atividade econômica, uma vez que sua

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obrigação vem contida no Art. 175 da Constituição onde prescreve que é dever do Poder

Público, a prestação adequada dos serviços públicos. Trata-se de serviços estabelecidos pela

própria Constituição Federal como de responsabilidade do Estado, reservando a possibilidade

de tais serviços serem prestados por instituições privadas por meio da concessão ou da

permissão. Como exemplos de agências reguladoras de serviço público destacam-se a

ANATEL, ANEEL, ANTT, ANAC.

A instituição do Estado Democrático de Direito reclama a efetiva participação dos

diferentes setores da sociedade sob pena de padecer de legitimidade e não cumprir o que fora

determinado na Constituição Federal da República. Assim, compete aos estudiosos do Direito

a missão de estudar e analisar com intuito de aperfeiçoar os mecanismos que possibilitam a

participação popular nas decisões e caminhos a serem tomados pelas agências reguladoras

brasileiras, a fim de que as mesmas possibilitem a ampliação da eficiência estatal com a

melhoria na qualidade da prestação de serviços públicos ou de interesses econômicos.

CONCLUSÃO

A idéia de separação entre público e privado está ligada diretamente com a definição

de até onde é o dever do Estado intervir. Não há duvida de que a atuação estatal deve se

pautar por limites que assegurem tanto a autonomia privada dos indivíduos, denunciando

quais os interesses em que o Estado está legitimado ou não a interferir, como aos interesses

públicos, que fundamentam o exercício estatal homogêneo e que visam proteger todos os

integrantes da sociedade.

A modernidade colocou o Estado em crise relacionada a processos externos e internos.

Quanto aos processos externos, os quais se dão no plano internacional, pode ser citado o

fenômeno da globalização e todas as suas facetas relacionadas ao desenvolvimento do

capitalismo, como a internacionalização da economia, a interligação e interdependência dos

mercados, o acelerado desenvolvimento tecnológico, a afirmação e proteção dos direitos

humanos, etc. Já os movimentos internos remetem ao processo de desagregação social, pelo

qual se pode notar a sociedade dividida em distintos núcleos de interesses em torno dos quais

são criadas estruturas sociais representativas e descentralizadas.

Fora abordado neste trabalho como a globalização econômica, de certa forma,

contribuiu para esse distanciamento entre público/privado, uma vez que as exigências

econômicas externas, demandadas pelos mercados financeiros e conglomerados econômicos

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(interesses privados), impõem barreiras à atuação estatal (interesses públicos), barreiras essas

que, se não respeitadas, levam à cessação dos investimentos no país, a retirada do processo

produtivo privado em seu território, dentre outras práticas “punitivas”, trazendo

conseqüências sociais gravosas ao Estado.

A idéia de soberania absoluta do Estado no exercício do poder decisório está

ultrapassada, apresentando um novo cenário político, econômico e social, em que as

economias nacionais não podem ser controladas autonomamente, de modo a ignorar a íntima

interligação e interdependência entre as economias mundiais. O poder de decisão não é

exercido de forma absoluta pelo Estado, uma vez que, como já mencionado acima, os

mercados econômicos e financeiros participam de forma significativa neste processo

decisório. Daí a importância de organismos internacionais com estruturas próprias capazes de

coordenar a economia, harmonizando as diferentes legislações, resolvendo os conflitos

comerciais, ou seja, garantindo o pleno funcionamento de uma economia globalizada.

Os interesses muitas vezes conflitantes que brotam da sociedade fragmentada e a idéia

de interesse público nesta égide do Estado Moderno, não permitem que o Estado exerça de

forma absoluta e concentrada o poder decisório. Assim, o Estado deve abrir o processo de

decisão para que os indivíduos dele façam parte, compondo os interesses diversos por meio do

consenso.

E no caso do Estado Democrático de Direito resta que tais espaços decisórios sejam

formados por procedimentos democráticos que, por sua vez, contem com a participação ativa

dos cidadãos patrocinados pela formação consensual da opinião pública sem dispositivos

impositivos e/ou coercitivos da dimensão estatal. Nesse sentido, acompanhando Habermas é

possível afirmar que “as instituições do Estado de direito tiram sua energia da relação

comunicativa de esfera públicas políticas e tradições liberais que o sistema jurídico não

consegue reproduzir por suas próprias forças”. (PINZANI, 2009, p. 140).

Para que o Estado adote esse novo padrão de mudança no processo decisório, o

mesmo deve passar por um processo de Republicização, visando oferecer à sociedade

maneiras de participar do processo decisório de forma plena, mediando os distintos interesses

que se conflitam e implementando os interesses hipossuficientes e difusos. Para isso, deve-se

impedir que interesses particulares venham a capturar as estruturas políticas responsáveis pelo

exercício do poder decisório, apropriando-se de bens e oportunidades que pertencem a todos

os cidadãos.

A atuação estatal republicizada é uma intervenção indireta dobre o domínio

econômico mediante a regulamentação, a fiscalização, o monitoramento, etc., e não uma

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interferência direta, como um verdadeiro ator econômico, papel este que deve se restringir à

iniciativa privada, inclusive na prestação de serviços públicos, o que não significa dizer que o

Estado deve se ausentar. Portanto, como dito, cabe ao Estado a importante missão, por meio

da intervenção indireta, de proteger e promover os interesses públicos dos hipossuficientes.

Neste passo, as agências reguladoras independentes vêm atender à demanda social por

uma nova postura do poder público. No caso brasileiro, as agências reguladoras são

instrumento estatal que visam acompanhar as mudanças processadas no contexto econômico

nacional e internacional, exemplificando a imperativa mudança do Estado contemporâneo

frente à globalização.

Como autarquias especiais, as agência reguladoras precisam desempenhar, com

maestria, as funções atribuídas pelas respectivas leis instituidoras, atuando na harmonização

dos diferentes interesses regulados, no sentido de evitar a ameaça de captura dos

especuladores econômicos, uma vez que influenciam, de forma decisiva, na atração de

investimentos, na expansão da oferta, no sensível aperfeiçoamento das atividades reguladas e

no equacionamento das inevitáveis divergências capazes de comprometerem o interesse

publico e o desenvolvimento perseguido.

Apesar de não pretender apresentar um caráter conclusivo e definitivo, este trabalho

buscou abordar o contexto em que se formaram as agências reguladoras, indicando seus

intérpretes do direito e a importante tarefa de estudar e aperfeiçoar as estruturas que se

formaram no sentido de estimular ou promover, se necessário, a legitimidade democrática das

agências reguladoras brasileiras, as quais devem atuar de forma totalmente independente e

sensível aos novos desafios sociais que lhe são apresentados.

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