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MESTRADO EM ESTUDOS LITERÁRIOS, CULTURAIS E INTERARTES RAMO DE ESTUDOS ROMÂNICOS E CLÁSSICOS: LITERATURA PORTUGUESA Relações de poder em Milan Kundera e Gonçalo M. Tavares Alexandre Costa M 2018

Relações de poder em Milan Kundera e Gonçalo M. Tavares · Relações de poder em Milan Kundera e Gonçalo M. Tavares Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos

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MESTRADO EM ESTUDOS LITERÁRIOS, CULTURAIS E INTERARTES

RAMO DE ESTUDOS ROMÂNICOS E CLÁSSICOS: LITERATURA PORTUGUESA

Relações de poder em Milan Kundera e

Gonçalo M. Tavares

Alexandre Costa

M 2018

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Alexandre Costa

Relações de poder em Milan Kundera e

Gonçalo M. Tavares

Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes,

orientada pelo Professor Doutor Pedro Jorge Santos da Costa Eiras

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

2018

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Alexandre Costa

Relações de poder em Milan Kundera e

Gonçalo M. Tavares

Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes,

orientada pelo Professor Doutor Pedro Jorge Santos da Costa Eiras

Membros do Júri Professora Doutora Pedro Jorge Santos da Costa Eiras

Faculdade de Letras - Universidade do Porto

Professor Doutor Maria de Lurdes Morgado Sampaio

Faculdade de Letras - Universidade do Porto

Professora Doutora Zulmira da Conceição Trigo Gomes Marques Coelho Santos

Faculdade de Letras - Universidade do Porto

Classificação obtida: 19 Valores

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O martelo do investigador não martela os pregos do Mistério do Mundo,

martela os pregos da própria cabeça do investigador.

Gonçalo M. Tavares, Breves Notas sobre a Ciência

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Sumário

I. Introdução: o romance-reflexão e o poder…………………………………..…......8

II. Desenvolvimento: diferentes tipos de poder……………………………………..12

1 - A codificação do castigo: do controlo de pensamento à repressão…………………12

2 - Cárcere e vigilância: do quartel de Kundera ao hospício de Tavares……………….26

3 - Corpo, domínio e castigo: do “corpo simbólico” ao “corpo biológico” ……………37

4 - O poder que define a norma: da desordem à insignificância…………………………51

5 - Da luta pela identidade kunderiana à cidade em guerra de Tavares………………….63

III. Conclusão: a originalidade e as “ideias do mundo” ……………….……………82

Bibliografia……………….……………….……………….……………….………….85

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Declaração de Honra

Declaro que a presente dissertação é de minha autoria e não foi utilizada

previamente noutro curso ou unidade curricular, desta ou de outra instituição. As

referências a outros autores (afirmações, ideias, pensamentos) respeitam

escrupulosamente as regras da atribuição, e encontram-se devidamente indicadas no texto

e nas referências bibliográficas, de acordo com as normas de referenciação. Tenho

consciência de que a prática de plágio e auto-plágio constitui um ilícito académico.

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Agradecimentos

Este documento nunca poderia ter sido elaborado sem a contribuição de inúmeros

professores. Contudo, sinto ter tido particular sorte em me ter cruzado com dois.

À Professora Maria Luísa Malato, pelo voluntarismo, sabedoria e experiência,

absolutamente fulcrais no meu percurso académico.

Ao Professor Pedro Eiras, pela inspiração e eloquência, decisivos na minha

vontade de avançar neste estudo. Num sentido mais prático, pela disponibilidade para

colocar o seu conhecimento ao serviço de todas as fases deste trabalho.

Aos meus pais. À minha família.

Aos meus amigos. À Mafalda.

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Resumo

As obras de Milan Kundera e Gonçalo M. Tavares são comummente tidas, pelos

seus críticos, como exemplos de ficções com forte vertente ensaística, ou seja,

relembrando o termo cunhado por Vergílio Ferreira, “romance-reflexão”. São também

montra de múltiplas relações de poder entre personagens e instituições, se por poder

entendermos a capacidade de uma entidade estabelecer controlo sobre a outra.

Isto acontece com recurso a diversos cenários narrativos: são temas recorrentes as

sociedades totalitárias, as guerras, mas também as instituições carcerárias. Em qualquer

destes contextos é comum a reflexão sobre o corpo e a identidade, e a forma como ambos

se relacionam com o conceito de norma, que assume papel decisivo na caracterização de

ambos.

Nesse sentido, esta dissertação explora a forma como as relações de poder surgem

nas obras destes dois autores.

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Abstract

Milan Kundera’s and Gonçalo M. Tavares’ works are commonly considered, by

their critics, as examples of fictions with a strong essayistic component, recalling Vergílio

Ferreira’s concept, “reflection-novel”. They also show multiple relations of power

between characters and institutions, if by power we mean the capacity of an entity to take

control over another.

This happens resorting to multiple narrative scenarios: are recurrent scenarios like

totalitarian societies, wars, but also imprisonment institutions. In any of these contexts

are common the reflections about body and identity, and the way both relate to the concept

of normality, that has a decisive role on their characterization.

In this sense, this dissertation explores the way relations of power appear in the

works of those two writers.

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I. Introdução: o romance-reflexão e o poder

Antes de investigar diferenças e pontos de contato, importa explicar a escolha de

dois autores de gerações e países diferentes para um estudo comparatista.

De um modo geral, unem-nos os géneros romanesco e ensaístico. Kundera escreve

romances, ensaio, e por vezes teatro. Tavares escreve romances e, embora nos

debrucemos fundamentalmente sobre a sua obra romanesca e ensaística, é curiosa a forma

como algumas obras parecem mais difíceis de catalogar. Nas palavras deste autor: “os

géneros literários podem ser muito limitadores do trabalho (...) se uma pessoa se sentar a

pensar «agora vou escrever um conto» ou «agora vou escrever um romance» é como se

sentasse com toda a tradição e com toda a formalização do que é um romance” (Tavares

2010c).

De facto, uma grande parte das obras de Tavares não parece ter fácil atribuição de

género. Por exemplo, quando questionado sobre O Atlas do Corpo e da Imaginação,

responde que “é um ensaio ficcional. Tenho um fascínio pelo «e» e um grande

desinteresse pelo «ou»” (Tavares 2013b). Se existem ensaios ficcionais, nas suas

palavras, talvez possam também existir ficções ensaísticas, ou seja, ficções cujo

desenrolar da narrativa sirva para incitar a reflexões sobre os temas em causa.

Estes contornos híbridos do género são fáceis de identificar também na obra

kunderiana, em que os acontecimentos da narrativa surgem, quase sempre, alternados

com reflexões do narrador. Diversas situações semelhantes serão citadas nas próximas

páginas, mas esta estrutura, em que a narrativa é constantemente comentada pelo narrador

heterodiegético, é transversal a quase toda a obra de Kundera. Contudo, quando

confrontado com a relação entre a sua forma de fazer romance e a filosofia, Kundera

refuta-a, alegando que “a filosofia desenvolve a sua reflexão num espaço abstracto, sem

personagens, sem situações” (1986: 28). Ou seja, o narrador kunderiano reflete com base

na narrativa, com “personagens e situações”, e não “num espaço abstrato”.

Luís Mourão também defende a existência de um papel reflexivo nos romances

tavarianos:

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Eles [romances de Gonçalo M. Tavares] decorrem de um lugar dentro dessa autoria, um lugar onde

se pensa sob forma narrativa uma temática radicalmente diferente daquelas outras que já pertencem

ao território do autor. E se insisto neste aspeto é porque ele pode revelar o quanto o romance-

reflexão, hoje, vive um momento diferente do seu regime de significação. (2011: 49)

Segundo Mourão, os romances de Tavares acontecem “num lugar onde se pensa

sob forma narrativa”. Tavares aclara a sua posição no panorama do “romance-reflexão”:

Tenho muito respeito pela filosofia e pelos filósofos (...), mas precisamente por esse respeito tenho

de dizer que é evidente que não sou um filósofo. Penso que a filosofia e as ideias são muito

importantes para a escrita, não gosto de livros que não pensam e não nos fazem pensar (...) penso

que a literatura ainda é, e deve ser cada vez mais o espaço por excelência do pensamento, da

reflexão, enfim, da lucidez. E não precisa de ser pensamento filosófico, nada disso. Através de

uma história podemos fazer pensar. Mas claro que não é uma historieta qualquer (2007b)

Também Tavares parece, então, demarcar os seus romances da filosofia, ainda que

não se identifique com “livros que não pensam e não fazem pensar”. Talvez não ser “uma

historieta qualquer” implique uma procura reflexiva, uma tentativa de “fazer pensar”.

Kundera parece corroborar estas afirmações:

Sejamos mais precisos: todos os romances de todos os tempos se debruçam sobre o enigma do eu.

Logo que se cria um ser imaginário, um personagem, está-se automaticamente confrontado com a

pergunta: o que é o eu? (…) É uma das tais perguntas fundamentais sobre as quais o romance,

enquanto tal, se baseia. (1986: 37).

A associação de ambos àquilo que Mourão denomina de “romance-reflexão”

parece evidente. Vergílio Ferreira sugere este conceito em Espaço do Invisível: “dois tipos

de romance, com efeito, eu julgo deverem distinguir-se: o «romance-espectáculo» e o

«romance-problema»” (1987: 20). Ou seja:

O primeiro [romance-espectáculo] confronta-se particularmente com as coisas e pessoas, o

segundo [romance-problema] sobretudo com as ideias. Do primeiro fica-nos em saldo uma

imagem do mundo e da vida; do segundo, uma questão para reflectir (...) Em todo o caso, a

distância é infinita, sob este aspecto, entre um romance de Balzac e um romance de Kafka (idem:

28).

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Ainda que as entrevistas sejam epitextos, e as ideias nelas presentes não tenham

de existir nas obras do autor (cf. “às vezes é interessante não saber nada sobre o percurso

do autor de um livro para não haver contaminação do percurso (…) pessoal” (Tavares

2010b)), as próprias palavras de Kundera e Tavares parecem destacar a importância da

vertente ensaística para a sua arte romanesca. Aliás, quando Tavares fala em “historieta”,

parece mesmo recuperar a expressão de Vergílio Ferreira:

Se a Europa está velha nós reconhecemos que desse modo a não seduzem já as expressões fáceis

da narrativa, da historieta, com os seus lances de sentimentalidade, do fácil imaginário, do enredo

estimulante (...) além de que o desgaste é uma lei inflexível para tudo o que é da vida humana, (...)

o que nos fala à reflexão estimula-nos muito mais do que o que fala simplesmente ao interesse

pelo espectáculo (Ferreira 1980: 23).

A historieta, para Ferreira, consiste em “expressões fáceis da narrativa”, num

“fácil imaginário”, ou seja, algo que facilmente associaríamos ao “romance-espetáculo”,

como é categorizado em Espaço do Invisível. A ligação de Kundera com esta forma de

romance parece presente em diversas análises ao trabalho do escritor checo. Por exemplo,

Mohsen Masoom escreve que “in his mature works of fiction, Kundera creates an

independent, self-contained world, which is constantly analyzed and questioned from a

philosophical point of view” (2010: 235). Essa constante análise do ponto de vista

filosófico parece fundamental para o entendimento da obra de Kundera, e coloca a sua

obra definitivamente naquilo que Ferreira defende ser o “romance-reflexão”, longe das

“historietas” e das “expressões fáceis da narrativa”.

O facto de estas narrativas terem uma componente de reflexão sobre a própria

ação torna a análise do crítico diferente da que pode ser feita a outras obras: antes de nós,

já o próprio narrador reflete sobre a ação. Ainda que seja o narrador, heterodiegético e

distante, e refletir sobre a narrativa, dissociar a ação da consequente reflexão é ignorar

pistas úteis para a compreensão da ação, e dar-lhes demasiada ênfase pode resultar numa

redução das possibilidades de análise do texto.

Esta relação entre as obras dos autores, na forma como o enredo é dependente da

reflexão, parece uma evidência. Ainda que os cenários sejam diferentes, em especial na

forma como Kundera explicita locais e datas, sendo Tavares é mais evasivo a esse nível,

os temas predominantes nas obras dos dois autores têm algumas semelhanças. São

comuns, por exemplo, os cenários de guerra, ou a ação de sistemas censórios.

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Neste estudo, analisar-se-á a forma como ambos os autores tratam o tema do poder

nas suas obras, as diferenças e semelhanças, e como isto se relaciona com algumas das

suas narrativas. Importa, portanto, definir o conceito de poder, para identificá-lo nas

narrativas em causa.

Em “The conception of power: reconsidered”, do sociólogo americano Robert

Michael Regoli, são-nos apresentadas as dificuldades inerentes à definição do conceito:

“the more social scientists attempt to define power, the more complex it is found to be

“power is the ability to establish control over another” (Regoli 1974: 157). Isto significa,

portanto, que existem diversas definições possíveis. Entre algumas delas, destaquemos a

que é atribuída a Edward C. Banfield, em Political Influence: A New Theory of Urban

Politics: “power is the ability to establish control over another” (Banfield, apud Regoli

1974: 158). Na generalidade da obra de Kundera e Tavares, o estabelecimento de controlo

de uma entidade por outra é recorrente: do poder estatal ao poder emocional, de situações

coletivas a grupais, a presença do poder na obra dos dois autores parece uma evidência.

Não é este, por certo, o único tema que cruza a obra dos dois romancistas.

Contudo, pareceu ser esta a hipótese que oferecia possibilidades hermenêuticas mais

vastas. Tal como a definição de poder citada, parece suficientemente objetiva, mas ainda

assim generalista ao ponto de permitir a relação com alguns dos temas mais frequentes

nas obras dos dois autores. Nesse sentido foram estruturados os temas trabalhados ao

longo das seguintes páginas: o castigo, a cárcere, o corpo, a norma, e a identidade. Ainda

que cada um destes temas tenha âmbito próprio, oferecendo a possibilidade de uma mais

prolongada análise, todos são desenvolvidos dentro do contexto do poder.

Procura-se, nesse sentido, estudar de que forma o poder, as suas relações e

influências aparecem como elemento estruturante das obras ensaísticas e romanescas de

ambos os autores. Procura-se que o texto aclare essas relações, explorando possibilidades

de proximidade e afastamento entre Kundera e Tavares.

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II. Desenvolvimento: diferentes tipos de poder

2.1 – A codificação do castigo: do controlo de pensamento à

repressão

Michael Foucault enuncia, em Vigiar e Punir, uma nova era para a justiça penal a

partir do século XVIII, falando do “projecto ou redação de códigos «modernos»: Rússia,

1769; Prússia, 1780; Pensilvânia e Toscana, 1786; Áustria, 1788; França, 1791, Ano IV,

1808 e 1810” (1975: 11): trata-se do fim das punições eminentemente físicas. O corpo

vai progressivamente saindo do foco punitivo: é dito que “desapareceu o corpo como alvo

principal da repressão penal” (idem: 12).

Esta mudança ganha reforçada importância porque a diferença passa, então, pela

tipologia do castigo, não na gravidade que lhe é imposto. Trocam-se fogueiras, chicotes

e apedrejamentos por situações em que “o sofrimento físico, a dor do corpo, não são mais

os elementos constitutivos da pena” (ibidem: 14). Não se trocou meramente a fogueira

pelo empalamento, ou a forca pela cadeira elétrica. É Foucault quem diz que “desaparece,

em princípios do século XIX, o grande espectáculo a punição física: o corpo supliciado é

escamoteado; exclui-se do castigo a encenação da dor. Penetramos na época da

sobriedade punitiva” (16).

Nos lugares citados no primeiro parágrafo, criou-se foco numa “nova ilegalidade”;

fez-se “derivar a ilegalidade do ataque aos corpos para o desvio mais ou menos direto dos

bens” (65), e isso parece ter sido decisivo para esta mudança de paradigma. Assim, surge

a necessidade de encontrar um castigo que se adeque ao delito numa perspetiva moral e,

simultaneamente, numa perspetiva de correção. Como diz uma das definições de poder

citadas por Michael Regoli, “power is conceived of as a relationship between two actors,

where one actor is able to bring about a change in the second actor” (Goldhammer e Shils,

citados por Regoli 1974: 159). Ou seja, se determinados comportamentos são

transgressores, necessitam de mudança para serem integrados na ordem vigente. Nesse

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sentido, o “one actor”, executor do poder, terá de encontrar o melhor caminho para

transformar o comportamento do “second actor”, indivíduo punido.

Ainda assim, antes da atribuição de um castigo, importa definir aquilo que

constitui, afinal, um comportamento transgressor. Como diz Foucault, o estabelecimento

de “leis fixas, constantes, determinadas da maneira mais precisa, de modo que os súditos

saibam a que se expõem, e que os magistrados não sejam mais do que o órgão da lei”

(1976: 75), é fundamental para estabelecimento de um sistema penal.

Assiste-se, então, a uma codificação mais nítida do castigo, que impeça que este

seja aplicado de forma diferente, em casos semelhantes. Foucault avança com a

possibilidade de um “tribunal [que] não é a expressão natural da justiça popular mas, pelo

contrário, tem por função histórica reduzi-la, dominá-la, sufocá-la, reinscrevendo-a no

interior de instituições características do aparelho de Estado” (1979: 13). Também

Hannah Arendt diz que “o poder só nasce quando as pessoas agem em conjunto, e não

quando as pessoas se fortalecem individualmente” (1991: 35). A transgressão deixa de

colocar o objeto de punição contra meras vozes discordantes, individuais, cuja força é

questionável, para o colocar contra um corpo social. No fundo, ficam “de um só lado

todas as forças, todo o poder, todos os direitos” (Foucault 1976: 75) tornam o punido num

inimigo comum.

Entende-se, então, que ao subscrever um pacto (que, quando estabelecido, pune

um indivíduo sem rosto), pune-se um espectro, uma possibilidade de crime. O corpo do

criminoso deixa de ser o mais relevante, e a punição lembra menos a vingança: procura-

se antes que o castigado seja punido com base num código bem definido.

Ou seja: punir implica que o delito seja, antes de mais, “categorizado” entre outros

delitos, sendo-lhe previsto um castigo adequado. Simultaneamente, se encararmos o

castigo como forma de prevenção, ou forma de desencorajar futuros crimes, a esperança

da impunidade cresce à medida que qualquer ato passa impune. Mais do que punir a

disrupção à norma social, procuram-se desencorajar candidatos à sua repetição.

Talvez possamos, então, entender a punição como instrumento normativo. Se se

pune para erradicar comportamentos, também se pune para normalizar outros. Nas

palavras de Tavares, “o cidadão Bom é o cidadão normal” (2013a: 91). Definido o

comportamento “Bom”, importa fazê-lo norma, cortando os excessos. Então, “a

extravagância é intolerável ou pelo menos mal vista; a cidade é feita dos seus habitantes

e o seu normal funcionamento depende do normal funcionamento dos seus habitantes”

(idem). O código penal serve, portanto, como veículo de normalização social. Mais do

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que ostracizar, premeia-se. Mais do que punir, valoriza-se. Existem comportamentos que,

por serem contrários aos punidos, talvez possam ser valorizados:

Voltemos a Foucault, que diz que “a verdade não existe fora do poder ou sem

poder” (1979: 10). A verdade parece ser produto de múltiplas coerções codificadas,

combinadas e posteriormente convertidas em leis:

A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos

regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de

verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros (ibidem).

A verdade é, então, cultural, é uma aquisição posterior. Serve como forma de

categorizar acontecimentos: verdadeiro e falso, bom ou mau. Existirá, então, liberdade

para inverter o sistema? Ou seja: em sociedades com sistemas culturais próximos ou,

arrisquemos, com “verdades próximas”, haverá a possibilidade de sobreviver num

sistema de crenças contrário? Diz também Tavares que “a Verdade é uma velocidade. A

Verdade passa por encontrar a velocidade certa da realidade, passa por colocar a realidade

a avançar a uma certa velocidade” (2013a: 121).

Talvez o sistema punitivo seja uma forma de ajustar a “velocidade”. Depois de

estabelecida a “velocidade” certa, passar-lhe os limites em qualquer um dos sentidos

oferece direito a exclusão. Uma exclusão que puna o infrator mas que, simultaneamente,

permita reafirmar a exposição pública da “velocidade certa”.

As ditaduras são, provavelmente, a exposição mais evidente dessa alteração

consciente de “velocidade”. Numa retrospetiva história e cultural percebemos, de forma

evidente, a forma como mudam os conceitos de certo e errado, de valorizado e punido: a

“velocidade” certa e errada, de que fala Tavares. Contudo, quando dentro desse mesmo

mundo existem “velocidades” fraturantes, os responsáveis pela imposição da

“velocidade” certa podem tomar posições de força, como veremos adiante. Arendt,

falando sobre organizações totalitárias, refere que:

Visam dar às mentiras propagandísticas do movimento tecidas em torno de uma ficção central – a

conspiração dos judeus, dos trotskistas, das 300 famílias, etc. –, realidade operante e a construir,

mesmo em circunstâncias não totalitárias, uma sociedade cujos membros ajam e reajam segundo

as regras de um mundo fictício. (1958: 481)

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Talvez essa “ficção central”, de que fala Arendt, não seja mais do que uma

“velocidade” imposta pelos governos autoritários. Essa “velocidade” deverá guiar

comportamentos e crenças dos que a integram. Contudo, enuncia o dito popular que “cada

cabeça, sua sentença”; ou, pela lógica tavariana, que falava em “velocidade”, cada

indivíduo, conforme o seu sistema de crenças, poderá ter discursos “de verdade” próprios.

Como reagem as organizações totalitárias às vozes disruptoras da ordem social vigente?

Este é o cenário de parte considerável das narrativas de Kundera. Como se tornará

explícito mais à frente, essas narrativas têm um contexto histórico-social que quase

sempre as caracteriza, quer através de referências espaciais e temporais, quer através de

relatos históricos: falamos de Praga, da segunda metade do século XX. Simultaneamente,

quase sempre as personagens são vítimas do sistema coercivo pela tentativa, mais ou

menos deliberada, mais ou menos pessoal, de romper com esta “velocidade certa”.

Como diz Arendt, “a estabilidade do regime totalitário depende do isolamento do

mundo fictício criado pelo movimento em relação ao mundo exterior” (idem 1958: 581).

Ou seja, vozes discordantes, que se façam ouvir rompendo a narrativa instituída, são

ameaçadoras para a homeostasia de um regime totalitário, visto que “a estabilidade do

regime” depende desse isolamento.

The political condition has changed them so much that they are unable to recognise each other.

This is the dehumanising impact of the forces of history and politics on the human existence under

which man loses his identity and individuality. Depriving the individual of his identity is peculiar

to totalitarian power. How power deprives individual of identity and freedom constitutes

Kundera’s fundamental thematic obsession. (Asif 2014: 172)

Se este “depriving the individual of his identity” em contextos totalitários e o

“mundo fictício” de que fala Arendt surgem amiúde na obra de Kundera, na de Tavares,

talvez pela falta de conotação política dos textos, ou por a biografia do autor não ter

historial direto de repressão e exílio, a informação surge de forma menos evidente.

Contudo, em Jerusalém, terceiro livro da tetralogia O Reino, parte da ação parece remeter

para alguns destes temas, que Muhammad Asif, em A Study of the Theme of Power in the

Works of Franz Kafka and Milan Kundera, categoriza como kunderianos.

Jerusalém inicia-se com a história de Mylia, uma mulher que tenta entrar numa

igreja durante a madrugada, sendo depois descrita a sua relação com Theodor Busbeck,

médico e seu ex-marido. A dissolução de traços identitários é um dos temas abordados.

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Falando sobre coveiros, que exerciam funções num cemitério, diz Tavares: “Eram dois

homens vestidos com o mesmo uniforme, o que revelava de imediato ordem e não crime”

(2005: 25). O uniforme é apresentado como um instrumento do poder. Fragmenta

vínculos identitários, anula particularidades, torna o sujeito num instrumento raso.

Mylia é apresentada como doente psiquiátrica. Aos dezoito anos, os pais levaram-

na a um psiquiatra, Busbeck, que viria a tornar-se seu marido. Além de ficar desde logo

evidente um poder institucional inerente à posição do médico perante a paciente (atente-

se nas palavras do próprio Theodor: “O médico deve estar a sós com os seus pacientes

(idem: 33)), o marido parece, nos anos vindouros, exercer uma espécie de custódia sobre

a mulher, que o leva a ter domínio sobre os seus destinos: “Theodor decidiu, precisamente

no dia 31 de Dezembro, no oitavo ano em que viviam juntos, internar a sua esposa, Mylia,

no piso dois do Hospício Georg Rosenberg, o mais conceituado da cidade” (63).

Ainda que se possa refletir sobre a possibilidade de Busbeck agir como médico ou

marido de Mylia, é dito que “Theodor decidiu”, sem que a posição de Mylia sobre o

assunto, ou um diagnóstico particularmente detalhado, tenha sido motivo para este

desfecho. Feita a decisão de Busbeck, psiquiatra e marido, consideravelmente mais velho,

não sobrou opção a Mylia senão ser internada. Parte da ação desenvolve-se, daí em diante,

no Hospício Georg Rosenborg.

Este não é um tema novo: a cárcere é o mote de, por exemplo, em O Alienista, de

Machado de Assis, a ação é um manicómio, tal como em Jerusalém. Escrito com mais de

um século de diferença, a narrativa passa-se também num manicómio: “a loucura, objeto

dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar

que é um continente” (Assis 1882: 28). Noutro exemplo, em Catcher in the Rye, de J. D.

Salinger, passa-se internato de um colégio. Aí o espaço é de emoções negativas: “It was

a terrible school, no matter how you looked at it” (1951: 3), diz o protagonista, Holden

Caulfield, antes da fuga da instituição. Em Norwegian Wood, de Haruki Murakami, o

cárcere assume papel inverso, o de um refúgio: “«Just living here is the convalescence»,

she said. A regular routine, exercise, isolation from the outside world, clean air, quiet”

(1987: 105), descreve Reiko, residente no local.

Ainda que a situação carcerária possa existir em diversas instituições de diferente

índole, como hospitais, escolas, conventos, prisões ou manicómios, importa esclarecer a

existência de diversos tipos de “total institutions”. Em Asylums: Essays on the Situation

of Mental Patients and Other Inmates, Erving Goffman aclara:

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The total institutions of our society can be listed in five rough groupings. First, there are institutions

established to care for persons felt to be both incapable and harmless; (…) Second, there are places

established to care for persons felt to be both incapable of looking after themselves and a threat to

the community (…). A third type of total institution is organized to protect the community against

what are felt to be intentional dangers to it, with the welfare of the persons thus sequestered not

the immediate issue (…). Fourth, there are institutions purportedly established the better to pursue

some worklike task and justifying themselves only on these instrumental grounds (…) Finally,

there are those establishments designed as retreats from the world even while often serving also as

training stations for the religious (1961: 5).

Dentro desta categorização, o Georg Rosenberg parece encaixar entre a segunda

e a terceira categorias. Protegem-se os loucos de si próprios ou enclausura-se o perigo

para, cá fora, se poder viver sem problemas? A generalidade dos elementos do hospício

de Jerusalém parece enquadrar-se na segunda categoria. Num dos capítulos, intitulado

“Os loucos”, é feita uma descrição dos comportamentos de alguns dos pacientes. Como

diz Maria Isabel Bordini, em O Poder e a Violência em O Reino, este capítulo “apresenta

uma sucessão de diferentes vozes com marcas discursivas que denotam uma

racionalidade que se distancia da racionalidade convencional” (2014: 68). A generalidade

parece evidenciar alterações comportamentais que, no limite, os tornam desviantes do

padrão comportamental vigente: “Se partir o vidro com a mão vou sentir a mão. Witold

diz: se não sentes a alma parte o vidro com a alma. Ri-se.” (Tavares 2005: 80); ou ainda:

“Estou a varrer o hotel, diz Marksara. O hotel está sujo, tem migalhas e tem homens. E

tem beatas. Estou a varrer o hotel. Está cheio de homens, diz Marksara. E de beatas.”

(idem); “Marko vê televisão o dia inteiro. Desde o momento em que se levanta até se

deitar. Ninguém o consegue tirar dali. Pode acontecer qualquer coisa, diz.” (idem: 81).

Estes “loucos” parecem integrar-se na segunda categoria de Goffman, sem serem,

contudo, um risco para quem os rodeia. São loucos que afirmam categoricamente cenários

pouco prováveis: um chão pejado de beatas e homens, a possibilidade de usar a alma

como forma de partir um vidro, o controlo de novos acontecimentos pela assistência

obsessiva a uma televisão. Loucos que não se deixam convencer da sua impossibilidade

do que afirmam por via argumentativa, que os fizesse acreditar na sua demência. Como

diz Foucault, “não se pode supor, mesmo através do pensamento, que se é louco, pois a

loucura é justamente a condição de impossibilidade do pensamento” (1972: 54).

No George Rosenberg esse procedimento parece ser substancialmente mais

complexo:

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Havia, pois, como que um arredondamento da existência, o que era excessivo transformava-se em

alvo médico: tentava eliminar-se essa coisa, pôr de fora, colocá-la para além desse

arredondamento. Como se cada existência, exactamente como um compartimento, tivesse um

caixote do lixo, um sítio específico, com formas adequadas, para onde se deveriam atirar os

hábitos, acções e, se possível, os pensamentos que não interessavam. Neste caso, que não

interessavam a quem vigiava: os médicos. (Tavares 2005: 104)

Talvez seja a isto que Foucault chama “a eliminação espontânea dos a-sociais”

(1972: 90), ou seja, uma neutralização dos “pensamentos que não interessavam a quem

vigiava”. Existe um código de conduta, o que também é condição sine qua non para a

existência de um código de comportamentos a erradicar.

Mylia parece, ao longo da narrativa, funcionar como uma personagem oprimida

pelo poder, do marido do Hospício (representado pelo responsável, Gomperz) e, em

última instância, pelo consenso entre ambos. É o que acontece quando Mylia se envolve

com outro doente, Ernst Spengler, doente esquizofrénico. A situação é exposta ao marido,

que reúne de emergência com Gomperz. Sobre isto, atentemos nas palavras de Goffman:

There is another form of mortification in total institutions; beginning with admission a kind of

contaminative exposure occurs. On the outside, the individual can hold objects of self-feeling -

such as his body, his immediate actions, his thoughts, and some of his possessions - clear of contact

with alien and contaminating things. But in total institutions these territories of the self are

violated; the boundary that the individual places between his being and the environment is invaded

and the embodiments of self profaned. (1961: 32)

O facto de o envolvimento de Mylia com Ernst ter sido exposto a Busbeck, seu

responsável para o hospício, deixa bem claro o carácter invasivo, a vários níveis, das

instituições carcerárias. Mais do que a perda do espaço corporal e do território próprio,

invadido pela entidade que promove a reclusão, essa entidade parece procurar a perda de

um espaço não-material: o do pensamento. A vigilância não acaba, portanto, nos atos.

Perceber aquilo que eles pensavam era também um objetivo; existia uma atenção excecional em

redor daquilo que nunca se vê: o interior da cabeça. Uma das mais perturbantes perguntas do doutor

Gomperz, a qualquer doente, era precisamente esta: em que está a pensar, meu caro? (Tavares

2005: 104)

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A busca do Georg Rosenberg é, então, a de um controlo holístico. As ações que

importa controlar são provenientes de pensamentos errados: “Gomperz por vezes atrevia-

se mesmo a colocar a um paciente a seguinte questão: sabes em que deves pensar?” (idem:

105). Novamente, recordemos as palavras de Foucault, para quem a verdade não existe

fora das relações de poder: “cada sociedade tem seu regime de verdade, sua «política

geral de verdade»: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como

verdadeiros” (1979: 10). São as relações de poder, e a inibição de certos comportamentos

e ideias que legitimam a verdade instituída, que definem os comportamentos distantes

dos tidos como corretos. Note-se aliás que, umas páginas adiante, as funcionárias do

George Rosenberg são descritas como “portadoras de uma cabeça decente, como se dizia

por ali” (Tavares 2005: 171). Pede-se, então, aos funcionários de um hospital de pessoas

insanas que sejam capazes de manter a sensatez. Até porque, como diz Gonçalo M.

Tavares, a saúde pode bem ser definida como “o estado em que os músculos fazem o que

nós queremos e nós queremos algo de sensato” (idem: 60).

Parece haver poucas descrições de incapacidade muscular dos internados no

Hospício George Rosenberg. Ao longo da narrativa, nenhuma deformidade muscular é

descrita; os internados é que parecem não querer “algo de sensato”. Como refere Bordini,

“o hospício parece estar a serviço da racionalidade, isto é, quer instalar a racionalidade

na mente dos doentes e extrair aquilo que é irracional” (2014: 70), ou ainda, ao serviço

daquilo que Tavares apelida de “velocidade certa”.

Encontramos algumas semelhanças na ação de A Brincadeira, de Kundera. O

romance debutante do checo evidencia, desde logo, parte considerável dos traços

identitários das décadas que se seguiriam. De facto, Kundera escreve num período bem

identificado nas suas narrativas, enquanto Tavares oferece menos pistas sobre o local e o

tempo da narrativa. Os nomes das personagens kunderianas são checos, e as personagens

estão em (ou vão para) Praga, estão em (ou vão para) Paris, cidades com relação óbvia

com a biografia do autor. Neste aspeto, a obra tavariana é diferente:

Há personagens, ainda que secundárias, que passam de romance para romance, movimentando-se

numa mesma cidade que não tem nome nem localização precisa, e ao longo de um tempo em que

os acontecimentos charneira são, nos dois primeiros romances, a ocupação militar dessa cidade, e

no terceiro romance o período imediatamente a seguir a essa ocupação. O (pouco do) quotidiano

que é descrito, mas sobretudo o facto militar da ocupação mais os nomes alemães das personagens,

parecem situar a ação na segunda guerra mundial e num país vizinho da Alemanha. Nos dois

primeiros romances isto é apenas uma hipótese, no terceiro é uma certeza, pois há uma personagem

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que vê fotografias dos campos de concentração nazis, algo de que só tomara conhecimento com o

fim da invasão. (Mourão 2011: 52)

Tavares escreve em locais que podiam existir em diversos pontos da Europa

Ocidental, surgindo a identificação histórica apenas em curtas referências, que nem de

perto chegam para que a narrativa possa ser identificada como romance histórico. Esta

vaga identificação de um tempo e de um lugar não existe em Kundera. Em A Brincadeira,

as referências a locais concretos são constantes. Atente-se: “Pavel partiu esta tarde para

Bratislava, eu amanhã de manhã cedo, de avião, para Brno” (Kundera 1967: 21), ou: “até

aos dezoito anos não conheci outra coisa que não fosse a casa bem ordenada da burguesia

provinciana, e o estudo, (…) quando depois cheguei a Praga, em 49, (…) Praga, a

faculdade, a cidade universitária” (22). Por muito que procuremos fugir aos epitextos de

Kundera, são inegáveis as semelhanças entre as palavras do narrador e a biografia do

checo. A narração autodiegética, ainda que seja Ludvik quem nos fala, relembra

invariavelmente a biografia do checo.

Ludvik, nos seus anos de juventude, apaixona-se por Marketa, colega do aparelho

partidário, descrita como “incapaz de olhar para além de uma coisa” (idem: 37), ou ainda

“inocentemente cândida” (38), como se a candura desculpasse Marketa de ter “um

intelecto que se recusava a funcionar” (ibidem). Esta incapacidade viria, aliás, a ser o

problema que desencadeia o ponto de viragem. O protagonista considera-se como alguém

com uma “funesta tendência para piadas descabidas” (35). Isto justifica a carta que

Ludvik escreve a Marketa, num afastamento temporário para um estágio fora de Praga:

No fundo, bem vistas as coisas, eu estava de acordo com o que Marketa dizia, também eu

acreditava até na revolução na Europa Ocidental; havia só uma coisa que eu não aprovava: que ela

estivesse contente e feliz enquanto eu sentia a falta dela. Então arranjei um postal e (para ferir,

chocar e confundir) escrevi: O optimismo é o ópio do género humano! O espírito são tresanda a

estupidez. Viva Trotski! Ludvik. (38)

Esta brincadeira parece remeter para o título do próprio livro. Os acontecimentos

sucedem-se, a relação com a ingénua rapariga termina e, meses mais tarde, já com Ludvik

de volta a Praga, uma chamada telefónica requisita a sua presença nas instalações do

Partido:

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Mandaram-me sentar. Sentei-me e percebi que as coisas não estavam bem. Os três camaradas, que

eu conhecia bem e com quem costumava conversar alegremente, ostentavam caras impenetráveis;

se é verdade que me tratavam por tu (regra entre camaradas), não era de súbito um tratamento

amigável, mas oficial e ameaçador. (…) encontrava-me portanto frente a três estudantes a tratar-

me por tu, que me fizeram uma primeira pergunta: se eu conhecia Marketa. Disse que sim.

Perguntaram-me se tínhamos trocado correspondência. Disse que sim. Perguntaram-me se me

lembrava do que tinha escrito. Disse que não me lembrava, mas de repente saltou-me diante dos

olhos o postal com o texto provocatório (…) Ah não te lembras?, perguntaram eles. (…) Ela não

te escreveu nada sobre o estágio?, perguntaram eles. É verdade, disse eu, escreveu. E então o quê?

Que gostava daquilo. E mais o quê? (idem: 40)

Relembre-se a inquisição do doutor Gomperz, responsável do hospício de

Jerusalém: “Em que estás a pensar, meu caro?”. A questão ganha um tom inquisitivo, e

salta para conclusões sobre as respostas:

E prosseguiram: Um cínico também pode ser alegre?, perguntou o outro. Não, disse eu. Então quer

dizer que tu não defendes a edificação do socialismo entre nós, disse um terceiro, Mas porquê?,

protestei. Porque para ti o optimismo é o ópio do género humano, rebentaram eles. O quê, o ópio

do género humano, disse eu ainda. Não tens safa. Escreveste isso! Marx chamou à religião o ópio

da humanidade, mas para ti o ópio é o nosso optimismo! (…) Deus do céu, onde é que vocês foram

inventar isso?, protestei. Negas o que escreveste? É natural que o tenha escrito a brincar, já foi há

dois meses, nem me lembro. Podemos refrescar-se a memória, disseram eles, e deram-me a ler o

meu postal (…) Camaradas, era só uma graça, disse eu, e senti que ninguém podia acreditar em

mim. (idem: 41)

Como refere Arendt, “a detenção do poder significa o confronto direto com a

realidade, e o totalitarismo procura constantemente evitar esse confronto” (1958: 519). E

“evitar esse confronto” pode começar numa escala mais pequena: evitando que Ludvik

comunique pensamentos que não defendam “a edificação do socialismo entre os seus

pares”. Até porque “se não lutarem pelo domínio global como objetivo último, correm o

sério risco de perder todo o poder que tenham conquistado” (520). Ou seja, cada opinião

dissonante deve ser perseguida à exaustão, porque é a existência de cada uma que

possibilita um coro de vozes discordantes.

Relembre-se, contudo, que Ludvik se expressava de forma irónica, como é patente

no discurso do narrador autodiegético: “foi no momento, duas linhas para gozar”

(Kundera 1967: 42). O humor parece ter uma relação trémula, então, com o poder, quando

este é obcecado com o controlo das ideias dos oprimidos. Por vezes, o humor afirma sem

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realmente o dizer, e desmente, afirmando-o. Como se controlar todos os pensamentos

acentuasse a dificuldade em lidar com um pensamento que se possa tornar mais difícil de

catalogar. Essa catalogação parece mesmo ser o objetivo final, quando Marketa, a

destinatária da carta de Ludvik, se justifica ao próprio: “És membro do Partido, e o Partido

tem o direito de saber quem tu és e como pensas” (idem: 46).

Talvez este possa ser o problema do poder com o humor. Alguém que se expressa

de forma irónica não revela “como pensa”; talvez revele precisamente o contrário. Essa

titubeação cria problemas de ordem hermenêutica, como destaca Ricardo Araújo Pereira:

Pelos vistos, o humor tem o poder de convencer algumas pessoas de que têm verdadeiro poder.

Entre essa gente crédula contam-se, por exemplo, ditadores, que o temem a ponto de o proibir.

Parece que, na Alemanha nazi, havia tribunais especiais para julgar os cidadãos que chamassem

Adolfo ao seu cavalo. (Pereira 2016)

Se, como diz Pereira, os ditadores proíbem o humor, é porque o identificam como

agente fatal à estabilidade do status quo. Importa, como diz Arendt, que “cada fragmento

de informação concreta que se infiltra através da cortina de ferro, construída para deter a

sempre perigosa torrente da realidade” (1958: 519), seja bloqueado à nascença, mesmo

que seja numa carta entre namorados.

Ludvik, contudo, só parece verdadeiramente preocupado com a traição aos seus

princípios ideológicos numa fase inicial. Rapidamente se apercebe do absurdo da situação

e começa a ter preocupações de índole mais prática:

Os meus esforços não tinham outro objectivo do que este: não ser posto fora do Partido e assim

considerado como seu inimigo; viver como inimigo reconhecido daquilo que eu escolhera na

adolescência, e que me era verdadeiramente caro, parecia-me desesperante. (…) A discussão que

se gerou no seguimento da minha intervenção voltou-se contra mim; ninguém veio em meu auxílio,

de tal modo que, no fim, todos (…), sim, todos, até ao último, levantaram a mão para aprovar não

apenas a minha exclusão do Partido, mas ainda (coisa que não esperava) a proibição de continuar

a estudar. (Kundera 1967: 50)

Note-se como as preocupações vão flutuando: se, numa fase inicial, Ludvik parece

preocupado com a exclusão da instituição que representa as suas ideologias, rapidamente

a preocupação se desloca para o seu próprio bem-estar. Ludvik é excluído do Partido e

isso impede-o de continuar a estudar. Curioso é que o castigo que lhe é imposto (em

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função de ter “pensado as coisas erradas”, como podia ser dito por Gomperz, em

Jerusalém; ou em função de incorrer na “velocidade errada”, como podia ter dito Tavares)

evidencie tantas semelhanças com o dado a outra personagem, mas de Jerusalém: Mylia.

Ludvik é expulso do partido e enviado para um quartel, nos arredores de Ostrava.

Lá, é dito pelo narrador que os cabelos eram rapados por igual medida, que existiam

uniformes próprios e generalizados, e que existiam aulas de educação política:

A despersonalização que nos infligiam parecia perfeitamente opaca nos primeiros dias.

Impessoais, impostas, as funções que exercíamos substituíram todas as manifestações humanas;

esta opacidade era, evidentemente, muito relativa até porque derivava não só das circunstâncias

reais mas de um defeito de habituação da vista (como quando se passa de uma zona iluminada para

uma zona escura); com o tempo, ela iria lentamente dissipar-se, e mesmo com a penumbra da

despersonalização, o humano nos homens tornou-se pouco a pouco imperceptível. (idem: 53)

A pensamentos errados, disformes, responde-se com uma “penumbra de

despersonalização”. Muito semelhante diz Gonçalo M. Tavares, quando descreve os

procedimentos clínicos do Hospício Georg Rosenberg:

Havia, pois, como quem um arredondamento da existência, o que era excessivo transformava-se

em alvo médico: tentava eliminar-se essa coisa, pôr de fora, colocar para além desse

arredondamento. Como se cada existência, exactamente como um compartimento, tivesse um

caixote de lixo, um sítio específico, com formas adequadas, para onde se deveriam atirar os

hábitos, acções e, se possível, os pensamentos que não interessavam. Neste caso, os que não

interessavam a quem vigiava: os médicos. (2005: 104)

Para efeitos de análise, substituamos “médicos” por “camaradas”. Mudam o

oprimido e o opressor, mas o exercício de “arredondamento” ou de “despersonalização”

é semelhante. E essa preocupação não existe apenas no condicionamento do discurso:

trata-se, como referido, de um controlo holístico. A diferença do corpo pode ser um

indício da diferença nas ideias e no discurso, e talvez o desaparecimento dos contornos

individuais do corpo seja um passo para a diluição dos contornos mais perigosos do

discurso e dos atos. Como diz Tavares, em Atlas do Corpo e da Imaginação, “a ideia de

cegueira em relação ao próprio corpo, cegueira táctil, cegueira muscular, afasta o corpo

do próprio indivíduo, torna o corpo um verdadeiro saco que se transporta” (2013a: 184).

Tornar “o corpo num verdadeiro saco que se transporta” parece ser importante para a

uniformização comportamental. Aliás, segundo Barthes, o corpo parece

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consideravelmente mais difícil de dominar do que a linguagem: “my body is a stubborn

child, my language is a very civilized adult” (1990: 128). Essa dificuldade em escrutinar

os movimentos de um corpo que pode ser uma “stubborn child” pode incentivar um cerco

permanente às particularidades que este possa evidenciar.

Esta relação entre corpo e linguagem também é explorada por Tavares em

Jerusalém, quando, como acima citado, diz que é necessário “nós querermos algo de

sensato” para a existência de um estado tido como saudável. A descrição de Mylia, esposa

do psiquiatra Busbeck, parece explorar essa relação:

Mylia era saudável a nível físico e a nível espiritual: tinha um corpo eficaz que obedecia por

completo às suas vontades – dentro dos limites anatómicos humanos – (…) onde Mylia não era

saudável (…) era na cabeça, nas vontades. Ela era doente da cabeça, como os miúdos das

redondezas diziam (…) Busbeck era capaz de prever com pouco erro as suas reacções, os

arrebatamentos violentos (Tavares 2005: 63)

Repare-se como os comportamentos ilógicos, exemplificativos deste seu estado

mental débil, são essencialmente físicos. Os “arrebatamentos violentos” e as “reações”

sugerem uma qualquer reação física vigorosa. Assim como em A Brincadeira, Ludvik é

vítima de uma carta à sua paixão de então. Linhas antes, Ludvik queixa-se de que o

“funcionamento psíquico e filosófico do amor é tão complicado que num determinado

período da vida o homem tem de concentrar-se em controlá-lo” (Kundera 1967: 37). Mais

tarde, descreve como a falta de entusiasmo de Marketa em passar algum tempo consigo

o desanima. A carta que o viria a punir vem em sequência desse episódio:

Essa decisão não me convinha nada, porque eu contava exactamente com essas duas semanas para

as passar sozinho com Marketa em Praga e levar a nossa relação (que até então consistira em

passeios, conversas e alguns beijos) um pouco mais longe; (…) e fiquei louco de ciúmes por

Marketa não partilhar da minha aflição, nem se irritar com o estágio, pior ainda, ter a coragem de

me dizer que até gostava da ideia! (idem: 38)

Ainda que as punições impostas a Mylia e a Ludvik decorram, essencialmente, no

âmbito daquilo a que Tavares chama “querer algo de sensato”, na sua definição de

“saúde”, a relação com a corporalidade é inequívoca. Se o facto de Mylia ser “doente da

cabeça”, como é descrito a certo ponto da narrativa, tem consequências diretas em ações

(ou em “arrebatamentos violentos”), no caso de Ludvik a relação parece um pouco mais

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intrincada: a ação que o leva ao quartel, em Ostrava, está ligada a outro tipo de

arrebatamento: o da paixão por Marketa, que o conduz a atos irrefletidos. Contudo, em

ambos os casos, a punição deve-se a uma vigilância prévia, quer dos comportamentos do

hospício, quer da correspondência de Ludvik com a namorada.

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2.2 – Cárcere e vigilância: do quartel de Kundera ao hospício de

Tavares

Como foi referido, Mylia e Ludvik são inseridos em sistemas de cárcere por

motivos diferentes. Cada um desses sistemas apresenta tipos de organização diferentes, e

para entender as suas caraterísticas parece interessante recordar o exemplo que Michael

Foucault descreve, em Vigiar e Punir, com a descrição de diversos comportamentos de

controlo exaustivo (com sentinelas por todas as esquinas), no relato da eclosão da peste

numa cidade (não identificada) do século XVII. É especialmente curiosa uma passagem:

o responsável por cada quarteirão passa na rua e “pára diante de cada casa, manda colocar

todos os moradores às janelas (…) informa-se do estado de todos, um por um” (1979:

162). Mais do que proteger os potenciais infetados, assiste-se a uma espécie de

condescendência que assume que os indivíduos não têm capacidade de tomar as atitudes

corretas, estando distantes do jugo inquisitório dos fiscais:

Esse espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde os indivíduos estão

inseridos num lugar fixo, onde os menores movimentos são controlados, onde todos os

acontecimentos são registrados, onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia,

onde o poder é exercido sem divisão, segundo uma figura hierárquica contínua, onde cada

indivíduo é constantemente localizado, examinado e distribuído entre os vivos, os doentes e os

mortos – isso tudo constitui um modelo compacto do dispositivo disciplinar. A ordem responde à

peste; ela tem como função desfazer todas as confusões; a da doença que se transmite quando os

corpos se misturam; a do mal que se multiplica quando o medo e a morte desfazem as proibições.

(idem: 163)

Ainda que Foucault esteja a descrever comportamentos de controlo de uma peste

no século XVII, esta descrição parece condizente com a realidade dos sistemas carcerários

no século XX. Também os movimentos são controlados, os acontecimentos registados,

sendo o cárcere um “dispositivo disciplinar” que procura evitar comportamentos tidos

como desviantes. A título de exemplo, atente-se nas palavras de Erving Goffman, quando

se refere a instituições totalitárias, como prisões, manicómios ou hospitais, no século XX:

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When persons are moved in blocks, they can be supervised by personnel whose chief activity is

not guidance or periodic inspection (as in many employer-employee relations) but rather

surveillance - a seeing to it that everyone does what he has been clearly told is required of him,

under conditions where one person's infraction is likely to stand out in relief against the visible,

constantly examined compliance of the others. (…) In total institutions there is a basic split

between a large managed group, conveniently called inmates, and a small supervisory staff. (1961:

7)

Tudo isto, segundo Foucault, era característico do controlo da peste no século

XVII. Contudo, no século XIX, em especial na Europa, disseminou-se a circunscrição

dos doentes a instituições e a edifícios específicos (além de Vigiar e Punir, já citado,

descrito também em História da Loucura) em que, além de se juntarem outros indivíduos

com problemas semelhantes, existiam também vigilantes (cf. Goffman 1961). Segundo

Foucault, é já no século XIX que se dissemina a circunscrição aos espaços de exclusão,

em que se “projectam recortes finos da disciplina sobre o espaço confuso do

internamento” (1979: 165), mas, mais que isso, em que se procura “individualizar os

excluídos, mas utilizar processos de individualização para marcar exclusões” (idem).

Nesse processo de individualização, está presente a ambiguidade a que já foi feita

referência: mais do que proteger os indivíduos fora do espaço de internamento, vigiam-

se as atitudes dos indivíduos a que são atribuídas atitudes a punir. Esta exclusão tem como

objetivo a proteção dos indivíduos das próprias atitudes, especialmente em casos de

problemas “mentais”. Recorrendo à definição de “saúde” de Gonçalo M. Tavares (“o

estado em que os músculos fazem o que nós queremos e nós queremos algo de sensato”),

nem Mylia nem Ludvik tinham músculos que não fizessem o que ambos pretendiam: o

problema é que nenhum deles queria “algo de sensato” segundo a norma vigente.

Isso é o que foi regularmente realizado pelo poder disciplinar desde o começo do século XIX: o

asilo psiquiátrico, a penitenciária, a casa de correcção, o estabelecimento de educação vigiada, e

por um lado os hospitais, de um modo geral todas as instâncias de controle individual funcional

num duplo modo: o da divisão binária e da marcação (louco-não louco; perigoso-inofensivo;

normal-anormal); e o da determinação coercitiva, da repartição diferencial (quem é ele; onde deve

estar; como caracterizá-lo, como reconhecê-lo; como exercer sobre ele, de maneira individual, uma

vigilância constante, etc.) (1979: 165).

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Uma categorização faz-se mais facilmente por oposição a outra: assim se distingue

o bom do mau, ou o fácil do difícil, satisfazendo uma economia de pensamento que evite

posições intermédias sobre os assuntos em causa. A divisão binária, de que fala Foucault,

acaba por influenciar de forma decisiva o dualismo irredutível a que os indivíduos,

potenciais reclusos, são sujeitos. Atente-se nas palavras de Tavares, em entrevista:

Isso é algo muito perturbante, porque nós temos a cabeça muito virada para uma espécie de “sim-

não”, então se alguém é classificado como maldoso, nós quase que assumimos que a pessoa é 24

horas por dia maldosa. Mas a questão basicamente perturbante é que uma pessoa pode ter durante

50 anos os hábitos mais elogiáveis, mais bonitos, interessantes e generosos, e pode por dez

minutos, de repente, praticar um ato absolutamente terrível, de maldade pura. Portanto, muitas

vezes essa questão de que é um homem bom ou um homem mau… Se formos às quantidades,

mesmo as pessoas mais execráveis da história, na maior parte do seu tempo, tiveram atos normais,

até generosos, bondosos. (Tavares 2010b)

Como desenvolveremos mais adiante, em Jerusalém e A Brincadeira ser perigoso

ou inofensivo, louco ou não louco, tem consequências diretas no “onde deve estar”. Aliás,

é por pensarem e agirem de forma diferente que Mylia e Ludvik são categorizados como

distantes do comportamento pretendido, sendo afastados para instituições de vigilância

permanente. Nessas instituições os procedimentos dos responsáveis são semelhantes aos

existentes no controlo dos leprosos, na descrição de Foucault: é comum a “vigilância

permanente em todos os pontos”, o registo permanente de “todos os acontecimentos”, e

onde “cada indivíduo é constantemente localizado e examinado”. Existem, portanto, “um

conjunto de técnicas e de instituições que assumem como tarefa medir, corrigir os

anormais” (Foucault 1979: 166).

Aliás, “é a força que define o bem e o mal, de cada vez que este vocabulário

parecer oportuno ao detentor da força” (Eiras 2005: 117). Mais do que punir em função

da ideia fechada de certo e do errado, os próprios conceitos dependem dos interesses dos

poderosos. Relembre-se o internamento de Mylia, decidido pelo “detentor da força”,

Busbeck: em Jerusalém, afirma-se que “Theodor decidiu” o internamento de Mylia.

Da necessidade de “medir, corrigir os anormais”, surge o mecanismo inovador de

Jeremy Bentham, o Panóptico, que Foucault descreve em Vigiar e Punir: “na periferia

uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se

abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma

atravessando toda a espessura da construção” (1979: 166). Na estrutura de Bentham,

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idealizada no século XVIII, os detentores do poder procuram ver tudo, ininterruptamente,

e sem serem vistos. Induz-se no indivíduo vigiado um estado permanente de visibilidade:

trata-se de um “estado consciente e permanente (…) que assegura o funcionamento

automático do poder” (idem). Essa vigilância, de tão ininterrupta, torna-se

despersonalizada: mais do que o indivíduo detentor do poder ser o vigilante, é a própria

arquitetura que parece responsável pelo controlo. Como diz Foucault, “quem está

submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso, retoma por sua conta as limitações

de poder” (idem: 168). Reforcemos: quem está submetido a um local fechado, em que o

código de “ideias corretas” está definido, talvez se deixe mais facilmente dominar por

elas, deixando que se instituam como suas.

Em Jerusalém, na ausência de comportamentos assumidos pelos detentores do

poder como saudáveis, é preciso fechar os prevaricadores num ambiente hermético, onde

sejam estimulados comportamentos tidos como corretos. O mesmo se passa com Ludvik:

perante a identificação, ainda que errada, da personagem enquanto trotskista, Ludvik é

enviado para um quartel onde, como já vimos, existem “aulas de educação política” e

uma permanente “penumbra de despersonalização”.

O que é um cárcere bem sucedido? Que procedimentos devem ser adotados para

trazer os “doentes da cabeça”, designação dada a Mylia, de volta a um estado pleno, que

lhes permita viver o status quo, sem grande resistência?

Certamente ele [o internamento] terá de início a função que se confiava aos hospitais no fim do

século XVIII. Permitir a descoberta da verdade da doença mental, afastar tudo aquilo que, no meio

do doente, possa mascará−la, confundi−la, dar−lhe formas aberrantes, alimentá−la e também

estimulá−la. Mais ainda que um lugar de desvelamento, o hospital (…) é um lugar de confronto.

A loucura, vontade perturbada, paixão pervertida, deve aí encontrar uma vontade reta e paixões

ortodoxas. (Foucault 1979: 70)

Procura-se a ortodoxia, um pensamento “limpo” de ideias distantes da “vontade

reta” imposta, e que possa criar problemas. Não parece existir nenhuma patologia de

ordem física com Ludvik ou Mylia. Contudo, mais do que o corpo funcionar, importa que

as ideias que o coordenam sejam as “corretas”. Como diz Tavares, “o que importa não é

apenas que um indivíduo sobreviva, mas que a felicidade do indivíduo sobreviva, se

mantenha. Saúde vista assim como um sinónimo de bem existir, eu diria: de bem não

morrer” (2013a: 298).

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Os propósitos de Busbeck podem ser questionáveis. Pretende que Mylia se cure e

consiga “bem não morrer”, ou pretende ver-se livre de um comportamento instável que

se tornou num problema?

Ora, os propósitos do manicómio, expressos nas palavras do seu médico-gestor,

Gomperz, são muito claros: “era uma casa feita para eliminar mistérios, como dizia o

médico-gestor Gomperz. Procurara-se simplificar tanto os procedimentos como as

coisas” (Tavares 2005: 103). Vêem-se aqui resquícios da descrição foucaldiana de

manicómio: a tentativa de limar as arestas à própria existência, tornar a “vontade reta”,

as “paixões ortodoxas”. Citemos o narrador: “o que era excessivo transformava-se em

alvo médico: tentava eliminar-se essa coisa, pôr de fora, colocá-la para além desse

arredondamento” (105). Como refere Bordini, no Georg Rosenberg “há um processo de

imposição de uma determinada convencionalidade como se esta fosse racional, ou

melhor, como se esta fosse a verdade, uma instância total da qual não se pode escapar”

(2014: 72).

Esse arredondamento existencial relembra a obra kunderiana, e os episódios de

regimes totalitaristas nela presentes. Asif diz-nos que “how power deprives individual of

identity and freedom constitutes Kundera’s fundamental thematic obsession” (2014: 172).

Parece difícil fazer a mesma afirmação sobre a globalidade de uma obra tão heterogénea

quanto a de Gonçalo M. Tavares, mas Jerusalém convida a reparar na presença de uma

mesma luta pela individualidade. Mais adiante na narrativa, aliás, descreve-se uma fuga

do Georg Rosenberg por parte de Mylia, e do seu namorado, Ernst:

Mylia e Ernst, contentes com o anonimato no meio da confusão e com a sensação de que nada

interrompiam com a sua fuga. Não eram assim tão loucos, nem tão doentes: não perturbavam a

cidade. Sentados no café sorriam um para o outro. Estavam no mundo e ninguém reparava neles:

eis a alegria. (…) A porta aberta do café deixava entrar um frio desagradável, mas que divertia

aquele casal de namorados. Há quanto tempo não havia uma interferência da temperatura?

(Tavares 2005: 188)

Mylia e Ernst rejubilam, longe do Georg Rosenberg, longe da vigilância

permanente, como se lhes tivessem devolvido o direito aos gestos, à existência. O direito

à não ortodoxia. O frio que surge pela porta aberta do café “divertia” o casal: a alegria da

interferência externa, em quem se habituou a viver num ambiente altamente controlado.

Existe vento, heterogeneidade e ideias diversas.

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Também Ludvik, no quartel para o qual é enviado por ideias discordantes do

regime vigente, relata um ambiente que procura uma aculturação socialista. Mais do que

a coerção, os responsáveis procuram o isolamento, para impedir que as ideias contagiem

outros. Os reclusos participam em atividades de culto à ideologia, como se os

responsáveis procurassem criar a ideia nas cabeças dos capturados:

Ainda que nos considerassem unanimemente inimigos confirmados do regime, todas as formas de

vida pública corrente nas colectividades socialistas eram praticadas no quartel; nós, inimigos do

regime, organizávamos reuniões improvisadas de dez minutos sob o controlo do comissário

político, participávamos diariamente em conversas sobre temas políticos, tínhamos a

responsabilidade dos jornais de parede, em que colávamos fotografias de políticos socialistas

enfeitadas à mão com palavras de ordem, sobre o futuro radioso. (Kundera 1967: 55)

Também os responsáveis do quartel meditam sobre o que Gomperz perguntava

aos seus doentes: “sabes em que deves pensar?”. Se Gomperz dá um passo mais

declarado, tentando dirigir o pensamento dos internados (“como o professor de uma

disciplina, como a matemática ou a gramática, fazia uma pergunta concreta sobre um

determinado conteúdo” (Tavares 2005: 105)), os responsáveis pelo quartel estabelecem

atividades de culto ao socialismo, como se assim fosse possível colocar as ideias do

regime na cabeça dos intervenientes.

Em Asylums: Essays on the condition of the social situation of mental patients and

other inmates, Goffman aclara:

He need not constantly look over his shoulder to see if criticism or other sanctions are coming.

(…) In a total institution, however, minute segments of a person's line of activity may be subjected

to regulations and judgments by staff; the inmate's life is penetrated by constant sanctioning

interaction from above, especially during the initial period of stay before the inmate accepts the

regulations unthinkingly. Each specification robs the individual of an opportunity to balance his

needs and objectives in a personally efficient way and opens up his line of action to sanctions. The

autonomy of the act itself is violated. Although this process of social control is in effect in all

organized society, we tend to forget how detailed and closely restrictive it can become in total

institutions. (1961: 38)

Como diz Goffman, a vida dos integrados no sistema carcerário é invadida por

atos impostos, na tentativa, pelos responsáveis do regime, de que os encarcerados se

tornem voluntários. Os exilados no quartel dedicam-se a atividades forçadas de louvor

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aos líderes comunistas, até que este louvor suceda de forma voluntária. Gomperz procura

controlar os pensamentos dos internados no Georg Rosenberg, até que estes cheguem ao

que “devem pensar” autonomamente. Para os seus responsáveis, as instituições

funcionam como uma luz que alumia um caminho mais equilibrado, “saudável”.

Contudo, o receio do crescimento de ideias diversas, ou das “velocidades

diferentes”, de que falava Tavares, existe nos dois espaços de reclusão: “todos os quinze

dias rapavam-nos a cabeça com medo de que, com os cabelos, nos nascesse alguma

segurança deslocada” (Kundera 1967: 65). É o “arredondamento da existência” de que

fala Jerusalém. Rapam-se os cabelos e as ideias. Promove-se o uso de uniformes e de

ideias comuns, para esterilizar contornos mais perigosos do pensamento.

Ambos os romances descrevem uma relação amorosa que, por ser vivida em

clausura, assume contornos de proibição. Kundera, ao falar da vida no quartel de Ostrava,

relata as consequências do cárcere: “a tristeza que emanava do horizonte miserável da

nossa vida amorosa, todos ou quase todos a conhecíamos” (idem: 66). Se alguns tentavam

“escapar-lhe para as profundezas meditativas do seu foro interior”, outros “completavam

a sua cínica caça às pegas com o mais sentimental dos romantismos”, e outros ainda

“tinham em casa um amor que, à força de reminiscência concentrada, ganhava o brilho

mais resplandecente”, ou, por fim, alguns que “sonhavam em segredo que a rapariga que

apanharam já tonta num qualquer café nutria por eles um amor sagrado” (ibidem).

Talvez a possibilidade de períodos de evasão do quartel, em que os reclusos se

procuram a vida boémia, que choca contra os trâmites apertados da vivência do cárcere,

tenha mudado também a vivência da paixão comparativamente a Jerusalém. Ou, pelo

contrário, talvez os curtos períodos de não escrutínio contrastem com a permanente torre

panóptica erigida sobre os muros do Georg Rosenberg. Nessa vigilância, privilegia-se o

“fim das grades, fim das correntes, fim das fechaduras pesadas” (Foucault 1979: 167).

Talvez essa ilusão de não vigilância tenha levado Mylia e Ernst a um comportamento que

Gomperz descreve assim: “foi isto: a sua esposa Mylia e um outro paciente. Fizeram-no.

À frente de outros doentes” (Tavares 2005: 109). É esta a primeira referência que temos

ao caso de Mylia e Ernst, que daí em diante se desenvolve durante toda a narrativa do

manicómio. Essa aspereza contrasta com a forma como Ludvik conhece Lucia, quando

deambula sozinho pela periferia de Ostrava, num dos dias de folga do quartel:

Foi então que vi Lúcia pela primeira vez. Ela avançava na minha direcção; ia entrar no pátio do

cinema; porque não terei continuado o meu caminho ao cruzar-me com ela? Terá sido pela estranha

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ociosidade do meu deambular? Terá sido a luz insólita do pátio naquele fim de tarde que me

demorou de impediu de volta à rua? Ou será que foi o ar de Lúcia? (…) Não sei. A verdade é que

tinha ficado pregado ao chão a olhar a rapariga (…) Sim, era sem dúvida essa lentidão de Lúcia

que me tinha de tal modo encantado, lentidão donde irradiava o sentimento resignado de que não

há fim que mereça que nos precipitemos e que era inútil estender as mãos impacientes para

qualquer coisa. (Kundera 1967: 68)

A abordagem crua de Jerusalém contrasta com um encantamento quase idílico. A

lentidão de Lúcia “irradia um sentimento” e de repente o pátio é dono de uma “luz

insólita”. Roland Barthes, em Fragmentos de um Discurso Amoroso, fala sobre o

momento em que este súbito encantamento toma conta da realidade. A melancolia que

Ludvik sente, a caminhada absorta, dá origem a um “host of perceptions suddenly come

together to form a dazzling (…) the weather, the season, the light, the boulevard, (…) all

held within what already has its vocation as memory: a scene, in short, the hieroglyph of

kindliness (…), the good humor of desire” (1990: 23). O próprio narrador parece ter

consciência desse encantamento a posteriori. Talvez o pátio não brilhasse assim tanto,

talvez a memória mude a perceção dos acontecimentos: “bem sei que o amor tende a criar

a sua própria lenda, a mitificar depois os seus inícios” (Kundera 1967: 69).

Veja-se como Ludvik, sem dar conta, passa a incluir-se numa das categorias que

tinha definido para explicar a vivência amorosa dos prisioneiros no quartel: “a partir dessa

noite, tudo em mim se transformou; eu estava de novo habitado; subitamente alguém me

tinha arrumado como um quarto” (idem: 72). Tendo Ludvik conhecido Lúcia num dia,

para não mais a ver, esta descrição parece concordante com a forma como categorizava

alguns dos seus colegas, como já foi dito: “sonhavam em segredo que a rapariga que

apanharam já tonta num qualquer café nutria por eles um amor sagrado”.

O amor de Ernst e Mylia tem uma apresentação consideravelmente mais crua, e

resulta no nascimento de uma criança, que Busbeck acaba por adotar. Também isso é

revelador de como o manicómio, através da vigilância permamente, procura controlar

todos os eventos, procurando eliminar os que não se coadunam com o “arredondamento

da existência”. É assim que Gomperz volta a reunir com Busbeck para lhe dar a notícia

da gravidez da sua mulher: “Uma coisa destas não pode acontecer nesta instituição. O que

lhe tenho a dizer é isto: a sua esposa, Mylia, está grávida” (Tavares 2005: 118).

Além do evidente escrutínio de todos os passos de Mylia, subjacente a este tipo

de comunicações, evidenciando o carácter totalitário da instituição, assiste-se a uma

obliteração do direito à privacidade. Como diz Foucault, “poder a cada instante vigiar os

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comportamentos de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo” (1979: 123), é o objetivo de uma

“disciplina que fabrica corpos submissos” (119).

Torna-se curioso verificar que o poder tem um espaço consignado onde funciona

e, para lá de uma barreira bem identificada, perde propriedades. Pode ser um país (veja-

se o “Airstrip One” orwelliano, em 1984), uma região (veja-se Londres de Huxley, em

Brave New World), ou um edifício. É assim que, em Jerusalém, Ernst e Mylia rejubilam

no ambiente não controlado no dia em que fogem do manicómio. É assim que, num

episódio que relembra a existência de uma barreira física que marca o começo e o fim do

poder, Lúcia se abeira do gradeamento do quartel, num dia que os prisioneiros, Ludvik

incluído, faziam exercícios no exterior.

Só então a vi. Era Lúcia. Encontrava-se de pé contra o gradeamento, no seu velho e gasto casaco

castanho (…), tinha calçado os elegantes sapatos negros de salto alto (meu presente). Ela

observava-nos, imóvel. Com um interesse crescente, os soldados comentavam o seu ar paciente e

punham nos seus comentários todo o desespero sexual de homens mantidos num celibato forçado.

Mesmo o suboficial acabou por dar conta da distraída efervescência dos soldados e, bem

rapidamente, da sua causa; enfureceu-se perante a sua própria impotência: ele não podia proibir a

rapariga de estar ali: fora da rede de arame estendia-se uma área de relativa liberdade que escapava

às suas injunções. (Kundera 1967: 103)

Fora da jurisdição da torre panóptica estende-se um novo mundo: um mundo “fora

da rede de arame”, um mundo em que Mylia e Ernst, no dia da fuga, estão “contentes com

o anonimato” (Tavares 2005: 127). No dia em que Lúcia fura o hermetismo do quartel

em Ostrava, Ludvik relata: “beijámo-nos através de uma malha de rede” (Kundera 1967:

103). Como se a relação entre ambos fosse uma agressão ao panóptico no seu ponto fraco:

os próprios limites geográficos. Ninguém pune Ludvik, ninguém escorraça Lúcia que, no

seu pleno direito, está fora do gradeamento do quartel. Ernst e Mylia, como já vimos,

tornando a sua relação ostensiva ao limite, dentro das paredes do Georg Rosenberg, são

expostos e punidos.

Tanto no Georg Rosenberg como no quartel de Ostrava, o apelo do exterior parece

assumir um papel fundamental no equilíbrio dos reclusos. Se n’A Brincadeira, como já

vimos, as saídas são periódicas, servindo como pretexto para comportamentos excessivos,

que contrabalançam a existência monótona e a “penumbra de despersonalização” do

quartel, em Jerusalém os doentes são mantidos em vigilância permanente. Não há, sequer,

registo de visitantes. Não sabemos se tal sucede por o marido da protagonista, Mylia, não

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ter interesse em vê-la (“o seu ex-marido Theodor Busbeck pediu-me para lhe dizer que

aguarda as suas melhoras e deseja-as, mas que não a quer ver mais” (Tavares 2005: 174),

diz Gomperz a Mylia), se por não ser prática institucional. Contudo, o apelo do exterior

(cf. Kesey 1962) parece vir através das cartas que vão chegando aos internados:

Quando o correio chegava, os homens interrompiam os seus percursos mais ou menos

descontrolados, e rapidamente tentavam chegar aos envelopes, provocando depois os que nada

haviam recebido, numa crueldade que lá dentro era aceite como normal. (…) Uma carta era o

instrumento ideal para interromper a ordem e a limpeza geral do Georg Rosenberg: como um aceno

de mão do exterior, cada carta tornava-se num recuo do louco em direcção à sua vida passada;

mesmo que na carta se falasse do futuro o que estava em jogo era um processo de memória: lembra-

te que já estiveste cá fora (Tavares 2005: 176)

O apelo do exterior, em Kundera, surge através da presença de Lúcia na vida de

Ludvik: por vezes nas saídas do quartel, noutras através de cartas, ou mesmo através da

presença tímida junto ao gradeamento. Em Jerusalém o “aceno de mão do exterior” é

mais controlado. Não há relatos de correspondência vasculhada, ao contrário do que

acontece em A Brincadeira, onde o próprio Ludvik é por isso feito prisioneiro. Por outro

lado, as saídas dos reclusos não parecem ser um objetivo concreto das personagens

encarceradas ou, pelo menos, essa possibilidade é descrita com pouco entusiasmo.

Se “a disciplina às vezes exige a cerca” (Foucault 1979: 122), parece-nos lógico

que essa cerca não seja igual para militares ou para loucos. Esse “local heterogéneo a

todos os outros e fechado em si mesmo” (ibidem), deve ter em atenção que o “princípio

da clausura não é constante, nem indispensável, nem suficiente nos aparelhos

disciplinares” (ibidem). Dessa forma, a vivência desse encarceramento nas duas obras

parece ter características distintas. Atente-se, contudo, nas semelhanças:

Here is a significant way in which total institutions differ: many, like progressive mental hospitals,

merchant ships, TB sanitaria, and brainwashing camps, offer the inmate an opportunity to live up

to a model of conduct that is at once ideal and staff-sponsored model felt by its advocates to be in

the best interests of the very persons to whom it is applied; other total institutions, like some

concentration camps and some prisons, do not officially sponsor an ideal that the inmate is

expected to incorporate. (Goffman 1961: 64)

O “staff-sponsored model” de que fala Goffman é uma realidade inequívoca, tanto

no quartel de Ostrava, como no Georg Rosenberg. Esses locais são o que Renata Quintella

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de Oliveira, em Um Olhar Perverso: Percorrendo o Reino de Gonçalo M. Tavares apelida

de “espaço(s) da normalização e da nulificação do ser” (2016: 234). Ainda que as

diferenças nos procedimentos sejam evidentes, existe um modelo a seguir: ambas são

instituições em que se cuida do pensamento, e em que se acredita que os reclusos sairão

preparados para uma vida melhor no exterior.

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2.3. – Corpo, domínio e castigo: do “corpo simbólico” ao “corpo

biológico”

Falar do corpo é, antes de mais, falar de dentro do corpo. A análise revela uma

proximidade do objeto de estudo impossível de contornar: afinal, todas as análises partem

do próprio corpo. Como diz Paulo Cunha e Silva, em O Lugar do Corpo: Elementos para

uma cartografia fractal, sobre as várias possibilidades de estudo do corpo “ao traduzir-

se na aquisição de várias superfícies, permite uma recuperação de volume que fornece ao

corpo uma espécie de profundidade estratigráfica, uma profundidade que resulta da

acumulação de várias superfícies, várias imagens” (1995: 21). As “várias superfícies”

podem ser entendidas como diversas possibilidades de análise de um corpo.

Distingamos, então, duas possibilidades de estudo do corpo: um corpo simbólico,

a que Cunha e Silva atribui a possibilidade de “aquisição de várias superfícies”, e um

“corpo biológico”, em que as funções biológicas e motoras se evidenciam, oferecendo-se

a um estudo mais objetivo. A “profundidade estratigráfica”, de que fala Cunha e Silva,

parece ser vivenciada essencialmente num corpo simbólico, edificado por construções

culturais e temporais. O corpo biológico talvez seja condição para a existência de um

corpo simbólico, de várias camadas estratigráficas: “antes das necessidades primárias

(alimentação, abrigo, etc.) surge a necessidade do piso zero: ter um corpo que se

reconhece; em volta, para o mundo e depois para si próprio: eu estou aqui, pelo menos

tenho um corpo” (Tavares 2013a: 183).

Em Gonçalo M. Tavares as evidências de um “corpo biológico” parecem maiores

do que em Milan Kundera. Expliquemos melhor o uso da expressão “corpo biológico”:

são comuns, por exemplo, as personagens que correm ou se movem com particular vigor.

O corpo é frequentemente descrito enquanto instrumento produtor de movimento, e as

ações da narrativa que envolvem partes anatómicas concretas são recorrentes. Em Matteo

Perdeu o Emprego é dito que “Aaronson circulava – como um insecto obcecado – em

torno de uma rotunda” (Tavares 2010a: 9). Em A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-

Mau-Olhado, “a mãe sem cabeça corre no quintal e várias galinhas afastam-se” (2017a:

9). São frequentes movimentos vigorosos, ou ações que envolvem amputações ou cortes.

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(e. g. A Máquina de Joseph Walser, com a amputação da mão do protagonista), ou em

que a decadência física é descrita com particular detalhe (e. g. Aprender a rezar na Era

da Técnica, e a doença de Lenz). Em Kundera, o corpo não parece assumir tanto

protagonismo. Em A Insustentável Leveza do Ser, Kundera fala dos “longos e frequentes

momentos em frente ao espelho” de Tereza:

Era o desejo de não ser um corpo como os outros corpos e de ver subir à superfície do rosto a

tripulação da alma vinda do ventre do navio. E isso não era fácil porque a alma, triste, receosa,

amedrontada, escondia-se bem lá no fundo das suas vísceras e tinha vergonha de se mostrar. (1984:

63)

O tempo ao espelho é, por excelência, o período de análise do corpo enquanto

matéria. Neste caso, o corpo parece surgir não enquanto produtor de movimento, mas

enquanto “ventre do navio” da alma. É um corpo simbólico, em que as “vísceras” servem

de esconderijo, e não são cortadas, como a cabeça de A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-

do-Mau-Olhado, e muito menos são protagonistas de corrida, como as pernas de

Aaronson, em Matteo Perdeu o Emprego. Em A Imortalidade, a protagonista, Agnès,

reflete sobre um corpo que envelhece:

Agnès considerava com inveja os homens idosos; tinha a impressão de que eles envelheciam de

uma maneira diferente: o corpo do seu pai transformava-se imperceptivelmente na sua própria

sombra, desmaterializava-se, continuando neste mundo apenas como uma alma

despreocupadamente incarnada. (Kundera 1990: 101)

O corpo é a sombra do envelhecimento do pai de Agnès, ou seja, o corpo

desmaterializa-se, perde relevância com o passar dos anos. Relevante é a velhice enquanto

símbolo da passagem dos anos, porque a matéria transforma-se “na sua própria sombra”.

Em Tavares o corpo parece ter uma componente motora bem mais evidente:

Pergunta Wittgenstein (pensar é perguntar): “Poderá uma máquina pensar? – Poderia uma máquina

ter dores? A resposta pode obrigar-nos a procurar máquinas com cartas características, mas a

resposta pode afinal ser mais simples: será o corpo humano “uma tal máquina?” Responde

Wittgenstein: o corpo humano é, de facto, “o que se aproxima mais de ser uma tal máquina.”

Máquina que tem dores e pensa. (Tavares 2005: 104)

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Em Tavares o corpo tem dores e pensa mas, antes disso, é “o que mais se aproxima

de ser uma tal máquina”. É, no fundo, o que o autor diz ser um “corpo com anatomia fixa

e definida, separado do mundo por espessas fronteiras-linhas, e diferenciável, ele próprio,

em órgãos autónomos com funções específicas” (Tavares apud Studart, 2012: 26). Em

Kundera, talvez o corpo, primariamente, pense. Como é dito na narração do checo, é um

corpo que se “desmaterializa”: serve como instrumento e objeto reflexivo. Num dos

apartes de A Insustentável Leveza do Ser, o narrador aclara:

Como já disse, as personagens não nascem de um corpo materno como os seres vivos nascem, mas

de uma situação, de uma frase, de uma metáfora que contém em germe uma possibilidade humana

fundamental, que o autor pensa que nunca ninguém descobrira antes dele ou então que nunca

ninguém tratara de modo a dizer algo de essencial sobre ela. Mas não se costuma dizer que um

autor não pode falar senão de si próprio? (1984: 275)

Na obra kunderiana as personagens parecem nascer “de uma situação, de uma

frase, de uma metáfora”: o corpo é criado com base nessa metáfora. No fundo, a ideia

antecede o corpo, é responsável pelo seu surgimento. Se em Tavares o princípio parece

tantas vezes ser o movimento e a corporalidade, em Kundera estes existem meramente

em função da “possibilidade humana fundamental”, de que fala o narrador. Isto parece

coincidir com o que diz Kundera em A Cortina: “[o romancista] é um descobridor que,

tacteando, se força por desvendar um aspecto desconhecido da existência” (2005: 170).

Tateando, Kundera reflete e estabelece um enredo em que as personagens parecem

dependentes de uma ideia prévia. Daí que o corpo raramente seja descrito como

possibilidade mecânica. Uma “máquina que tem dores e pensa”, na conceção tavariana

anteriormente citada. Em O Livro do Riso e do Esquecimento, o autor reflete sobre a

“máquina que pensa”:

Desde James Joyce, disse ele, que já sabemos que a maior aventura da nossa vida é a ausência de

aventuras. Ulisses, que combateu em Tróia, voltava sulcando os mares, pilotava ele próprio o seu

barco, tinha uma amante em cada ilha, não, não é essa a nossa vida. A odisseia de Homero

transportou-se para dentro, interiorizou-se. As ilhas, os mares, as sereias que nos seduzem, Ítaca

que nos chama, hoje são apenas as vozes do nosso ser interior. (Kundera 1979: 91)

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A odisseia “interiorizou-se”, e o corpo deixou de ser um instrumento de vivência

da aventura. Serve meramente para transportar as “vozes do nosso ser interior”, como diz

o narrador. O corpo surge como veículo de ideias.

Aprender a rezar na Era da Técnica é um livro no qual o “corpo biológico” de

Tavares surge como paradigma. O romance principia com Lenz a ser levado ao quarto da

empregada “mais bonita da casa” e a receber uma ordem do pai: “agora vais fazê-la, aqui,

à minha frente” (2007: 11). O verbo “fazer” não é escolhido ao acaso: remete para a ação.

O corpo de Lenz aprende, pela mão do pai, a executar. Era “como se [a empregada] não

estivesse feita” (ibidem) antes de Lenz seguir as ordens do pai, com “gestos de um

trabalhador, de um empregado que obedece às indicações de um encarregado” (12).

Subjugado ao poder do pai, o adolescente Lenz não parece ter grande alternativa que não

obedecer, de forma mecânica, a uma ordem.

Em A Insustentável Leveza do Ser, Tomas é protagonista de diversos encontros

amorosos, sem que isso pareça prejudicar a sua afeição pela mulher, Tereza. Ainda que

esta tomada de posição seja explicada de forma breve por Kundera, muito no começo da

narrativa (“Tomas pensava consigo próprio que ir para a cama com uma mulher e dormir

com ela são duas paixões não só diferentes, como quase contraditórias. O amor não se

manifesta através do desejo de fazer amor (…) mas através do desejo de partilhar o sono”

(1984: 23)), a explicação dada mais adiante expõe melhor a posição de Tomas:

O que é que procurava em todas essas mulheres? O que é que o atraía? (…) Há sempre uma

pequena percentagem de inimaginável. Quando via uma mulher vestida, embora, evidentemente,

pudesse fazer mais ou menos uma ideia de como seria depois de despida (…), restava sempre um

pequeno intervalo de inimaginável entre a inexactidão da ideia e a precisão da realidade, e era

precisamente essa lacuna que lhe tirava o sossego (…) Só na sexualidade é que o milionésimo de

diferente aparece como uma coisa preciosa, porque não é publicamente acessível e tem de ser

conquistado. (…) Não era, portanto, de forma nenhuma, o desejo da volúpia (…), mas o desejo de

apoderar-se do mundo (…) que o fazia andar atrás de mulheres. (idem: 250)

Tomas não cede ao “desejo de volúpia”; o instinto carnal pouco lhe parece dizer

na procura incessante de mulheres diferentes. Quer “apoderar-se do mundo”, alcançar o

ínfimo percentual que não consta do mundo “publicamente acessível”. Tomas procura,

então, o poder que só atinge o preenchimento da “lacuna que lhe tirava o sossego”.

A comparação da posição de Tomas, pragmática e de um adulto, com a de Lenz,

ainda imberbe e subjugado pelas ordens do pai, parece, assim, pouco justa. Contudo, o

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narrador também descreve episódios da vida sexual de Lenz, relatando “o descontrolo

que a excitação sexual lhe provocava” (2011: 194). Aliás, o pragmatismo e a precisão de

Lenz parecem mesmo conhecer alguma hesitação quando confrontados com “tudo o que

poderia fazer, quando excitado sexualmente”. Quando confrontado com esta “força

paralela à sua vontade”, Lenz parece desconfortável com o que se assume não como “um

fazer, mas o oposto: algo era feito sobre ele” (ibidem). Lenz é uma personagem

controladora que nestes contextos parece perder algum do seu poder:

Eis pois o segundo mundo onde se sentia entrar quando excitado: um mundo que não compreendia

nem controlava. Enojava-o a surpresa que os elementos não controlados do mundo provocavam

no corpo e, deste modo, olhava para a sua própria excitação e desordem moral (…) da mesma

maneira que da janela olhava para uma tempestade. (…) Desprezava as pessoas que participavam

nesses seus momentos de desordem – a sua própria mulher e os homens invulgares que ele puxava

para a posição de observadores ou participantes (…) Apesar da coacção física e psicológica ser

sua, (…) Lenz olhava para os participantes e sentia-se alguém que obedeceu (idem: 196)

A sua “obsessão pelo domínio” (ibidem) parece condicionada pela entrada em

cena de um agente visceral, biológico, que o controla. Ser, de súbito, dominado pelo

próprio corpo, atemoriza-o. Fá-lo protagonizar atos e rodear-se de pessoas que

“claramente não eram do seu mundo físico e mental – homens ou mulheres rudes,

prostitutas, pedintes, ou até loucos” (idem: 195).

Ainda que Tomas protagonize também uma fixação sexual que nunca se esbate ao

longo da narrativa, certas reflexões, suas e do narrador, fazem parecer essa obstinação

assente em bases diferentes. Tomas reflete sobre a sua atividade, e nunca parece encontrar

motivos suficientes para se desfazer dos encontros ocasionais com mulheres.

Mas como? Tomas não podia acabar de vez com as suas amizades eróticas? Não, isso seria o seu

fim. (…) Ninguém melhor do que ele sabia que essas aventuras não punham Tereza minimamente

em questão. Privar-se delas, porquê? Era uma eventualidade que lhe parecia tão absurda como

renunciar a ir ao futebol. (1984: 31)

A posição de Tomas em relação a Tereza e a outras mulheres, tema central da

narrativa, parece sempre alicerçada numa posição teórica sólida, explorada ao limite pelo

narrador, que afirma: “O romance não é uma confissão de autor, mas uma exploração do

que a vida humana é nesta armadilha em que o mundo se converteu” (idem: 275). O corpo

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biológico das personagens de Tavares expõe a sua própria fragilidade em lesões psíquicas

e físicas. Por vezes, a sua exatidão e pragmatismo só se parecem deixar vencer pela

“vontade paralela” que a lascívia e a corporalidade trazem. Muito diferente parece ser o

corpo de Kundera, de construção mais concetual e de simbolismos permanentes.

O facto de Lenz, protagonista de Aprender a rezar na Era da Técnica, ser

cirurgião durante parte da narrativa permite que sejam tecidas inúmeras considerações

sobre o corpo. O narrador descreve diversas situações que exaltam o poder da mão, o

mecanismo dos seus atos, ou em que esta sofre algum tipo de lesão (e. g. A Máquina de

Joseph Walser). Lenz evidencia-se dos demais, numa fase inicial, pelas intervenções que

realiza na sala de operações, recorrendo à sua mão direita:

Na sua mão direita o bisturi brilha; há um mais na combinação do instrumento médico com a mão

de Lenz que provoca nos assistentes de qualquer operação o direcionar do olhar em exclusivo para

aquela mão direita. (…) Alguns chegavam mesmo a falar de sessões de hipnotismo: a absoluta e

convincente lentidão da mão direita de Lenz. (…) O bisturi dentro do organismo procurava

reinstalar uma ordem que fora perdida (…) anunciava um novo Reino: recompunha as estradas do

organismo. (Tavares 2011: 27)

A mão direita de Lenz, que controla o bisturi, “anuncia um novo Reino” através

das alterações fisiológicas que promove num organismo doente, que padece de uma

“anarquia celular, uma desordem, um desrespeito interno de normas” (idem: 27). Lenz

reinstala a homeostasia num organismo que, a certo momento, foge da norma. A mão

direita de Lenz “era a linha recta, o endireitar do desvio” (29), “combatia a explosão e

reinstalava a precisão e a ordem” (32). Como refere Renata Quintella de Oliveira, “sua

mão direita, aquela que segura o bisturi, opera com precisão, (…) a precisão de uma

máquina” (2014: 283). A sua obsessão pelo domínio leva a que Lenz se torne, durante o

procedimento, “num respeitador das leis da cidade e das convicções gerais sobre bem e

mal” (Tavares 2011: 31), mesmo que sejam relatados outros episódios em que sente

prazer “em humilhar prostitutas, mulheres fracas ou adolescentes, pedintes que lhe batiam

à porta ou a própria mulher” (32). Lenz procura, essencialmente, a execução de uma tarefa

maquinal, reestabelecendo a ordem da forma que lhe compete, sem se sentir

especialmente incumbido de uma missão benigna: “O corpo define-se em confronto com

a técnica. A técnica define-se em confronto com o corpo” (Eiras 2013: 124).

Também Tomas, protagonista de A Insustentável Leveza do Ser, “era considerado

o melhor cirurgião do hospital” (1984: 229). As semelhanças com a narrativa de Tavares

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ficam por aqui, porque os detalhes da relação de Tomas com a sua profissão ou as suas

motivações não são descritos. É descrito, contudo, o momento em que Tomas abandona

o posto no hospital. O mesmo sucede com Lenz, que abandona o hospital para se dedicar

à política: “agora, nas suas decisões, visava salvar por completo não um organismo ou

uma existência, mas sim, embora só parcialmente, as esperanças e os desejos de cada

cidadão” (2011: 161).

Se Lenz o faz de forma deliberada, Tomas é empurrado para fora da profissão por

motivos políticos, como mais adiante será explicado. Em Kundera, o narrador reflete

sobre os regimes comunistas da Europa Central (uma das suas obsessões temáticas), num

registo que mistura os seus apartes à narrativa com o pensamento de Tomas, para dizer

que “Tomas um dia passou para o papel as suas reflexões (…) e mandou-as para um

semanário” (Kundera 1984: 226). Depois de o texto de Tomas ter sido aceite e publicado,

é descrita a falta de satisfação da personagem, visto que “para modificar um pequeno

pormenor de sintaxe (…) tinham-lhe cortado tanto o texto que as suas reflexões ficavam

reduzidas a uma tese fundamental (demasiado esquemática e agressiva) e já não lhe

davam satisfação nenhuma” (ibidem).

Descreve-se assim, mais do que a ocupação territorial, a supressão da discussão

em liberdade (“Dois ou três meses mais tarde, os russos decidiram que discutir em

liberdade era uma coisa inadmissível numa província sua” (ibidem)), com consequências

diretas na vida de Tomas, meses mais tarde chamado pelo chefe do serviço. Este pede-

lhe que se retrate pelo artigo exposto naquela revista: “Não gostava mesmo de perdê-lo e

estou disposto a tudo para conservá-lo cá. Mas você tem de se retractar daquele seu

artigo” (idem: 227). Se Ludvik, em A Brincadeira, é encarcerado num quartel, com

Tomas, médico proeminente e homem da ciência, é tida outra abordagem: é-lhe pedido

pelas instituições que se retrate das suas ideias. As semelhanças, ainda assim, são

evidentes. Se Ludvik é vítima de uma interpretação errada das suas palavras, Tomas vê o

texto que envia ao semanário ser “cortado” e reduzido a “uma tese fundamental”.

Também a vida de Tomas, como a de Ludvik, é condicionada pelas instâncias

detentoras de poder. Tomas emprega-se numa clínica periférica de Praga, onde “não podia

operar e só fazia clínica geral” (ibidem: 233), naquilo que parece ser um

subaproveitamento das suas capacidades, como diz um dos seus chefes: “No Ministério,

toda a gente lamentava que um cirurgião da sua craveira estivesse reduzido a receitar

aspirinas num posto clínico dos subúrbios” (234). Esse mesmo homem propõe-lhe que

assine um texto escrito pelos seus responsáveis, no sentido de retomar as suas funções

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como cirurgião: “Tomas leu-o e teve um choque. Era bem pior do que o que o seu antigo

chefe de serviço lhe exigira (…) Havia várias referências ao seu amor pela União

Soviética e à sua fidelidade ao Partido Comunista” (239). Tomas recusa, e para pôr fim

àquela perseguição, demite-se: “Tomas (…) não tinha a certeza de que aquela fosse a

melhor decisão mas, sentindo-se já ligado à sua resolução (…), obstinou-se nela e tornou-

se lavador de janelas” (241).

Lenz e Tomas abandonam a mesma actividade profissional e a relação do poder

com esse abandono, em ambos os casos, parece inequívoca. Tomas é vítima de um texto

que assinou para um semanário, Lenz abandona a sua posição de médico porque

ambiciona fazer parte de uma estrutura partidária.

Ainda que a mudança pareça radical, para Lenz trata-se apenas de uma

transferência de capacidades:

A capacidade dos aparelhos do seu gabinete médico para detectar a decadência das células

transferira-se, com naturalidade, dessa escala mínima para a escala normal da rua, e das máquinas

para o seu olho. A desordem moral e física dos habitantes comuns assustava-o da mesma maneira

profissional com que a falência física de uma célula, antes, o assustava nas consultas no hospital.

(Tavares 2011: 161)

Luís Mourão comenta que Lenz passa “do exercício da medicina para a política

para que a sua afirmação não se faça sobre um de cada vez, mas sobre inúmeros

simultaneamente” (2008). A sua personalidade ambiciosa parece impulsionar esta súbita

mudança de ramo profissional. Lenz procura viver junto dos poderosos, onde possa

afirmar-se no “mais alto patamar do domínio”: “Buchmann quer o poder, sabe como

manobrar junto dos poderosos para o conseguir, sabe como convencer os fracos a dar-

lho” (ibidem), e isso é revelado em situações de intervenção mais local, como a imposição

da ordem celular, ou em situações de intervenção mais ampla, como a imposição da

ordem na cidade. O denominador comum é o desejo de poder e de domínio, em diferentes

situações e circunstâncias, mas que se encontra inevitavelmente presente. Como diz Júlia

Studart, em A Literatura de Gonçalo M. Tavares: investigação arqueológica e um

dançarino sutil nas esferas O Bairro e O Reino, “para Lenz Buchmann, na era da técnica,

não interessa de onde vem o poder, o importante é instaurar formas de poder” (2012: 52).

A cidade e o corpo parecem ser dois sistemas de caos reinante em que,

ocasionalmente, um agente responsável terá de intervir, impondo a regularidade

necessária. O agente responsável será diferente nos dois contextos, mas o seu

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reconhecimento como agente máximo, operador de mudanças e conhecedor do equilíbrio,

parece semelhante. O caos é inevitável: sobra reconhecer ou ajustar o seu ponto de

equilíbrio. Sobre este assunto, Cunha e Silva diz mesmo que “o caos é uma manifestação

da vitalidade cardíaca” (1995: 211), ou seja, condição impreterível do sistema: nem todo

o caos é mau. Júlia Studart refere que “um conceito de corpo político, tanto na conceção

medieval quanto na moderna, pode ser pensado na organização da cidade, logo, das

nações, impondo regras à imagem do corpo” (2012: 235). Estes paralelos baseiam-se no

pressuposto de que tanto a cidade como o corpo constituem sistemas abertos, ou seja, um

conjunto de elementos em relação interdependente e em interação dinâmica. Tavares

escreve que “uma cidade define-se, de facto, pelos entendimentos, isto é: graças a

sincronizações temporárias, de discurso e acções” (2013a: 172).

Esta afirmação talvez pudesse ser feita, de igual maneira, sobre o corpo: se estas

sincronizações são “temporárias”, sem por isso quebrarem as regras de ação que fazem

da cidade um sistema, estamos perante um sistema caótico que se reorganiza em função

da ocorrência de eventos aleatórios. Ou seja, “o caos e a constatação das suas vantagens,

permitem-nos substituir o adágio popular «antes quebrar que torcer» por outro, bem mais

inteligente, antes torcer que quebrar” (Silva 1995: 219). Tanto no corpo como na cidade

a aleatoriedade e as disrupções ocasionais da sucessão previsível dos acontecimentos dão

lugar, quase sempre, a novas organizações: “antes torcer que quebrar”. E ainda que ambos

os sistemas tenham leis de ação com algum grau de previsibilidade, estas não são

fechadas, e muito menos estanques. A disrupção de cada um dos sistemas requer uma

ação que lhes promova nova situação de homeostasia, que evite a sua falência. Emerge,

então, o conceito de “caos determinista”:

E se esta franja de acaso na caracterização do estado inicial é praticamente comum a todos os

sistemas, muitos existem em que a “extrema sensibilidade às condições iniciais" transforma a

pequena imprecisão inicial numa grande indeterminação final. Fala-se, então, do "caos

determinista", expressão que em si mesma encerra uma solução de compromisso entre a

radicalidade de um novo paradiqma - o caos - e o respeito conservador pelas conquistas da ciência

- o determinismo. (Silva 1995: 143)

Podemos, então, afirmar que tanto os responsáveis políticos, posição que Lenz

ambiciona e que interfere diretamente com a vida profissional de Tomas, como os

médicos, profissão de ambos os protagonistas numa fase inicial da narrativa, têm como

missão tornar o “caos determinista”, da cidade e do corpo, menos caótico e mais próximo

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do “determinismo” enunciado. É na fixação às “condições iniciais” que os sistemas

permanecem em equilíbrio, evitando eventos disruptores, e é a “desordem moral e física”,

que relata Tavares, que deve ser combatida pelos responsáveis pela cidade e pelo corpo.

Se diversas vezes é relatado como Lenz ataca o foco da doença com o seu bisturi, os

protagonistas de Kundera, Ludvik e Tomas, são tidos pela ordem vigente como emissores

de uma mensagem “doente”, que pode alterar as leis do sistema e que, em função disso,

devem ser combatidas, como uma doença. Relembremos o conceito de “velocidade

certa”, a que aludia Tavares em Atlas do Corpo e da Imaginação: “a Verdade é uma

velocidade. A Verdade passa por encontrar a velocidade certa da realidade, passa por

colocar a realidade a avançar a uma certa velocidade” (2013a: 121). Ou seja, o médico

procura a “velocidade certa” do corpo, e o político a “velocidade certa” da cidade.

Em Aprender a rezar na Era da Técnica, o fim do poder coincide com a

decadência do corpo. Na noite em que o Partido de Lenz ganha as eleições, este começa

a prestar mais atenção a um problema que já o aflige há algum tempo: “este abrandamento

da autovigilância, por se encontrar no papel de quem permanentemente ataca, terminara

naquela noite. (…) E por essa razão começou a medir as dores de cabeça que sentia. Eram,

de facto, de uma intensidade invulgar” (Tavares 2011: 252). Lenz acede às insuportáveis

dores de cabeça, depois de uma longa batalha legislativa em que o seu Partido triunfa: “a

posição (…) era, na noite de eleições vitoriosas, a do combatente que aceita descansar

porque os dias anteriores tinham sido duros” (253).

Quando se descreve o corpo de Lenz no pós-operatório, o relato da perda de um

poder que julgava conquistado começa também pela mão direita. A mão que controlava

o bisturi ou acenava às multidões simboliza o fim (o próprio capítulo intitula-se “A mão

perde o peso”): “Desvia, então, ligeiramente o pescoço (…) e vê Julia Liegnitz, que (…)

lhe segura com as duas mãos a sua mão direita, a sua poderosa mão direita, que de repente

lhe parece morta, um cadáver autónomo” (idem: 260). A mão direita, incapaz, assume o

carácter de símbolo da decadência de Lenz: é um “cadáver autónomo”, como se a sua

morte, por si só, fosse suficiente para decretar a impossibilidade de continuar a ser

poderoso. É um símbolo da “visibilidade acrescida sobre a motricidade como agente”

(1995: 258): a mão que instala a “ordem celular”, a mão que acena nos comícios do

Partido, assume-se agora como símbolo da impossibilidade de Lenz, doente: “A mão tem

o privilégio único de dar forma ao informe” (ibidem), e na narrativa, a mão direita de

Lenz é o símbolo dos cargos onde exerce o poder:

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A ideia da mão associada ao poder está muito presente no romance, quando pensamos na

caracterização e na postura do personagem protagonista. Como cirurgião, a mão é fundamental,

pois através dela Lenz exerce a sua profissão, opera seus pacientes com precisão e eficácia. Quando

Lenz Buchmann entra para a política, a mão terá outra figuração: ela representará, nesse momento,

o homem público, que acena aos cidadãos (Oliveira 2014: 284).

É a doença que torna o corpo num agente passivo: “Lenz Buchamann tinha um

cancro. Ou com mais exactidão: ele deixara de ser proprietário, o cancro tinha-o a ele – o

poderoso Lenz estava transformado num objecto” (Tavares 2011: 273). A doença atira-o

para uma posição passiva sobre a evolução do seu corpo: “não tirava os olhos do seu

próprio corpo, das suas reacções, da sua evolução” (ibidem). Lenz deixa de ser um homem

respeitado e ativo na cidade para passar a ser um espetador de uma doença que conquista

terreno dentro do seu próprio corpo, da mesma forma que, páginas antes, Lenz

conquistava respeito e seguidores na cidade. “Há já duas semanas que Lenz não se levanta

da cama” (287), escreve Tavares. Simultaneamente, Lenz perde poder dentro da sua

própria casa, para a presença ininterrupta de Julia e Gustav Liegnitz que, pela necessidade

de Lenz, vão tomando conta do espaço:

A decadência física de Lenz Buchmann era assim acompanhada por uma presença cada vez mais

vigorosa e por uma força que se impunha a cada metro quadrado da casa – a presença dos dois

irmãos Liegnitz. Em suma, a família Liegnitz avançava. Noutras condições, e visto de longe, tal

sucessão de acontecimentos e a notória ocupação do território por parte da família Liegnitz podia

parecer uma invasão, uma conquista hostil. No entanto, tudo se passava com uma harmonia

invulgar. (267)

Lenz Buchmann é descrito, nos capítulos anteriores, como uma personagem

obcecada pelo domínio. Mas, ao perceber que “a sua debilidade física era notória (266),

assiste com alguma passividade à ocupação da sua casa.

Curioso é um dos últimos episódios relatados pelo narrador, em que assistimos à

“decadência de Lenz Buchmann [que] parece atingir seu ponto derradeiro neste momento

em que ele não é mais capaz de realizar uma atitude mínima de soberania individual”

(2014: 180). Buchmann recebe a visita de um homem “vestido à civil e [que] nada (...)

denunciava, a não ser (…) a cruz que trazia no lado exterior da roupa” (Tavares 2011:

365). Lenz parece desagradado com a situação, aliás, “só pensava no momento em que

ficaria a sós com Julia e a insultaria por aquele atrevimento estúpido” (idem: 368), de

trazer um padre que “estava ali para lhe dar a extrema-unção” (ibidem: 366). Depois de

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diversas descrições da crescente irritação de Lenz, com as palavras de “um hipnotizado

que tenta hipnotizar” (368), Lenz pede a presença do sacerdote junto de si: “com um

pequeno gesto, deu a entender que queria que o sacerdote (…) se aproximasse” (377). O

plano era simples: Lenz “reunindo naquele momento todas as forças que tinha no interior

da sua boca, avançava com uma cuspidela” (370), que permitisse exprimir todo o seu

repúdio pela situação, quando as palavras já lhe faltavam.

O que de facto aconteceu foi que o cuspo não chegou a ser projectado; e que de dentro do seu

corpo parecera uma cuspidela firme atirada contra os olhos do sacerdote tinha sido, de fora, do

exterior daquele corpo, visto enquanto um desleixo involuntário, um descontrolo da saliva que

fizera com que o seu rosto – o de Lenz Buchmann – ficasse sujo da própria saliva, imediatamente

acima e abaixo dos lábios e no queixo (…) Tanto o sacerdote quanto Julia não tinham ficado com

a mínima sensação da hostilidade de Buchmann em relação aquela visita. A insultuosa cuspidela

só acontecera no interior da cabeça e do corpo do Dr. Buchmann (370)

O corpo de Buchamnn perde território para a doença e capacidade de se expressar.

Isto acontece de forma progressiva em relação à sua casa e, com o avançar do cancro,

Lenz não consegue sequer exprimir o que sente em relação a eventos concretos, que o

vão condicionando. Neste caso, tenta usar o seu corpo como forma de passar a mensagem

de repúdio em relação à situação, como forma de agressão, e é traído pela sua própria

fraqueza: a “insultuosa cuspidela” dá origem, na perceção de quem o rodeava, a um

“descontrolo de saliva”. Quando Lenz perde a capacidade de se exprimir, de dar ordens,

o seu corpo parece surgir como última arma de arremesso possível.

Noutros romances de Kundera o corpo também pode servir como “arma de

arremesso”, mas de maneira diferente. Tomemos como exemplo A Lentidão. A certo

ponto, Immaculata protagoniza uma acesa discussão com outra personagem, Berck:

“Contigo acabou-se. Para sempre. Estou farta do cheiro que deitas pela boca. És o meu

pesadelo” (Kundera 1995: 76). O começo do capítulo seguinte relata como Immaculata

usa o corpo enquanto forma de revelar desprezo por outra personagem. Se, por exemplo,

Lenz procura cuspir numa personagem como forma de repulsa, Immaculata usa o seu

corpo enquanto arma, mas de maneira diferente:

É a primeira vez que se despe diante dele com uma tal ausência de pudor, uma tal ostentação de

indiferença. Este despir-se quer dizer: a tua presença aqui, à minha frente, não tem nenhuma, mas

nenhuma importância mesmo; a tua presença é igual à de um cão ou de um rato. Os teus olhares

não porão em movimento a mínima parcela do meu corpo. Era capaz de fazer fosse o que fosse à

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tua frente, de lavar os ouvidos ou o sexo, de me masturbar, mijar. É um não-olhos, um não-ouvidos,

um não-cara. (Kundera 1995: 77)

Não parece ocorrer a Immaculata a possibilidade de agredir fisicamente Berck. Se

Lenz procura a intervenção biológica, enquanto cirurgião, político, ou enquanto homem

doente que se revolta, Immaculata usa o seu corpo enquanto meio para um insulto: “a tua

presença é igual à de um cão ou de um rato”. Estas palavras, ditas desta forma, poderiam

ser um gravíssimo insulto: sê-lo-ão menos quando expressos através do corpo?

Em Kundera, assim como o corpo parece ser menos “biológico” que o das

personagens de Tavares, a descrição detalhada do processo de perda de poder não parece

existir em nenhum dos romances. Em qualquer uma das histórias o poder constitui uma

força permanente, assim como oferecer-lhe algum tipo de resistência uma condição de

vida: “a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”

(Kundera 1979: 9). Nos romances de Kundera a luta entre opressão e oprimidos parece

ser constante, e não apenas transitória: quando o corpo cede à morte, fá-lo sem o rasto de

decadência que é descrito a Lenz em Aprender a rezar na Era da Técnica.

Tomemos novamente como exemplo A Insustentável Leveza do Ser. Numa fase

muito inicial do romance, é dada a notícia da morte dos protagonistas, Tomas e Tereza:

Estava há três anos em Paris quando recebeu uma carta da Boémia. Era uma carta do filho e Tomas.

Tinha ouvido falar dela, procurara a sua direcção, dirigia-se-lhe porque ela era a amiga mais

chegada do pai. Dava-lhe a notícia a morte de Tomas e de Tereza. Segundo o que dizia na carta,

tinham passado os últimos anos de vida numa aldeia onde Tomas era motorista de camião. (…)

Os corpos tinham ficado completamente desfeitos. A polícia constatara que os travões estavam em

muito mau estado. (1984: 154)

Ao longo do romance, não são feitas mais referências ao acidente ou às suas

circunstâncias. A notícia da morte dos protagonistas é dada num parágrafo. Daí em diante,

e como a ação não é cronologicamente linear, intercalando episódios de períodos

diferentes com reflexões do narrador, são relatados episódios da vida de Tomas e Tereza,

como se a sua morte não fosse particularmente relevante para a sucessão de

acontecimentos. Se em Tavares a morte de Lenz acontece num processo gradual, em que

o declínio é progressivamente mais evidente, em Kundera a morte de duas personagens

centrais da narrativa ocupa um parágrafo, num momento pouco convencional: não surge

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numa informação dada no começo da narrativa, mas também não é oferecida no final, até

porque não marca particularmente os acontecimentos daí em diante.

Em Aprender a rezar na Era da Técnica, o último capítulo acaba com a morte de

Lenz. Em Kundera, essa relação entre morte das personagens e fim de narrativa parece

mais ténue, porque o corpo simbólico sobrevive ao fim do corpo biológico: “Mas então,

que relação haveria entre Tereza e o seu corpo? O seu corpo teria algum direito de se

chamar Tereza? E se não tivesse, o que designaria então esse nome? Nada a não ser uma

coisa incorpórea, intangível?” (1984: 174).

O “seu corpo” talvez não tenha “algum direito de se chamar Tereza”, e talvez isto

esteja relacionado com o relato das suas vivências e reflexões muito para lá do anúncio

da sua morte. Depois da breve descrição da morte de Tomas e Tereza, continuam a ser

relatados episódios em que estas personagens surgem, sem qualquer referência adicional

à sua morte. Como se a morte do corpo das personagens não fosse especialmente relevante

quando, como anteriormente citado, estas “nascem de uma metáfora que contém em

germe uma possibilidade humana fundamental”. Sobrevive o “corpo simbólico” de

Tereza, o seu corpo que não ficou “totalmente desfeito”.

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2.4. – O poder que define a norma: da desordem à insignificância

Citemos Hannah Arendt em As Origens do Totalitarismo:

As formas de organização totalitária, em contraposição com o seu conteúdo ideológico e os slogans

de propaganda, são completamente novas. Visam dar às mentiras propagandísticas do movimento

tecidas em torno de uma ficção central – a conspiração dos judeus, dos trotskistas, das 300 famílias,

etc. –, realidade operante e a construir, mesmo em circunstâncias não totalitárias, uma sociedade

cujos membros ajam e reajam segundo as regras de um mundo fictício. (1958: 481)

A manipulação da realidade desse “mundo fictício” parece constituir condição

fundamental para que a organização totalitária se enraíze, ganhe seguidores, e consiga

perpetuar-se. A propaganda totalitária tem como objetivo, então, “não a persuasão, mas a

organização” (478), ou seja, procura-se “a acumulação de força sem a posse dos meios

de violência”. Para isso parece ser relevante a construção de um “elemento de

plausibilidade” (ibidem) na construção das “mentiras propagandísticas”, e que permita

que o “mundo fictício”, ou a “ficção central” do regime totalitário, como define Arendt,

seja coerente, criando seguidores sem recorrer à violência.

Esta criação de narrativas paralelas procura produzir um efeito de plausibilidade

em quem as escuta, no sentido de tornar plausível o que se conta. Podemos exemplificar

numa escala maior – como a política –, através da criação de sociedades totalitárias, em

que a verdade pode ser manipulada ou restringida, no sentido de oferecer à população

elementos potenciadores do comportamento desejado (e. g. pacificação, indignação).

Como diz Arendt, “quando o totalitarismo detém o controlo absoluto, substitui a

propaganda pela doutrinação” (1958: 451). Talvez se possa procurar ações semelhantes

numa escala mais pequena, como numa organização, ou num espaço concreto, ou até num

corpo, corrigindo um desvio comportamental ou fisiológico. Tal situação foi explorada

através da análise à personagem Lenz, em Aprender a rezar na Era da Técnica, no

capítulo anterior.

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Em Vigiar e Punir, também Michael Foucault fala deste processo de

“normalização”:

A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições

disciplinares compara, diferencia, hierarquiza, homogeniza, exclui. Em uma palavra, ela

normaliza. (…) O funcionamento jurídico-antropológico que toda a história da penalidade

moderna revela (…) tem o seu ponto de formação nessa técnica disciplinar que fez funcionar esses

novos mecanismos de sanção normalizadora. (1975: 153)

A normalização é refém de um quadro de valores pré-definido, que permita

estabelecer uma “homogeneização”. Apenas com base nos valores tidos como “corretos”

é possível estabelecer uma normativa. Novamente, tome-se como exemplo Lenz, que

procedia a cirurgias com o objetivo de reestabelecer a norma. Também Foucault comenta

como, a partir do século XVIII, a “homogeneidade” se tornou um imperativo:

Aparece, através das disciplinas, o poder da Norma. Nova lei da sociedade moderna? Digamos

antes que desde o século XVIII ele veio unir-se a outros poderes, obrigando-os a novas

delimitações (…) O Normal se estabelece como princípio de coerção no ensino, com a instauração

de uma educação estandardizada e a criação das escolas normais (…) a regulamentação é um dos

grandes instrumentos de poder no fim da era clássica. (…) Em certo sentido, o poder de

regulamentação obriga à homogeneidade (…) Compreende-se que o poder da norma funcione

facilmente dentro de um sistema de igualdade formal (idem: 154)

O “poder da Norma”, na terminologia foucaldiana, é fundamental para a criação

de instrumentos que permitam erradicar certos comportamentos e instaurar outros. E se

“o castigo disciplinar tem a função de reduzir os desvios” (150), importa questionar: que

desvios? Só se desvia quem estava noutro rumo, ou quem tem um caminho previamente

indicado. Este caminho parece ser, então, aquele para que a “homogeneização” e a

“educação estandardizada” apontam. Como é esse caminho? Quem o define?

A sua definição é necessária em qualquer código penal, de conduta, ou para a

manutenção de um estado de homeostasia num corpo. Contudo, definir o padrão de

normalização parece ser uma tarefa complicada e dependente de períodos históricos ou

de valores. George Orwell, em Por que Escrevo e Outros Ensaios, traça uma análise ao

sistema penal inglês, numa crónica datada de fevereiro de 1941:

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O nosso direito penal está tão ultrapassado quanto os mosquetes na Torre. (…) Na Inglaterra, as

pessoas ainda são enforcadas e vergastadas com o açoite. (…) As pessoas aceitam-nos [os castigos]

quase como aceitam o tempo. Fazem parte «da lei», que se presume ser inalterável. (…) Não que

alguém imagine que a lei é justa. Toda a gente sabe que há uma lei para os ricos e outra para os

pobres. Mas ninguém aceita as implicações disto, toda a gente dá por garantido, que a lei, tal como

é, será respeitada, sentindo-se ultrajado quando isso não acontece. (1941a: 85)

Orwell relata castigos que lhe parecem ultrapassados à época. Como foi analisado

no capítulo 2.1, estes estão em permanente mutação, tal e qual como o estabelecimento

de comportamentos tidos como ilegais. Em função disso, também os comportamentos

desejados, a “norma”, de que fala Foucault, estão em mudança constante. Contudo, ainda

que “toda a gente” saiba que “há uma lei para os ricos e outra para os pobres”, essa lei é

aceite como uma verdade inequívoca, como se não tivesse sido estabelecida pela mão

humana. A aparente “invisibilidade” do aparelho normativo/coercivo e a sua

despersonalização (quem é o indivíduo que define o que é “correto”? quem

instrumentaliza a punição?) parecem contribuir para esta aceitação generalizada.

Noutro ensaio, Orwell descreve como uma sociedade totalitária incita a

determinados comportamentos e ideias:

O totalitarismo aboliu a liberdade de pensamento com uma intensidade que jamais se ouviu falar

em qualquer época anterior. E é importante ter consciência de que o seu controlo do pensamento

não é apenas negativo, é também positivo. Não se limita a proibi-lo de exprimir – ou até de pensar

– certos pensamentos; dita o que irá pensar, cria uma ideologia para si, tenta reger a sua vida

emocional, assim como tenta estabelecer um código de conduta. (1941b: 63)

Importa analisar, então, até que ponto os sistemas de poder têm capacidade de

incentivar determinados comportamentos, através da proibição de outros. Como descreve

Orwell, “isola-o [ao indivíduo] tanto quanto possível do mundo exterior, fecha-o num

mundo artificial” (idem), procurando o poder “controlar emoções e pensamentos dos seus

súbditos, pelo menos tão completamente quanto controla as suas acções” (ibidem).

Retomemos a ideia de aplicação da Norma numa escala maior ou numa mais

pequena. A primeira consiste na regulamentação estabelecida pelos sistemas de poder,

para punir e incentivar comportamentos (como refere Orwell, um “controlo de

pensamento positivo”). Se as alterações de comportamentos são feitas em instituições, a

norma é específica desse local. Recordemos o quartel de Ostrava em A Brincadeira, ou o

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hospício Georg Rosenberg em Jerusalém. Também nelas podemos distinguir dois meios

de alterar ideias e comportamentos: controlo negativo e positivo. Se no Georg Rosenberg

se assume que os comportamentos são o motivo do internamento e que, em consequência

disso, constituem um alvo, no quartel de Ostrava reúnem-se presos políticos, portanto

com ideias distantes do regime comunista: as ideias a erradicar são as que fogem à

ideologia em vigor. Contudo, no âmbito do que Orwell chama “controlo de pensamento

positivo”, também são relatadas atividades de louvor aos líderes e aos motivos do regime.

Se em A Brincadeira o controlo do pensamento é feito pela sociedade totalitária,

e o quartel parece funcionar apenas como uma ramificação do controlo político e estatal,

em Jerusalém o controlo é numa escala menor. Quais são os comportamentos errados?

Ou, por oposição: como criar um “controlo de pensamento positivo”? O primeiro passo

parece, de facto, a delineação dos comportamentos desejados. Émile Durkheim, em The

Rules of Sociological Method, distingue dois tipos de comportamento: “those that are

entirely appropriate and those that should be different from what they are – normal

phenomena and pathological phenomena” (1895: 85). Como já observámos, definir com

isenção comportamentos errados ou patológicos depende da realidade contextual: do

sítio, do local, e dos valores de quem julga esses comportamentos. Talvez um

comportamento normal no cenário de guerra de O Reino não possa ser equiparado aos

comportamentos comuns na Praga da segunda metade do século XX, cenário da

generalidade dos romances de Kundera, quase sempre debaixo do domínio do regime

comunista. A resposta à pergunta que Durkheim faz sobre a relação entre fenómenos

normais ou patológicos – “does science have the means available to make this

distinction?” (ibidem) – parece, portanto, um rotundo não. Até porque, como é dito mais

à frente, “for science, good and evil do not exist” (86).

Quando se fala em saúde e doença, talvez o critério possa ser um pouco mais

objetivo. Durkheim aclara: “pain is commonly regarded as the index of sickness”

(ibidem); “health, consisting in the joyous development of vital energy, is recognisable

when there is perfect adaptation of the organism to its environment” (87); “manner in

which one mode rather than another affects our chances of survival” (88). Algumas destas

possibilidades poderão ser motivo de discussão, tanto que criam, entre si, alguns

paradoxos. Por exemplo: não existem comportamentos saudáveis em cuja dor é

inevitável? Promover a saúde consiste sempre em escolher comportamentos que

aumentem as “chances of survival”? Contudo, num sistema aberto (o corpo), em que tanto

se sabe sobre as condições concretas que permitem o “joyous development of vital

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energy”, o aumento das hipóteses de sobrevivência, ou mesmo as condições para evitar a

dor que, como diz Durkheim, é “regarded as the index of sickness”, estas leis parecem

mais estáveis. Neste caso, talvez a ciência possa mesmo avançar com o que é bom e mau,

ao contrário do que é dito por Durkheim.

It can be seen that a fact can be termed pathological only in relation to a given species. The

conditions of health and sickness cannot be defined in abstract or absolutely. This rule is not

questioned in biology: it has never occurred to anybody to think that what is normal in a mollusc

should be also for a vertebrate. Each species has its own state of health, because it has an average

type peculiar to it, and the health of the lowest species is no less than that of the highest. The same

principle is applicable to sociology, although it is often misunderstood. The habit, far too

widespread, must be abandoned of judging an institution, a practice or a moral maxim as if they

were good or bad in or by themselves for all social types without distinction. (idem: 92)

O estabelecimento da norma, enquanto padrão de regras funcionais numa

sociedade ou entre corpos humanos, é complexo. Nesse sentido, o que é saudável e o que

é patológico terá que ser estabelecido em função da entidade, talvez até do contexto

social, cultural e histórico: os comportamentos saudáveis no regime comunista de Praga

talvez não sejam os mais adequados na guerra de O Reino.

Lenz, em Aprender a rezar na Era da Técnica, torna-se político depois de ser

médico. Luís Mourão descreve este processo:

Que esse inúmero ele [a cidade] o pense enquanto corpo esperando o seu bisturi re-ordenador,

como antes pensava o corpo doente como Cidade minada na sua racionalidade material, é não

apenas um conseguimento ficcional de cruzamento de metáforas e sua literalização paródico-

grotesca, mas também o colocar do político numa espécie de patamar de totalitarismo sem causa

totalitária. (2008)

O bisturi re-ordenador de Lenz não precisa de um manual axiológico para intervir

no corpo humano, talvez baste o manual anatómico. Contudo, como diz Mourão, afirmar

que se trata de uma transferência de capacidades parece já apontar para o cargo político

como “uma espécie de patamar de totalitarismo sem causa totalitária”. Segundo

Durkheim, é impossível julgar uma “practice or a moral maxim as if they were good or

bad in or by themselves”. O mesmo se passará em toda e qualquer ação na cidade que

Lenz ambiciona controlar. O bisturi de Lenz precisará de um conjunto de valores que

reordenem a sua orientação.

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Sobre esta mudança de âmbito de atividade, Mourão afirma que Lenz “é ambas as

coisas de um modo rigorosamente não-humanista. Como médico, e cirurgião, apenas a

competência o motiva” (2008). Se para ser médico a competência pode chegar, para ser

político talvez não. Dois médicos competentes erradicarão a dor, a doença e a morte com

a mesma prontidão. Dois políticos com características idênticas poderão ter objetivos

diferentes na erradicação do que é “good or bad”, ou “good and evil”. A política requer a

identificação com ideias que fundamentem a sua prática: optando por uma posição,

abdica-se da contrária. Na prática da medicina os valores máximos parecem ser, de forma

generalizada, os da saúde e da vida.

Em A Máquina de Joseph Walser, o cenário bélico, pano de fundo das restantes

partes de O Reino, evidencia-se logo no começo: “Fala-se de armamento militar que

avança com apetite; é este o termo: apetite” (Tavares 2006: 11). Pouco depois, a

referência direta ao confronto surge: “como se a guerra fosse precisamente uma

concentração excessiva de milagres” (idem). O avanço das máquinas de guerra não parece

provocar grande impacto na vida de Walser, caracterizado pelo mutismo e pelo

alheamento. Nas palavras de Renata Quintella de Oliveira,

Os focos de interesse de Walser recaíam, apenas, sobre os seguintes pontos: a sua estranha coleção;

o jogo de dados com os colegas de trabalho e a inusitada relação que tinha com a “sua” máquina.

O comportamento do personagem era, predominantemente, de total alheamento: por vezes, várias

pessoas (incluindo Klober) lhe perguntavam: “O Senhor Walser está a ouvir?”, pois ele parecia

estar com a mente em outro lugar. (2016: 172)

O alheamento parece, de facto, uma evidência na caracterização da personagem.

O próprio Gonçalo M. Tavares manifesta a sua posição sobre o assunto:

Há os que o classificam como alguém frio, indiferente, que se afasta das coisas, e por outro lado,

esse afastamento em relação às coisas também pode ser uma definição de santidade. A definição

de santo mais ligado ao oriente, a ideia de a pessoa ser indiferente ao que acontece, estar distante

dos acontecimentos, não se envolver, é uma ideia muito religiosa, e de certa maneira é isso que

Joseph Walser faz. (2006)

Este lado de Walser que o “afasta das coisas” é percetível, por exemplo, na

ausência de reação aos longos discursos que o encarregado da fábrica, Klober, lhe dirige.

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Walser parece despertar para um estado menos alheado em três circunstâncias: em frente

à sua máquina, nas noites de jogo, ou quando se encontra em frente à sua coleção.

O fundamento da sua existência real – aquela máquina – era aquilo que permitia à sua família

subsistir, era, portanto, aquilo que o salvava (…) mas salvando-o dia após dia essa máquina

ameaçava-o também constantemente, sem qualquer pausa. Uma falha na máquina que o salvava

monotonamente, poderia de um momento para o outro acabar-lhe com a vida (…) Joseph Walser

nunca percebia melhor o seu papel de empregado, a sua existência subserviente em relação ao

exterior, do que em frente à máquina, em plena execução do seu ofício. (Tavares 2006: 22)

A máquina é, praticamente, como um instrumento anexo ao corpo de Walser: “em

diversos momentos o som do motor e o seu trepidar confundem-se com o bater cardíaco

(…) é aí que Walser percebe a ligação que existe entre o seu corpo e a máquina” (idem:

58). Adicionalmente, a máquina parece quase assumir traços humanos, como se

oscilações dos estados de espírito o salvassem “dia após dia”, mas também pudessem

“acabar-lhe com a vida”. Como afirma Lígia Bernardino, em Limiares do Humano –

Estudo sobre Jorge de Sena, Maria Gabriela Llansol e Gonçalo M. Tavares, para Walser

“os objetos transcendem a mera condição utilitária, para se autonomizarem e adquirirem

um significado moral” (2014: 216). A atenção que dispensa à máquina parece não ser

meio, mas antes fim: nunca nos é descrito o que ela produz, ou sequer se o particular

esforço da personagem redunda numa maior abundância desse produto. É a execução da

máquina, por si, que cria esta relação entre o protagonista e o aparelho: “o organismo de

Walser ficava (…) melancólico, no momento em que o motor parava e ele percebia que

estavam ali, em jogo, afinal, duas coisas: ele e a máquina” (Tavares 2006: 59).

A melancolia de Walser no momento em que o mecanismo para parece ser

explicada por Hannah Arendt:

Neste movimento, os instrumentos perdem seu caráter instrumental, e desaparece a clara distinção

entre o homem e os seus utensílios. O que preside o processo de labor e todos os processos de

trabalho executados à maneira do labor não é o esforço intencional do homem nem o produto que

ele possa desejar, mas o próprio movimento do processo e o ritmo que este impõe aos operários.

Os utensílios do labor aderem a este ritmo até que o corpo e o instrumento passam a agitar-se no

mesmo movimento repetitivo (…) já não é o movimento do corpo que determina o movimento do

utensílio, mas sim o movimento da máquina que impõe os movimentos ao corpo. (Arendt, apud

Oliveira 2016)

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Como comenta Oliveira, a relação entre Walser e a máquina parece tão intricada

que o que “preside o processo de labor” é o próprio mecanismo, não “o produto que ele

possa desejar”. O “movimento repetitivo” imposto (não sabemos se por Walser à

máquina, ou pela máquina a Walser) parece ser uma forma de introduzir um “movimento

repetitivo” num cenário bélico, como o descrito ao longo da narrativa: “a normalidade

prossegue mesmo por cima dos escombros; o organismo tenta manter hábitos nas

situações mais estranhas e confusas” (Tavares 2004: 117), como se de uma necessidade

biológica se tratasse. Entorpecer o corpo numa repetição rotineira talvez ajude a afastar a

imprevisibilidade: “o trabalho decorre de modo puro, sem ser conspurcado com o que

sofrem os outros” (57).

O espectro da guerra parece marcar decisivamente as três atividades (a máquina,

o jogo e a coleção) de Walser. Se a máquina parece representar a subserviência e a

possibilidade de se embrenhar numa repetição mecânica (relembremos que “só os mais

fortes tinham direito a ser redundantes e previsíveis” (55)), o jogo de dados parece

representar um outro tipo de submissão que, por paradoxal que pareça, se mistura com

uma sensação de controlo.

Todos os sábados, Walser junta-se a mais três companheiros de trabalho na casa

de Fluzst M., onde “jogava aos dados, a quantias baixas” (27). “os dados na mão

simplificavam o mundo” (28): os jogadores, em que Walser se incluía, sentiam evaporar-

se “um número de possibilidades: infinitas; ali, naquela mesa, cada um dos dados limitava

os caminhos” (ibidem). Se o trabalho de Walser, caraterizado pelos movimentos

repetitivos da máquina, representa uma espécie de subserviência aos desígnios

mecânicos, a presença dos dados na mão oferecia uma “exactidão que o excitava (…) era

afinal essa decisão profunda e forte que é decidir que se aceita, decidir que se está pronto

para a submissão absoluta” (ibidem). A submissão parece mesmo ser resposta a uma

espécie de apelo: um corpo que se submete ao desígnio do poder não perde recursos na

decisão autónoma, não se sujeita às consequências de tarefas que requeiram algum tipo

de perícia. No fundo, trata-se do apelo da não tomada de decisão. Sujeitando-se aos

desígnios da sorte, o corpo não traz consigo a responsabilidade de assumir uma posição.

O paralelo entre o trabalho de Walser e dos companheiros do jogo e o tipo de

submissão a que ali se sujeitam é feito pelo narrador: “aqueles homens estavam

habituados a obedecer durante a semana, e no sábado, estranhamente, entravam num outro

sistema de obediência” (idem: 29). Ainda assim, a dualidade de que fala Arendt, em que

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parece indistinguível se o corpo controla o utensílio, ou se o utensílio se sujeita aos

desígnios do corpo, surge novamente como tema.

No momento em que manipulava os dois dados, antes de os largar na mesa, Walser sentia uma

excitação inexplicável, que não conseguia classificar (…) havia em Walser (…) uma sensação de

controlo que em mais nenhuma situação da sua vida se repetia. Naquele momento Walser sentia

que controlava o mundo, que o manipulava, que era capaz de fazer sim ou não apenas pela ligeira

alteração de movimento de um dos seus dedos. (Tavares 2004: 33)

Também os dados, além de significarem uma submissão aos desígnios da sorte e

do azar, representam uma forma de obter uma “sensação de controlo”. O poder cabe na

mão de Walser, que antes de lançar os dados sente uma “sensação de controlo”. Com os

dados na mão, Walser parece sentir, em momentos diferentes, que “controlava o mundo”,

ou que “está pronto para a submissão absoluta”. Walser, em momentos diferentes do jogo,

ocupa dois lugares diferentes na relação de poder: o de subjugado e o de poderoso. Como

diz Lopes de Freitas, em Parábolas do Absurdo nos «Livros Pretos» de Gonçalo M.

Tavares, “o jogo é (…) pólo do seu prazer porque lhe permite uma aproximação com a

experiência erótica, através da qual procura (…) construir a sua identidade” (2010: 34).

O facto de Walser conseguir, durante o jogo, sentir-se subjugado e poderoso, em períodos

diferentes, aproxima o ato da “experiência erótica”.

Diferente da forma como se relaciona com a máquina ou com o jogo de dados é a

forma como Walser se relaciona com a sua coleção, de pequenas peças metálicas, que

mantém no escritório de casa:

Tamanha perplexidade provocava uma necessidade imediata de segurança que apenas encontrava

quando fechado no escritório, em frente à sua colecção. Ali tudo estava completo. Nada havia por

explicar. (…) Nada a mais ou a menos. E só com esta exactidão se sentia apaziguado. Se o mundo

não fosse mais do que a sua colecção, Walser teria que ser descrito como um homem feliz; e

poderoso. (…) Porém, a guerra prosseguia (…) e as mortes entre os militares não paravam. (2004:

103)

A coleção de Walser parece surgir como contraponto para a desordem

característica dos tempos de guerra. Se a guerra faz eclodir conflitos imprevisíveis, onde

as mortes são recorrentes, na coleção de Walser a ordem e a simetria imperam: “Ao

registar aquela peça, ao incluí-la na sua colecção, estava, ao mesmo tempo, a retirá-la do

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mundo, a retirá-la do alcance dos actos de outros homens” (109). As peças funcionam

como partículas do mundo exterior que Walser traz para o seu mundo de ordem, onde

“tudo estava completo”, onde Walser se sentia “feliz e poderoso”. Como diz Pedro Eiras,

“quanto mais desordenado o universo, mais rigorosa a colecção de Walser” (2015: 122).

Esta necessidade de manter um refúgio do ambiente de desordem parece ser parte

de uma necessidade de “normalidade”:

Em comparação com a administração de um país, individualmente, em tempo de guerra, cada

homem, por si, como que fundava um Ministério da Normalidade, que impunha, essencialmente,

repetições. Porque só as repetições acalmavam, só as repetições permitiam a cada indivíduo voltar

a encontrar-se humano no dia seguinte. (…) repetições até de actos não visíveis, não registáveis

pelos outros, como imagens e memórias do cérebro, tudo isso permitia (…) resistir no meio do

reino da desordem (Tavares 2004: 118)

“Resistir no meio do reino da desordem” parece fundamental num cenário bélico;

permite ao indivíduo “encontrar-se humano no dia seguinte”. Como diz Orwell, “acima

de tudo, a guerra torna óbvio para o indivíduo que ele não é totalmente um indivíduo”

(2008: 133). Manter comportamentos rotineiros é manter um espaço de resistência ao

“reino da desordem”. Se os hospitais, quartéis ou manicómios parecem querer impor um

conjunto de normas que permitam uma existência livre de comportamentos

transgressores, talvez possa existir um código de norma pessoal. Talvez a repetição de

hábitos pessoais ajude a fugir ao “reino da desordem”, ao caos que se abate sobre a cidade.

Contudo, como teoriza Durkheim, toda a realidade é contextual, não existindo

valores, por si só, associados aos atos (relembremos: “for science, good and evil do not

exist” (1895: 86)). Walser fecha-se no seu escritório e na sua coleção, para fugir à cidade,

onde eclode a guerra. Num hipotético cenário onde a guerra se prolongasse durante anos,

talvez o que o narrador considera a desordem do exterior deixasse de ser tão caótica assim,

assumisse contornos de norma. Kundera fala da banalização da novidade, quando esta se

prolonga no tempo, numa das derivas reflexivas de A Lentidão:

Aqui está onde os cortesões da actualidade se enganam. Não sabem que as situações que a História

encena só são iluminadas durante um número muito reduzido de primeiros minutos. Nenhum

acontecimento é actual em toda a sua duração, mas apenas durante um lapso de tempo brevíssimo,

no começo do começo. As crianças moribundas da Somália que milhões de espectadores olhavam

com avidez terão deixado de morrer? Que é feito delas? Terão engordado ou emagrecido? A

Somália existirá ainda? (1995: 68)

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Esta reflexão poderia seguir-se a um episódio muito concreto de O Reino. Em Um

Homem: Klaus Klump um cavalo morto apodrece na rua: “ninguém toca num cavalo

morto que está na rua há mais de uma semana. As moscas tocam no cavalo morto, mas

nem os homens nem as mulheres nem as crianças tocam no cavalo morto” (2007: 26).

Antes da guerra, a imagem de um animal de largas dimensões morto a apodrecer na rua

seria abjeta. Em período de guerra, talvez existam preocupações mais prementes. Como

se se tratasse de “um muro altíssimo: ninguém percebe o que sucedeu: como se constrói

um muro no tempo? Como se tapa na cabeça das pessoas aquilo que aconteceu?” (idem).

Um muro que separa o período em que o cavalo morto na via pública seria

removido, e outro em que “o cavalo apodrecido no meio da rua, coberto por milhares de

moscas, não tinha vindo uma única vez no jornal” (34). Em Kundera, um muro de

banalização: “as crianças moribundas da Somália que milhões de espectadores olhavam

com avidez” não deixaram de morrer. Contudo, a sua existência deixou de ser novidade.

Como diz Kundera, “se estudamos, discutimos, analisamos uma realidade,

analisamo-la tal como aparece no nosso espírito, na nossa memória” (1993: 120). A

norma vigente é condicionada pela memória do que ocorreu anteriormente. Contudo,

Kundera diz também: “resignamo-nos à perda do concreto do tempo presente” (118), uma

vez que a realidade é volátil. Ou seja, a sucessão de novos acontecimentos condiciona a

memória dos anteriores, uma vez que “as situações mais queridas, mais importantes, estão

perdidas para sempre” (ibidem): o que sobra delas é, então, “o seu sentido abstracto (…)

mas o concreto acústico-visual da situação em toda a continuidade” (ibidem) está

irremediavelmente perdido. Numa situação de guerra, em que a realidade muda de forma

radical, a necessidade de adaptação dos envolvidos é grande (diz Tavares que “há na

experiência da guerra um longo (e extenso) desassossego das circunstâncias” (Tavares

2013a: 94)). Mediante esse desassossego, a perceção da realidade anterior muda, visto

que sobra apenas “o seu sentido abstrato”, condicionado pela realidade atual.

Para falar do poder da Norma, na terminologia foucaldiana, é incontornável

abordar o romance de Kundera de 2013 A Festa da Insignificância, que parece fugir um

pouco à rigidez dos temas políticos e da Praga totalitária da segunda metade do século

XX. Como é descrito por Alex Preston: “The book is a celebration of the unimportant and

superfluous (thus it centres on Kalinin, not Stalin) and every time we are promised a

passage that is momentous or meaningful, we are tugged back to the insignificance of the

title” (2015). À imagem do que se passa em boa parte dos romances de Kundera, a

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narrativa não procura uma sucessão cronologicamente organizada de acontecimentos. O

narrador descreve uma pequena festa, organizada por Ramon, em que existem conversas

e relatos sem uma ordem temporal por parte das personagens, que quase sempre acabam

numa reflexão do narrador. Muito perto do final, é Ramon quem se dirige a D’Ardelo,

num capítulo de nome “A Festa da Insignificância”:

Há já muito tempo, D’Ardelo, que queria falar-lhe de uma coisa. Do valor da insignificância. (…)

Atualmente a insignificância surge-me de um modo completamente diverso, sob uma luz mais

forte, mais reveladora. A insignificância, meu amigo, é a essência da existência. Está connosco

sempre e em toda a parte. Está presente mesmo onde ninguém a quer ver: nos horrores, nas lutas

sangrentas, nas piores infelicidades. Exige-se-nos muitas vezes coragem para a reconhecer em

condições tão dramáticas e para a chamar pelo seu nome. (…) Aqui, neste parque, diante de nós,

olhe, meu amigo, ela está presente em toda a sua evidência, em toda a sua inocência (2013: 149)

Norma não significa insignificância, mas insignificância pode significar norma ou

banalidade: algo tão recorrente que perdeu relevância. Para efeitos didáticos, façamos o

exercício de trocar “insignificância” por “norma”, na citação que acima indicámos. Nesse

exercício, a norma pode ser entendida como “essência da existência”: parece ser

fundamental identificar o desvio à norma para manter o equilíbrio (na cidade ou no corpo,

como já vimos). Por outro lado, essa norma “está presente mesmo onde ninguém a quer

ver”, ou seja, talvez também esteja nos cenários mais transgressores, aparentemente fora

dos padrões da Norma. Não existe vida para lá dessa Norma, parece ser apenas uma

questão de tempo até que esta se manifeste, mesmo no maior “desassossego das

circunstâncias”. Relembre-se o cavalo que apodrece na rua em Um Homem: Klaus Klump.

Talvez a norma e a insignificância sempre lá tivessem estado, como em todos os

“horrores”, “lutas sangrentas”, ou “nas piores infelicidades”, apenas esperando a

oportunidade adequada para se mostrarem. Até porque, “num certo sentido, o cidadão

bom é o cidadão normal” (Tavares 2013a: 90). Se assim é, infiramos: a circunstância boa

é a circunstância normal – tudo o que passar do código normativo estabelecido deverá,

pelo menos, ser alvo de análise.

Seja imposto por uma entidade poderosa ou pela convenção social, o poder da

Norma, que estabeleça fronteiras entre o normal e o estranho, o comportamento desejado

e o motivo de coerção, parecem ser conceitos fundamentais de Tavares e Kundera.

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66

2.5 - Da luta pela identidade kunderiana à cidade em guerra de

Tavares

Importa definir o conceito de “identidade”, pouco utilizado até agora neste estudo.

Ainda que a sua utilização seja recorrente, as tentativas de o definir parecem ser muitas e

pouco dadas a concordâncias.

Despite this vastly increased and broad-ranging interest in “identity,” the concept itself remains

something of an enigma. What Phillip Gleason (1983) observed remains true today: The meaning

of “identity” as we currently use it is not well captured by dictionary definitions, which reflect

older senses of the word. Our present idea of “identity” is a fairly recent social construct, and a

rather complicated one at that. Even though everyone knows how to use the word properly in

everyday discourse, it proves quite difficult to give a short and adequate summary statement that

captures the range of its present meanings. (Fearon 1999: 2)

Ou seja, a ausência de uma definição objetiva do termo leva a uma utilização

recorrente, mas também pouco clara: quantas identidades existem? O estudo de James

Fearon fala de duas conceptualizações possíveis: as que versam sobre uma identidade

individual, e as que descrevem a identidade de um coletivo.

No primeiro caso, temos como definição: “identity is «people’s concepts of who

they are, of what sort of people they are, and how they relate to other»” (Hogg e Abrams

1988, apud Fearon 1999). Esta definição parece considerar, essencialmente,

características individuais. Existe um determinado “sort of people they are”, isto

significará que existem outros “sorts”, que a este se opõem. Por outro lado, a forma como

o indivíduo “relate to other” parece também ser um traço demarcador da sua própria

identidade. Talvez as pessoas com quem se relaciona, a forma e a frequência com que o

faz, diga também muito da identidade de cada um.

Outras definições parecem fazer referência a uma identidade grupal: “by social

identity, I mean the desire for group distinction, dignity, and place within historically

specific discourses (or frames of understanding) about the character, structure, and

boundaries of the polity and the economy” (Herrigel, apud Fearon 1999). Procura-se uma

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distinção, mas não individualizante: é um “desire for group distinction” e, portanto, uma

distinção que, separando de uns grupos, integre o indivíduo noutros diferentes. Por estar

relacionado com as “boundaries of the polity and the economy” parece existir uma clara

referência a uma identidade nacional, ou pelo menos, geograficamente limitada.

Contudo, talvez essas fronteiras possam ser de entendimento mais lato do que a

atribuição de uma nacionalidade, que parece um estatuto menos mutável. Como diz

Fearon, neste caso “an identity is just a social category, a group of people designated by

a label (or labels) that is commonly used either by the people designated, others, or both”

(1999: 8). Será possível uma entidade poderosa alterar, de forma deliberada, os traços

identitários de um grupo de indivíduos oprimidos?

Distintos desses traços identitários grupais são outros, mais individuais:

Personal identity is a set of attributes, beliefs, desires, or principles of action that a person thinks

distinguish her in socially relevant ways and that (a) the person takes a special pride in; (b) the

person takes no special pride in, but which so orient her behavior that she would be at a loss about

how to act and what to do without them. (idem: 9)

Estes traços são individuais, portanto dizem respeito a características cuja

variação não diz respeito, de forma direta, a variáveis sociais e económicas. Ainda que

estas possam ser influenciadas pelo contexto, essa variação passar-se-á de forma sempre

individual e específica. Como diz Fearon, “a simple answer to the question «what is

identity?» would be this: It is how one answers the question “who are you?” Or, my

identity is how I define who I am” (1999: 11). A resposta a esta pergunta, depende, claro,

do contexto: quem faz a pergunta e onde? Ainda que a identidade não se altere, a resposta

poderá ser diferente diante do opressor, do inimigo, ou na intimidade.

Contudo, este capítulo procura discutir a mudança de traços identitários em função

de relações de poder. Nesse sentido, para tornar a análise mais sólida, existe um

comportamento prévio, que seja alterado em função do contexto de poder em que se

encontra inserido. No fundo, procurar-se-á entender se os traços de personalidade ou a

“personal identity”, de que fala Fearon, poderão ser afetados pelas mudanças da

identidade coletiva. Por exemplo, responder que se é checo nos anos do regime comunista

ou na atualidade significará coisas diferentes. Contudo, até que ponto isso poderá influir

nos traços identitários de cada um dos indivíduos? Por outro lado, numa sociedade

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totalitarista, existe a procura deliberada de alterar a identidade dos indivíduos, através de

alterações concretas? Se sim, existem consequências disso na identidade de cada um?

Há ainda outra possibilidade: as alterações não serem deliberadas, e acontecerem

em função dos acontecimentos. Exemplifiquemos: no capítulo anterior falou-se sobre o

surgimento do cadáver de um cavalo em Um Homem: Klaus Klump, e sobre como a

indiferença parece dominar a relação das pessoas com esse obstáculo: “o cavalo

apodrecido no meio da rua, coberto por milhares de moscas, não tinha vindo uma única

vez no jornal” (Tavares 2007: 34). O episódio é descrito como algo que, caso o contexto

não fosse de guerra, talvez tivesse pronta ação das autoridades. O narrador conta como a

cidade se adapta, e como eventos chocantes deixam de o ser, porque “a brutalidade

instalou-se e já não magoa ninguém” (59). A brutalidade passou a ser banalidade. Como

diz o narrador, “a cabeça foi deslocada para o presente. Temos os pensamentos

actualizados com o momento em que estamos: nem à frente, nem atrás. Uma cabeça

diária” (96). O padrão altera-se de dia para dia: o que é agora possível enquadrar no

registo da brutalidade? Será isso relevante para a construção da identidade?

Neste caso, o padrão parece ter-se alterado por via das circunstâncias. “Johana

está quieta e o jornal nas suas mãos inquieto. Quem foi morto hoje?” (12): já não se

questiona se alguém terá sido vitimado pela guerra, porque essa parece ser uma

inevitabilidade. Diz o narrador que “há demasiadas possibilidades para que aconteça

sempre o mesmo” (17), mas também, sobre a mãe de Johana, tida como louca, que

“interrompia de modo grande a vida normal, e as pausas eram alucinações” (18), ou seja:

existe uma vida “normal” em determinada personagem. Nas palavras de Fearon, o estudo

da identidade é relevante porque “identity [is seen] as interesting and important precisely

because it is thought to explain actions that other approaches, such as rational choice”

(1999: 26). Os traços identitários afiguram-se como forma de explicar ações racionais.

Nesse caso, talvez a mãe de Johana pareça mais caracterizada pelo mecanismo

inverso, pelas interrupções constantes e “de modo grande [d]a vida normal”. Esta é a

primeira descrição feita da personagem, como justificação da sua loucura: uma mulher

que interrompe a vida normal. Catharina tem uma identidade, composta por

comportamentos que constroem a sua “vida normal”, mas que lhes foge constantemente

e “de modo grande”. Talvez Catharina, a mãe de Johana, seja usada como forma de

explicar a cidade em guerra. Os traços característicos da guerra, com as ruas marcadas

pela presença de tanques e de mortos (como é descrito), são precisamente os inversos da

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norma. O padrão é alterado, porque os eventos tidos como disruptores se propagam

indefinidamente, pelo menos, até que a guerra esteja terminada.

A descrição de Catharina parece condizente com este raciocínio, no qual a norma

é subitamente invertida numa cidade, e em que os tanques são o símbolo dessa disrupção:

Catharina, a mãe de Johana, gritava. Adorava mecanismos, matérias que terminavam de modo

previsto. Mas Catharina gostava de máquinas, gostava de interferir nelas. Queria intrometer-se

nessa vida fria, mas com algo de perverso: a ponta da agulha era colocada em água a ferver, e

depois Catharina levava-a até perto de um rádio ou de uma outra máquina, e tentava espetá-la num

orifício qualquer. (Tavares 2003: 19)

Esta “agulha” parece procurar a intromissão num mecanismo previsível, como o

da cidade, muito parecido com o comportamento descrito dos tanques que “entravam na

cidade” (11). Nesta cidade, em que “as mães já não se comovem quando um soldado viola

as filhas” (30), o mecanismo da previsibilidade, e das reações humanas inerentes, está

substancialmente alterado. Catharina, em sua casa, procura interferir de forma parecida

num rádio, ou noutra máquina semelhante. Aliás, o narrador traça uma analogia similar:

Catharina por vezes falava numa ideia doida. Via os tanques da janela, a passarem pela rua, e dizia

querer espetar a agulha, com a ponta queimada, no tanque. Dizia que os tanques tinham inúmeras

fendas. Ela queria consertar os tanques. Fazê-los disparar mais lentamente. Ou então fazê-los

disparar ao contrário, para dentro. Com uma agulha posso fazer a guerra rebentar para dentro, em

vez de para fora, dizia Catharina. (21)

Talvez a ideia não seja assim tão “doida”, como é descrito. Catharina parece, como

a generalidade das personagens, ansiar pelo fim da guerra (daí que queira “espetar a

agulha”), e quer destruir os tanques da mesma forma que estes parecem destruir a cidade:

através da quebra da sua própria identidade, fazendo-os “disparar mais lentamente”, ou

“disparar ao contrário, para dentro”. Os tanques invadiram as ruas, normalizaram

comportamentos, destruíram o normal mecanismo de funcionamento da cidade. Tavares

descreve como “uma cidade [se define], de facto, pelos entendimentos, isto é: graças a

sincronizações temporárias, de discurso e acções” (2013a: 182). A guerra desvirtua estas

sincronizações e constrói as suas próprias verdades. Catharina parece procurar também

desvirtuar essas sincronizações no funcionamento dos tanques. Como refere Sandra

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Beatriz Salenave de Brito, em “O reino de Gonçalo M. Tavares como uma representação

da sociedade contemporânea”:

Ela queria consertar os tanques, fazendo-os rebentar para dentro, a tentativa alienada de

alcançar sua meta com a ponta de uma agulha quente manifesta o seu anseio racional em

acabar com a guerra. É o mesmo pensamento ingênuo que acompanha Joseph Walser,

(…) ainda que não esteja contribuindo de forma alguma no evento, analisa-o de maneira

crítica. (2017: 466)

Ou seja, Catharina não parece ser a única, ao longo da tetralogia de Tavares, cujos

comportamentos são condicionados pela guerra. Klaus Klump também evidencia

comportamentos que parecem ser potenciados pelo conflito:

Klaus abriu a gaveta onde um faqueiro de prata. Tinha as gengivas fracas de comer mal. A

personalidade é uma obra-prima que se faz dia e noite. Não demora meses, demora mais tempo

que a fazer um palácio. A personalidade é um trabalho onde se entra, requer esforço. As gengivas

de Klaus muito vermelhas. (…) As vitaminas são importantes para as tuas frases. Faltavam-lhe

vitaminas nas gengivas e as frases tinham perdido o lado exacto antigo. (…) A realidade era

incompatível com a linguagem sem vitaminas. (…) Klaus dizia que a paisagem se tinha tornado

imunda. Já não existiam paixões com prestígio a não ser o pensamento em vingar-se. (Tavares

2003: 29)

O narrador dá bastantes pistas dessa alteração circunstancial do comportamento

de Klaus. O protagonista “tinha as gengivas fracas de comer mal” muito provavelmente

pelo surgimento da guerra, até porque é dito pouco antes que “Klaus era de uma família

rica: os Klump” (idem: 24). A realidade que o narrador descreve não é condizente com as

“vitaminas”, “importantes para as frases”. Outro termo para descrever a realidade surge

depois: “paisagem”, que se torna “imunda”. A narrativa é clara: deixou de haver tempo

para cuidados elementares, e Klaus é vítima disso. Aliás, o narrador parece demonstrar

uma visão holística do indivíduo: se lhe faltam “vitaminas nas gengivas”, as frases

perdem “o lado exacto antigo”. As ações de Klaus são condicionadas pela “falta de

vitaminas” de um ponto de vista fisiológico. Estamos numa esfera ainda mais primária

do que a revolta contra a guerra, racional e ponderada: Klaus tem falta de vitaminas, e

essa falta de vitaminas condiciona “a personalidade”, que é “um trabalho onde se entra,

requer esforço”, e que de alguma forma está relacionada com a cor das suas gengivas.

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Klaus não muda de cor de gengivas deliberadamente: muda porque lhe faltam

“vitaminas”. Talvez também a sua personalidade mude de cor: “Klaus foi vestido para

receber os pais. Mas havia ainda o corpo. E o corpo estava magro e os olhos diferentes,

olhos evidentes (…) O preso Klaus era um homem que já não hesitava” (53). Novamente,

é o corpo que muda, que mirra debaixo da roupa, mas é o “homem” que passa a não

hesitar. A personalidade vem a reboque das mudanças anatómicas, em especial das

condicionadas pela guerra.

Como diz Gonçalo Furão, em Entre “Bios” e “Política”: A tetralogia “O reino”

de Gonçalo M. Tavares, o narrador “inverte a relação de correspondência que

comummente existe entre claridade/ordem numa esfera de valoração positiva e

escuridão/caos de valor negativo” (2013: 30). A valorização positiva e negativa dos

comportamentos fica, subitamente, condicionada pelo conflito, oscila em função dele:

O dinheiro desvaloriza-se ao pé dos loucos. Klaus tinha dólares, mas agora estava nu: quando se

está nu não se tem dinheiro. O dinheiro torna-se abstracto de mais quando oito homens nus

coincidem no mesmo espaço. E tentam não morrer. (idem: 52)

Homens nus lutam pela sobrevivência, coincidindo no espaço e, de repente pouco

importa quanto dinheiro se tem. A nudez banaliza e banaliza-se: “as pernas das raparigas

perderam importância” (53). A exposição excessiva parece desvalorizar o corpo, mas

simultaneamente torna-o mais relevante que nunca, até porque “não há profissões, mas

as habilidades aumentaram” (ibidem). É fundamental ter um corpo, porque é o corpo que

permite fugir e reagir ao conflito. Contudo, a sua exposição parece perder relevância. A

guerra aproxima a condição humana da condição de “animal”:

Na guerra não há caridade e a dor diminui bruscamente de valor. No tédio a dor é um negócio de

diamantes, uma transacção capaz de causar o espanto de muitos. Na guerra não. A dor não é

nenhum prodígio na guerra, os animais sofrem, são amputados e avançam, porque as queixas são

apenas para os lentos. Na guerra os corpos estão mais perto uns dos outros, tanto dos amigos como

entre inimigos. (idem: 56)

A dor perde relevância na guerra, até porque “as queixas são para os lentos”.

Resistir à dor deixa de ser sinónimo de resistência, passa a ser um imperativo. Todos têm

um corpo, e a sua existência parece ser especialmente relevante neste período, até porque

“os corpos estão mais perto uns dos outros”. Emerge a tenacidade como imperativo moral:

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sobrevivem mais e melhor à guerra os que sentem menos a dor, até porque, relembre-se,

“a brutalidade instalou-se e já não magoa ninguém”. Os poucos a quem a brutalidade

ainda “magoa” terão de se adaptar, ou talvez não sobrevivam.

No fundo, procura-se “mostrar a força nua, motivada pela densa vontade de

(sobre)viver a qualquer custo. A qualquer custo significa que sobreviver pode custar a

moral, a alteridade” (Eiras 2015: 113). Acima da moral ou dos traços identitários está a

sobrevivência, que assume revigorada importância mediante as circunstâncias, e de súbito

“os valores, a compaixão, a cultura constituem um excesso a justificar”. Em Um Homem:

Klaus Klump “os animais sabem a lei: a força, a força, a força. Quem é fraco cai e faz o

que o forte quer” (Tavares 2003: 22). A possibilidade desta queda incita o homem a

“mostrar a força nua” de que fala Eiras: “um homem insignificante com raiva torna-se

forte” (2015: 46).

Talvez isto explique a própria trajetória de Klump, um homem que, no começo da

narrativa, “quer fazer livros que perturbem os tanques em definitivo” (Tavares 2003: 13),

ou seja, uma personagem de comportamento pacífico, contrário ao do caos que se instala

na cidade. É o próprio narrador que o diz: “amigos de Klaus já haviam sido mortos.

Amigos de Klaus já tinham matado ou tentado matar. Klaus, esse, mantinha-se neutro.

Ainda não entraram na minha tipografia, dizia Klaus. (…) Klaus detestava a acção,

enojava-se com a terra” (idem: 23). Este perfil é contrastante com o do mesmo homem

que, páginas à frente, se encontra na prisão. Klaus encontra-se rodeado de “loucos”:

Os presos eram gente louca e velha que não abria os olhos. O homem de queixo com baba canta

uma canção infantil e repete-a quinze vezes. Klaus está sozinho. (…) Estavam todos nus: com ele

oito homens nus na mesma cela e um deles a aproximar-se a pôr baba na nuca de Klaus. Eram

loucos. (…) Klaus tenta afastar-se, ir para o canto, mas um deles tem um arame e é aquele que se

babou na nuca de Klaus. (…) Assustado e encostado a uma parede tentou sinais de delicadeza.

(50)

De súbito, a nudez é literal, a “força nua” é a única lei da prisão onde Klaus se

encontra. Não lhe sobra o refúgio da tipografia ou dos livros, nem outra hipótese que não

também “saber a lei”, como os animais: “a força, a força, a força”. A identidade de Klaus,

um homem que acredita no poder dos livros, está subitamente alterada. Como é referido,

por exemplo, por Kenneth Gergen, em The Saturated Self: Dilemmas of Identity in

Contemporary Life, talvez a identidade esteja “constantly in flux and cannot be isolated

as a permanent construction” (2000: 122). Estas mudanças dos traços reconhecidos a

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Klaus, em função da realidade em que se encontra, para aí apontam. E talvez a urgência

de sobreviver explique a forma como a identidade de Klaus progressivamente se altera,

acabando alguns meses depois por atacar o pai, que o visita na cadeia:

Uma semana mais tarde, o pai de Klaus, sozinho, entrou na prisão. (…) Vinha com passos

vigorosos, vinha feliz. Sentou-se no gabinete de visitas à espera do filho. (…) Viu Klaus lá ao

fundo a aproximar-se. (…) O pai de Klaus olhou instintivamente para a mão direita de Klaus:

estava a sangrar. Não percebeu o que se passava. Continuou a olhar para a mão. Klaus tinha na

mão direita um caco de vidro que apertava com força. (…) O pai preparava-se para perguntar o

que lhe tinha acontecido à mão: Klaus acelerou os últimos passos, levantou a mão direita, e com

força, cravou o vidro no olho do pai. Com toda a força que tinha. (Tavares 2003: 58)

Novamente, “a força”. O comportamento de Klaus, um homem que “detestava a

acção”, altera-se, fruto da violência a que é sujeito na cadeia. A “força nua” de Klump é

agora um requisito à sobrevivência. Como diz Maria Isabel Silveira Bordini, a alteração

do comportamento de Klaus parece “resultado do processo de transformação que a prisão

exerceu sobre ele: ele se tornou um delinquente, alguém incapaz de agir segundo as

normas de convivência social” (2014: 132). A identidade é um conceito mutável: como

diz Bordini, Klaus transforma-se em “delinquente”, estando no meio de delinquentes.

Reportando-se à peste, tema já citado, Foucault afirma:

[As] leis suspensas, os interditos levantados, o frenesi do tempo que passa, os corpos se misturando

sem respeito, os indivíduos que se desmascaram, que abandonam a sua identidade estatutária e a

figura sob a qual eram reconhecidos, deixando aparecer uma verdade totalmente inversa (1975:

164)

O contexto de guerra parece ter efeitos muito semelhantes nos traços de

personalidade das personagens. Um evento concreto eclode na cidade, condiciona a vida

dos intervenientes, estabelece-lhes novos hábitos, erradica outros. Em Foucault, uma

epidemia suspende leis, levanta interditos, e torna o corpo “misturado e sem respeito”: no

fundo, faz os indivíduos “abandonarem a sua identidade”. O mesmo se passa na guerra

tavariana, que impõe adaptações no estilo de vida e identidade das personagens. Serão

essas alterações circunstanciais? O que acontecerá depois do caos?

Finda a guerra, Klaus assume o papel que todos esperavam e assume os negócios

da família: “Klaus trabalha muito. Klaus voltou há bastante tempo à cidade. E ocupou o

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seu lugar na família Klump” (Tavares 2007: 128). E isto é especialmente curioso, por

apenas surgir depois de uma série de descrições relativas à mudança em curso na cidade,

que via a guerra findar: Klaus muda, mas apenas depois de a cidade também mudar.

Verifica-se que, também aqui, a identidade como resultante de um “dynamic interplay

between individual and context” (Schwartz 2006: 4). Ou seja, o individual também é

social: este “dynamic interplay” é fundamental para a definição os traços identitários.

Esta informação é apresentada de forma progressiva: “sucediam-se os burburinhos

de que a guerra podia estar a aproximar-se do fim” (Tavares 2007: 109); “E foi então, que

para a sua surpresa leu, em toda a primeira página: A GUERRA TERMINOU!” (116).

Terminada a guerra, “a democracia instala-se no país como uma borracha que se vai

derretendo lentamente” (121). São feitas algumas considerações sobre esta progressiva

instalação e sobre o que ela significa nos hábitos da população:

Certos índices para a paz. Os homens justam-se menos, há menos grupos. É um facto: a solidão

aumenta nas nações pacíficas. (…) A boca é importante em tempo de guerra: as pessoas têm fome;

em tempo de democracia, os lábios mantêm a importância, mas agora são ocupados pelos

discursos. A linguagem é mais utilizada em tempo de paz, sobre isso não há dúvida: em tempo de

guerra não há conversas, apenas informações. (…) Entretanto a economia cresceu. Como as

crianças crescem. Certos números que eram pequenos são agora grandes. Criam-se profissões para

organizar o mundo. Todo o espaço, cada metro quadrado, deverá estar ocupado por profissões.

(ibidem: 128)

Na guerra, Klaus lembra a forma como Foucault descreve a peste, e assume uma

identidade violenta, que tem apogeu na agressão ao próprio pai. Quando Foucault

descreve “as leis suspensas, os interditos levantados, o frenesi do tempo que passa, os

indivíduos que (…) abandonam a sua identidade estatutária e a figura sob a qual eram

reconhecidos” (1975: 164), talvez possamos interpretar estes fatores como potenciadores

da mudança individual: da mudança na formação de identidade que, como já citado, “é

uma obra-prima que se faz dia e noite, [que] demora mais tempo que a fazer um palácio,

[e que] (…) é um trabalho onde se entra, requer esforço” (Tavares 2007: 29).

Recuperemos as definições de Fearon. Parece evidente que, para Klump, herdeiro

de um dos maiores impérios da cidade, a ideia de quem ele próprio é, e de como se

relaciona com os outros muda consideravelmente ao longo da narrativa. Klaus passa de

legítimo herdeiro de um império a presidiário violentado e violento, para de novo assumir

o papel de empresário. A sua identidade flutua em função da realidade envolvente. O

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mesmo se passa com a identidade social, definida por Herrigel como “desire for group

distinction, dignity, and place within historically specific discourses (…) about the

character, structure, and boundaries of the polity and the economy” (apud Fearon 1999).

Para entender como a guerra inverte prioridades e ideais, nada como analisar a

retoma da ordem na cidade. O narrador diz que a economia cresceu, as crianças

cresceram, e o objetivo é agora a distribuição de empregos. Ou seja, o “character,

structure, and boundaries of the polity and the economy” mudam assim que o conflito

termina. A guerra assume-se como um agente interruptivo da identidade social, e o seu

fim permite que tudo se aproxime do que antes existia.

Como foi possível verificar em capítulos anteriores, também os traços de

personalidade, condicionados por contextos de conflito, constituem uma das principais

marcas da narrativa kunderiana. Por exemplo, em A Brincadeira, procura-se

deliberadamente condicionar a posição política dos exilados no quartel de Ostrava. Em A

Insustentável Leveza do Ser, Tomas muda de profissão devido à perseguição política, e

mesmo nessas circunstâncias é feita uma tentativa para que se retrate publicamente.

He also believed that his country was losing its identity under the Communist regime. The idea is

that it is not only the existence of the individual but all the social and cultural phenomena which

constitute the consciousness of the individual became victim under a repressive regime. Culture

which is the product of human pain, is, in fact, the first victim of the power which negates human

freedom. For Kundera individuality, freedom and tolerance, the greatest human values idealised

by western civilization since the dawn of the modern era, seem to be suddenly under siege. (Asif

2014: 171)

Kundera parece, então, ter como algumas das suas principais preocupações a

perda de identidade dos checos durante o regime comunista: a repressão está no poder e

a individualidade está em risco.

George Orwell, em Why I Write, declara “não ser possível conhecer as razões de

um autor sem se saber algo do seu percurso prévio” (2008: 16). Talvez seja uma afirmação

perigosa: conhecer epitextos do autor pode enriquecer a obra com novas interpretações

mas também condicionar a leitura. Orwell fala das “razões do autor”, dizendo que “os

seus temas serão determinados pela época em que vive – pelo menos, isto é verdade no

que respeita a épocas tumultuosas e revolucionárias, como a nossa” (ibidem). Em

entrevista ao New York Times, Kundera fala também sobre opressão e literatura:

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Let us not be romantic. When oppression is lasting, it may destroy a culture completely. Culture

needs a public life, the free exchange of ideas; it needs publications, exhibits, debates and open

borders. Yet, for a time, culture can survive in very difficult circumstances. After the Russian

invasion in 1968, almost all Czech literature was banned, and circulated only in manuscript. Open

public cultural life was destroyed. Nonetheless, the Czech literature of the 1970's was magnificent.

(…) It was then, at the most perilous time of its existence, that Czech literature gained its

international reputation. (1985)

Kundera parece escrever, então sobre a opressão do regime checo e sobre a

resistência enquanto forma de incentivar o que é categorizado como “free exchange of

ideas”. Contudo, parecem também ser relevantes dois pontos referidos por Orwell:

Descontando a necessidade de ganhar a vida, penso que há quatro grandes motivos para escrever,

em todo o caso, para escrever prosa (…) são eles:

iii) Impulso histórico. O desejo de ver as coisas como são, de descobrir factos verdadeiros, e de os

armazenar para uso da posteridade.

iv) Propósito político (…) o desejo de empurrar o mundo numa dada direcção, de alterar as ideias

das outras pessoas acerca do tipo de sociedade pela qual devem lutar. (idem: 17)

Estes dois motivos parecem fundamentais para enquadrar a obra de Kundera..

Usando a expressão orwelliana, Kundera debruça-se sobre um “período tumultuoso” pelo

qual passou. Kundera começa a publicar romances em 1967 com A Brincadeira, obra que

lhe valeu entrada direta nos registos censórios do regime totalitário do seu país. Parte da

sua obra é testemunho desse período histórico. Contudo, talvez a análise possa ser feita

de forma mais lata, como um testemunho do sofrimento do oprimido às mãos do opressor.

Será possível entender a obra de Kundera como um marco de resistência à opressão?

Uma das obras de Kundera chama-se, precisamente, A Identidade. Antes de

lermos as considerações da narrativa sobre esse conceito, atente-se no texto da contracapa

na edição portuguesa (Edições Dom Quixote, 2010):

Chantal e Jean-Marc vivem juntos em Paris, e amam-se tanto que por vezes parecem confundir-

se. Há situações em que, por um instante, nenhum dos dois se reconhece, em que a identidade do

outro se dissolve e em que, por tabela, cada um duvida da sua própria identidade. (…) Mas em que

instante, diante de que gesto, em que circunstância precisa começa esse processo aterrador?

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Mesmo antes da leitura do texto, é fácil entender que estamos perante novos

prismas de análise do conceito de identidade. Desta vez, não parece ser um poder político,

ou sequer uma instituição, que altera o status quo de um indivíduo, um conjunto

circunscrito de indivíduos, ou uma cidade inteira. Parece mesmo que o protagonista se

submete a essa alteração, ao sujeitar-se ao relacionamento com a outra personagem.

Trata-se de alterações deliberadas? Serão imposições de Chantal a Jean-Marc, ou vice-

versa? Afetarão a sua relação com os outros?

Façamos estas questões ao texto. A narrativa fala de Chantal e Jean-Marc; as

primeiras páginas são dedicadas a uma retrospetiva do passado da protagonista: Chantal

já tinha sido casada, relação da qual tinha nascido um filho, entretanto morto. Um curioso

episódio marca o início da narrativa. Chantal “acordou a meio da noite depois de um

longo sonho (…) povoado de pessoas do seu passado: a mãe (…), antigo marido” (1997:

10). Este episódio parece causar algum desconforto a Chantal, que reflete sobre “o mal-

estar suscitado pelo sonho”:

O que a perturbou assim, pensa ela, foi a supressão do tempo presente operada pelo sonho. Está

apaixonadamente apegada ao seu presente e não o trocaria por nada deste mundo, nem pelo

passado nem pelo futuro. Por isso é que não gosta de sonhos: impõe uma inaceitável igualdade

entre as diferentes épocas de uma mesma vida, uma contemporaneidade niveladora (ibidem)

Este excerto parece explicar o texto da contracapa do livro: Chantal demonstra

desagrado com uma “contemporaneidade niveladora”, ou seja, com o equilíbrio que os

sonhos parecem sugerir entre presente e passado. Numa relação aparentemente idílica

com Jean-Marc, sente essa nivelação como uma ameaça ao presente: como se o sonho

pudesse colocar um passado, do qual pretende distância, e o presente, que se deseja, num

mesmo patamar. Contudo, Kierkegaard dizia que “it is perfectly true, as the philosophers

say, that life must be understood backwards, but they forget the other proposition, that it

must be lived forwards” (1996: 164). Ou seja, o presente surge com base no passado, e

Chantal também parece pensar desta maneira: “recordou-se de repente do filho que lhe

morrera e foi inundada por uma onda de felicidade” (Kundera 1997: 41). Se estas palavras

parecem duras, mais à frente é explicado que “significava que a sua presença ao lado de

Jean-Marc era absoluta graças à ausência do filho” (45).

Chantal sabe que a separação do ex-marido e o aparecimento de Jean-Marc foram

consequência da morte do filho. E ainda que os sonhos sejam desconfortáveis, não

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significa que Chantal não saiba o relevo do papel desses sonhos. O mesmo se passa em

relação ao futuro: “pode-se sofrer de nostalgia na presença do amado quando se entrevê

um futuro em que o amado já não existe; quando a morte do amado, invisível, está já

presente” (ibidem). Tudo isto parece consequência da relação entre as duas personagens,

e um acontecimento é especialmente relevante para entender melhor o que as une:

Ela disse-lhe que dormira mal, que estava cansada, mas não conseguiu convencê-lo, e ele

continuou a interroga-la; sem saber como fugir a esta inquisição do amor, ela queria dizer-lhe

qualquer coisa engraçada (…) e encontrou dentro da sua cabeça a frase que lá ficara (…): Os

homens já não se voltam por minha causa. – recorreu a esta frase para se furtar a qualquer discussão

séria (…) mas a voz era amarga e melancólica. (…) ouvia Jean-Marc a repetir as suas palavras:

“Os homens já não se voltam por tua causa. É mesmo por isso que estás triste?” (27)

O narrador volta a referir, em consequência deste episódio, que Chantal não sabia

o que fazer para “desviar aquele olhar perscrutador” (ibidem). Ou seja, voltamos a assistir,

como na obra tavariana, a traços identitários condicionados por terceiros. Contudo, desta

vez a coerção é fruto de uma relação amorosa: Chantal adapta-se ao julgamento e

expectativas de Jean-Marc, e isso acontece mesmo numa esfera não visível, como no

sonho com pessoas do seu passado. A adaptação identitária passa-se na dimensão de uma

só pessoa e em função das expectativas de outra, mas Chantal parece ser vítima de um

poder emocional que condiciona os seus pensamentos e atitudes. Aliás, o narrador diz: “o

episódio foi esquecido como milhares de outros” (idem: 29). Ou seja, episódios deste

género são recorrentes, e a relação de Chantal e Jean-Marc, ainda que aparentemente

idílica, vive de cedências permanentes. Talvez seja o que Barthes apelidava de

“annulment”, em A Lover’s Discourse: Fragments:

Here then the other is annulled by love: I derive a certain advantage from this annulment; (…) I

reabsorb it into the magnificence and the abstraction of amorous sentiment: I soothe myself by

desiring what, being absent, can no longer harm me. Yet, immediately thereafter, I suffer at seeing

the other (whom I love) thus diminished, reduced, and somehow excluded from the sentiment

which he or she has provoked. I feel myself to be guilty and I blame myself for abandoning the

other. (1990: 32)

Chantal, usando a expressão de Barthes, “anula” parte do seu passado, que

continua a afetar o seu inconsciente e desempenha parte fundamental do seu presente.

Mais que isso, o tom inquisitório do marido, diante da sua frustração por “os homens já

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não se voltarem”, parece forma de anular o traço identitário que sustenta essa tristeza: o

facto de Chantal se preocupar com “os homens já não se voltarem”.

Recordemos a definição de “identidade” citada no começo: “identity is “people’s

concepts of who they are, of what sort of people they are, and how they relate to other”

(Hogg e Abrams apud Fearon 1999). Chantal sente-se incomodada por “os homens já não

se voltarem por sua causa”, mas entende esse comportamento como errado, tenta reprimi-

lo: afinal, está satisfeita com a relação com Jean-Marc. Sente-se incomodada pelos sonhos

com pessoas do seu passado: se está plenamente satisfeita com o presente, por que é que

o seu inconsciente insiste em invocar o passado? Será o poder que a relação com Jean-

Marc exerce sobre si suficientemente forte para adaptar os seus comportamentos,

exacerbar receios e instigar à procura de novos comportamentos? Não significa também

isso alterar a sua identidade?

Noutro capítulo, o narrador fala, em retrospetiva, da morte do filho de Chantal.

Após a morte do filho, a cunhada disse-lhe: “Estás triste de mais. Tens de ter outro filho”

(Kundera 1997: 33). Isto leva Chantal a uma defesa da individualidade do filho.

A observação da cunhada apertou-lhe o coração. Filho: existência sem biografia. (…) Mas ela não

queria esquecer o filho. Defendia a sua individualidade insubstituível. Contra o futuro, defendia

(…) o passado escurado e menosprezado do pequeno morto. Passada uma semana, disse-lhe o

marido: (…) “Temos de ter outro filho sem demora. Depois disso, hás-de esquecer.” Foi então que

nasceu em si a decisão de o deixar. (idem: 33)

Chantal deixa o marido em defesa do “pequeno morto”, que lhe parece estar a ser

esquecido por quem a rodeia. Insistem com ela para que tenha outro filho, mas Chantal

resiste ao poder emocional do ex-marido. É descrito que Chantal “se recusou a fazer amor

com ele (…) [porque] os seus convites eróticos recordavam-lhe a campanha familiar por

uma nova gravidez” (34). Evidencia-se a relação do poder emocional com as mudanças

identitárias ainda que, neste caso, Chantal tenha oferecido resistência. Neste caso, a

personagem parece entender a sua tristeza como forma de resistência à diluição da

identidade do filho, como barreira ao poder emocional. Como na generalidade das

situações deste romance, continuamos dentro de um quadro do que foi definido como

identidade individual. Estamos muito distantes de alterações ao comportamento de

terceiros por sociedades totalitaristas ou por instituições especializadas.

Contudo, como já foi descrito, nas narrativas kunderianas são recorrentes as

sociedades totalitárias: enquanto parte central da narrativa ou como pano de fundo. O

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contexto histórico e geográfico é concreto. Parte considerável das suas personagens

adapta comportamentos e discursos para viver num regime totalitário, em que os

prevaricadores são punidos – relembremos Ludvik, encarcerado no quartel de Ostrava,

em A Brincadeira. Os regimes totalitaristas parecem, de forma geral, máquinas bem

oleadas para moldar a identidade dos indivíduos ao que lhes parece mais conveniente:

Contudo, o que caracteriza a propaganda totalitária melhor do que as ameaças directas e crimes

contra indivíduos é o uso de insinuações indirectas, veladas e ameaçadoras contra todos os que

não derem ouvidos aos seus ensinamentos, seguidas de assassínio em massa perpetrado igualmente

contra “culpados” e “inocentes”. (Arendt 1958: 456)

Em Kundera nunca chegamos ao “assassínio em massa”, mas os restantes cenários

são frequentes. Relembremos a forma como Tomas, em A Insustentável Leveza do Ser, é

destituído do seu cargo de cirurgião, em detrimento de um trabalho de menor relevância,

por uma opinião política emitida meses antes. É-lhe proposta a readmissão no cargo de

cirurgião caso assine um texto em que se declara favorável ao regime: “Tomas leu-o [ao

texto] e teve um choque. Era bem pior do que o que o seu antigo chefe de serviço lhe

exigira (…) Havia várias referências ao seu amor pela União Soviética e à sua fidelidade

ao Partido Comunista” (Kundera 1984a: 239)

Como diz Arendt, “O totalitarismo não se contenta em afirmar (…) que o

desemprego não existe; elimina da sua propaganda qualquer menção sobre os benefícios

para os desempregados” (1958: 452). Por vezes, a forma de “eliminar qualquer menção”

passa por perseguir e prejudicar os difusores da mensagem que se opõe à propaganda.

Em O Livro do Riso e do Esquecimento, o narrador descreve o seguinte episódio:

Pouco depois de os Russos ocuparem o meu país, em 1968, expulsaram-me do meu trabalho (como

a milhares e milhares de outros checos), e ninguém teve o direito de me dar outro emprego. Nessa

altura, amigos jovens vieram ter comigo, eram demasiados jovens para já estarem nas listas dos

russos, e, portanto, podiam ficar nas salas de redação (…) Estes bons e jovens amigos (…)

propuseram-me que escrevesse com os nomes deles teatro radiofónico e televisivo, peças de teatro,

artigos, reportagens, argumentos para filmes, para que pudesse ganhar a vida. (Kundera 1979: 62)

Novamente, o cenário é Praga dominada pelo regime comunista. O narrador relata

que milhares de pessoas, “nas listas dos russos”, ficavam privadas dos seus empregos. De

seguida, descreve como isso condicionou a vida profissional de cada um, forçando a que

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procurassem alternativas. Atente-se como, novamente, o poder surge como agente

modificador do estilo de vida dos oprimidos:

Utilizei alguns destes serviços, mas a maior parte das vezes recusei-os (…) era perigoso. A polícia

secreta queria-nos famintos, submeter-nos pela miséria, obrigar-nos a capitular e a retractar-nos

publicamente. Por isso fiscalizava, vigilante, as penosas saídas através das quais tentávamos

escapar ao cerco, e castigava duramente os que ofertavam o seu nome. (ibidem)

A polícia secreta “queria-[n]os famintos”, para que se retratassem e mudassem a

posição pública sobre a “pureza da ideologia marxista” (idem: 63). No fundo, procuravam

converter, de forma forçada, a ideologia política dos que acreditavam em ideias

diferentes. Restringindo a atuação profissional dos transgressores, obrigava a uma

manifestação pública de acordo com os princípios e ideias do próprio regime, como se de

uma conversão forçada se tratasse sem, ainda assim, evidenciar sinais de força. Manifesta-

se o uso do que Arendt apelida de “predição infalível”: “uma vez no poder, o chefe das

massas cuida de algo que está acima de quaisquer considerações (…) fazer com que as

suas predições se tornem verdadeiras” (1958: 461).

Por outro lado, essa predição surge como forma de eliminar uma classe perigosa

para o poder instituído:

O efeito propagandístico da infabilidade, o extraordinário sucesso que decorre da humilde pose do

agente interpretador de forças previsíveis, estimulou nos ditadores totalitários o hábito de anunciar

(…) profecias. Estaline, no discurso proferido perante o Comité Central do Partido Comunista em

1930, ao descrever os seus dissidentes no partido como representantes de “classes agonizantes”,

abriu caminho para a sua eliminação física. Em estilo totalitário, esta definição anunciava a

destruição física daqueles cuja “agonia” acabava de ser profetizada. (idem: 462)

Por estarmos a falar igualmente de um regime comunista, ainda que em períodos

históricos (primeira metade do século) e países (antiga União Soviética) diferentes, talvez

estas palavras possam ser extrapoladas para a realidade kunderiana. Os dissidentes do

partido comunista estavam condenados ao estatuto de “classe agonizante”, e para o

regime se certificar da infabilidade dessa previsão, procura-se condicionar a vida desses

elementos. Os responsáveis do regime procuram que estes se retratem e deixem de fazer

parte dessa “classe agonizante”. De uma forma ou de outra, a sua identidade é alterada:

seja pela mudança abrupta no estilo de vida (emprego, rendimentos, etc.), seja pela forma

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como, publicamente, declaram uma posição política diferente da sua. Como questiona

Asif, “if a man is not what he claims to be, if his intentions seems to be immaterial, and

he is forced to identify with an image which, he thinks, does not resemble with his real

self then the question is where is the real self?” (2014: 179). Como já verificámos, este

não é o único romance de Kundera em que uma personagem “is forced to identify with

an image which, he thinks, does not resemble” as suas próprias posições sobre o tema.

Aliás, este discurso, situado num contexto totalitário, bem identificado geográfica

e temporalmente, não é exclusivo de apenas um romance. Voltemos a A Insustentável

Leveza do Ser. O narrador disserta sobre os regimes comunistas:

Quem pensa que os regimes comunistas da Europa Central são exclusivamente obra de criminosos

deixa na sombra uma verdade fundamental: é que os regimes comunistas não foram edificados por

criminosos, mas por entusiastas, convencidos de que tinham descoberto a única via possível para

o paraíso. E defendiam essa via com unhas e dentes, chegando inclusivamente a mandar matar

muito boa gente por causa disso (…) O debate resumia-se, portanto, a uma questão: os comunistas

não saberiam mesmo? Ou estavam só a fingir que não sabiam de nada? (…) Um imbecil sentado

num trono pode ser desculpado de tudo só pelo facto de ser imbecil? (Kundera 1984: 224)

Ou seja, mais do que condicionar traços identitários e, consequentemente, atitudes

da população, de forma mais ou menos deliberada, os regimes comunistas totalitários

condicionam a ação dos seus entusiastas. Cegos pelo brilho do que julgam ser “a única

via possível para o paraíso”, mandam “matar muito boa gente”. Trata-se de atitudes

condicionadas pelas circunstâncias, e semelhante se passou em algumas das situações

descritas na tetralogia, de Tavares – como exemplo, relembremos os comportamentos de

Klaus Klump, antes e depois de a guerra acabar. Como tivemos oportunidade de analisar,

a definição de norma oscila em função dos acontecimentos: o mesmo se passa com os

traços identitários. Aliás, na obra de Kundera e Tavares, os regimes totalitários e a guerra

parecem ser agentes perturbadores da norma e da identidade.

Algumas páginas à frente, o narrador volta a insistir na forma como o poder

totalitário condiciona as atitudes dos indivíduos no poder:

Numa sociedade onde coexistem várias correntes políticas cuja influência se anula ou se limita

reciprocamente, sempre se vai conseguindo escapar à inquisição do kitsch; o indivíduo ainda pode

salvaguardar a sua individualidade e o artista criar obras inesperadas. Mas, nos países onde um

único partido detém todo o poder, não há escapatória possível ao império do kitsch totalitário. Se

digo totalitário, é porque tudo quanto pode fazer perigar o kitsch é banido da vida: não só toda e

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qualquer manifestação de individualismo (…), toda e qualquer manifestação de cepticismo (…),

toda e qualquer manifestação de ironia (Kundera 1984: 314)

Se “um único partido detém todo o poder”, a identidade está ameaçada. As

“manifestações de individualismo”, de que fala o narrador, parecem bons indicadores da

forma como os traços identitários são definidos. Se as manifestações de traços próprios

estão condicionadas, o poder totalitário neutraliza o projeto identitário, pessoal e coletivo.

O narrador diz mesmo que numa sociedade totalitária, “não há escapatória possível ao

império do kitsch totalitário”. O que quer dizer o narrador com “kitsch totalitário”?

Haverá identidade que lhe sobreviva?

Em A Arte do Romance, Kundera fala sobre kitsch:

Quando estava a escrever A Insustentável Leveza do Ser, sentia-me um pouco inquieto por ter feito

da palavra «kitsch» uma das palavras-base do romance. Na versão francesa do célebre ensaio de

Hermann Broch, a palavra «kitsch» é traduzida por «arte da pacotilha» (…) Há a atitude kitsch. O

comportamento kitsch. A necessidade kitsch do homem-Kitsch: é a necessidade de se olhar ao

espelho da mentira que embeleza e de aí se reconhecer com uma satisfação enternecida. (1986:

153)

Talvez o facto de o narrador categorizar o totalitarismo de A Insustentável Leveza

do Ser como “kitsch totalitário” possa ser uma forma de apelidar esse totalitarismo de

“mentira que embeleza”. Parece ser o que Hannah Arendt refere como “ficção central”:

algo que procura criar “uma sociedade cujos membros ajam e reajam segundo as regras

de um mundo fictício” (1958: 481), uma sociedade em que a identidade individual seja

preterida em função de uma identidade coletiva, com raízes nessa “ficção central”.

Até porque, como diz John Bayley, no ensaio “Kundera and Kitsch”, “in a

Communist regime there is no private life, but only bottomless cynicism on the one side

and measureless kitsch on the other” (2003: 24). O cinismo, talvez consequente da

consciência da repressão totalitária, ocupa toda a vida privada. Não há como evidenciar,

sem medo das consequências, traços de personalidade num cenário repressivo. A

identidade coletiva está, então, condicionada pelo “measureless kitsch”, ou por aquilo a

que Kundera chama “a mentira que embeleza”. Talvez embeleze a “ficção central”, de

que fala Arendt, destruindo a possibilidade de uma identidade intocada.

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III. Conclusão: a originalidade e as “ideias do mundo”

Em Biblioteca, Gonçalo M. Tavares escreve “sobre 200 autores que [o]

marcaram” (Tavares 2017b). Entre eles encontra-se Milan Kundera.

Antes de refletir sobre o comentário de Tavares à obra do checo, e porque falamos

de autores de gerações diferentes, parece que, a existir influência, será a de Kundera sobre

Tavares. Kundera é mais velho, publicou quase toda a sua obra antes da saída de Livro

da Dança (2001), primeiro livro de Tavares, e a inclusão de Kundera na obra Biblioteca

parece apenas mais um sinal desse peso. Ambos, como vimos, parecem ser herdeiros de

uma linhagem de romance-reflexão, expressão de Vergílio Ferreira.

Em A Vida Não É Aqui, num dos comuns comentários à narração, o narrador

disserta sobre este processo de influência, falando sobre o protagonista do romance,

Jaromil: “não tinha já a certeza se algo do que ele pensava ou sentia era verdadeiramente

seu, ou se os seus pensamentos eram meramente parte das ideias do mundo, que sempre

haviam existido, prontas a usar, e que se emprestavam, como livros numa biblioteca”

(Kundera 1969: 108). Talvez todos os autores sofram da angústia de Jaromil, e em algum

momento duvidem da originalidade das suas narrativas e das ideias que as sustentam. E

talvez a melhor maneira de lidar com o que Harold Bloom, anos mais tarde, viria a

apelidar de Angústia da Influência (1973) seja o reconhecimento dessa inevitabilidade.

Como diz Tavares, o ponto de partida de A Biblioteca “é a obra dos autores”, ainda que

exista lugar para “associações inconscientes e puramente individuais” (2004a: 9). E essas

associações talvez possam não ser tão individuais assim, talvez sejam as “ideias do

mundo” de que o narrador de A Vida Não É Aqui fala, que estão prontas a usar.

Exploremos o que se situa entre as duas possibilidades. Parece evidente que a

questão da originalidade é transversal a diferentes formas de expressão artística. À

questão “do you consider yourself an original thinker?”, David Bowie responde:

Not by any means. More like a tasteful thief. The only art I’ll ever study is stuff that I can steal

from. I do think that my plagiarism is effective. Why does an artist create, anyway? The way I see

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it, if you’re an inventor, you invent something that you hope people can use. I want art to be just

as practical. (…) The more I get ripped off, the more flattered I get. But I’ve caused a lot of

discontent, because I’ve expressed my admiration for other artists by saying, ‘Yes, I’ll use that,’

or, ‘Yes, I took this from him and this from her’ (1976)

Para Bowie, admirar significa reaproveitar. Ainda que estes caminhos possam ser

um pouco mais sinuosos do que na descrição de Bowie, parece-nos natural que a leitura

e a admiração resultem no reaproveitamento de algumas características do autor lido.

Tavares, em Biblioteca, expressa-se de forma críptica – como de resto, é o registo

comum do texto em causa – sobre a obra de Kundera:

Entre os vivos há cálculos, medo, e uma ou outra vez: gemidos (quando dois ou mais se apaixonam

ou se matam).

Há ainda a gentileza, que a frase anterior não incluía.

O moribundo esquece o nome, mas não esquece o corpo.

Se tiveres duas dores darás atenção à dor que acabou de surgir. E no amor sucede o mesmo.

O prólogo à realidade é magnífico, mas o pior vem depois. (2004a: 120)

Abrirá este texto novas interpretações da obra kunderiana? Possibilitará novos

caminhos comparatistas entre os dois autores?

Parece fácil, contudo, encontrar algumas palavras que remetem para os universos

dos dois autores: por exemplo, o “medo” é uma sensação muito comum na repressão

totalitarista de Kundera, e prolifera nas relações entre poderosos e subjugados, ou no caos

de O Reino. Em Tavares o “corpo” surge amiúde como último reduto de resistência, já

depois de “esquecer o nome”. Em Kundera, como o texto de Tavares indica, as referências

ao corpo talvez sejam “a dor” que, entre as duas, “acabou de surgir”: “o pior vem depois”.

O corpo e a dor talvez podem surgir enquanto metáfora da forma da prosa kunderiana,

em que ação e reflexão surgem com papéis diferenciados, mas complementares. Em

Kundera, são comuns os prólogos à “realidade”: os comentários do narrador costumam

surgir com a descrição da ação. Se o prólogo for entendido como a posição do narrador

sobre a realidade, será por isso que “o pior vem depois”? Será o “pior” o mundo caótico

da descrição da ação das personagens, na qual a posição de quem conta a história perde

importância para a narração?

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Talvez só Tavares saiba responder a estas questões. O que parece evidente é que,

além de partilharem alguns mecanismos de construção romanesca, as relações de poder

surgem como uma temática recorrente na obra de Tavares e Kundera.

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Bibliografia

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2. Gonçalo M. Tavares

2.1. Ativa

TAVARES, Gonçalo M.

2003 Um Homem: Klaus Klump, Lisboa, Editorial Caminho.

2004a Biblioteca, Porto, Campo das Letras.

2004b 1, Lisboa, Relógio D’Água.

2005 Jerusalém, Lisboa, Editorial Caminho.

2006 A Máquina de Joseph Walser, Lisboa, Editorial Caminho.

2007 Aprender a Rezar na Era da Técnica, Lisboa, Editorial Caminho.

2010a Matteo Perdeu o Emprego, Porto, Porto Editora.

2013a Atlas do Corpo e da Imaginação, Lisboa, Editorial Caminho.

2017a A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-Mau-Olhado, Lisboa, Bertrand Editora.

2007b “Gonçalo M. Tavares: ler para ter lucidez», in Revista Entre Livros,

www2.uol.com.br/entrelivros/artigos/goncalo_m__tavares_-ler_para_ter_lucidez-.html, acesso a

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2010b “Português Gonçalo M. Tavares fala sobre maldade, Saramago e o Brasil” in Folha de S. Paulo,

www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2010/07/767901-portugues-goncalo-m-tavares-fala-sobre-

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2010c «Gonçalo M. Tavares, literatura como projeto de vida», in Saraiva Conteúdo,

https://blog.saraiva.com.br/goncalo-m-tavares-literatura-como-projeto-de-vida, acesso a 25 de

abril de 2018.

2011 “Gonçalo M. Tavares: «A moralidade da máquina está a alastrar pela sociedade»” in Euronews,

http://pt.euronews.com/2011/05/31/goncalo-m-tavares-a-moralidade-da-maquina-esta-a-alastrar-

pela-sociedade, acesso a 5 de dezembro de 2017.

2013b «Gonçalo M. Tavares Uma ficção que pensa», in Jornal de Letras,

http://visao.sapo.pt/jornaldeletras/letras/goncalo-m-tavares-uma-ficcao-que-pensa=f75761,

acesso a 25 de abril de 2018.

2017b «Gonçalo M. Tavares em entrevista: “A leitura é só o início”», in Prelo – Imprensa Nacional Casa

da Moeda, http://prelo.incm.pt/p/texto-e-fotografias-tania-pinto-ribeiro.html, acesso a 29 de abril

de 2018.

2017c “Gonçalo M. Tavares: “Gosto da Ideia de uma Arca de Noé de Livros”, in Revista Somos Livros,

https://bertrandptsomoslivros.blog/2017/04/06/goncalo-m-tavares, acesso a 6 de novembro de

2017.

2017d “Gonçalo M. Tavares: «Num mundo irreal seria possível internar uma multidão louca»”, in Revista

Estante, www.revistaestante.fnac.pt/entrevista-goncalo-m-tavares, acesso a 2 de dezembro de

2017.

2.2. Passiva

BERNARDINO, Lígia

2014 Limiares do Humano – Estudo sobre Jorge de Sena, Maria Gabriela Llansol e Gonçalo M.

Tavares, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

BORDINI, Maria da Silva

2014 O Poder e a Violência em O Reino, Curitiba, Universidade Federal do Paraná.

BRITO, Sandra Beatriz Salenave de

2017 “O reino de Gonçalo M. Tavares como uma representação da sociedade contemporânea”, in

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http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/letronica/article/view/25076/16309, acesso a 23

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EIRAS, Pedro

2015 Platão no Rolls-Royce: Ensaio sobre Literatura e Técnica, Porto, Edições Afrontamento.

2016 “O labirinto sem saída: Gonçalo M. Tavares e W. G. Sebald”, Instituto de Literatura Comparada

Margarida Losa, Cadernos de Literatura Comparada, 34: 379-389.

FREITAS, Lopes de

2010 Parábolas do Absurdo nos «Livros Pretos» de Gonçalo M. Tavares, Lisboa, Faculdade de Ciências

Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

FURÃO, Gonçalo

2013 Entre “Bios” e “Política”: A Tetralogia “O Reino” de Gonçalo M. Tavares, Lisboa, Faculdade

de Letras da Universidade de Lisboa.

MOURÃO, Luís

2008 «Gonçalo M. Tavares – Aprender a Rezar na Era da Técnica», in Colóquio Letras,

http://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/news?i=16, acesso a 10 de janeiro de 2018.

2011 “O romance-reflexão segundo Gonçalo M. Tavares”, Diacrítica, Revista de Estudos Humanísticos

da Universidade do Minho, Dossier de Literatura e Religião, 25: 45-61.

OLIVEIRA, Renata Quintella de

2016 Um Olhar Perverso: Percorrendo O Reino de Gonçalo M. Tavares, Rio de Janeiro, Universidade

Federal do Rio de Janeiro.

STUDART, Júlia Vasconcelos

2012 A Literatura de Gonçalo M. Tavares, Investigação Arqueológica e o Dançarino Subtil nas esferas

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2. Geral

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1958 Elemente und Ursprünge totaler Herrschaft, ed. ut.: As Origens do Totalitarismo, trad. Roberto

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1968 Men in Dark Times, ed. ut.: Homens em Tempos Sombrios, trad. Ana Luísa Faria, Lisboa, Relógio

D’Água, 1991.

ASSIS, Machado de

1882 O Alienista, Porto, Porto Editora, 2017.

BARTHES, Roland

1970 Le Degré Zéro de l’Écriture; ed. ut.: Writing Degree Zero, trad. Anette Lavers e Colin Smith,

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1990 Fragments d’un Discours Amoureux; ed. ut.: A Lover’s Discourse: Fragments, trad. Richard

Howard, Penguin Books.

BLOOM, Harold

1973 The Anxiety of Influence: A Theory of Poetry, ed. ut.: A Angústia da Influência, trad. Miguel

Tamen, Lisboa, Livros Cotovia.

BOOTH, Wayne

1980 The Rethoric of Fiction; ed. ut.: A Retórica da Ficção, trad. Maria Teresa H. Guerreiro, Lisboa,

Artes e Letras / Arcádia.

BOWIE, David

1976 “David Bowie: The only art I’ll ever study is stuff that I can steal from”, in Playboy,

http://tumblr.austinkleon.com/post/726892307/david-bowie-tasteful-thief, acesso a 30 de abril de

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CUNHA E SILVA, Paulo

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1995 O Lugar do Corpo: Elementos para uma cartografia fractal, Porto, Faculdade de Ciências do

Desporto e de Educação Física da Universidade do Porto.

DURKHEIM, Emile

1895 Les Règles de la Méthode Sociologique; ed. ut.: The Rules of Sociological Method, trad. W. D.

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1999 What is identity (as we now use the word)?, Stranford, Stanford University.

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2000 The Saturated Self: Dilemmas of Identity in Contemporary Life, Nova Iorque, Basic Books.

FERREIRA, Vergílio

1980 Arte Tempo, Lisboa, Edições Rolim.

1987 Espaço do Invisível, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda.

FOUCAULT, Michael

1972 Histoire de la Folie à l'Âge Classique; ed. ut.: História da Loucura na Idade Clássica, trad. José

Teixeira Coelho Netto, São Paulo, Editora Perspectiva.

1975 Surveiller et Punir; ed. ut.: Vigiar e Punir, trad. Raquel Ramalhete, Petrópolis, Editora Vozes,

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1979 Microfísica do Poder, org. e trad. de Roberto Machado, Rio de Janeiro, Edições Graal.

GOFFMAN, Erving

1961 Asylums – Essays on the social situation of mental patients and other inmates, Nova Iorque,

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KESEY, Ken

1962 One Flew Over the Cuckoo's Nest, Londres, Penguin Classics.

KIERKEGAARD, Sören

1996 Papers and Journals, org. e trad. Alastair Hannay, Londres, Penguin Classics.

MURAKAMI, Haruki

1987 Noruwei no Mori, ed. ut.: Norwegian Wood, trad. Alfred Birnbaum, Londres, Vintage Publishing.

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1941a “O leão e o unicórnio: o socialismo e o génio inglês”, in Por Que Escrevo e Outros Ensaios, 2008,

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1941b “Literatura e totalitarismo”, ibidem, 61-67.

1946 Livros e Cigarros, ed. ut.: Books v. Cigarettes, trad. Paulo Faria, Lisboa, Antígona.

2008 Por que Escrevo e Outros Ensaios, org. e trad. Desidério Murcho, Lisboa, Antígona.

PEREIRA, Ricardo Araújo

2016 “O poder do humor é não ter poder nenhum”, in Visão, http://visao.sapo.pt/opiniao/ricardo-araujo-

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REGOLI, Robert Michael

1974 “The conception of power: reconsidered”, Kansas Journal of Sociology, Washington State

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