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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL Faculdade de Veterinária Departamento de Patologia Clínica Veterinária Disciplina de Bioquímica e Hematologia Clínica (VET03121) http://www.ufrgs.br/favet/bioquimica Relatório de Caso Clínico IDENTIFICAÇÃO Caso: 2002/2/06 Procedência: HCV-UFRGS N o da ficha original: 9659 Espécie: canina Raça: boxer Idade: 6 anos Sexo: macho Peso: 30,6 kg Alunos(as): Gustavo Luz Penz, Karine Martinez da Rocha, Otávio Ramires de Aguiar Conde, Vívian Cristina Schwantes Ano/semestre: 2002/2 Residentes/Plantonistas: Médico(a) Veterinário(a) responsável: Nina Isabel de Oliveira Baptista ANAMNESE Na metade de janeiro de 2003, o animal começou a não aceitar alimento e apresentava-se prostrado. Foi levado ao veterinário, onde foi realizado um hemograma que acusou anemia severa. Foi estabelecida a suspeita de babesiose. Foi iniciado um tratamento com Tetraciclina (antibacteriano) e Ganaseg (diazoaminodibenzamidina, antiprotozoário). Apresentou melhora durante alguns dias e voltou a apresentar o quadro inicial, manifestando, ainda, um aumento do volume abdominal. Foi levado a outro veterinário, onde foi submetido a uma punção abdominal, na qual foi observada a presença de sangue "vivo". Não foi feita qualquer medicação. Foram feitos outro hemograma e análises bioquímicas, mas o proprietário não tinha os resultados para apresentar. No dia 31 de janeiro, foi feita uma ecografia, onde não foi constatada qualquer alteração. Nesta mesma data, foi submetido a uma transfusão sangüínea e foi observada uma melhora. EXAME CLÍNICO No dia 03 de fevereiro, o animal ingressou anêmico no Hospital de Clínicas Veterinárias da UFRGS, com as mucosas ocular e oral pálidas (Figura 1). Apresentava líquido abdominal, apatia e desidratação com temperatura retal de 38,4°C. O coração não apresentava alterações. EXAMES COMPLEMENTARES Ecografia: diagnosticada presença de tumores no fígado e no baço. URINÁLISE Método de coleta: cateterização Obs.: animal apresentava quadro de oligúria, o que dificultou o exame do sedimento urinário. Exame físico cor consistência odor aspecto densidade específica (1,015-1,045) amarela fluida sui generis límpida 1,025 Exame químico pH (5,5-7,5) corpos cetônicos glicose pigmentos biliares proteína hemoglobina sangue nitritos 5,5 - - ++ - - - + Sedimento urinário (n o médio de elementos por campo de 400 x) Células epiteliais: 2 Tipo: transição Hemácias: 0 Cilindros: 0 Tipo: Leucócitos: 1 Outros: Tipo: Bacteriúria: moderada n.d.: não determinado BIOQUÍMICA SANGÜÍNEA Tipo de amostra: plasma Anticoagulante: heparina Hemólise da amostra: ausente Proteínas totais: 59,0 g/L (54-71) Glicose: 233 mg/dL (65-118) ALP: 45 U/L (<156) Albumina: 28,1 g/L (26-33) Colesterol total: 264 mg/dL (135-270) ALT: 16 U/L (<102) Globulinas: 30,0 g/L (27-44) Uréia: 229 mg/dL (21,4-59,9) CPK: 389,0 U/L (<28,4) BT: 2,04 mg/dL (0,1-0,5) Creatinina: 4,2 mg/dL (0,5-1,5) AST: 58,4 U/L (23-66) BL: 1,85 mg/dL (0,01-0,49) Cálcio: mg/dL (9,0-11,3) Trigliceríd.: 92,1 mg/dL (20-112) BC: 0,19 mg/dL (0,06-0,12) Fósforo: mg/dL (2,6-6,2) BHB: 0 mg/dL (0,3 +/- 0,06) BT: bilirrubina total BL: bilirrubina livre (indireta) BC: bilirrubina conjugada (direta)

Relatório de Caso Clínico - Caninos - ufrgs.br · Caso clínico 2002/2/06 página 3 A elevação da glicemia pode ser justificada pelo fato do animal ter recebido soro glicosado

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Page 1: Relatório de Caso Clínico - Caninos - ufrgs.br · Caso clínico 2002/2/06 página 3 A elevação da glicemia pode ser justificada pelo fato do animal ter recebido soro glicosado

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL Faculdade de Veterinária Departamento de Patologia Clínica Veterinária Disciplina de Bioquímica e Hematologia Clínica (VET03121) http://www.ufrgs.br/favet/bioquimica

Relatório de Caso Clínico

IDENTIFICAÇÃO Caso: 2002/2/06 Procedência: HCV-UFRGS No da ficha original: 9659 Espécie: canina Raça: boxer Idade: 6 anos Sexo: macho Peso: 30,6 kg Alunos(as): Gustavo Luz Penz, Karine Martinez da Rocha, Otávio Ramires de Aguiar Conde, Vívian Cristina Schwantes

Ano/semestre: 2002/2

Residentes/Plantonistas: Médico(a) Veterinário(a) responsável: Nina Isabel de Oliveira Baptista ANAMNESE Na metade de janeiro de 2003, o animal começou a não aceitar alimento e apresentava-se prostrado. Foi levado ao veterinário, onde foi realizado um hemograma que acusou anemia severa. Foi estabelecida a suspeita de babesiose. Foi iniciado um tratamento com Tetraciclina (antibacteriano) e Ganaseg (diazoaminodibenzamidina, antiprotozoário). Apresentou melhora durante alguns dias e voltou a apresentar o quadro inicial, manifestando, ainda, um aumento do volume abdominal. Foi levado a outro veterinário, onde foi submetido a uma punção abdominal, na qual foi observada a presença de sangue "vivo". Não foi feita qualquer medicação. Foram feitos outro hemograma e análises bioquímicas, mas o proprietário não tinha os resultados para apresentar. No dia 31 de janeiro, foi feita uma ecografia, onde não foi constatada qualquer alteração. Nesta mesma data, foi submetido a uma transfusão sangüínea e foi observada uma melhora. EXAME CLÍNICO No dia 03 de fevereiro, o animal ingressou anêmico no Hospital de Clínicas Veterinárias da UFRGS, com as mucosas ocular e oral pálidas (Figura 1). Apresentava líquido abdominal, apatia e desidratação com temperatura retal de 38,4°C. O coração não apresentava alterações. EXAMES COMPLEMENTARES Ecografia: diagnosticada presença de tumores no fígado e no baço. URINÁLISE Método de coleta: cateterização Obs.: animal apresentava quadro de oligúria, o que dificultou o exame do sedimento urinário. Exame físico cor consistência odor aspecto densidade específica (1,015-1,045) amarela fluida sui generis límpida 1,025 Exame químico pH (5,5-7,5) corpos cetônicos glicose pigmentos biliares proteína hemoglobina sangue nitritos5,5 - - ++ - - - + Sedimento urinário (no médio de elementos por campo de 400 x) Células epiteliais: 2 Tipo: transição Hemácias: 0 Cilindros: 0 Tipo: Leucócitos: 1 Outros: Tipo: Bacteriúria: moderada

n.d.: não determinado

BIOQUÍMICA SANGÜÍNEA Tipo de amostra: plasma Anticoagulante: heparina Hemólise da amostra: ausente Proteínas totais: 59,0 g/L (54-71) Glicose: 233 mg/dL (65-118) ALP: 45 U/L (<156) Albumina: 28,1 g/L (26-33) Colesterol total: 264 mg/dL (135-270) ALT: 16 U/L (<102) Globulinas: 30,0 g/L (27-44) Uréia: 229 mg/dL (21,4-59,9) CPK: 389,0 U/L (<28,4) BT: 2,04 mg/dL (0,1-0,5) Creatinina: 4,2 mg/dL (0,5-1,5) AST: 58,4 U/L (23-66) BL: 1,85 mg/dL (0,01-0,49) Cálcio: mg/dL (9,0-11,3) Trigliceríd.: 92,1 mg/dL (20-112) BC: 0,19 mg/dL (0,06-0,12) Fósforo: mg/dL (2,6-6,2) BHB: 0 mg/dL (0,3 +/- 0,06)

BT: bilirrubina total BL: bilirrubina livre (indireta) BC: bilirrubina conjugada (direta)

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Caso clínico 2002/2/06 página 2 HEMOGRAMA Leucócitos Eritrócitos Quantidade: 40.480/µL (6.000-17.000) Quantidade: 2,03 milhões/µL (5,5-8,5) Tipo Quantidade/µL % Hematócrito: 18,0 % (37-55) Mielócitos 0 (0) 0 (0) Hemoglobina: 5,6 g/dL (12-18) Metamielócitos 0 (0) 0 (0) VCM (Vol. Corpuscular Médio): 88 fL (60-77) Bastonados 3.238 (0-540) 8 (0-3) CHCM (Conc. Hb Corp. Média): 31,1 % (32-36) Segmentados 31.170 (3.000-11.500) 77 (60-77) Basófilos 0 (0) 0 (0) Eosinófilos 0 (100-750) 0 (2-10) Monócitos 5.262 (150-1.350) 13 (3-10)

Morfologia: Anisocitose e policromatofilia acentuadas. Presença de metarubrócitos.

Linfócitos 810 (1.000-4.800) 2 (12-30) Plaquetas Plasmócitos 0 (0) 0 (0) Quantidade: 60.000/µL (200.000-500.000) Morfologia: Observações: TRATAMENTO E EVOLUÇÃO No Hospital de Clínicas Veterinárias da UFRGS, este animal foi submetido a uma punção abdominal e foi tratado com Ringer-Lactato e soro glicosado 50%. Depois de realizada a ecografia, onde se observaram tumores no fígado e no baço e, considerando que o prognóstico dessas neoplasias é desfavorável, foi aconselhada a eutanásia do animal. NECRÓPSIA (e histopatologia) Patologista responsável: David Driemeier Na necrópsia foram confirmados tumores no fígado (Figura 2), no baço e na aurícula direita (Figura 3), além de sangue na cavidade abdominal (Figura 4). No tumor esplênico havia ruptura de um dos nódulos, o que causou uma hemorragia interna (Figura 5). Os intestinos mostraram-se amarelados devido à reabsorção de sangue hemolisado na cavidade abdominal (Figura 6) No exame histopatológico foram observadas alterações no baço (Figura 7), pleomorfismo celular, formações de cordões e de hemorragia. No coração (Figura 8) foram identificadas células pleomórficas, formação de células alongadas e figuras de mitose, demonstrando que o tumor cardíaco era metastático. DISCUSSÃO Na urinálise foi observado aumento dos pigmentos biliares devido à reabsorção de sangue hemolisado da cavidade abdominal. Já a bacteriúria moderada, provavelmente, é devida ao método de coleta, cateterização (porque aumenta a possibilidade de contaminação por bactérias da bexiga e/ou por bactérias do meio), já que não houve alterações renais na necrópsia e no exame histopatológico. O nitrito é resultante da redução do nitrato realizada pelas bactérias presentes na urina. Os leucócitos são derivados de processos inflamatórios. Na hematologia, o animal mostrava um quadro de anemia regenerativa, devido à hemorragia causada pela ruptura de um nódulo no baço. Esse tipo de anemia é caracterizado pelo aumento de hemácias nucleadas na circulação. Como resultado, o exame do esfregaço sangüíneo mostrou anisocitose e policromatofilia acentuadas. A anemia é tipicamente macrocítica e hipocrômica. As plaquetas se apresentaram “modificadas” granulares e grandes no esfregaço. A trombocitopenia é o resultado da hemorragia crônica e também pelo fato de o baço canino armazenar um grande número de plaquetas. Baseado nesses dados e no fato de a trombocitose ser característica de uma hemorragia aguda, é possível supor que o animal estava com um quadro de hemorragia crônica. A neutrofilia e o desvio neutrofílico nuclear à esquerda regenerativo (presença de neutrófilos bastonados) ocorreram porque o animal estava com um quadro de estresse inflamatório. Na inflamação há a liberação de corticosteróides, que aumentam a liberação de neutrófilos pela medula óssea. A linfopenia e a eosinopenia podem ser justificadas pela liberação de corticosteróides. Esses hormônios reduzem a recirculação de linfócitos e causam linfocitólise. A linfopenia também é comum em certas neoplasias em estado avançado. Os eosinófilos apresentam uma resposta muito sensível aos corticosteróides, o que justifica a eosinopenia. A monocitose é característica de um quadro inflamatório, tendo os monócitos a função de remover restos de tecidos necrosados. Nas análises da bioquímica sangüínea, houve aumento da bilirrubina total, da livre e da conjugada. Isso ocorreu pela lise das hemácias. Como havia excessiva bilirrubina livre diante da liberação de hemoglobina, ela ficou acumulada no sangue e o fígado não conseguiu processá-la com a velocidade que ela foi produzida. Por esse motivo, os níveis de bilirrubina livre e conjugada apresentaram-se aumentados. A creatina quinase estava elevada, provavelmente devido à punção abdominal a que o animal foi submetido.

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Caso clínico 2002/2/06 página 3 A elevação da glicemia pode ser justificada pelo fato do animal ter recebido soro glicosado ou porque os corticosteróides aumentam os níveis plasmáticos de glicose pelo estímulo da gliconeogênese. A uréia e a creatinina apresentam-se elevadas nos casos de desidratação e hipotensão (causa pré-renal). Como o animal estava em um quadro hemorrágico, havia a necessidade de retenção de líquido, diminuindo a taxa de filtração, aumentando, assim, os níveis de uréia e creatinina. CONCLUSÕES O hemangiossarcoma (hemangioendotelioma) é um tumor vascular maligno com muitas células endoteliais pleomórficas e imaturas que formam espaços vasculares ocupados por sangue, ou massas celulares sólidas. Ocorre em várias espécies, mas é mais freqüente em cães. Em outras espécies não há predisposição de sexo, mas em caninos é mais freqüente em machos. O baço é freqüentemente o local de origem de neoplasias endoteliais. Ocorrem com maior freqüência em cães velhos de raças grandes e são suscetíveis à ruptura com desenvolvimento de hemorragia intraperitoneal significativa. O fígado é um local de origem relativamente incomum para essa neoplasia, se comparado com o coração e o baço. As neoplasias mesenquimais primárias do fígado devem ser distinguidas das metástases. A presença de massas disseminadas por todo o órgão é mais típica no sarcoma metastático do que nos sarcomas primários. No coração, o hemangiossarcoma pode ser primário ou representar metástases de outros locais como o baço, e é normalmente vista na aurícula ou átrio direito. Cães com hemangiossarcoma apresentam uma variedade de sinais clínicos, que dependem do local primário e das lesões metastáticas, além de sinais não específicos de neoplasia maligna. A presença de anemia com reticulocitose nos cães é indicativa de hemorragias causadas pela ruptura desses tumores por um período de tempo. Colapso vascular agudo, resultante da ruptura do hemangiossarcoma esplênico, com hemorragia maciça na cavidade peritoneal, pode ser o principal sinal clínico. Freqüentemente ocorre anemia severa e nível elevado de células vermelhas nucleadas, além de reticulocitose, leucocitose, com neutrofilia e desvio nuclear à esquerda. A cirurgia, para remoção dos tumores, não é possível, devido às metástases múltiplas e o prognóstico sem esperança. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DUNN, J.R. Tratado de medicina de pequenos animais. São Paulo: Rocca, 2001. GARCIA-NAVARRO, C.E.K.; PACHALY, J.R. Manual de hematologia veterinária. São Paulo: Livraria Varela Ltda., 1994. JONES, T.C.; HAUNT, R.D.; KING, N. Patologia veterinária. 6a ed. São Paulo: Manole, 2000. MOULTON, J.E. Tumors of domestic animals. 3rd. ed. Berkeley University Press, 1990. CARLTON, W.W.; MacGAVIN, M.D. Patologia veterinária especial de Thomson. 2a. ed. Porto Alegre: Artmed, 1998. FIGURAS

Figura 1. Mucosa oral. Mucosa pálida, evidenciando anemia. (© 2003 David Driemeier)

Figura 2. Tumor hepático. Fígado com hemangiossarcoma disseminado por todo o órgão. Pálido devido à perda excessiva de sangue para a cavidade abdominal. (© 2003 David Driemeier)

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Caso clínico 2002/2/06 página 4

Figura 3. Aurícula direita com metástase. Aurícula direita com hemangiossarcoma, demonstrando metástase originada do baço. (© 2003 David Driemeier)

Figura 4. Cavidade abdominal. Presença de sangue na cavidade abdominal devido à ruptura do hemangiossarcoma, palidez dos órgãos da cavidade torácica. (© 2003 David Driemeier)

Figura 5. Tumor esplênico. Baço com nódulos, sendo que um apresenta uma ruptura, o que ocasionou a hemorragia interna. (© 2003 David Driemeier)

Figura 6. Intestinos. Apresentam-se amarelados pela reabsorção de sangue hemolisado na cavidade abdominal. (© 2003 David Driemeier)

Figura 7. Corte histológico do baço. Presença de pleomorfismo celular, formação de cordões, hemorragia (HE, 400x). (© 2003 David Driemeier)

Figura 8. Corte histológico do tecido cardíaco. Presença de células pleomórficas, com formação de células alongadas (semelhantes à células endoteliais formando vasos), figuras de mitose (HE, 400x). (© 2003 David Driemeier)