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MESTRADO EM POLTICAS SOCIAIS
NCLEO DE ESTUDOS E PESQUISAS SOBRE POLTICAS E PRTICAS
SOCIAIS COM FAMLIAS NEPPSF
PROJETO DE PESQUISA:
PRTICAS SOCIAIS COM FAMLIAS E ACESSO A DIREITOS: a efetividade
da Poltica de Assistncia Social na interface com a Justia da Infncia e da
Juventude
RELATRIO GERAL:
POLTICAS E PRTICAS SOCIAIS COM FAMLIAS: desafios para a
efetivao de direitos
RELATRIO FINAL PESQUISA II
REALIDADE SOCIAL, DIREITOS E PERDA
DO PODER FAMILIAR:
desproteo social x direito convivncia familiar e
comunitria
Coordenao/Relatoria Final: Eunice Teresinha Fvero
Coautoras do Relatrio: Andrea Svicero, Celina Campos, Fabiana Brgido, Janaina
Dias, Miriam V. da Silva, Samira L. M. Raphael, Vilma S. N. dos Santos.
Pesquisadoras: Eunice Teresinha Fvero, Andrea Svicero, Carmen Brum, Celina
Campos, Fabiana Brgido, Janaina Dias, Miriam V. da Silva, Samira L. M. Raphael,
Silvana I. Barbosa, Silvia M. Crevatin, Vilma S. N. dos Santos.
Campus Liberdade Rua Galvo Bueno, 868, CEP 01506-000 So Paulo-SP. Tel. (11) 3385.3000.
1
SUMRIO
INTRODUO.............................................................................................................. 04
I DIREITO CONVIVNCIA FAMILIAR E PROTEO SOCIAL ....................... 09
1. 1 A ruptura com o antigo modelo de atendimento .................................................... 09
1.1.1 O Estatuto da Criana e do Adolescente ECA .................................................. 11
1.1.2 O Sistema de Garantia de Direitos ....................................................................... 12
1.1.3 O Plano Nacional de Promoo, Proteo e Defesa do Direito de Crianas
e Adolescentes Convivncia Familiar e Comunitria e a Lei n. 12.010/2009 ............ 13
1.1.4 Cuidados alternativos a crianas e adolescentes afastados do convvio
familiar............................................................................................................................ 16
1.1.4.1 Acolhimento institucional .................................................................................. 16
1.1.4.2 Acolhimento familiar ......................................................................................... 17
1.2 Poder familiar .......................................................................................................... 17
1.2.1 Destituio do poder familiar ............................................................................... 18
1.2.2 Colocao em famlia substituta ........................................................................... 20
1.2.2.1 Guarda ............................................................................................................... 20
1.2.2.2 Tutela ................................................................................................................. 21
1.2.2.3 Adoo ............................................................................................................... 21
1.3 A famlia nas polticas pblicas de promoo convivncia familiar e
comunitria .................................................................................................................... 22
1.4 Novos procedimentos para garantia do direito convivncia familiar e
Comunitria ................................................................................................................... 25
1.4.1 Plano individual de atendimento (PIA) ................................................................ 26
1.4.2 Audincias concentradas ...................................................................................... 28
1.4.3 Cadastro Nacional de Adoo .............................................................................. 31
II CARACTERIZAO SOCIOTERRITORIAL DAS VARAS DA INFNCIA E
JUVENTUDE E PROTEO SOCIAL ....................................................................... 33
2.1 A Poltica de Assistncia Social e o territrio ......................................................... 33
2.1.1 Dados demogrficos e diviso territorial .............................................................. 36
- Grfico 1: Habitantes por regio do municpio de So Paulo ..................................... 36
- Quadro 1. Nmero de distritos, habitantes e subprefeituras por Vara da Infncia
e Juventude da cidade de So Paulo .............................................................................. 37
2
2.1.1.1 Populao em situao de rua ........................................................................... 38
2.2. Vulnerabilidade social ............................................................................................ 39
- Mapa 1. ndice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS) Municpio de So Paulo
........................................................................................................................................ 41
2.3 Assistncia social proteo bsica e especial de mdia e alta complexidade ....... 44
2.3.1 Equipamentos da assistncia social no municpio de So Paulo .......................... 44
- Grfico 2: Servios de proteo bsica ....................................................................... 46
- Grfico 2: Servios de proteo especial .................................................................... 48
III PERDA DO PODER FAMILIAR, REALIDADE SOCIAL E (DES)PROTEO
SOCIAL ........................................................................................................................ 50
3.1 Caracterizao socioeconmica das mes e pais destitudos do poder familiar ...... 50
Tabelas e Grficos
1. Iniciativa da autuao ........................................................................................ 50
2. Pessoa destituda ................................................................................................ 53
3. Motivo do rompimento do vnculo parental ...................................................... 55
4. Acesso a defensor .............................................................................................. 59
5. Faixa etria ......................................................................................................... 60
6. Cor da pele ......................................................................................................... 61
7. Situao conjugal ............................................................................................... 62
8. Naturalidade ....................................................................................................... 64
9. Escolaridade ....................................................................................................... 65
10. Trabalho/ocupao ............................................................................................. 66
11. Renda ................................................................................................................. 68
12. Fonte de renda .................................................................................................... 71
13. Moradia .............................................................................................................. 72
14. Com quem morava ............................................................................................. 73
15. Condies de sade ............................................................................................ 75
16. Acesso a servios de sade ................................................................................ 76
17. Acesso a programas proteo social .................................................................. 77
18. Participou de trabalho social .............................................................................. 80
19. Outros filhos ...................................................................................................... 81
20. Situao de outros filhos .................................................................................... 81
3
21. Tempo de institucionalizao ............................................................................ 82
22. Estudo social ...................................................................................................... 83
23. Estudo psicolgico ............................................................................................. 84
24. Tempo de autuao/destituio .......................................................................... 85
3.2 Dados sobre a criana .............................................................................................. 87
1. Filiao registro na autuao ............................................................................ 87
2. Dados da filiao ................................................................................................. 89
3. Sexo ...................................................................................................................... 90
4. Faixa etria ............................................................................................................ 91
5. Cor da pele ............................................................................................................. 92
6. Medida protetiva .................................................................................................... 93
3.3 A barbrie social no cotidiano da vida das crianas e dos pais que perdem o
poder familiar registros dos autos ............................................................................... 95
3.3.1 Violncia social e interpessoal, vivncia na rua e dependncia de drogas ........... 98
3.3.2 Trajetrias: violncias, abandonos, internaes, prises ......................................99
3.3.3 Apontamentos sobre sade dos adultos .............................................................. 101
3.3.4 A criana: violao de direitos e comprometimento da sade ........................... 102
3.3.5 Proteo criana, famlia natural e extensa, acolhimento institucional ........... 105
3.3.6 Ateno social e sade ..................................................................................... 107
ALGUMAS CONSIDERAES E INDICATIVOS PARA CONTINUIDADE
DA ANLISE ............................................................................................................. 109
REFERNCIAS .......................................................................................................... 114
APNDICES ............................................................................................................... 122
Apndice I Solicitao de apoio pesquisa Coordenadoria da Infncia e Juventude
do TJSP ........................................................................................................................ 122
Apndice II Solicitao de apoio/autorizao da pesquisa aos Juzes de Direito ..... 123
Apndice III Roteiro Pesquisa nos Autos ................................................................. 125
ANEXOS ..................................................................................................................... 132
Anexo I Aprovao Comit de tica em Pesquisa/Universidade Cruzeiro do Sul .. 132
Anexo II Apoio Pesquisa Coordenadoria da Infncia e Juventude do TJSP ...... 133
4
INTRODUO
Este relatrio apresenta os resultados de pesquisa desenvolvida durante os anos
de 2011 a 2013, na cidade de So Paulo, que teve como objetivos: conhecer e analisar a
realidade social de mes e pais que perderam o poder familiar sobre filhos, nesta cidade,
tomando o segundo semestre do ano de 2010 como base; identificar e analisar, a partir
das aes que acontecem no espao da Justia da Infncia e da Juventude, como se tem
dado a proteo social s famlias no que se refere preservao e ruptura dos
vnculos; comparar a realidade social dessas pessoas1 com a realidade que emergiu de
investigao semelhante realizada no ano 2000 que teve como ano-base de pesquisa
1996 (FVERO, 2000); e contribuir para o avano de aes e polticas sociais,
protetivas, redistributivas e inclusivas, na direo do enfrentamento da barbrie social
que atinge grande parte da populao geralmente usuria de servios sociais.
Os resultados aqui apresentados decorrem da aplicao do projeto de pesquisa
Prticas sociais com famlias e acesso a direitos: a efetividade da Poltica de
Assistncia Social na interface com a Justia da Infncia e da Juventude, desenvolvido
pelo Ncleo de Estudos e Pesquisas sobre Polticas e Prticas Sociais com Famlias
(NEPPSF), do mestrado em Polticas Sociais da Universidade Cruzeiro do Sul/SP, na
linha de pesquisa Polticas Sociais, Famlias e Desigualdades Sociais.
O referido projeto, desenvolvido pelo NEPPSF, abrangeu trs pesquisas
articuladas, com coordenaes prprias.
Uma delas investigou as concepes de famlia e de prticas sociais presentes na
discusso, proposio e efetivao da Poltica de Assistncia Social, com suporte em
produo acadmica e em literatura sobre essa poltica, publicadas a partir da aprovao
da Norma Operacional Bsica da Assistncia Social NOB/Suas (julho/2005)2.
A outra pesquisa buscou conhecer, com base na viso de famlias de
adolescentes em conflito com a lei, a insero desse ncleo primeiro de relaes sociais
1 Aps 20 anos da promulgao do Estatuto da Criana e do Adolescente ECA (BRASIL, 1990), quatro anos do estabelecimento do Plano Nacional de Promoo, Proteo e Defesa do Direito de Crianas e Adolescentes Convivncia Familiar e Comunitria PNDCFC/2006, e posteriormente entrada em vigor da Lei Federal n. 12.010/2009 (BRASIL, 2009), incorporada ao ECA. 2 Pesquisa I, coordenada pela Prof Dra. Dalva Azevedo de Gois, com relatrio final intitulado Famlias e Prticas
Sociais: interlocuo com produes literrias sobre a Poltica de Assistncia Social.
5
nas polticas sociais implementadas na cidade de So Paulo, com um recorte para a
Poltica de Assistncia Social3.
Finalmente, compondo esse projeto mais amplo, foi realizada a pesquisa que
originou o trabalho aqui exposto4, ou seja, a que investigou a operacionalidade da
Justia da Infncia e da Juventude no municpio de So Paulo, em particular no que se
refere contribuio para a proteo social, visando a garantia do direito da criana e do
adolescente convivncia familiar e comunitria, em contraposio ao rompimento de
vnculos com a famlia de origem em razo de expresses da questo social (PROJETO,
2011).
Esta pesquisa obedeceu aos seguintes procedimentos metodolgicos no
necessariamente nesta ordem:
- Elaborao do projeto e aprovao pelo Comit de tica da Universidade (anexo I);
- Integrao e capacitao da equipe de pesquisadores, composta por estudantes de
graduao em Servio Social em iniciao cientfica ou em fase de elaborao de
trabalho de concluso de curso , alunos de mestrado em Polticas Sociais, e assistentes
sociais que esto na interveno direta com a populao;
- Recuperao e estudo de marcos legais e conceituais que historicamente, e em especial
no tempo presente, dizem respeito ao direito da criana e do adolescente convivncia
familiar e comunitria;
- Pesquisa de literatura sobre questo social, aspectos sociais e demogrficos do
territrio da capital, condies de vida da populao particularmente da parcela que
vive em situao de rua e judicializao da pobreza no mbito da Justia da Infncia e
da Juventude, bem como pesquisa realizada sobre a perda do poder familiar no final de
dcada de 1990 e incio dos anos 2000 (FVERO, 2000), para anlise comparativa;
- Solicitao de apoio pesquisa junto Coordenadoria da Justia da Infncia e da
Juventude do Tribunal de Justia do Estado de So Paulo, a qual foi concedida
(apndice I e anexo II);
3 Pesquisa III, coordenada pela Prof Dra. Maria Raimunda Vargas Chagas Rodriguez, com relatrio final intitulado Os impactos da Poltica de Assistncia Social no cotidiano das famlias de adolescentes em conflito com a lei: repercusses nas condies de vida. 4 Pesquisa II, coordenada pela Prof Dra. Eunice Teresinha Fvero, com a participao das seguintes pesquisadoras: duas mestrandas em Polticas Sociais Samira L. M. Raphael e Carmem Brum, duas alunas da graduao em Servio Social Celina Campos e Fabiana Brgido, cinco assistentes sociais com atuao no TJSP Andrea Svicero, Miriam V. da Silva, Vilma S. N. dos Santos, Silvia M. Crevatin e Silvana I. Barbosa, e uma assistente social com atuao em
Servio de Proteo Especial Janana Dias.
6
- Definio de seis das onze Varas da Infncia e da Juventude (VIJ) da capital, com
diferentes realidades em termos de demandas e de infraestrutura socioeconmica e
territorial base tambm da pesquisa realizada em 2000 , e solicitao de autorizao
de pesquisa em autos processuais de destituio do poder familiar, junto aos respectivos
juzes titulares (apndice II)5, que foi concedida. Salienta-se que em cinco das seis VIJs
os magistrados receberam a coordenao da pesquisa e pesquisadores, ocasio em que
foi possvel explicar o projeto e objetivos da pesquisa, e todos eles autorizaram de
imediato; apenas em uma das VIJ o juiz no aceitou receber a coordenao e, aps um
perodo de tentativas de autorizao mediante encaminhamento de documentao e
intermediao por parte de uma pesquisadora, a autorizao foi concedida;
- Recebimento, por meio dos cartrios das VIJs, da relao de autos processuais com
sentenas de destituio do poder familiar nos meses de julho a dezembro de 2010,
abrangendo o perodo delimitado para pesquisa; para a maior parte ocorreu pedido de
desarquivamento, realizado com o apoio dos diretores dos respectivos cartrios;
- Levantamento quantitativo e, de forma complementar, qualitativo, das informaes de
interesse para a pesquisa, nos autos processuais, com base em roteiro preparado e
testado (apndice III); em cinco das seis VIJs a pesquisa foi realizada no espao do
respectivo frum regional, e em uma delas no espao do arquivo central do Tribunal de
Justia do Estado de So Paulo (para o que foi necessria autorizao da diretoria do
arquivo, mediante apresentao da relao dos autos a serem pesquisados).
No projeto foram previstas entrevistas qualitativas, semidirigidas, com assistente
social, psiclogo, juiz de direito, promotor de justia e defensor pblico que atuam nas
Varas pesquisadas. Todavia, no decorrer da pesquisa nos autos e em processo de
avaliao do trabalho realizado, o grupo alterou o projeto original. Nesse sentido,
definiu-se pela importncia de continuidade do projeto, ps-finalizao da pesquisa nos
autos, com entrevistas com mes e/ou pais que perderam o poder familiar no os
envolvidos diretamente nos autos pesquisados em razo do segredo de justia, mas com
outros a serem localizados por meio de organizaes governamentais e no
governamentais que prestam servios de assistncia social e de sade. Fase a ser
5 Na solicitao de pesquisa foi devidamente esclarecida a cincia, por parte da coordenao e das pesquisadoras,
quanto ao segredo de justia que envolve os autos processuais, no interior das normas ticas de pesquisa.
7
desenvolvida aps a finalizao deste relatrio, com base nas anlises dos resultados
desta pesquisa6;
- Organizao e anlise dos resultados. Para esta etapa, tomou-se como referncia a
anlise qualitativa das informaes coletadas, de maneira predominante, mas fazendo
uso tambm da anlise quantitativa no tpico III, que trata dos dados socioeconmicos
coletados nos autos.
Assim, as informaes e anlises a seguir expostas tomam por base estudos
bibliogrficos e documentais e resultados da pesquisa de campo realizada em autos
processuais de destituio do poder familiar, com sentenas emitidas no perodo de
julho a dezembro de 2010, em seis das onze Varas da Infncia e da Juventude da cidade
de So Paulo, representativas de suas regies Centro, Sul, Norte, Leste e Oeste,
escolhidas pelo critrio de serem as mesmas VIJs integrantes da pesquisa anterior
(realizada em 2010, ano base 1996, conforme j referido). Destas VIJs, e a partir da
relao de autos processuais fornecida pelos cartrios, foram localizados e pesquisados
96 autos com sentenas de destituio do poder familiar7, envolvendo 121 pessoas: em
66 apenas a me, em cinco apenas o pai, em 25 o pai e a me, assim distribudos por
regio da cidade e nmero de VIJs pesquisadas: Norte 19 (uma VIJ); Leste 5 (uma
VIJ); Oeste 9 (uma VIJ); Sul 29 (duas VIJs), Centro 34 (uma VIJ)8.
Os resultados apresentados neste relatrio esto acompanhados de uma primeira
aproximao analtica da realidade pesquisada, e sero objeto de anlises mais
aprofundadas na continuidade das atividades do NEPPSF.
O tpico I recupera normativas e legislaes constitudas nas ltimas dcadas,
direcionadas proteo de crianas e adolescentes, com destaque para polticas de
proteo social voltadas efetivao do direito convivncia familiar e comunitria.
6 Nesse sentido, no segundo semestre do ano de 2013, a aluna de graduao em Servio Social Jssica Moura da Costa passou a compor o grupo de pesquisadores, por meio da iniciao cientfica, com o projeto Usurios de crack e outras drogas, vivncia na rua e perda do poder familiar: trajetrias de vida e acesso a direitos sociais, com o objetivo de, por meio da recuperao de histrias de vida de mes que perderam o poder familiar, conhecer se tiveram ou no acesso a direitos sociais. A partir do ano de 2014, outro projeto de iniciao cientfica ser desenvolvido,
buscando recuperar a histria de vida de pais que vivem em situao de rua e que tiveram vnculos familiares rompidos. 7 Esse nmero no necessariamente coincide com o total de sentenas de destituio do poder familiar em cada uma das VIJs, pois em algumas delas alguns autos estavam em outra instncia, devido a recursos judiciais. Todavia, conforme informao verbal recebida nos cartrios, no se tratava de nmero significativo. Em apenas uma das VIJs foi informado s pesquisadoras o nmero de sentenas com recursos. 8 Distribuio das VIJs na cidade de So Paulo: regio Centro: uma; regio Sul: duas; regio Norte: uma; regio Oeste: duas; regio Leste: cinco. Estas VIJs atuam apenas em aes relativas s medidas protetivas. As medidas
socioeducativas so de responsabilidade do Frum das Varas Especiais, localizado na regio do centro expandido.
8
O segundo tpico apresenta dados demogrficos e sociais, situando
particularidades da realidade da cidade e do territrio de localizao das VIJs
pesquisadas, com recorte para a concretizao das polticas sociais nesses territrios, em
especial a Poltica de Assistncia Social.
O tpico III expe os resultados da pesquisa realizada nos autos processuais de
destituio do poder familiar, sistematizados em tabelas e grficos, bem como apresenta
registros de documentos que compem esses autos, e expe uma primeira leitura
analtica.
A diviso em tpicos ocorre apenas para fins didticos da exposio. Os
contedos aqui abordados se articulam e assim necessitam ser lidos, de maneira a uma
viso que contemple a totalidade da realidade pesquisada.
* * *
Registra-se aqui o agradecimento dos pesquisadores Coordenadoria da Infncia
e da Juventude do Tribunal de Justia do Estado de So Paulo, pelo apoio pesquisa,
aos magistrados que autorizaram a pesquisa nos autos, aos diretores de cartrios e
funcionrios que contriburam com a localizao dos autos processuais e s colegas
assistentes sociais trabalhadoras em VIJs, que tambm deram seu apoio na
intermediao dos contatos para a aplicao da pesquisa.
Este projeto foi desenvolvido sem financiamento externo e s pode ser
concretizado em razo da dedicao pesquisa, alm das alunas de mestrado e da
graduao, de profissionais/pesquisadoras que participam do NEPPSF como
convidadas. Assim, mantendo a caracterstica de Ncleo de Estudos e Pesquisas que
agrega estudantes/pesquisadores da universidade e profissionais da
interveno/pesquisadores, finaliza essa etapa da pesquisa reafirmando a importncia da
relao teoria-prtica na construo do conhecimento.
9
I - DIREITO CONVIVNCIA FAMILIAR E PROTEO SOCIAL
Esta parte do trabalho tem como foco alguns dos principais marcos legais,
polticos e sociais institudos nas ltimas dcadas para a proteo de direitos da criana
e do adolescente9.
1.1 A ruptura com o antigo modelo de atendimento
Os movimentos sociais no Brasil, no final da dcada de 1970 e em parte da
dcada de 1980, protagonizaram a luta pela conquista e construo de um sistema de
garantias de direitos criana e ao adolescente cujas bases fundamentam-se na Doutrina
da Proteo Integral.
De acordo com Gohn (2009), esse perodo foi um dos mais ricos da histria do
Brasil no que se refere s lutas sociais, movimentos e projetos para o pas. No interior
desse processo, a questo da infncia foi discutida e repensada, e muitos esforos foram
feitos para que as mudanas to almejadas no ficassem apenas no papel.
Na esfera do direito da criana e do adolescente, avaliava-se como necessrio
abandonar a linha tradicional, filantrpica e caritativa, que mantinha ao longo da
histria uma perspectiva tutelar, isto , assistencialista e repressora no trato da infncia
pobre e de sua famlia (NETO, 2005).
O mesmo debate j ocorria em outros pases: em 1979, a Comisso de Direitos
Humanos da ONU (Organizao das Naes Unidas) estabeleceu um grupo de trabalho
para elaborao da Conveno Internacional dos Direitos da Criana e do Adolescente
(FRUM DCA, s/d), a qual foi firmada em novembro de 198910
.
No Brasil, a Assembleia Nacional Constituinte11
se configurou como
oportunidade nica de ao em favor dos direitos das crianas e adolescentes. Para levar
frente essa luta, que deveria exigir dos parlamentares constituintes compromissos
pblicos com a causa, a unidade de movimentos e organizaes sociais,
independentemente de sua identidade ideolgica ou composio social, foi fundamental.
Nesse sentido, destacaram-se os seguintes grupos (COSTA, 1990):
9 Este tpico foi especialmente trabalhado pelas pesquisadoras Fabiana B. Brgido e Celina Braga Campos, com base em recorte de trabalho de concluso de curso (BRGIDO, 2011) e iniciao cientfica/trabalho de concluso de curso (CAMPOS, 2012). 10 Abordada mais frente neste relatrio. 11 A Assembleia Nacional Constituinte foi presidida pelo deputado Ulysses Guimares, composta por 559
congressistas, e durou 18 meses.
10
- A Frente Nacional de Defesa dos Direitos das Crianas e Adolescentes, formada por
dirigentes municipais;
- A Pastoral da Criana (criada em 1983, pela Conferncia Nacional dos Bispos do
Brasil CNBB), que envolvia forte militncia proveniente dos movimentos sociais
ligados igreja catlica;
- O Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua; e
- A Comisso Nacional Criana e Constituinte.
A nova Constituio, promulgada em 1988, contou em seu processo com grande
participao de grupos da sociedade civil, de diferentes categorias e matizes ideolgico-
sociais (GOHN, 2009).
O caput do art. 227 da Constituio Federal de 1988 foi baseado no projeto da
Conveno Internacional dos Direitos da Criana, que, entre outras, tratava da Doutrina
da Proteo Integral criana e ao adolescente. Assim, em novembro de 198812
, o
Brasil incorporou em seu texto constitucional elementos essenciais de uma Conveno
Internacional que seria aprovada apenas no ano seguinte. Essa expressiva vitria foi
consequncia da fora, habilidade, da resoluo e do compromisso do movimento
social que se forjou em torno da defesa dos direitos da criana e do adolescente
(COSTA, 1990, p. 30).
O art. 227 trouxe uma redao que assegurou criana e ao adolescente os
deveres da famlia, da sociedade e do Estado em relao a seus direitos vida, sade,
alimentao, educao, ao lazer, profissionalizao, cultura, dignidade, ao
respeito, liberdade e convivncia familiar e comunitria, alm de coloc-los a salvo
de toda forma de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade e
opresso13
.
De acordo com Costa (1993, p. 26), foram muitas as mudanas introduzidas pelo
paradigma da proteo integral. Trs de suas concepes podem ser citadas como os
pilares da nova doutrina:
- Sujeitos de direito: a criana e o adolescente deixam de ser objeto de tutela, isto , da
condio de seres passivos da interveno da famlia, sociedade e Estado, devendo a
12 Em 20 de novembro de 1989, a Conveno Internacional sobre os Direitos da Criana, ratificada pelo Brasil em 22 de novembro de 1990 (Decreto n. 9.710), reafirmou a necessidade de proteger a criana e o adolescente de maneira integral (BRASIL, 1990). 13 Art. 227. dever da famlia, da sociedade e do Estado assegurar criana, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito vida, sade, alimentao, educao, ao lazer, profissionalizao, cultura, dignidade, ao respeito, liberdade e convivncia familiar e comunitria, alm de coloc-los a salvo de toda forma de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso (Redao dada Pela Emenda
Constitucional n. 65, de 2010) (BRASIL, 1988; grifo nosso).
11
eles ser conferidas as garantias para serem ouvidos e participarem das decises que lhes
dizem respeito de acordo com seu grau de desenvolvimento.
- Pessoas em condio peculiar de desenvolvimento: implica o reconhecimento de
direitos decorrentes da idade, isto , da condio especial de desenvolvimento fsico,
emocional, cognitivo e sociocultural, que impossibilita que respondam pelo
cumprimento das leis e demais deveres inerentes cidadania da mesma forma que os
adultos, bem como por no contarem com meios prprios para a satisfao de suas
necessidades bsicas (BRASIL/PNCFC, 2006).
- Prioridade absoluta: compreendida, conforme pargrafo nico do art. 4 do Estatuto da
Criana e do Adolescente, como a primazia em receber proteo e socorro em
quaisquer circunstncias, precedncia de atendimento nos servios pblicos ou de
relevncia pblica, preferncia na formulao e na execuo das polticas sociais e
destinao privilegiada de recursos pblicos nas reas relacionadas com a proteo
infncia e juventude.
Esse novo paradigma trazido pela Constituio Federal foi consagrado por meio
da Lei n. 8.069/90, o Estatuto da Criana e do Adolescente.
1.1.1 O Estatuto da Criana e do Adolescente ECA
O Estatuto da Criana e do Adolescente, Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990,
uma norma reguladora dos art. 227 e 22814
da Constituio Federal de 1988. Em seu art.
2, o ECA menciona a quem se destina: a criana pessoa com at 12 anos de idade
incompletos e o adolescente aquela entre 12 e 18 anos de idade.
Alguns importantes aspectos trazidos pelo texto infraconstitucional marcam a
ruptura com o velho paradigma da situao irregular, presente no Cdigo de Menores de
1979, e afirmam a proteo integral a esses sujeitos de direitos, entre eles: a prioridade
do direito convivncia familiar e comunitria e, consequentemente, o fim da poltica
de abrigamento15
indiscriminado; a universalidade das polticas que antes eram dirigidas
apenas infncia abandonada e delinquente; a articulao das aes governamentais e
no governamentais na poltica de atendimento; a garantia do devido processo legal e de
defesa ao adolescente a quem se atribua a autoria de ato infracional; a municipalizao
do atendimento.
14 Art. 228. So penalmente inimputveis os menores de dezoito anos, sujeitos s normas da legislao especial (CF, 1998) 15 Denominado atualmente como acolhimento institucional.
12
Em seu art. 1, o ECA disciplina sobre a proteo integral criana e ao
adolescente, e a define, em seu art. 3, como a proteo ao desenvolvimento fsico,
mental, moral, espiritual e social dessa populao.
A doutrina da proteo integral dirigida para a proteo da criana em sua
famlia e comunidade de origem, porm, na existncia de conflito intrafamiliar, com
violao de direitos da criana ou do adolescente, o interesse destes em ter seus direitos
fundamentais preservados estar em supremacia em relao aos interesses de seus pais
(BITTENCOURT, 2010).
Assim, o princpio da proteo integral sugere que a criana e o adolescente
encontrem na sociedade e no poder pblico o apoio necessrio para um
desenvolvimento sadio, bem como para a formao de seu carter e personalidade, isto
: alimentao, educao, moradia e, tambm, a vida familiar e social (ibid.).
Esse princpio deve estabelecer a primazia do interesse da criana em todas as
esferas, o que inclui que a sua prpria famlia deve ser apoiada atravs de uma rede de
atendimento que lhe d condies de criar suas crianas e adolescentes de maneira
adequada. Para que isso ocorra, o Estatuto prev criana, antes mesmo de seu
nascimento, a proteo vida, garantindo sua genitora o recebimento do atendimento
pr e perinatal pelo Sistema nico de Sade SUS (BITTENCOURT, 2010).
1.1.2 O Sistema de Garantia de Direitos
O Sistema de Garantia de Direitos constitui-se no conjunto de rgos,
entidades, autoridades, programas e servios de atendimento a crianas, adolescentes e
suas respectivas famlias, que devem atuar de forma articulada e integrada, na busca de
sua proteo integral, de acordo com as disposies do ECA e da Constituio Federal
(BRASIL/PNCFC, 2006, p. 130).
O art. 86 do ECA dispe que o Sistema de Garantia de Direitos da Criana e do
Adolescente deve ser colocado em prtica atravs de uma poltica de atendimento
resultante da articulao de aes governamentais e no governamentais da Unio, dos
estados, do Distrito Federal e dos municpios.
So tambm diretrizes da Poltica de Atendimento dos Direitos da Criana e do
Adolescente, definidas pelo art. 88 do ECA: a integrao operacional dos rgos do
Judicirio, Ministrio Pblico, Defensoria Pblica e Delegacias Especializadas. Essa
integrao visa agilidade no atendimento, assegurando, assim, o princpio
constitucional da prioridade absoluta; a criao de rgos especficos do governo e da
13
sociedade civil: Conselhos de Direito da Criana e do Adolescente, Conselhos
Tutelares, Delegacias Especializadas, Defensorias Pblicas, Varas e Promotorias
Especializadas da Infncia e da Juventude, Centros de Defesa da Criana e do
Adolescente.
O Sistema de Garantia de Direitos da Criana e do Adolescente teve seus
parmetros dispostos na Resoluo n. 113 do Conanda (2006), prevendo a articulao e
a integrao de suas aes a partir de trs grandes eixos estratgicos em relao aos
direitos humanos:
- Defesa: instrumentos para proteger, assegurar e fazer cumprir direitos;
- Promoo: garantia do atendimento universal;
- Controle social: capacidade de organizao da sociedade objetivando fiscalizar,
monitorar e subsidiar. A sociedade civil, articulada em fruns e em outras instncias no
institucionais (frentes, pactos etc.), essenciais para a existncia dos conselhos de
direitos, integrados pelas organizaes representativas da sociedade civil, deve oferecer
potencial de presso, mobilizao, produo de conhecimentos em torno da
problemtica de crianas e adolescentes, assim como a responsabilidade pela
capacitao permanente da sociedade para uma nova cultura que valorize as crianas e
os adolescentes (FRUM DCA, 2009).
Em estudo sobre esse sistema, BAPTISTA (2012, p. 191) defende que a estes
trs eixos devem ser articulados outros dois, que ela denomina de I - da instituio do
direito (I) e V - de sua disseminao. O primeiro refere-se instncia na qual o
direito legal institudo e onde estabelecido o sistema normativo; o quinto trata-se
de ato poltico de difuso e de mobilizao social, que tem como objetivo preparar a
sociedade como um todo para vivenciar a cidadania e, especificamente, discutir,
contextualizar, em uma perspectiva crtica, a garantia desses direitos (ibid., p. 196).
1.1.3 O Plano Nacional de Promoo, Proteo e Defesa do Direito de Crianas e
Adolescentes Convivncia Familiar e Comunitria e a Lei n. 12.010/2009
O Plano Nacional de Promoo, Proteo e Defesa do Direito de Crianas e
Adolescentes Convivncia Familiar e Comunitria (PNCFC) foi aprovado em 2006,
com o objetivo de fornecer subsdios para a formulao e implementao de polticas
pblicas que assegurassem a garantia dos direitos das crianas e adolescentes, de forma
integrada e articulada com os demais programas governamentais.
14
O PNCFC fortalece o paradigma da proteo integral e a necessidade da
preservao dos vnculos familiares e comunitrios, preconizados pelo ECA. Seus
objetivos, diretrizes e estratgias esto fundamentados na preveno do rompimento dos
vnculos familiares, na qualificao do atendimento dos servios de acolhimento de
crianas e adolescentes, e no investimento para o retorno ao convvio familiar de origem
quando estiverem acolhidos institucionalmente. Assim, a colocao em famlia
substituta dever ocorrer como medida extrema, aps terem sido esgotadas todas as
possibilidades de manuteno na famlia de origem. Esse recurso deve seguir os
procedimentos legais, garantindo o superior interesse da criana e do adolescente.
Observa-se a importncia do PNCFC para a construo da Lei n. 12.010/2009,
inicialmente conhecida como a Lei da Adoo, um importante instrumento rumo
concretizao dos direitos da criana e do adolescente, principalmente no que tange ao
direito convivncia familiar e comunitria. Esta lei, que altera e acrescenta artigos ao
ECA, disps sobre mudanas a serem incorporadas s prticas de atendimento e na
organizao dos servios, e possibilita tanto sociedade como aos rgos de proteo
aos direitos da criana e do adolescente acompanhar e cobrar respostas do Estado em
relao garantia da excepcionalidade do afastamento familiar ou da sua brevidade,
quando no houver outra forma de assegurar a integridade fsica, psquica e moral da
criana e do adolescente.
Entre as alteraes relativas ao direito convivncia familiar e comunitria,
destacam-se:
- a obrigatoriedade de controle semestral da situao da criana ou adolescente
institucionalizados em unidade de acolhimento, de maneira a garantir o carter
transitrio dessa medida, que deve ser aplicada como uma das ltimas alternativas de
proteo;
- o prazo mximo de dois anos para a permanncia da criana ou adolescente em de
acolhimento institucional, com o objetivo de contribuir para a diminuio do perodo de
tramitao do processo de resoluo de sua situao, e consequente garantia da
convivncia na famlia de origem ou famlia substituta. O prolongamento desse perodo
dever ser devidamente justificado pela autoridade judiciria;
- organizaes responsveis por programa de acolhimento, em carter excepcional,
podem receber crianas e adolescentes sem a prvia determinao da autoridade
competente, estando obrigadas a comunicar o fato em at 24 horas para o juiz da
Infncia e da Juventude;
15
- o direito de crianas e adolescentes convivncia familiar de forma plena, ampliando
a concepo de famlia para alm da unidade pais e filhos ou do casal, incluindo
parentes prximos com os quais a criana e o adolescente convive e mantm vnculos de
afinidade e afetividade compreendida como famlia extensa ou ampliada;
- reforo da necessidade de manter grupo de irmos unidos, determinando que dever
ser colocado em adoo, tutela ou guarda na mesma famlia substituta, exceto seja
comprovada a existncia de risco de abuso ou outra situao que justifique outra
soluo;
- a preparao prvia dos pais adotivos, medida fundamental para que os pretendentes
sejam esclarecidos a respeito dos trmites e implicaes da adoo;
- a escuta prvia do adotando pela equipe interprofissional da Justia da Infncia e da
Juventude acerca do pleito de adoo, levando em conta seu estgio de
desenvolvimento;
- a necessidade de o poder pblico prestar assistncia psicolgica gestante e me no
perodo pr e ps-natal, incluindo aquelas que manifestem o interesse em entregar seu
filho para a adoo, as quais devero obrigatoriamente ser encaminhadas Justia da
Infncia e da Juventude.
Embora a Lei n. 12.010/2009 tenha trazido avanos em relao proteo
integral de crianas e adolescentes, em especial nas disposies que tratam da
convivncia familiar e comunitria, algumas questes merecem ateno e
aprofundamento, entre elas as relativas famlia de origem das crianas que no tm
sido priorizadas no que se refere ao direito proteo social para efetiva proteo s
suas crianas e adolescentes, o que em muitas situaes inviabiliza o prazo mximo de
dois anos para a criana permanecer institucionalizada , e a adoo de crianas mais
novas e mais velhas, que passam por momentos diferentes de socializao, bem como a
cultura da adoo no Brasil, que, mesmo passando por mudanas, ainda permeada pela
preferncia por crianas mais novas (ver item 3.2). Merece ateno tambm a no
ateno adoo por casais homoafetivos, uma realidade no pas, no contemplada na
legislao, ficando a deciso a respeito de seus pedidos de adoo a critrio da
interpretao que cada magistrado conferir a essa e a outras legislaes afins.
De maneira geral, possvel afirmar que o ECA em sua verso original, como o
PNCFC, j tratava desses aspectos de alguma maneira e, se o conjunto de suas
disposies e normativas fosse de fato efetivado, dispensaria novas legislaes sobre o
mesmo tema.
16
1.1.4 Cuidados alternativos a crianas e adolescentes afastados do convvio
familiar
Sabe-se que a preservao do vnculo familiar de crianas e adolescentes deve ser
garantida, em detrimento de qualquer outra medida; porm, nas situaes em que esses
vnculos se rompam ou se fragilizem, necessrio o apoio especializado de uma rede
que oferea servios e aes que evitem a violao de direitos.
Conforme o PNCFC, quando for detectada a necessidade de afastamento da criana
e do adolescente de sua famlia para a proteo de sua integridade fsica e psicolgica,
servios que ofeream cuidados e condies favorveis a seu desenvolvimento devem
ser disponibilizados at que se viabilize a reintegrao famlia de origem ou, na sua
impossibilidade, o encaminhamento famlia substituta.
1.1.4.1 Acolhimento institucional
O Estatuto da Criana e do Adolescente define o acolhimento institucional como
uma medida de proteo (ECA, art. 101).
As instituies que oferecem programas de acolhimento atendem crianas e
adolescentes em situao de abandono, diante de grave ameaa ou violao de direitos,
ou cujas famlias encontrem-se temporariamente impossibilitadas de cumprir sua funo
de cuidado e proteo. So moradias alternativas at o retorno famlia de origem ou a
colocao em famlia substituta (SILVA, MELLO, 2004).
De forma a coibir a massificao observada nos antigos abrigos, a legislao
preconiza ainda que toda criana e adolescente tem direito a viver em um local que
favorea seu processo de desenvolvimento, isto , enquanto todas as medidas estiverem
sendo tomadas para que a criana e o adolescente retornem ao convvio familiar, eles
devem desfrutar de um ambiente condizente com suas necessidades fsicas, psicolgicas
e sociais.
A prtica de acolhimento institucional indiscriminado condenada. O ECA
garante o acolhimento familiar e institucional como medidas provisrias e excepcionais:
O acolhimento institucional e o acolhimento familiar so medidas
provisrias e excepcionais, utilizveis como forma de transio para reintegrao familiar ou, no sendo esta possvel, para colocao em
famlia substituta, no implicando privao de liberdade (ECA, art.
101, 1).
Deve ser priorizada a convivncia comunitria, por meio da utilizao de
servios disponveis para o atendimento de demandas de sade, lazer, educao,
17
evitando-se o isolamento social. Historicamente, os locais que abrigavam crianas e
adolescentes funcionavam como instituies totais, impossibilitando seu contato com o
meio externo. Atualmente, seguindo diretriz da Poltica Nacional de Assistncia Social
PNAS, de 2004 (BRASIL/PNAS, 2005), detalhada nas Orientaes Tcnicas para
Servios de Acolhimento de Crianas e Adolescentes, em 2008 (CONANDA/CNAS,
2009), o atendimento realizado requer uma articulao intersetorial, baseando-se no
princpio da incompletude institucional, de forma que no seja oferecido em seu interior
atividades de competncia de outros servios.
1.1.4.2 Acolhimento familiar
O acolhimento em famlia acolhedora um servio de proteo social especial,
elencado entre os servios de alta complexidade do Sistema nico de Assistncia Social
(Suas).
Trata-se de um servio de acolhimento de crianas e adolescentes na residncia
de famlias acolhedoras que deve oferecer proteo integral queles afastados
temporariamente da famlia de origem, at que seja possvel o retorno (ou reintegrao)
sua famlia nuclear ou extensa ou, em casos excepcionais, a adoo
(BRASIL/PNCFC, 2006).
Os Programas de Famlias Acolhedoras (assim como o acolhimento
institucional) devem organizar-se de acordo com os princpios e diretrizes do ECA,
principalmente no que se refere excepcionalidade e provisoriedade do
acolhimento, preocupao com a reintegrao famlia de origem, preservao do
vnculo entre grupos de irmos, permanente comunicao com a Justia da Infncia e
da Juventude e articulao com a rede de servios (BRASIL/PNCFC, 2006, p. 43).
Sua execuo, portanto, deve incluir o atendimento e acompanhamento famlia de
origem.
1.2 Poder familiar
Poder familiar refere-se somatria de direitos e obrigaes assumidos pelos
pais e responsveis legais, institudos para a proteo dos interesses de subsistncia,
sade, educao e criao dos filhos. um poder-dever indisponvel, irrenuncivel, no
passvel de transao e imprescritvel (MESSEDER, 2010).
Essa expresso passou a ser utilizada a partir do Cdigo Civil (CC) promulgado
em 2002 em substituio a ptrio poder, como constava no Cdigo Civil de 1916. Em
18
sua origem, o ptrio poder chegava ao extremo de o pai ter o poder absoluto sobre o
filho, inclusive de morte (FONSECA, 2004). A expresso poder familiar visou abranger
o conjunto de direitos e deveres de me e pai sobre filhos, em condies de igualdade.
Entretanto, segundo o autor citado, ainda passvel de crticas, porque continua
enfatizando o poder e sugerindo algo diferente do que exprime, pois a terminologia
poder familiar no um poder da famlia, mas uma obrigao dos pais (ibid.). Vale
ressaltar que alguns estudos tm sugerido o uso de poder parental, por consider-lo
mais abrangente.
Os filhos esto sujeitos ao poder familiar em qualquer natureza da filiao. Se
nascidos fora do casamento, ou da unio estvel, precisam ser legalmente reconhecidos,
ou adotados para se estabelecer o parentesco. Se houver apenas a maternidade
estabelecida, o poder familiar ser exercido somente pela me. Tambm na falta de um
dos pais por morte, desaparecimento, ausncia ou impedimento por doena grave , o
outro exercer o poder familiar com exclusividade (FONSECA, 2004).
O poder familiar, portanto, no decorre do casamento ou da unio estvel, mas
da paternidade, da maternidade e da filiao, seja biolgica ou civil. Assim, os direitos e
deveres de pai e de me continuam em condies de igualdade nos casos de separao
judicial ou no, levando em conta o que acordado ou determinado judicialmente em
relao guarda dos filhos.
1.2.1 Destituio do poder familiar
A destituio do poder familiar uma sano grave imposta aos pais quando
violam as obrigaes inerentes ao poder familiar, observando-se sempre o que for de
melhor interesse da criana. uma medida extrema e permanente, e deve ser decretada
apenas aps avaliao da intensidade, da frequncia, das circunstncias e das
consequncias dos atos de violao de direitos no seu sentido amplo , impostos pelos
pais aos filhos menores de 18 anos. Sua determinao se d por sentena judicial,
devendo ser assegurado aos pais o direito ao contraditrio e ampla defesa.
providncia necessria e prvia para a medida de adoo. (FONSECA, 2004).
As causas de destituio do poder familiar so enumeradas no art. 1.638 do atual
Cdigo Civil, e assim descritas:
I castigar imoderadamente o filho;
II deixar o filho em abandono;
III praticar atos contrrios moral e aos bons costumes;
19
IV incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.
O Estatuto da Criana e do Adolescente declara a criana e o adolescente como
sujeitos de direitos, devendo ser garantido a eles que se desenvolvam livremente e em
meio aberto, no convvio com a famlia natural ou, como ltimo recurso, com a famlia
substituta em detrimento da institucionalizao.
Em relao destituio (medida definitiva) ou suspenso (medida temporria)
do poder familiar, o ECA dispe em seu artigo 24: A perda e a suspenso do poder
familiar sero decretadas judicialmente, em procedimento contraditrio, nos casos
previstos na legislao civil, bem como na hiptese de descumprimento injustificado
dos deveres e obrigao a que alude o art. 22.
Embora o art. 22 do ECA disponha que dever dos pais sustentar e educar os
filhos menores de 18 anos16, o art. 23 deixa claro que a falta ou a carncia de recursos
materiais no constituem motivo para a perda ou suspenso do poder familiar17
. De
acordo com o ECA, o cuidado e a responsabilidade com a criana e com o adolescente
devem ser compartilhados pela famlia, pela sociedade e pelo Estado, o que implica que,
se os pais tm dificuldades econmicas/materiais para cuidar de seus filhos, dever do
poder pblico prestar assistncia famlia, garantindo a no destituio do poder
familiar em razo da situao de pobreza em que vive.
Como a destituio do poder familiar uma deciso judicial definitiva na vida
das pessoas envolvidas, sua aplicao exige muitos cuidados. Nesse sentido, podem ser
citados alguns aspectos, em especial referentes realidade social das pessoas
envolvidas: a situao dos pais e mes que abandonam ou entregam seus filhos a outras
pessoas para serem criados e o que esta desistncia representa para eles; o momento de
vida que atravessam para que isso ocorra que pode envolver grande presso e
sofrimento emocional, fragilidades de ordem material, falta ou dificuldades de acesso a
servios de proteo social, ou ainda (ou cumulativamente) a deciso pela entrega a
outros, num ato de afeto, por acreditarem que a criana ser mais bem cuidada
(FVERO, 2007). Como a presente pesquisa constata (conforme dados analisados no
tpico III), muitas vezes as condies de degradao humana, no interior de um
16 O art. 22 do ECA dispe que Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educao dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigao de cumprir e fazer cumprir as determinaes judiciais. 17 A falta ou carncia de recursos materiais no constitui motivo suficiente para a perda ou suspenso do poder familiar. Pargrafo nico. No existindo outro motivo que por si s autorize a decretao da medida, a criana ou adolescente ser mantido em sua famlia de origem, a qual dever obrigatoriamente ser includa em programas oficiais de auxlio (art. 23/ECA).
20
processo de apartao social e de violao de direitos de adultos, podem condicionar a
violao de direitos dos filhos pelos pais, exigindo a interveno do Estado para a
proteo imediata da criana o que nem sempre acompanhado de aes de proteo
social famlia.
1.2.2 Colocao em famlia substituta
A colocao em famlia substituta deve ser uma medida extrema, quando
esgotadas todas as tentativas de manuteno da convivncia da criana e do adolescente
em sua famlia biolgica ou extensa. De forma ainda mais excepcional deve ocorrer a
colocao em famlia substituta estrangeira, em razo da ruptura definitiva que acontece
tanto dos vnculos familiares, de afinidade e afetividade, como com o meio social,
cultural e lingustico, impondo a privao, muitas vezes definitiva, de qualquer contato
da criana ou do adolescente com sua famlia biolgica (FACHINETTO, 2009).
A colocao em famlia substituta pode ocorrer atravs da tutela, guarda e
adoo (ECA, art. 28). Pode ser compreendida como uma medida de proteo e garantia
do direito convivncia familiar.
1.2.2.1 Guarda
Trata-se da obrigao de prestar assistncia material, moral e educacional
criana ou adolescente, conferindo o direito, a quem a detm, de opor-se a terceiros,
inclusive aos pais (ECA, art. 33). A guarda pode ser provisria ou definitiva, de acordo
com o pedido e com a situao especfica (MESSEDER, 2010). Ressalte-se que no
pr-requisito para a guarda a perda do poder familiar, sendo que os pais o mantm
enquanto um terceiro tenha a guarda da criana ou adolescente, ocorrendo geralmente,
neste caso, a suspenso do poder familiar. Nesse sentido, vale observar que a
determinao da perda do poder familiar de pais de crianas que esto em acolhimento
institucional ou sob guarda de outra famlia sem que esteja inserida em processo de
adoo uma medida que causa maiores danos criana, pois implica, entre outros, a
perda da filiao civil, sem que ela tenha a oportunidade e o direito de nova filiao.
Por considerar que a guarda uma forma de assegurar o direito convivncia
familiar e comunitria, evitando a institucionalizao da criana ou do adolescente, o
ECA (art. 34) prev que O poder pblico estimular, por meio de assistncia jurdica,
incentivos fiscais e subsdios, o acolhimento, sob a forma de guarda, de criana ou
adolescente afastado do convvio familiar.
21
1.2.2.2 Tutela
A tutela refere-se ao poder institudo judicialmente a um adulto para ser o
representante legal da criana ou do adolescente menor de 18 anos de idade e gerir sua
vida e administrar seus bens na falta dos pais devido destituio do poder familiar ou a
falecimento (AMB, s/d).
Segundo Messeder (2010), no caso de morte dos pais, o tutor poder ter sido
nomeado por eles em testamento. Caso no o tenha sido, ser nomeado tutor um parente
consanguneo e, na ausncia de tutor testamentrio ou legtimo (parentes), a autoridade
judicial nomear um tutor residente no mesmo domiclio da criana.
1.2.2.3 Adoo
A adoo uma medida excepcional e irrevogvel. Segundo o art. 41 do ECA,
ela atribui a condio de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive
sucessrios, desligando-o de qualquer vnculo com pais e parentes, salvo impedimentos
matrimoniais.
No Brasil, as primeiras legislaes sobre a adoo surgiram apenas no sculo
XX. Nas ltimas dcadas, mudanas legais permitiram o reconhecimento de crianas e
adolescentes como sujeitos de direitos e a adoo passou a figurar como um instrumento
capaz de garantir, em casos excepcionais, o direito convivncia familiar e comunitria.
De acordo com o ECA, cabe ao juiz, ouvido o Ministrio Pblico, a colocao
da criana ou adolescente em adoo, obedecendo ao Cadastro Nacional de Adoo, que
rene os interessados em adotar, devidamente inscritos e avaliados como aptos para tal.
Entretanto, existem situaes em que a adoo ocorre sem a indicao de adotantes
inscritos no Cadastro, como o caso da adoo pronta, e mesmo sem a intermediao
da Justia, a chamada adoo brasileira.
- Adoo pronta: ocorre quando, geralmente, a me ou os pais biolgicos
escolhem para quem desejam entregar seu filho. O ato de definir a quem entregar o filho
chamado de intuito personae. Em muitos casos, o pretendente adoo, com
anuncia da famlia biolgica da criana, procura a Vara da Infncia e da Juventude
para legalizar uma convivncia que j est acontecendo de fato (AMB, s/d).
A prtica da escolha da famlia adotiva pela famlia biolgica no considerada
legal no Brasil, e buscou-se coibi-la com a introduo do pargrafo nico ao art. 13 do
ECA (pela Lei n. 12.010, de 2009): Pargrafo nico. As gestantes ou mes que
22
manifestem interesse em entregar seus filhos para adoo sero obrigatoriamente
encaminhadas Justia da Infncia e da Juventude.
Embora a lei tenha buscado disciplinar essa prtica, ela continua alvo de estudos,
debates e polmicas, existindo defensores da modalidade de adoo aberta ou
flexibilizada (na qual a adoo pronta pode se inserir), que aquela em que os pais
biolgicos podem acompanhar o desenvolvimento da criana adotada por meio de fotos,
relatos ou mesmo contato direto, ou outra forma acordada entre eles e os pais adotivos.
- Adoo brasileira: ocorre quando filhos biolgicos de determinados pais
so registrados como filhos legtimos de outros pais, como se estes fossem seus pais
biolgicos (GUEIROS, 2007, p. 27). Essa prtica, que caracterizada como crime pelo
Cdigo Penal18
, impede qualquer processo de avaliao quanto adequao daqueles
que registram a criana no que se refere capacidade e disponibilidade para atender
suas necessidades e direitos, bem como pode encobrir comrcio e trfico de
crianas.
1.3 A famlia nas polticas pblicas de promoo convivncia familiar e
comunitria
Conforme o PNCFC (BRASIL/PNCFC, 2006), a Constituio Federal e o
Estatuto da Criana e do Adolescente so fundamentais para a definio dos deveres da
famlia, do Estado e da sociedade em relao criana e ao adolescente, assim como
para definir responsabilidades em casos de insero em programas de apoio famlia e
de defesa dos direitos da criana e do adolescente. Enfatiza, entretanto, que apenas a
definio legal no d conta da complexidade e da riqueza dos vnculos familiares e
comunitrios que podem ser mobilizados na defesa desses direitos.
Para esse entendimento, a famlia pode ser pensada como um grupo de pessoas
que so unidas por laos de consanguinidade, de aliana e de afinidade, como tambm
estender-se para alm da unidade pais/filhos e/ou da unidade do casal, estando ou no
dentro do mesmo domiclio, constituindo-se na famlia extensa (BRASIL/PNDCFC,
2006, p. 27).
18Art. 242. Dar parto alheio como prprio; registrar como seu o filho de outrem; ocultar recm-nascido ou substitu-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil: (Redao dada pela Lei n. 6.898, de 1981) Pena - recluso, de dois a seis anos. (Redao dada pela Lei n. 6.898, de 1981) Pargrafo nico - Se o crime praticado por motivo de reconhecida nobreza: (Redao dada pela Lei n. 6.898, de 1981) Pena - deteno, de um a dois anos,
podendo o juiz deixar de aplicar a pena. (Redao dada pela Lei n. 6.898, de 1981).
23
A capacidade que a famlia ter para desempenhar plenamente suas
responsabilidades e funes estar proporcionalmente ligada ao seu acesso aos direitos
sociais que lhe garantam servios de qualidade nas reas da sade, educao, assistncia
social e outros, promovendo seu papel socializador e afetivo, superando possveis
vulnerabilidades (ibid.).
Historicamente, famlias tm sofrido com a retirada de suas crianas em razo da
situao de pobreza, com a justificativa de que elas estariam protegidas e em melhores
condies longe de suas famlias. Uma questo to complexa como essa, muitas vezes,
tem sido resumida como uma suposta incapacidade da famlia para criar seus filhos.
Portanto, culpabilizando-a e cobrando dos pais que eduquem seus filhos, sem, no
entanto, lhes assegurar o acesso aos direitos sociais que garantam uma vida digna, como
emprego, renda e assistncia social (RIZZINI et al., 2007).
Nas ltimas duas dcadas vem ocorrendo um processo de mudanas de
paradigmas relacionados s atribuies e responsabilidades da famlia, do Estado e da
sociedade, com a promulgao de leis e definio de polticas que enfatizam a
centralidade da famlia e a importncia da convivncia familiar e comunitria, como o
ECA (1990), a Poltica Nacional de Assistncia Social (2004) o PNCFC (2006), bem
como a Lei n. 12.010/2009.
Assim, atualmente existe legislao que possibilita proteger a famlia,
particularmente a famlia pobre, contra os abusos do Estado. A convivncia familiar
deve ser preservada, e, conforme j mencionado, a falta de recursos materiais no
motivo suficiente para a retirada da criana e do adolescente de sua famlia (art. 23 do
ECA).
O afastamento do meio familiar pode ocorrer quando a criana ou adolescente
for vtima de quaisquer situaes que caracterizem violaes de direitos, como abuso
fsico e/ou sexual, negligncia, explorao pelo trabalho infantil. Porm, para alm
dessas situaes, e contrariando o explicitado pelo ECA, a pobreza ainda continua sendo
vista como um obstculo central permanncia da criana e do adolescente entre os
seus.
Quando a famlia no consegue, por seus prprios meios, garantir s suas
crianas e adolescentes condies necessrias para seu desenvolvimento e no encontra
no Estado e na sociedade respostas s suas necessidades, contrariando a prpria lei,
conforme Fvero (2007, p. 38), as medidas de destituio e de extino do poder
24
familiar continuam se apresentando como caminho para solucionar o que se percebe ou
se avalia como necessidade de proteo prioritria a uma criana.
Embora ainda existam muitos obstculos, avanos foram feitos, em especial no
que se refere Poltica de Assistncia Social, desde a implementao da Norma
Operacional Bsica do Sistema nico de Assistncia Social (NOB/Suas), aprovada em
2005 pelo CNAS e, em dezembro de 2012, a Resoluo n. 33/CNAS, que trata da nova
NOB/Suas.
A NOB/Suas/2005 estabeleceu um conjunto de regras de operacionalizao da
assistncia social no Brasil. Em relao proteo social de assistncia social, afirma
que
consiste no conjunto de aes, cuidados, atenes, benefcios e
auxlios ofertados pelo SUAS para reduo e preveno do impacto
das vicissitudes sociais e naturais ao ciclo da vida, dignidade humana e famlia como ncleo bsico de sustentao afetiva,
biolgica e relacional (BRASIL, 2005, p. 19).
A NOB/Suas/2012, ao afianar seguranas, definiu que a segurana do
convvio ou vivncia familiar, comunitria e social, pressupe a oferta pblica de
servios que garantam oportunidades e ao profissional visando:
a- a construo, restaurao e o fortalecimento de laos de pertencimento, de natureza geracional, intergeracional, familiar,
de vizinhana e interesses comuns e societrios;
b- o exerccio capacitador e qualificador de vnculos sociais e de
de projetos pessoais e sociais de vida em sociedade (BRASIL, 2012, p. 17).
Dessa forma, o direito convivncia familiar e no meio social, por parte da
criana e do adolescente no interior da proteo social de assistncia social, necessita
ser pensado em articulao ao conceito de famlia que supera seu entendimento como
unidade econmica (como apenas uma referncia para clculos per capita), entendendo-
a como ncleo afetivo, vinculado por laos consanguneos, de aliana ou afinidade, na
qual os vnculos implicam obrigaes recprocas e mtuas, organizadas em torno de
relaes de gerao e de gnero (BRASIL, 2005, p. 19).
Como destacam Gueiros e Santos (2011, p. 82), a amplitude do conceito de
famlia possibilita uma variedade de enunciados, sem que haja confronto entre eles.
algo dinmico, mltiplo, em transformao. Como o primeiro espao de acolhimento do
indivduo, possvel dizer que
25
a famlia uma unidade de convivncia, formada a partir de vnculos de
parentesco, de afinidade e de reciprocidade, cuja histria e percurso
social singulares demarcam sua forma de organizao interna e de intercmbio com a sociedade naquele dado momento e lugar e, em
consequncia, a socializao, o cuidado e a proteo de seus membros
(ibid, p. 82).
As autoras ressaltam ainda que lidar com famlias significa superar
preconceitos, desmistificar sua ideologia como ncleo natural e padronizado e
aprofundar o conhecimento de sua realidade social, adentrando suas vicissitudes,
vulnerabilidades e potencialidades (GUEIROS e SANTOS, 2011, p. 83).
No que se refere proteo social s famlias, a PNAS definiu como uma de
suas diretrizes a matricialidade sociofamiliar, que significa ter a famlia (com suas
questes coletivas e singulares) como matriz de execuo desta mesma poltica. Coloca
a famlia como o ncleo social bsico de acolhida, convvio, autonomia,
sustentabilidade e protagonismo social e, nesse sentido, pensar a matricialidade
sociofamiliar significa compreender o momento e a situao social da famlia, com a
perspectiva de gerir tais aspectos a partir de suas especificidades (GUEIROS e
SANTOS, 2011, p. 76). Definida pela NOB/Suas (2005 p. 28) como um dos eixos
estruturantes da gesto do Sistema nico de Assistncia Social, a matricialidade
sociofamiliar d primazia ateno s famlias e seus membros, a partir do seu
territrio de vivncia, com prioridade quelas com registros de fragilidades,
vulnerabilidades e presena de vitimao entre seus membros.
O reconhecimento da matricialidade sociofamiliar como eixo estruturante da
poltica passo importante para a efetivao do direito de crianas e adolescentes
convivncia familiar e comunitria. Trata-se, todavia, de diretrizes e debate recentes,
que exigem ainda muitos estudos, pesquisas, acompanhamento e controle social, com
vistas a que sejam de fato concretizadas na execuo cotidiana das polticas sociais
pblicas.
1.4 Novos procedimentos para garantia do direito convivncia familiar e
comunitria
A Lei n. 12.010/2009 introduziu alteraes ao ECA, voltadas em especial para o
direito da criana e do adolescente convivncia familiar e comunitria. Resultado de
muitos debates e embates relacionados principalmente aos processos de destituio do
26
poder familiar e adoo, essa lei elenca dispositivos que envolvem mais diretamente
as possibilidades de que seja garantida criana e ao adolescente a convivncia familiar
e comunitria, como o maior controle do tempo de acolhimento institucional; a
elaborao de planos individuais de atendimento (PIA) que devem envolver a rede
socioassistencial, com vistas primeiro reintegrao familiar ou, em havendo algum
impedimento judicial, colocao em famlia substituta; a efetivao de cadastros
estaduais e nacional de adoo; a agilizao de aes de destituio do poder familiar,
entre outros. Embora no explicitado nessa lei, mas em decorrncia dela, integrantes do
Sistema de Garantia de Direitos de crianas e adolescentes devem somar esforos para a
realizao das audincias concentradas sob iniciativa da Justia da Infncia e
Juventude dos Tribunais de Justia Estaduais, procedimento possvel com a prvia
elaborao e execuo de planos individuais de atendimento, cujo objetivo fornecer
subsdios para que a institucionalizao possa ser pensada com um tempo mnimo de
durao, conforme j mencionado. A execuo dos dispositivos dessa lei carece ainda
de pesquisas e anlises crticas que venham a avaliar sua efetividade, em especial no
que se refere intersetorialidade no atendimento e apoio socioassistencial para a
permanncia da criana na famlia de origem.
1.4.1 Plano individual de atendimento (PIA)
O ECA (art. 101, 4, redao acrescida pela Lei n. 12.010/2009) determina
que, imediatamente aps o acolhimento da criana ou adolescente, seja elaborado um
plano individual de atendimento, visando a reintegrao familiar, ressalvada a existncia
de ordem escrita e fundamentada em contrrio de autoridade judiciria competente,
contemplando sua colocao em famlia substituta.
As organizaes que mantenham servios de acolhimento institucional ou
familiar devem contar com equipes tcnicas responsveis por elaborar o PIA assim que
ocorra a entrada da criana ou adolescente no servio. Nesse plano devem constar o
objetivo, as estratgias e aes a serem desenvolvidas, tendo como meta a superao
dos motivos que provocaram o afastamento da famlia, atendendo as necessidades de
cada situao (BITTTENCOURT, 2010).
O PIA tem como objetivo a orientao dos trabalhos de interveno durante o
perodo de acolhimento considerando cada caso especfico. O levantamento situacional
deve contemplar, entre outros aspectos, os
27
motivos que levaram ao acolhimento e se j esteve acolhido neste ou
em outro servio anteriormente, dentre outros; configurao e
dinmica familiar, relacionamentos afetivos na famlia nuclear e extensa, perodo do ciclo de vida familiar, dificuldades e
potencialidades da famlia no exerccio do seu papel; condies
socioeconmicas, acesso a recursos, informaes e servios das diversas polticas pblicas; demandas especficas da criana, do
adolescente e de sua famlia que requeiram encaminhamentos
imediatos para a rede (sofrimento psquico, abuso ou dependncia de
lcool e outras drogas etc.), bem como potencialidades que possam ser estimuladas ou desenvolvidas; rede de relacionamentos sociais e
vnculos institucionais da criana, do adolescente e da famlia,
composta por pessoas significativas19
na comunidade, colegas, grupos de pertencimento, atividades coletivas que frequentam na
comunidade, escola, instituies religiosas etc.; violncia e outras
formas de violao de direitos na famlia, seus significados e possvel transgeracionalidade
20; significado do afastamento do convvio e do
servio de acolhimento para a criana, adolescente e famlia
(CONANDA/CNAS, 2009, p. 28).
Para a elaborao do plano, deve ser realizada uma escuta qualificada da criana
ou adolescente e de sua famlia, assim como das pessoas que lhe sejam significativas.
imprescindvel que tanto a criana ou adolescente quanto sua famlia sejam
protagonistas neste processo, a fim de pensar juntamente com a equipe tcnica os
possveis caminhos para a superao das situaes de riscos, participando da definio
de encaminhamentos, intervenes e procedimentos que possam contribuir para o
atendimento de suas demandas. Suas aes devem estar articuladas com os rgos e
servios que acompanham a famlia, a fim de se obter, o mais breve possvel, a
definio do caminho a seguir (ibid., 2009).
Devero ser realizadas reunies com os profissionais envolvidos para
acompanhamento e evoluo do atendimento. As concluses resultantes de tais reunies
podero servir, inclusive, de subsdio para relatrios semestrais a serem encaminhados
para o Poder Judicirio (CONANDA/CNAS, 2009).
As orientaes tcnicas definidas para a realizao do PIA apontam para um
ideal de aes que, na execuo, deparam com limitaes polticas, institucionais e
tcnico-profissionais, as quais, muitas vezes, colocam sob a responsabilidade da
unidade de acolhimento institucional todo esse processo, sem o estabelecimento, de
19 aquela com quem a criana ou adolescente tem laos afetivos ou com quem estabeleceu relaes de confiana, que garanta proteo e cuidado.(Cf rodap do texto original) 20 Caracteriza a passagem, de uma gerao a outra, de formas de lidar com as crises, que no depende apenas do recurso da famlia nuclear, mas tambm dos legados familiares, ou seja, a forma como as outras geraes resolveram as mesmas crises. PENSO, Maria Aparecida; COSTA, Liana F. (Orgs.). A transmisso geracional em diferentes
contextos. So Paulo: Summus, 2008. (Cf rodap do texto original).
28
fato, da responsabilidade conjunta no seu planejamento e conduo. Assim, o PIA pode
ser conduzido numa perspectiva individualizante tanto no que se refere ao ente que o
executa, como ou principalmente perspectiva de anlise da realidade social da
famlia de origem da criana, responsabilizando-a pela impossibilidade de cuidar dos
filhos, sem que o Estado seja de fato acionado a implementar polticas sociais que
assegurem criana o direito convivncia com a famlia e o meio social de origem.
Pesquisa realizada pelo Ncleo de Estudos e Pesquisas sobre a Criana e o
Adolescente, da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, ao ouvir profissionais
que atuam em unidades de acolhimento institucional sobre o PIA, concluiu que em So
Paulo os formulrios do estudo de caso e do PIA parecem ter se transformado numa
exigncia burocrtica, em vez de servirem como facilitadores da ao profissional dos
servios de acolhimento.... Na fala de um dos profissionais, o grande problema foi a
articulao com a rede, porque os atores (...) no dialogam, no conversam e ficam
fazendo o trabalho individualmente (BAPTISTA e OLIVEIRA, s/p., 2013).
1.4.2 Audincias concentradas
As audincias concentradas, facultativas a cada juiz realiz-las, so um conjunto
de medidas que objetivam organizar o controle de atos administrativos e processuais
para garantir o retorno de crianas e adolescentes institucionalizados para suas famlias.
Essas aes sistematizadas ocorrem para que, em determinado dia, o juiz, o promotor, o
defensor pblico, a equipe interdisciplinar, o poder pblico, a criana ou adolescente, os
genitores, a famlia extensa e todo o sistema de garantia de direitos estejam presentes a
um ato que tem por objetivo proporcionar a sada da criana ou do adolescente da
instituio de acolhimento, dentro dos prazos estipulados pela lei, de modo a atender,
sempre que possvel, o melhor interesse da criana (TJSP, 2010).
O Tribunal de Justia de So Paulo, em documento que trata da execuo das
audincias concentradas no estado, esclarece que, embora a lei no tenha definido um
procedimento detalhado, tanto para a aprovao como para a reviso dos planos
individuais de atendimento, a realizao de audincias para esta finalidade decorrncia
de diversos princpios legais relacionados no art. 10021
do ECA e no art. 1222
da
21 O art. 100 do ECA situa-se no captulo das medidas especficas de proteo a crianas e a adolescentes, e dispe que Na aplicao das medidas levar-se-o em conta as necessidades pedaggicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vnculos familiares e comunitrios. 22 O Brasil ratificou a Conveno Internacional sobre os Direitos da Criana e do Adolescente (ONU) por meio do Decreto n. 99.710, de 21.11.1990. O art. 12 dispe: 1. Os Estados Partes asseguraro criana que estiver capacitada
a formular seus prprios juzos o direito de expressar suas opinies livremente sobre todos os assuntos relacionados
29
Conveno sobre os Direitos da Criana para que sejam partcipes deste processo
(TJSP, 2010).
Uma das principais preocupaes da audincia deve ser a avaliao se a criana
ou adolescente tem efetivo conhecimento do que foi proposto no PIA e qual sua
participao nesse plano, bem como se est de acordo com o que ali foi contemplado.
No mesmo sentido, necessrio ser avaliado o envolvimento dos pais e da famlia
extensa (ibid.).
Assim, nas audincias concentradas, o PIA um instrumental importante a ser
avaliado em relao reintegrao familiar, pois dever oferecer subsdios para a
identificao da famlia extensa e da rede social de apoio criana ou adolescente, alm
de possibilitar apontar as potencialidades da famlia e auxiliar no planejamento de
alternativas para suas dificuldades, atravs do apoio efetivo de programas
governamentais e no governamentais.
No termo de audincia, devem ser sintetizadas as obrigaes assumidas por cada
uma das partes, especialmente pelo poder pblico (que tem responsabilidade primria e
solidria para superao da situao, nos termos do ECA, art. 100, nico, inc. III),
pelos pais e responsvel, pelo programa de acolhimento e, tambm, pela prpria criana
ou adolescente (ibid).
No sendo possvel a reintegrao familiar, deve-se buscar a colocao em
famlia substituta na modalidade de guarda (nesse momento, poder ser feita a busca de
pessoas da famlia extensa ou da rede social de apoio) e, sendo impossvel, compete ao
Ministrio Pblico avaliar o cabimento de ajuizamento de ao de destituio do poder
familiar (TJSP, 2010).
As audincias de reviso do acolhimento institucional devem ser feitas para
avaliao do efetivo cumprimento do plano e do suporte prestado pelo poder pblico,
atravs das polticas de assistncia social, sade e habitao, que tambm devem enviar
relatrios peridicos Justia durante o processo de execuo. Assim, a audincia
concentrada necessita ser instrumento que de fato avalie a intersetorialidade da rede de
atendimento social na efetivao do acesso e garantia de direitos famlia, alm dos
demais rgos envolvidos, para que a criana ou o adolescente em acolhimento
com a criana, levando-se devidamente em considerao essas opinies, em funo da idade e maturidade da criana. 2. Com tal propsito, se proporcionar criana, em particular, a oportunidade de ser ouvida em todo processo judicial ou administrativo que afete a mesma, quer diretamente quer por intermdio de um representante ou rgo apropriado, em conformidade com as regras processuais da legislao nacional.
30
institucional retornem ao convvio da famlia de maneira protegida e segura.
fundamental que os atores e organizaes envolvidos nesse processo assumam cada
qual suas responsabilidades perante a situao em anlise, para que a ao no se torne
to somente uma burocrtica cobrana responsabilidade familiar, por parte do
Judicirio, expondo crianas e adolescentes a situaes de sofrimento frente a
expectativas frustradas e, quase sempre, em um ambiente e com pessoas estranhas a seu
cotidiano.
Segundo os dados do 1 Relatrio sobre a Situao de Crianas Abrigadas,
divulgado pela Coordenadoria da Infncia e da Juventude do Tribunal de Justia de So
Paulo CIJ/TJSP, de 27 de julho a 27 de agosto de 2010 foram realizadas 1.022
audincias para atender 1.771 crianas e adolescentes. Destes, 285 voltaram s famlias
de origem e 104 ficaram sob os cuidados de famlias substitutas o que inclui guarda,
tutela ou adoo. Conforme o mesmo relatrio, outras 79 tiveram aes de destituio
do poder familiar ajuizadas (CIJ/TJSP, 2010), procedimento obrigatrio para que
possam ingressar no Cadastro Nacional de Adoo. Entretanto, o documento no
esclarece se essas crianas e adolescentes cujos pais tiveram aes de destituio do
poder familiar ajuizadas foram inseridas em famlias substitutas mediante processo de
adoo ou se permaneceram nos servios de acolhimento, o que pode caracterizar
tambm violao de direitos. Toda criana e adolescente tem o direito de ter uma
famlia, ainda que no seja possvel a convivncia com ela. Vincular a destituio do
poder familiar disponibilizao para adoo, sem avaliar a real possibilidade de essa
medida se efetivar, condenar a criana e o adolescente ausncia de uma referncia
familiar, mesmo que apenas documental23
.
O art. 50 do ECA elucida que a autoridade judiciria manter, em cada comarca
ou foro regional, um registro de crianas e adolescentes em condies de serem
adotados e outro de pessoas interessadas na adoo, o que no significa a
obrigatoriedade da destituio do poder familiar para que uma criana ou um
adolescente possam ser considerados em condies de ser adotados.
Se o trabalho efetivamente realizado com vistas a seu retorno famlia e
comunidade de origem no obteve resultados nessa direo, importante que a
destituio do poder familiar ocorra apenas quando a criana ou adolescente tenha a real
possibilidade de ser inserida em uma nova famlia, conforme esclarece Silva (2009, s/p):
23 Destaca-se a importncia de que essa exigncia, que viola direitos, ganhe visibilidade e seja debatida pelos rgos
de defesa e proteo da criana e do adolescente.
31
A dispensabilidade da destituio prvia do poder familiar para que se
possa entender ser uma criana adotvel de todo salutar e condizente
com o esprito da nova lei, j que uma vez destituda e enquanto no adotada ficaria ela sem qualquer referncia familiar, num verdadeiro
limbo jurdico. O que atenta contra a garantia constitucional do direito
convivncia familiar.
1.4.3 Cadastro Nacional de Adoo
De acordo com o Conselho Nacional de Justia (CNJ, 2009), o Cadastro
Nacional de Adoo (CNA) um banco de dados, nico e nacional, composto de
informaes sobre crianas e adolescentes aptos a serem adotados e pretendentes
habilitados adoo. Foi criado em abril de 2008 para auxiliar os juzes das Varas da
Infncia e da Juventude na conduo dos procedimentos de adoo por meio do
mapeamento de informaes unificadas, visando desburocratizar o processo.
O Conselho Nacional de Justia, administrador do sistema em mbito nacional,
o responsvel pela concesso das senhas de acesso ao sistema aos usurios autorizados
do CNA: juzes de Direito das Varas da Infncia e da Juventude; promotores de Justia
com atribuio para a infncia e juventude; Comisses Estaduais Judicirias de Adoo
Cejas e Comisses Estaduais Judicirias de Adoo Internacional Cejais; Secretaria
Especial dos Direitos Humanos SEDH; auxiliares do juiz: serventurios e tcnicos da
Justia da Infncia e da Juventude.
Conforme dados divulgados em 31 de agosto de 2011, pelo CNJ (AGNCIA
CNJ DE NOTCIAS, 2011), h em todo o pas 4.856 crianas e adolescentes aptos a
serem adotados. Dentre esses, 3.749 tm irmos, 2.133 so do sexo feminino e 2.723, do
sexo masculino. Quanto cor da pele, a maioria parda (2.230), seguida do nmero de
brancos (1.656) e negra (907). O estado que mais concentra crianas e adolescentes
So Paulo: 1.288 cadastrados. O nmero de pretendentes adoo no pas de 27.478.
O documento aponta que o entrave para a adoo continua sendo o perfil exigido
pelos pretendentes: 22.702 manifestam o desejo por apenas uma criana e, at duas
crianas, 4.461. Dos interessados, apenas 585 declaram aceitar somente criana negra.
Somente crianas brancas o desejo de 10.173 dos adotantes; e somente criana parda,
1.537 do total de interessados (ibid).
A pesquisa documental realizada e exposta neste trabalho demonstrou aspectos
importantes da luta pela proteo integral criana e ao adolescente para garantia da
convivncia familiar e comunitria e de avanos conquistados nas ltimas dcadas,
porm a realidade revela que h muito a fazer para a efetivao do disposto nas
32
legislaes e normativas afins. Alguns desafios precisam ser superados e, para isso,
investimentos em estudos e pesquisas sobre a temtica, em especial sobre como e se
esto sendo efetivadas as disposies legais, so essenciais.
Pesquisas e estudos j realizados apontam que a famlia pobre continua sendo a
principal personagem dos processos de acolhimento institucional e de destituio do
poder familiar (ver FVERO, BAPTISTA E VITALE, 2008, e o tpico III deste
relatrio). A proteo social s famlias, que deveria ocorrer por meio de uma atuao
em rede e em articulao intersetorial, quando ocorre, geralmente o de maneira
desarticulada e fragmentada, seja pela inexistncia ou pela ineficcia das polticas
pblicas. Significativo nmero de crianas e adolescentes continua sendo (ou
permanece) acolhido institucionalmente, criado longe de seus familiares e com
pouqussimas possibilidades de conviver com uma famlia substituta24
.
Enfrentar o quadro de desigualdade social existente no pas que condiciona,
historicamente e no tempo presente, a realidade de acolhimento institucional de crianas
e adolescentes e a destituio do poder familiar de mes e pais que vivem ou
sobrevivem em situao de pobreza, bem como planejar de maneira efetiva as aes e a
capacitao continuada na qual importante inserir a superviso dos profissionais
que desenvolvem prticas sociais com famlias so tarefas centrais no processo de
efetivao do direito convivncia familiar e comunitria de crianas e adolescentes,
preferencialmente em sua famlia e comunidade de origem, sob o risco da contnua
culpabilizao da famlia pela impossibilidade ou dificuldade de ordem material para
cuidar dos filhos e proteg-los.
No tpico seguinte realizada uma breve aproximao realidade
socioterritorial das VIJs, lcus da pesquisa de campo, com vistas a apresentar algumas
caractersticas dos diferentes territrios que compem a cidade, em especial no que se
refere proteo social.
24 Relatrio apresentado pelo Conselho Naciona