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revista EXITUS | Volume 04 | Número 01 | Jan/Jun. 2014 Políticas Educacionais - 02 p. 59 - 77 RELATÓRIO JACQUES DELORS E PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS DO ENSINO MÉDIO: orientações para o ensino da educação física Eduardo Borba Gilioli 32 Maria Terezinha Bellanda Galuch 33 RESUMO O presente artigo tem como objetivo analisar os princípios formativos presentes no Relatório Jacques Delors e nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio para a Educação Física e o reflexo da concepção de formação escolar presente nesses documentos para a organização do ensino da Educação Física. As análises sugerem princípios formativos comuns aos dois documentos, bem como limites ao ensino da Educação Física com base nessa perspectiva, pois o que está em jogo é o atendimento às necessidades do atual modelo produtivo e não a apropriação dos conhecimentos re- lacionados à cultura corporal. Palavras-chave: Relatório Jacques Delors. Parâmetros curriculares nacionais. Educação física. 32 Graduação em Educação Física pela Faculdade Integrada de Fátima do Sul - MS (1999), especialização em Interdisciplinaridade na Educação Básica pelo IBPEX (2002) e mestrado em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (2013). E-mail: [email protected] 33 Mestrado em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (1996); Doutorado em Educação: História, Política, Sociedade, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004); Estágio Pós-Doutoral, pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (2013). Docente do PPGE da Universidade Estadual de Maringá. e-mail: [email protected]

RELATÓRIO JACQUES DELORS E PARÂMETROS CURRICULARES ... · Relatório Jacques Delors e Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio: Orientações para o Ensino da Educação

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revista EXITUS | Volume 04 | Número 01 | Jan/Jun. 2014

Políticas Educacionais - 02 p. 59 - 77

RELATÓRIO JACQUES DELORS E PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS

DO ENSINO MÉDIO: orientações para o ensino da educação física

Eduardo Borba Gilioli32

Maria Terezinha Bellanda Galuch33

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo analisar os princípios formativos presentes no

Relatório Jacques Delors e nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio

para a Educação Física e o reflexo da concepção de formação escolar presente nesses

documentos para a organização do ensino da Educação Física. As análises sugerem

princípios formativos comuns aos dois documentos, bem como limites ao ensino da

Educação Física com base nessa perspectiva, pois o que está em jogo é o atendimento

às necessidades do atual modelo produtivo e não a apropriação dos conhecimentos re-

lacionados à cultura corporal.

Palavras-chave: Relatório Jacques Delors. Parâmetros curriculares nacionais. Educação

física.

32 Graduação em Educação Física pela Faculdade Integrada de Fátima do Sul - MS (1999), especialização em Interdisciplinaridade na Educação Básica pelo IBPEX (2002) e mestrado em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (2013). E-mail: [email protected] 33 Mestrado em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (1996); Doutorado em Educação: História, Política, Sociedade, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004); Estágio Pós-Doutoral, pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (2013). Docente do PPGE da Universidade Estadual de Maringá. e-mail: [email protected]

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60 Eduardo Borba Gilioli, Maria Terezinha Bellanda Galuch

revista EXITUS | Volume 04 | Número 01 | Jan/Jun. 2014

JACQUES DELORS REPORT AND BRAZILIAN CURRICULAR

PARAMETERS FOR HIGH SCHOOL: guidelines for

the teaching of physical education

ABSTRACT

The formation principles in the Jacques Delors Report and in the Brazilian Curricular Pa-

rameters for the high school for Physical Education are analyzed. The impact of school for-

mation in the above documents for the organization of the teaching of Physical Education

is further investigated. Above analyses suggest formation principles in the two documents

and the limits to the teaching of Physical Education based on this perspective. The com-

pliance to the requirements of current production model is actually relevant and not the

appropriation of knowledge related to body culture.

Keywords: Jacques Delors report. Brazilian Curricular Parameters. Physical Education.

INTRODUÇÃO

É consenso entre estudiosos do campo

educacional que a década de 1990 foi marca-

da por significativas alterações na organiza-

ção da educação brasileira. Essas mudanças

expressam uma nova concepção de educação

escolar, influenciando a seleção de conteú-

dos, métodos de ensino e de aprendizagem e

as formas de avaliação. Enfim,

[...] a reforma dos anos de 1990, e seu prosse-

guimento no novo século, atingiu todas as es-

feras da docência: currículo, livro didático, for-

mação inicial e contínua, carreira, certificação,

lócus de formação, uso das tecnologias da in-

formação e comunicação, avaliação e gestão

(EVANGELISTA; SHIROMA, 2007, p.537).

O aparato legal da reforma demons-

tra a necessidade de atualização do currícu-

lo frente às demandas sociais. Desse modo,

a atual Lei de Diretrizes e Bases da Edu-

cação Nacional (LDB), promulgada em

consonância com a Constituição Federal,

prevê à União a responsabilidade de:

IV - estabelecer, em colaboração com os

Estados, o Distrito Federal e os Municí- pios,

competências e diretrizes para a educação

infantil, o ensino fundamental e o ensino

médio, que nortearão os currícu- los e seus

conteúdos mínimos, de modo a assegurar

formação básica comum (BRASIL, 1996).

Com a intenção de proporcionar uma

formação comum pela seleção de conte-

údos mínimos e pelo estabelecimento de

“[...] metas de qualidade que ajudem o alu-

no a enfrentar o mundo atual como cidadão

participativo, reflexivo e autônomo, conhe-

cedor de seus direitos e deveres” (BRASIL,

2001, p.5), são elaborados os Parâmetros

Curriculares Nacionais (PCNs).

Conforme o Ministério da Educação, esses

documentos não são modelos curriculares

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Relatório Jacques Delors e Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio: Orientações para o Ensino da Educação Física 61

homogêneos e impositivos, já que, segundo

a LDB, é facultado aos estados e municípios

elaborarem suas propostas curriculares e pe-

dagógicas. Todavia, mesmo que sejam ape-

nas documentos orientadores, sem a obri-

gatoriedade de serem implantados na sua

íntegra; mesmo que esses documentos não

sejam lidos pela totalidade dos professores

e que diretores e coordenadores pedagógi-

cos não os adotem como guia de decisões na

elaboração dos Projetos Político Pedagógicos

das suas escolas; mesmo que Secretarias de

Educação não os assumam oficialmente, não

há como desconsiderar a força que uma pro-

posta curricular oficial exerce sobre a educa-

ção escolar (GALUCH; SFORNI, 2011, p.47).

Mesmo porque, o modelo formativo

proposto oficialmente sofre as influências

do processo de globalização34 da econo-

mia, logo, essa demanda formativa não se

origina nos documentos oficiais, antes, são

reflexo das necessidades sociais mais am-

plas. Como forma de adequar a educação

escolar aos ‛códigos da modernidade’, na

década de 1990 foi produzida:

Vasta documentação internacional, emanada

de importantes organismos multilaterais [...]

mediante diagnósticos, análises e propostas

de soluções consideradas cabíveis a todos

os países da América Latina e Caribe, no que

toca tanto à educação quanto à economia.

Essa documentação exerceu importante pa-

pel na definição das políticas públicas para

a educação no país (SHIROMA; MORAES;

EVANGELISTA, 2011, p.47).

34 De acordo com Castanho (2009), o fenômeno da globalização deve ser compreendido como um processo de internacionalização inerente à expansão das relações sociais capitalistas. Portanto, “[...] a globalização tem a mesma idade que o capitalismo, algo como quinhentos

Nesse contexto, um importante do-

cumento se destaca: “[...] o Relatório De-

lors [...] fundamental para compreender a

revisão da política educacional de vários

países da atualidade” (SHIROMA; MO-

RAES; EVANGELISTA, 2011, p.55),

com vistas a “[...] nortear todos e

quaisquer documentos estruturantes de

uma educação para o século XXI” (RIZO,

2012, p. 58).

Pelo exposto, o objetivo do presente

trabalho é analisar os princípios formati-

vos contidos no Relatório Jacques Delors

e nos PCNs de Educação Física para o en-

sino médio (PCNs-EM)35, com a intenção

de verificar como a concepção de educa-

ção presente nesses documentos podem in-

fluenciar a organização do ensino da Edu-

cação Física para esse nível de ensino, bem

como os limites desse tipo de formação.

O RELATÓRIO JACQUES DELORS E A FOR-

MAÇÃO DO CIDADÃO DO SÉCULO XXI

“Relatório Jacques Delors” é como

ficou conhecido o Relatório para a Orga-

nização das Nações Unidas para a Educa-

ção, a Ciência e a Cultura (UNESCO) da

Comissão Internacional sobre a Educação

para o século XXI, intitulado “Educação,

um tesouro a descobrir”.

Sob a chancela da UNESCO e con-

tando com a participação de intelectuais

de diversas partes do mundo, presidido por

anos.” (CASTANHO, 2009, p. 14). A interpretação de

Castanho (2009) é importante na medida em que se opõe às tentativas de apresentação da globalização como um processo novo e humanizador.

35 Os PCNs-EM explicitam que o maior problema da Educação Física encontra-se nesse nível de ensino, por isso a opção em analisar esse documento.

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62 Eduardo Borba Gilioli, Maria Terezinha Bellanda Galuch

Jacques Delors, ex-ministro da Economia e

das Finanças e ex-presidente da Comissão

Europeia (1985-1995) (DELORS, 1998), a

comissão delineou os princípios formativos

para o cidadão do século XXI. Esse docu-

mento explicita a concepção de ensino, de

aprendizagem e de desenvolvimento que

vem norteando as práticas pedagógicas.

A comissão foi formada oficialmente

no ano de 1993. Em 1996, após inúmeras

reuniões, encontros de grupos de estudo e

várias outras atividades, finalizou os tra-

balhos e divulgou o Relatório. Nele, fica-

ram expostos princípios educativos válidos

“[...] tanto em nível nacional como mun-

dial” (DELORS, 1998, p.12).

No prefácio do Relatório, assinado

por Jacques Delors, evidenciam-se os ob-

jetivos educacionais do ‛sujeito Delors’

(RIZO, 2012), que se pretende formar:

Ante os múltiplos desafios do futuro, a edu-

cação surge como um trunfo indispensável à

humanidade na sua construção dos ideais da

paz, da liberdade e da justiça social. Ao ter-

minar os seus trabalhos a Comissão faz, pois,

questão de afirmar a sua fé no papel essencial

da educação [...] que conduza a um desenvol-

vimento humano mais harmonioso, mais au-

têntico, de modo a fazer recuar a pobreza, a

exclusão social, as incompreensões, as opres-

sões, as guerras... (DELORS, 1998, p.11).

Um dos principais problemas men-

cionados no Relatório é que, fomentados

pela pobreza e pela intolerância, os confli-

tos sociais possam ocorrer em larga escala,

por isso

[...] os investimentos em matéria de educa-

ção e de pesquisa constituem uma necessi-

dade, e uma das preocupações prioritárias

da comunidade internacional deve ser o ris-

co de marginalização total dos excluídos do

progresso, numa economia mundial em rápi-

da transformação. Se não se fizer um grande

esforço para afastar este risco, alguns paí-

ses, incapazes de participar na competição

tecnológica internacional, estarão prestes a

constituir bolsas de miséria, de desespero e

de violência impossíveis de reabsorver atra-

vés da assistência e de ações humanitárias

(DELORS, 1998, p.74).

Na busca pela coesão social, a valori-

zação da diversidade se destaca.

Confrontada com a crise das relações sociais,

a educação deve, pois, assumir a difícil tare-

fa que consiste em fazer da diversidade um

fator positivo de compreensão mútua entre

indivíduos e grupos humanos (DELORS, 1998,

p. 52, destaque nosso).

Percebe-se no discurso de valoriza-

ção da diversidade a necessidade de admi-

nistrar a pobreza, uma vez que o que está

em jogo é o desenvolvimento das forças

produtivas capitalistas.

Enquanto se falava em desigualdade social,

procuravam-se formas para combatê-la e a

forma mais razoável seria a transformação

social. Quando, no lugar da luta contra a de-

sigualdade, se instala a defesa da diversida-

de, instaura-se uma prática do ‘respeito’ às

diferenças. Desigualdade combate-se com

transformação; respeito às diferenças con-

quista-se por meio da manutenção da socie-

dade (GALUCH; SFORNI, 2011, p.63).

O crescimento da desigualdade so-

cial, relacionado ao desemprego e à preca-

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Relatório Jacques Delors e Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio: Orientações para o Ensino da Educação Física 63

rização do trabalho, é intrínseco ao desen-

volvimento e aplicação de novas tecnolo-

gias à produção capitalista: “[...] o rápido

aumento do desemprego nos últimos anos

em muitos países constitui, em muitos as-

pectos, um fenômeno estrutural ligado ao

progresso tecnológico” (DELORS, 1998,

p.79).

O desemprego estrutural é uma das

faces da crise atual do capital, juntamente

com o esgotamento do modelo de produ-

ção taylorista/fordista36 que tinha susten-

tado “[...] o padrão de acumulação do ca-

pitalismo nos últimos cinquenta anos [...]”

(FRIGOTTO, 2010, p.21).

Sobre o novo modelo produtivo, cujo

elemento central é a flexibilidade, Harvey

explica:

A acumulação flexível, como vou chamá-la,

é marcada com um confronto direto com a

rigidez do fordismo. Ela se apóia na flexibi-

lidade dos processos de trabalho, dos mer-

cados de trabalho, dos produtos e padrões

de consumo. Caracteriza-se pelo surgimen-

to de setores de produção inteiramente

novos, novas maneiras de fornecimento de

serviços financeiros, novos mercados e, so-

bretudo, taxas altamente intensificadas de

inovação comercial, tecnológica e organiza-

cional. A acumulação flexível envolve rápi-

das mudanças dos padrões de desenvolvi-

vales e gargantas do silício, para não falar

da vasta profusão de atividades dos países

recém-industrializados) (HARVEY, 2010, p.

140, destaques nossos).

A rigidez da linha de montagem com

maquinaria pesada, produção em série, em

larga escala e estocagem de produtos com

o objetivo de antecipar demandas, também

conhecida por just in case37, começou a di-

vidir espaço com processos produtivos de

base leve e flexível, nos quais a informáti-

ca e a microeletrônica tiveram papel funda-

mental. Isso tornou possível uma produção

automatizada e programável para diversos

fins. Com estoque diminuto ou suprimi-

do, denominado pela expressão just-in-ti-

me, a produção é executada no tempo e na

quantidade exata, em pequenos lotes. Esse

padrão favorece uma melhor e mais rápi-

da adaptação das empresas aos riscos e às

incertezas do mercado.

Nesse padrão produtivo, o emprego

fixo, formal e estável cede espaço ao traba-

lho informal, em tempo parcial, temporá-

rio, subcontratado, terceirizado, domiciliar,

bem como ao setor de serviços. A flexibi-

lização e a desregulamentação do trabalho

contribuem para minimizar as responsabi- mento desigual, tanto entre setores como

entre regiões geográficas, criando, por

exemplo, um vasto movimento no emprego

no chamado ‘setor de serviços’, bem como

conjuntos industriais completamente novos

em regiões até então subdesenvolvidas (tais

como a ‘Terceira Itália’, Flandres, os vários

36 O taylorismo não coincide com o fordismo, mas as características essenciais de ambos aglutinam-se, formando os princípios da produção em massa/rígida.

37 Podemos afirmar que as expressões just in case e just in time se referem respectivamente a dois modelos opostos de organização da produção capitalista. O primeiro era regido pela demanda, que era superior à oferta, de forma que, mesmo produzindo em grande quantidade, a venda estaria garantida; o segundo baseia-se na oferta, pois o poder de compra tornou-se inferior à capacidade produtiva. Nesse contexto, é mais interessante pensar na qualidade dos produtos e no potencial de marketing como fator de criação de necessidades cada vez mais efêmeras e fúteis (CORIAT, 1988).

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64 Eduardo Borba Gilioli, Maria Terezinha Bellanda Galuch

lidades e os compromissos das empresas

sobre os funcionários e, assim, fortalecer o

capital e intensificar a exploração de mais

valia. Com isso, tanto a admissão dos tra-

balhadores em períodos de aquecimento do

mercado quanto o seu descarte em momen-

tos de arrefecimento podem ser executados

com o mínimo de prejuízo aos contratan-

tes. Dessa forma, o controle sobre o traba-

lhador torna-se cada vez mais intenso.

Em decorrência da diversificação e

do requinte do instrumental de trabalho e

dos produtos, os trabalhadores, que antes

eram submetidos a tarefas parcializadas e

repetitivas nas linhas de montagem, pas-

sam a realizar várias operações e até a con-

trolar a qualidade dos objetos, trabalhando

em equipe para resolver tanto os problemas

apresentados nas ilhas de produção quanto

os do próprio mercado.

No que diz respeito ao pessoal de execução a

justa posição de trabalhos prescritos e parce-

lados deu lugar à organização em ‛coletivos

de trabalho’ ou ‛grupos de projeto’, a exem-

plo do que se faz nas empresas japonesas:

uma espécie de taylorismo ao contrário (DE-

LORS, 1998, p. 94, destaques nossos).

Aparentemente, a demanda por um

trabalhador polivalente, criativo, flexível,

cooperativo e inovador poderia ser consi-

derada como uma valorização do desen-

volvimento humano do indivíduo; ou seja,

estaria ocorrendo a ‛recuperação’ da sub-

jetividade que se encontrava embrutecida

na produção em massa. Na verdade, a ins-

tabilidade do mercado exige a polivalência

do indivíduo e que ele saiba aproveitar as

possibilidades de subsistência, adaptando-

se aos imperativos do mercado

(GALUCH; PALANGANA, 2008).

Ao mesmo tempo, a lida com o apa-

rato tecnológico de ponta imprime em al-

guns indivíduos uma sensação de evolução

do trabalho. Todavia, ocorre o inverso.

Para a grande maioria dos trabalhadores,

as operações que realizam prescindem do

entendimento da estrutura e do funciona-

mento do instrumental que utilizam, pois a

própria elaboração desses instrumentos já

foi feita com o objetivo de valorizar o ca-

pital e não o trabalhador. Para tal objetivo,

o saber fazer e o próprio treinamento em

serviço bastam.

Diante das incertezas dos indivíduos

com relação às ocupações futuras, emba-

sado no princípio de Jomtien, o Relatório

reforça o conceito de educação ao longo

da vida (RIZO, 2012), em que cada pessoa

deve aprender a aprender, adaptando-se

continuamente às novas exigências sociais.

Por todas estas razões, parece impor-se, cada

vez mais, o conceito de educação ao longo de

toda a vida, dadas as vantagens que ofere-

ce em matéria de flexibilidade, diversidade

e acessibilidade no tempo e no espaço. É a

idéia de educação permanente que deve ser

repensada e ampliada (DELORS, 1998, p.18).

O aumento da incerteza com relação às

futuras ocupações e a crescente variação das

atividades desempenhadas pelos indivíduos

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Relatório Jacques Delors e Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio: Orientações para o Ensino da Educação Física 65

ao longo da vida contribui para a obsoles-

cência dos conteúdos curriculares clássicos,

ou seja, do próprio conhecimento científico.

Pois, “[...] como ensinar o aluno a pôr em

prática os seus conhecimentos e, também,

como adaptar a educação ao trabalho futuro

quando não se pode prever qual será a sua

evolução?” (DELORS, 1998, p. 93).

Por conseguinte, deve-se falar “[...]

mais de uma qualificação social do que de

uma qualificação profissional” (DELORS,

1998, p. 96), considerada uma ‛pesada

bagagem’ escolar desnecessária e inapro-

priada, especialmente para um mundo em

constante mudança.

O ensino fundado na transmissão de

conteúdos sistematizados só se torna uma

‛pesada bagagem’ se o fim proposto for a

adaptação do indivíduo ao trabalho sim-

plificado. No que se refere ao ensino dos

‛mais talentosos’, “[...] dos alunos mais

dotados, os ‘dirigentes de amanhã’” (DE-

LORS, 1998, p. 213), a ‛pesada bagagem’

é pressuposto da ‛criação’.

Pela utilização de termos com cono-

tação positiva, mas de intenções veladas,

a linguagem do Relatório expressa a ten-

tativa de obtenção de consenso. Quando

se fala de criatividade, é comum pensar na

elaboração humana de novos instrumen-

tos materiais e simbólicos; portanto, nin-

guém se oporá a essa defesa. No entanto,

se abstraídos de sua relação com o trabalho

concreto, os pressupostos da criatividade

tornam-se obscuros. Assim, para alguns

indivíduos, instrumentalizados pelo co-

nhecimento científico, a criatividade cor-

responde à elaboração original de produ-

tos materiais e ideais, ao passo que, para a

massa dos trabalhadores, a criatividade se

encontra no limite da adaptação às precá-

rias condições de trabalho para a manuten-

ção da vida. O termo ‛criatividade’, apesar

de aparecer com frequência no Relatório,

não tem sempre o mesmo sentido: quando

se refere à educação dos futuros dirigentes,

o conteúdo é um; quando trata da formação

da massa trabalhadora, o conteúdo é outro.

Em conclusão, “[...] identidade de têrmos

não significa identidade de conceitos”

(GRAMSCI, 1978, p. 180).

Como forma de demonstrar o ana-

cronismo da educação escolar, os relatores

afirmam: “A observação da economia in-

formal nos países em desenvolvimento e

da inovação tecnológica nos países desen-

volvidos prova que os mais criadores não

são, necessariamente, os que obtêm suces-

so na escola formal” (DELORS, 1998, p.

84). Portanto, a escola deve se atualizar

e pensar em uma formação de “[...] base

mais comportamental do que intelectual”

(DELORS, 1998, p. 95).

Se a desvalorização do conhecimen-

to sistematizado como conteúdo do ensino

escolar se intensifica, devido ao processo

de simplificação do trabalho, a escola tor-

na-se mais uma instância educativa, e não

o principal espaço de formação, sobretudo

porque: “A intuição, o jeito, a capacidade

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66 Eduardo Borba Gilioli, Maria Terezinha Bellanda Galuch

de julgar, a capacidade de manter unida

uma equipe não são de fato qualidades,

necessariamente reservadas a pessoas com

altos estudos” (DELORS, 1998, p. 95).

A formação pretendida pelo Relatório

Delors impõe ao indivíduo ser o ‘dono de

seu próprio destino’, manter sua emprega-

bilidade, ser criativo e flexível para suprir

suas necessidades básicas de subsistência,

além de responsabilizar-se pela resolução

dos problemas de seu contexto social. Por

sua vez, o ensino escolar coloca em segun-

do plano a transmissão de conhecimento

sistematizado, pois o que mais importa é

alterar o comportamento do indivíduo para

a resolução de problemas imediatos e não

o prover de instrumentos que possibilitam

uma análise mais acurada da realidade.

Tendo detectado no Relatório Delors

o esvaziamento do conteúdo sistematizado

na formação escolar requerida ao cidadão

do século XXI, para atender às demandas

sociais imediatas, passamos à análise dos

PCNs-EM com a intenção de verificar uma

possível sintonia entre ambos os documen-

tos e como esse tipo de formação influen-

cia o ensino da Educação Física.

PARÂMETROS CURRICULARES NACIO-

NAIS DO ENSINO MÉDIO PARA A EDU-

CAÇÃO FÍSICA: PRESSUPOSTOS PARA A

ORGANIZAÇÃO DO ENSINO

Os PCNs do Ensino Médio são for-

mados por quatro volumes: volume 1 – Ba-

ses Legais; volume 2 – Linguagens, Códi-

gos e suas Tecnologias; volume 3 – Ciên-

cias da Natureza, Matemática e suas Tec-

nologias; volume 4 – Ciências Humanas e

suas Tecnologias (BRASIL, 1999).

O volume 2, intitulado Linguagens,

Códigos e suas Tecnologias, é compos-

to por: 1- Apresentação; 2- O sentido do

aprendizado na área; 3- Competências e

habilidades, subdividida nos conhecimen-

tos de Língua Portuguesa (3a), de Língua

Estrangeira Moderna (3b), de Educação

Física (3c), de Arte (3d) e de Informática

(3e); 4- Rumos e desafios e 5- Bibliografia.

Nossa análise será pautada nos conhe-

cimentos de Educação Física e em sua relação

com questões presentes nos itens, 1, 2 e 4.

Na apresentação do documento, fica

claro que o objetivo é criar uma identida-

de para o Ensino Médio de modo a alinhar

a formação dos alunos às necessidades do

mundo contemporâneo, tomando o respei-

to à diversidade como eixo estruturante da

proposta (BRASIL, 1999), assim como no

Relatório Delors: “No alvorecer do século

XXI a proteção da diversidade cultural deve

tornar-se um elemento essencial de todos os

programas de educação ao longo de toda a

vida” (DELORS, 1998, p.237-238).

Já no item 2, afirma-se que, em vir-

tude do ‛bombardeio’ de informações que

atinge os indivíduos na contemporaneida-

de, é necessário refletir sobre os códigos

linguísticos. Essa reflexão passa pela “[...]

preservação da identidade de grupos so-

ciais menos institucionalizados e uma

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Relatório Jacques Delors e Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio: Orientações para o Ensino da Educação Física 67

possibilidade de direito às representações

desses frente a outros que têm a seu favor

as instituições que autorizam a autorizar”

(BRASIL, 1999, p. 21, grifos nossos).

Em Delors (1998), o respeito à va-

riedade linguística também se constitui em

fator de coesão social e reflete a expressão

da diversidade cultural da humanidade.

Todavia, preservar a identidade de pessoas

que tiveram menos possibilidade de acesso

a um ensino institucionalizado, e, portan-

to, menos possibilidade de se apropriar do

conhecimento objetivado pelo gênero hu-

mano, não necessariamente auxilia esses

sujeitos a compreender e a intervir na re-

alidade.

A ênfase dada à linguagem com seus

códigos e tecnologias e a sua utilização

como instrumento ‛transdiciplinar’ na or-

ganização curricular do Ensino Médio co-

aduna-se com os princípios de formação

requeridos pelo processo de globalização,

tal como se encontram expressos no Rela-

tório Delors.

Tal organização curricular atuaria

em duas frentes: uma, no sentido de “[...]

promover o desenvolvimento tecnológico

do país com vistas à competição política

e internacional” (BRASIL, 1999, p. 26);

outra, no sentido de “[...] desenvolver uma

consciência crítica sobre as possibilida-

des existentes para a solução de problemas

pessoais, sociais ou políticos, utilizando-

se dos instrumentos existentes para esses

fins” (BRASIL, 1999, p. 26, grifo nosso).

A formação de cidadãos críticos é de-

fendida tanto pelo Relatório Delors como

pelos PCNs-EM; no entanto, percebemos

que o conceito de ‛crítica’, no caso em

questão, sofreu reformulações. A crítica

pressupõe profundo conhecimento do que

se critica, mas a escola, ao responder às

necessidades do mercado, secundariza o

conhecimento sistematizado que possibili-

taria a formação do pensamento crítico.

Por sua vez, o indivíduo, tendo cada

vez menos arcabouço teórico para analisar a

realidade, sente-se ‛livre’e valorizado por po-

der expressar sua opinião, pobre em conheci-

mento elaborado e rica em senso comum.

Pelo exposto, a educação deverá atu-

ar como receita e remédio para a solução

dos problemas da sociedade. Como re-

ceita, deve desenvolver nos indivíduos as

competências e habilidades necessárias à

empregabilidade, tal como é exigido pelas

metamorfoses do mercado; como remé-

dio, deve formar os “[...] valores e atitudes

frente às novas formas de sociabilidade que

emergem do contexto da sociedade globa-

lizada” (GALUCH; SFORNI, 2011,

p.64).

Ou seja, a finalidade da educação é formar

indivíduos capazes de se adaptar à socie-

dade e não formar uma consciência crítica,

apesar do discurso propalado.

Quanto à parte que trata dos conheci-

mentos específicos da Educação Física, os

PCNs-EM não propõem um único caminho

aos professores, mas “[...] formas de atua-

ção que proporcionarão o desenvolvimento

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revista EXITUS | Volume 04 | Número 01 | Jan/Jun. 2014

68 Eduardo Borba Gilioli, Maria Terezinha Bellanda Galuch

da totalidade dos alunos e não só dos mais

habilidosos” (BRASIL, 1999, p. 65). Essa

afirmação se alinha ao terceiro princípio

destacado na Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional (LDB), qual seja o da

exigência de se basear o ensino no “[...]

pluralismo de idéias e de concepções peda-

gógicas” (BRASIL, 1996, p.1).

De acordo com os PCNs-EM, a Edu-

cação Física encontra-se desprestigiada, o

que pode ser observado pela evasão dos

alunos das aulas e pela procura por expe-

riências corporais extraescolares que lhes

trazem satisfação. Todavia, não há referên-

cias a pesquisas que atestem a vinculação

entre a evasão dos alunos das aulas e a prá-

tica de atividade física em outros locais por

esses mesmos alunos, mesmo porque, em

certo ponto do texto, contraditoriamente,

afirma-se que a Educação Física “[...] tem

fabricado espectadores e não praticantes de

atividade física” (BRASIL, 1999, p. 69).

O descrédito da Educação Física é

justificado em grande medida pelos PC-

Ns-EM pelo fato de as aulas terem como

conteúdo principal, quando não exclusivo,

o esporte com a ênfase na repetição de ges-

tos e aprofundamento tático, o que propor-

ciona a exclusão dos alunos menos habili-

dosos pela insatisfação em não alcançarem

a performance esperada. Essa crítica não é

nova na Educação Física; já em meados de

1980 havia autores que combatiam o ensi-

no tecnicista da área e o objetivo de formar

atletas e desenvolver a aptidão física dos

alunos, sem levar em conta os condicio-

nantes de ordem social.

Os PCNs-EM tratam a Educação Fí-

sica de forma marginal em relação às ou-

tras disciplinas pelo fato de o professor não

inovar em suas aulas, como expresso no

trecho a seguir:

Enquanto as demais áreas de estudo dedi-

cam-se a aprofundar os conhecimentos dos

alunos, através de metodologias diversifica-

das, estudos do meio, exposição de vídeos,

apreciação de obras de diversos autores, lei-

turas de textos, solução de problemas, discus-

são de assuntos atuais e concretos, as aulas

do ‘mais atraente’ dos componentes limita-se

aos já conhecidos fundamentos do esporte e

jogo (BRASIL, 1999, p.67, grifos nossos).

Segundo os PCNs-EM, ao contrário

da Educação Física, as demais disciplinas

se preocupam em aprofundar os conheci-

mentos dos alunos, o que é explicado, em

grande medida, pela quantidade de recur-

sos utilizados pelo professor em aula.

Inferimos que a compreensão de conhe-

cimento contida nos PCNs-EM esteja atrela-

da à diversidade de vivências que ocorrem no

limite da experiência imediata. Dessa forma,

cabe ao professor elaborar um planejamento

envolvente que venha “[...] ao encontro do in-

teresse e necessidade dos alunos” (BRASIL,

1999, p.70), pois “[...] o professor ao se man-

ter rígido em atividades desinteressantes aos

alunos, termina por afastá-los da disciplina”

(BRASIL, 1999, p.80).

Valorizar o interesse e a necessidade

dos alunos como ponto de partida do pro-

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Relatório Jacques Delors e Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio: Orientações para o Ensino da Educação Física 69

cesso de ensino e como tentativa de mo-

bilizar sua atenção para o objeto de estu-

do é um aspecto importante e necessário.

No entanto, no documento em questão,

isso faz parte de um planejamento pauta-

do na necessidade empírica do aluno como

início e fim dos processos de ensino e de

aprendizagem, o que não contribui para a

superação do estágio de desenvolvimento

cognitivo inicial.

O conhecimento limitado à execução

de movimentos corporais fica evidencia-

do na citação a seguir: “Não conseguimos

imaginar um sistema 4x2 no voleibol, se os

alunos não internalizaram a recepção, o

levantamento e a cortada” (BRASIL, 1999,

p. 66, grifos nossos); uma vez que não há a

vinculação direta entre a execução do gesto

esportivo e a compreensão tática do espor-

te é possível aos alunos que não dominam

a técnica dos movimentos do voleibol en-

tender o sistema 4x2.

Supomos que a noção de ‛internali-

zação’, conforme destaque na citação, re-

meta ao domínio das operações motoras

necessárias à execução dos movimentos

com certa perfeição técnica pelos alunos.

A técnica e a tática devem ser trabalhadas

nas aulas de Educação Física, não apenas

como movimentos corporais, mas como

conceitos sistematizados a serem apreendi-

dos pelos alunos.

Para o desenvolvimento humano é

mais importante a apropriação dos concei-

tos do voleibol, inclusive das regras de po-

sicionamento numérico, do que a realiza-

ção dos gestos esportivos com ‛perfeição’

pelos alunos: os primeiros possibilitam

níveis mais complexos de pensamento e

extrapolam o fazer destituído de sistema-

tização.

Diante das questões tratadas cabe um

questionamento: em que medida os alunos

conhecem os fundamentos do esporte e do

jogo, como afirmam os PCNs-EM?

Para os PCNs-EM há um paradoxo

entre o aparato legal e a realidade educa-

cional, pois a Educação Física não tem

dado conta de cumprir com os objetivos

previstos pela LDB ao Ensino Médio, que

é contribuir para

[...] o desenvolvimento de habilidades

como continuar a aprender e capacidade

de se adaptar com flexibilidade às novas

condições de ocupação e aperfeiçoamento;

o aprimoramento do educando como pes-

soa humana, incluindo a formação ética e o

desenvolvimento da autonomia intelectual

e do pensamento crítico (BRASIL apud BRA-

SIL, 1999, p.66).

Reportando-se à Conferência de

Jomtien, o Relatório Delors valoriza a

capacidade de continuar a aprender como

uma forma de o indivíduo ‘conduzir o

seu próprio destino’ para alcançar “[...]

um equilíbrio mais perfeito entre traba-

lho e aprendizagem bem como ao exer-

cício de uma cidadania ativa” (DELORS,

1998, p. 105).

Quando a habilidade de ‛aprender

a aprender’ é desenvolvida no aluno para

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revista EXITUS | Volume 04 | Número 01 | Jan/Jun. 2014

70 Eduardo Borba Gilioli, Maria Terezinha Bellanda Galuch

que ele se adapte ao trabalho, a autonomia

intelectual e o pensamento crítico ficam

restritos ao saber espontâneo. Por supos-

to, a defesa de uma crítica e de uma au-

tonomia sustentadas predominantemente

pela empiria torna-se discurso vazio, pois

o conhecimento sistematizado é pressu-

posto de ambas.

De acordo com os PCNs-EM, a di-

ficuldade de a Educação Física cumprir os

objetivos apresentados pela LDB pode ser

diminuída pela “[...] vinculação das com-

petências da área com os objetivos do En-

sino Médio e [...] pela aproximação desses

com o ensino de Educação Física” (BRA-

SIL, 1999, p.66).

Por conseguinte, a Educação Física

precisa buscar sua identidade e isso pode

ser alcançado com a retomada da perspec-

tiva da aptidão física e da saúde38, a qual

poderia “[...] contribuir para uma vida pro-

dutiva, criativa e bem-sucedida” (BRASIL,

1999, p.68-69) dos alunos. Além do mais,

o aumento da incidência de adolescentes e

de jovens com problemas de saúde relacio-

nados ao sedentarismo contribui para que a

Educação Física tenha como preocupação

central a educação para a saúde (BRASIL,

1999).

No entanto, o documento indica que

as aulas não podem restringir-se a pro-

38 Castellani Filho (1999) critica a defesa da ‛retomada’ da vertente da aptidão física e da saúde pelos PCNs- EM, pois, segundo o autor, a história da Educação Física sempre esteve pautada, em maior ou menor grau, por essa perspectiva.

gramas de condicionamento físico, pois o

“[...] jovem de hoje, atuante, crítico, co-

nhecedor de seus direitos [...]” (BRASIL,

1999, p. 69) exige uma proposta de traba-

lho comprometida com o trabalho coletivo

da escola, bem elaborada e envolvente, o

que contribuiria para elevar a autoestima

do professor e recuperar o prestígio da dis-

ciplina (BRASIL, 1999).

Além de realizar exercícios físicos,

o aluno deve saber quais os efeitos desses

exercícios sobre o organismo humano, pois,

para os PCNs-EM “[...] o desconhecimento

dos benefícios fisiológicos das atividades

aeróbicas ocasionam o não envolvimento

dos alunos com trabalhos de baixa intensi-

dade e longa duração” (BRASIL, 1999, p.

81), além do mais, esse encaminhamento

da aula valoriza os conhecimentos adquiri-

dos na formação inicial do professor.

Não nos opomos ao ensino dos co-

nhecimentos relacionados à aptidão física

e saúde, mas sim à desconsideração, pelos

PCNs-EM, dos condicionantes de ordem

social que influenciam a saúde e a qualida-

de de vida dos indivíduos. Esse debate não

é suscitado no documento.

Segundo os PCNs-EM, a LDB al-

terou a dinâmica escolar, proporcionando

maior iniciativa às escolas e maior exi-

gência de qualificação ao professor de

Educação Física. Tanto que o Regimento

escolar das escolas pode “[...] ampliar a

carga horária de determinado componen-

te, inseri-lo dentro do horário de aulas,

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Relatório Jacques Delors e Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio: Orientações para o Ensino da Educação Física 71

prestigiá-lo ou, simplesmente, diminuí-lo,

caso nenhuma ação seja implementada”

(BRASIL, 1999, p.70).

O documento enfatiza que o traba-

lho com projetos de atividades físicas es-

peciais, podendo reunir alunos de várias

turmas e por interesse, é uma opção para

legitimar a Educação Física. Por exemplo:

“[...] os alunos trabalhadores podem com-

por um grupo que desenvolva atividades

voltadas à restituição de energias, estí-

mulos de compensação e redução de car-

gas resultantes do cotidiano profissional.”

(BRASIL, 1999, p.71). Também poderão

ser organizadas turmas de treinamento es-

portivo no contraturno escolar, mas duran-

te as aulas o esporte deve ser trabalhado de

forma a garantir a participação de todos os

alunos e não só dos mais habilidosos.

O desenvolvimento de projetos co-

letivos pode contribuir também para in-

tegrar o professor de Educação Física ao

trabalho desenvolvido na escola, pois os

PCNs-EM afirmam que, via de regra, esse

professor tem uma postura individualista

e não participa das reuniões e decisões

que afetam todo o ambiente escolar. Para

superar essa situação, o professor pode

orientar os alunos

[...] na apresentação de trabalhos na Feira de

Ciências da escola, exibição de conceitos ad-

quiridos nas aulas, através de painéis e car-

tazes, e até a criação de eventos exclusivos

da área: semana da saúde, sábados recreati-

vos, torneios envolvendo a comunidade etc.

(BRASIL, 1999, p.72).

Enfim, “[...] o professor de Educação

Física deve perceber-se como membro de

uma equipe que está envolvida com um tra-

balho grandioso: Educar o cidadão do pró-

ximo século” (BRASIL, 1999, p. 73).

Ao relegar para segundo plano o con-

teúdo sistematizado em favor da formação

para a cidadania, toda a dinâmica escolar

torna-se mais flexível. As aulas tradicio-

nais devem ceder espaço para atividades

que congreguem os vários componentes

da comunidade escolar, como a execução

de projetos comuns. É o que se defende no

Relatório Delors: “Os professores, por seu

lado, devem trabalhar em equipe, princi-

palmente no secundário, de modo a contri-

buírem para a indispensável flexibilidade

dos cursos. O que levará à diminuição do

insucesso [...]” (DELORS, 1998, p.27).

A diminuição do insucesso é repre-

sentada em maior medida pelo aumento do

tempo que o aluno permanece na escola, que

contribui para a melhoria dos índices de esco-

laridade e para a convivência com os demais.

Educar o cidadão do século XXI é

uma tarefa que demanda um trabalho co-

letivo. Por isso, a participação da comu-

nidade escolar em eventos esportivos e

recreativos torna possível a efetivação de

“[...] um elo [...] preso pela sensibilidade”

(BRASIL, 1999, p.75).

O comportamento humano para os PCNs

-EM é também uma forma de linguagem, por sua

vez: “A comunicação corporal entre os

indivíduos tende a acontecer quando estes têm a

consciência

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72 Eduardo Borba Gilioli, Maria Terezinha Bellanda Galuch

de seus corpos sensíveis, repletos de vontade e de

intencionalidade” (BRASIL, 1999, p.77).

A formação da subjetividade tra-

tada nos PCNs-EM limita-se às relações

interpessoais pautadas nas emoções e nos

sentimentos. Neles não se discute a impor-

tância da apropriação dos conceitos siste-

matizados para a formação das faculdades

psíquicas superiores e para a elevação dos

níveis de generalização e de abstração da

realidade, até porque esse não é o objeti-

vo da formação requerida. Nesse contex-

to, a Educação Física assume os mesmos

contornos demandados para a educação de

forma geral.

A formação da sensibilidade e das

emoções, características propriamente

humanas, não ocorre separadamente da

aquisição das demais funções psíquicas

(PALANGANA; GALUCH; GOULART,

2006).

Sendo assim, toda a “[...] constitui-

ção do indivíduo em ser humano decor-

re da internalização dos signos sociais”

(BRASIL, 1999, p.77). Nesse sentido “[...]

processos cerebrais sofrerão mudanças; ór-

gãos funcionais serão criados no cérebro

em correspondência a essas mudanças; e a

conduta motora será profundamente altera-

da” (BRASIL, 1999, p. 77).

Ao tratar da formação da sensibilidade

e da emotividade, os PCNs-EM acentuam o

aspecto coletivo e interpessoal e, ao tratar do

processo de apropriação de conhecimentos,

enfatizam a autoformação do indivíduo, apre-

sentando-o como aquele que constrói seu pró-

prio saber39.

Em decorrência dessa concepção de

aprendizagem, a função atribuída ao professor

é de desafiar os alunos e provocar desequilí-

brios “[...] que precisam ser resolvidos e é

nessa necessidade de voltar ao equilíbrio que

ocorre a construção40 de pensamento” (BRA-

SIL, 1999, p.79).

Enfatiza-se nos PCNs-EM que não

basta a busca pela saúde individual neces-

sária à criação, à produção e ao bem-estar

de cada sujeito: é indispensável também

formar as competências sociais necessárias

ao cidadão contemporâneo. Com efeito,

para esse fim, “A Educação Física, arti-

culada pelos jogos construídos no social

com esquemas corporais próprios para fins

de convivência harmoniosa, amplia o co-

nhecimento do corpo e a possibilidade de

compreensão das regras sociais” (BRA-

SIL, 1999, p. 126).

39 [...] no Brasil, na elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais, foi necessário o diálogo com as pedagogias críticas que buscaram orientar a prática educativa na década de 1980, como a Pedagogia Crítico- Social dos Conteúdos e a Pedagogia Histórico-Crítica. Essas pedagogias que se fundamentam em pressupostos do materialismo histórico estavam fortemente presentes nos cursos de formação de professores e nos debates acadêmicos desse período. Assim, alguns termos dessas teorias foram apropriados pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, mas os seus significados foram reconfigurados, adaptando-se às políticas internacionais. Isso gera dificuldade para a compreensão da perspectiva de formação presente (GALUCH; SFORNI, 2011, p. 61). 40 A utilização do conceito de ‛construção’ do conhecimento como sinônimo de aprendizagem remete a concepções de desenvolvimento humano radicadas em métodos avessos ao materialismo histórico-dialético.

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Relatório Jacques Delors e Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio: Orientações para o Ensino da Educação Física 73

Percebemos que, na vertente da ap-

tidão física e da saúde defendida nos PCN

-EM, a ideia é que as funções do professor

de Educação Física são desenvolver proje-

tos de atividades físicas especiais, mediar

o relacionamento entre os alunos durante

a execução dos projetos e demais ativida-

des escolares, além de coordenar debates.

Dessa forma, a especificidade dos conteú-

dos da cultura corporal é diluída pela cen-

tralidade da educação para a saúde e nas

atividades de socialização.

O quadro de competências e habili-

dades a serem desenvolvidas nos alunos do

Ensino Médio pelas aulas de Educação Fí-

sica pode ser sintetizado da seguinte forma:

1- Autogerenciar as atividades corpo-

rais com vistas à aquisição ou ma-

nutenção da saúde;

2- Compreender as diferentes ma-

nifestações da cultura corporal,

respeitando e valorizando toda e

qualquer diferença corporal;

3- Conviver em grupo contribuindo

para o alcance dos objetivos co-

letivos, respeitando os diferentes

pontos de vistas postos em debate;

4- Ter autonomia para elaborar e

modificar regras de diversas ati-

vidades corporais

Em suma, a proposição dos PCNs

-EM destaca a contribuição da área para

que o aluno seja o principal responsável

por sua saúde, bem como se comprometer

com a resolução tanto de seus problemas

pessoais como dos problemas sociais, se-

cundarizando os conhecimentos específi-

cos da dança, do esporte, da ginástica, dos

jogos e das lutas, o que implica a limitação

da apropriação pelo gênero humano da cul-

tura corporal elaborada historicamente pe-

los homens.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Constatamos a sintonia entre os PC-

Ns-EM e o Relatório Delors no que concer-

ne às exigências formativas do atual con-

texto social. Nesse sentido, a criatividade

e a flexibilidade se tornam palavras de or-

dem da sociabilidade demandada pela rees-

truturação produtiva. Concomitantemente,

o aumento da interdependência planetária

coloca em riscos a ordem mundial e a pró-

pria sobrevivência da humanidade, requi-

sitando o desenvolvimento da tolerância, o

respeito e a valorização da diversidade cul-

tural que, no limite, corresponde à admi-

nistração da pobreza para a coesão social.

No que se refere às influências das no-

vas necessidades educacionais da atualidade

para o ensino da Educação Física, percebe-

mos nos PCNs-EM ruptura e continuidade

com as orientações oficiais anteriores.

A subordinação da Educação Física à

instituição esportiva é combatida pelos PC-

Ns-EM, em oposição às orientações do pe-

ríodo ditatorial, como indica a Lei n. 6.251

de 08 de outubro de 1975, que instituiu as

normas gerais sobre os desportos:

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74 Eduardo Borba Gilioli, Maria Terezinha Bellanda Galuch

Entende-se a educação física escolar como

causa e o desporto de alto nível como

efeito, tendo o desporto de massa como

intermediário. Nestas circunstân- cias, o

ideal de relacionamento entre os três

elementos é o de possibilitar o cres-

cimento progressivo da escala e da qua-

lidade das atividades físicas, organizadas de

acordo com as potencialidades do país

(BRASIL, 1976, p.53).

Os PCNs-EM criticam a organização

das aulas nesse modelo: repetição de movi-

mentos; exigência técnica dos gestos; ex-

cesso de competição. Segundo o documen-

to, essa condução tem contribuído para a

evasão dos alunos das aulas, pois a maioria

não consegue obter a performance espera-

da, o que contribui para o desprestígio da

área. Por suposto, a ruptura ocorre com re-

lação ao predomínio do esporte nas aulas.

A continuidade acontece devido ao

fato de os PCNs-EM assumirem que a Edu-

cação Física pode encontrar “[...] no traba-

lho com a Aptidão Física e Saúde uma al-

ternativa viável e educacional para as suas

aulas” (BRASIL, 1999, p.68), assim como

prevê o Decreto-Lei n. 69.450 de 1º de no-

vembro de 1971: “A aptidão física consti-

tui a referência fundamental para orientar

o planejamento, controle e avaliação da

educação física, desportiva e recreativa,

no nível dos estabelecimentos de ensino”

(BRASIL, 1972, p.59).

Os PCNs-EM argumentam que é ne-

cessário ‘retomar’ a referência da aptidão

física e saúde. Essa ‘retomada’, à primeira

vista, revela-se contraditória, pois, como

vimos, a legislação anterior também assu-

mia essa perspectiva.

Levantamos a hipótese de que os PC-

Ns-EM necessitam ‘retomar’ a perspectiva

da aptidão física e saúde para se contrapor

à produção acadêmica da década de 1980 e

1990, que propunha a superação do para-

digma da aptidão física pela reflexão sobre

a cultura corporal, uma vez que entendiam

que a primeira vertente estava atrelada aos

interesses da classe dominante, porque in-

tentava melhorar a saúde dos indivíduos

basicamente pela alteração dos hábitos e

comportamentos (SOARES et al., 2005).

O processo de elaboração da atual

LDB revela que houve conflito entre os

legisladores e os representantes da área

para que o texto final da Lei mencionas-

se a Educação Física como componente

curricular (CASTELLANI FILHO, 1999),

e, em 2001, incluísse a obrigatoriedade

da disciplina na Educação Básica41 (NO-

ZAKI, 2004).

Nozaki (2004) defende a tese de que

a dificuldade sofrida pelos grupos repre-

sentantes da Educação Física em mantê-la

como componente curricular obrigatório

da Educação Básica na atual LDB expressa

a incapacidade de a Educação Física aten-

der diretamente aos novos requisitos de

formação dominantes, tendo em vista

41 Castellani Filho afirma que a redação final da LDB retira “[...] a camisa de força que a aprisionava aos limites próprios do famigerado eixo paradigmático da aptidão física [...]” (CASTELLANI FILHO, 1999, p. 114), porém, nas orientações dos PCNs-EM o paradigma da saúde permanece.

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Relatório Jacques Delors e Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio: Orientações para o Ensino da Educação Física 75

[...] que, historicamente, ela era ligada, sob

o ponto de vista dominante, a uma forma-

ção de um corpo disciplinado para obedecer

subordinadamente, adestrado a repetições

de exercícios e visando à aptidão física, fun-

cional ao fordismo, percebemos que esta

caracterização não é mais central para a de-

manda de formação do trabalhador de novo

tipo para o capital, já que este precisa de um

conteúdo no campo cognitivo e interacio-

nal, a fim de trabalhar com a capacidade de

abstração, raciocínio lógico, crítica, interati-

vidade, decisão, trabalho em equipe, com-

petitividade, comunicabilidade, criatividade,

entre outros42 (NOZAKI, 2004, p. 143-144,

grifos nossos).

Não resta dúvida de que o modelo

produtivo atual difere substancialmente

do padrão de acumulação fordista. Tam-

bém é ponto comum, em algumas pesqui-

sas, que essa alteração resulta em novas

exigências formativas, tal como indicam

galuch e Palangana (2008) e galuch e

Sforni (2011). Nesse caso, a defesa de No-

zaki (2004) sobre a falta de capacidade da

Educação Física, sob o ponto de vista do-

minante, em não atender imediatamente

aos novos requisitos formativos, parece-

nos válida. No entanto, a forma de o autor

expressar as características requeridas do

trabalhador atual, destacadas na passagem

citada, pode levar ao entendimento de que

a organização atual do trabalho pressupõe

o desenvolvimento humano, pois ele se

refere à capacidade de abstrair, de criticar,

42 Nozaki (2004) deixa claro que a Educação Física pode atuar para formar as referidas competências, mas, historicamente, de acordo com o projeto social dominante, essa disciplina sempre esteve atrelada à repetição de movimentos.

de raciocinar logicamente e de criar. To-

davia, de acordo com a lógica do capital,

o conhecimento mais elaborado, pressu-

posto da abstração, da crítica e da criativi-

dade, não é apropriado pela maior parcela

dos trabalhadores.

Entendemos que o discurso da for-

mação crítica e criativa, principalmente o

propalado pelos documentos oficiais, faz

parte da investida ideológica dos grupos

dirigentes para apresentar uma sociedade

compromissada com o desenvolvimento

humano de todos.

Ainda que a repetição de movimentos,

característica da produção em massa, seja

menos requisitada pelo padrão de acumula-

ção flexível, a conduta da maioria dos tra-

balhadores, como não poderia ser diferente,

continua circunscrita aos limites da empiria.

Apesar de se falar em valorização da subje-

tividade, esta se apresenta destituída de co-

nhecimento teórico, mas valorizada no que

tange ao relacionamento interpessoal.

Pelo exposto, inferimos que a crítica

efetuada pelos PCNs-EM analisados, em

relação à forma como a Educação Física

vem sendo realizada na maioria das esco-

las, reflete a necessidade de “[...] transfor-

mar a Educação Física em uma disciplina

necessária” (MELLO, 2009, p.264). Para

isso, é preciso superar o modelo de aula

pautado na racionalidade técnica e no ex-

cesso de competição (MELLO, 2009).

Em suma, mantém-se o paradigma da

saúde e combatem-se os excessos do esporte.

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revista EXITUS | Volume 04 | Número 01 | Jan/Jun. 2014

76 Eduardo Borba Gilioli, Maria Terezinha Bellanda Galuch

Por sua vez, há menção nos PCNs

-EM sobre a importância do conhecimento

sistematizado relacionado à aptidão física e

saúde, até porque um dos objetivos da Edu-

cação Física é capacitar o aluno para auto-

gerenciar sua atividade física, responsabi-

lizando-o pela sua saúde. Para esse fim, os

projetos de atividades físicas especiais po-

dem contribuir. Em outro sentido, a relação

interpessoal nas aulas de Educação Física

são valorizadas como forma de habilitar os

indivíduos para o trabalho em equipe na

consecução de projetos comuns.

Constata-se nos PCNs-EM a dilui-

ção dos conteúdos da Educação Física

pela exacerbação dos conhecimentos de

anatomia, de biologia e de fisiologia. Não

que esses conteúdos sejam irrelevantes

para a formação dos alunos, no entanto, os

conhecimentos específicos da dança, do

esporte, da ginástica, do jogo e da luta são

mencionados de forma esparsa e bastante

genérica, o que indica sua subordinação

à orientação para a saúde. Portanto, mais

importante do que pensar no desenvolvi-

mento cultural dos alunos pela apropria-

ção do conhecimento sistematizado dos

elementos da cultura corporal é provê-los

de meios para se responsabilizarem por

sua saúde e pela capacidade de conviver

e de resolver tanto os problemas pessoais

como os coletivos.

Recebido em: Setembro de 2013

Aceito em: Novembro de 2013

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