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GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO SECRETARIA DE ESTADO DE SEGURANÇA PÚBLICA INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA Pesquisa:O Programa de Justiça Terapêutica no Estado do Rio de Janeiro: um balanço de seus quatro primeiros anos de funcionamento Coordenadora: Drª.Lana Lage da Gama Lima Coordenadora de Pesquisa Qualitativa do NUPESP/ISP Mestranda Sabrina Souza da Silva Pesquisadora Associada do NUPESP/ISP

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GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO SECRETARIA DE ESTADO DE SEGURANÇA PÚBLICA

INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA

Pesquisa:O Programa de Justiça Terapêutica no Estado do Rio de Janeiro: um balanço de seus quatro primeiros anos de funcionamento Coordenadora: Drª.Lana Lage da Gama Lima Coordenadora de Pesquisa Qualitativa do NUPESP/ISP Mestranda Sabrina Souza da Silva Pesquisadora Associada do NUPESP/ISP

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SUMÁRIO Introdução Cap.1. Menor, justiça e trabalho no Brasil Cap.2.Caracterização do Programa de Justiça Terapêutica do Estado Rio de

Janeiro Cap.3.O Programa de Justiça Terapêutica na visão de seus operadores Cap.4.Os jovens assistidos pelo Programa de Justiça Terapêutica: suas

motivações, expectativas e críticas Conclusão Bibliografia

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Introdução

A pesquisa, visando analisar o Programa de Justiça Terapêutica do Estado

do Rio de Janeiro, resultou de uma parceria entre o Instituto de Segurança Pública

– ISP, da Secretaria de Estado de Segurança Pública do Rio de Janeiro e a

Secretaria de Estado de Direitos Humanos, sendo desenvolvida através do Núcleo

de Pesquisa em Justiça Criminal e Segurança Pública NUPESP/ISP, como

atividade vinculada ao Protocolo de Cooperação firmado entre o ISP e a

Universidade Charles de Gaulle - Lille III, com o objetivo de conjugar esforços para

implementar um intercâmbio em matéria de Segurança Pública, através do

desenvolvimento de estudos e pesquisas na área.

A pesquisa contou com o apoio da Coordenadoria de Justiça Terapêutica,

que, além de facilitar a entrada no campo, estabeleceu com o ISP uma verdadeira

parceria, da qual resultou a organização conjunta do Seminário Drogas:Prevenção,

Repressão e Narcotráfico. A Proposta da Justiça Terapêutica. Em cooperação

com o Programa Especial para Usuários de Drogas – PROUD, da Segunda Vara

da Infância e da Juventude, foi ainda organizado o Seminário Família, Drogas,

Criminalidade e suas Interfaces com a Justiça.

Os dados utilizados para a elaboração deste relatório foram levantados

durante trabalho de campo realizado entre dezembro de 2003 e agosto de 2004, na

Segunda Vara da Infância e da Juventude na Cidade do Rio de Janeiro1; nas Varas

da Infância e da Juventude de São Gonçalo, São João do Meriti e Niterói; no

Instituto de Pesquisa Heloísa Marinho – IPHEM, organização não governamental; e

no Grupo de Estudo e Tratamento de Álcool e Outras Dependências – GEAL, da

Universidade Federal Fluminense, ambos localizados em Niterói.

1 A Justiça da Infância e da Juventude, na Comarca da Capital do Rio de Janeiro, se divide em duas Varas especializadas: a Primeira Vara da Criança e da Juventude trata de assuntos de vocação civil e seus procedimentos são de prevenção, mediação, defesa de interesses, e julgamento de todos os conflitos e impasses que envolvem crianças e adolescentes, garantindo-lhes seus direitos em conformidade com o estabelecido na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente. A Segunda Vara da Infância e Juventude tem competência para julgamento de todos os adolescentes que praticam atos infracionais e controle da execução das medidas impostas a crianças e adolescentes (VIANA, 2004).

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A implantação do Programa de Justiça Terapêutica no Brasil

O Programa de Justiça Terapêutica, aplicado no Brasil, foi inspirado nos

Tribunais para Dependentes Químicos (Drug Courts), criados nos Estados Unidos

como programas alternativos destinados a jovens e adultos acusados de cometer

delitos de pequeno potencial ofensivo, relacionados ao consumo de álcool e outras

drogas. Nos últimos dez anos, a expansão desses tribunais permitiu o

desenvolvimento, naquele país, de um trabalho integrado com os presídios, através

de programas de monitoramento judicial, supervisão, testes de drogas e ações

para reabilitação, cuja finalidade última é colaborar para a reintegração social dos

ex-detentos.

O reconhecimento do sucesso desses programas levou os técnicos e

responsáveis por sua aplicação a propor o estabelecimento de um Sistema de

Tribunais para Dependentes Químicos, como uma estrutura responsável por

gerenciar todos os casos de infratores cujos delitos envolvam consumo de álcool e

outras drogas. Enquanto os programas tradicionais de Tribunais para Dependentes

Químicos lidam exclusivamente com delitos diretamente relacionados ao consumo

de drogas, o sistema proposto oferece abordagem mais ampla, podendo incluir

diferentes tipos de crimes que tenham, mesmo que de modo indireto, aspectos

ligados ao consumo de drogas, de modo a proporcionar tratamento para um

número maior de infratores (Desenvolvimento e Implementação de Sistemas de

Tribunais para Dependentes Químicos, 1999).

As Drug Courts norte-americanas também têm servido de modelo para a

Justiça em outros países. Atualmente, programas desse tipo estão sendo

desenvolvidos na Inglaterra, Austrália, Canadá, Irlanda e Espanha, além do Brasil

(Fernandes,s/d:10).

O governo americano presta ajuda econômica e logística ao Brasil para o

combate às drogas ilícitas através de dois órgãos: o Departament of Drug

Enforcement Actions (DEA) e o Centro Interamericano de Combate ao Abuso de

Drogas (CICAD). O primeiro se ocupa da repressão ao narcotráfico, cooperando,

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por exemplo, com a Polícia Federal brasileira; enquanto o segundo ajuda a

desenvolver pesquisas e projetos científicos nessa área. Parte das verbas

destinadas a essa ajuda são repassadas pelo governo americano à Secretaria

Nacional Anti-drogas (SENAD). O projeto de implantação de Tribunais para

Dependentes Químicos no Brasil recebe apoio financeiro do Departamento de

Justiça norte-americano, através da Divisão de Programas de Justiça.

Como estratégia para a expansão dos Tribunais para Dependentes

Químicos no Brasil, foi organizado, no Consulado dos Estados Unidos, um curso

de capacitação, oferecido para profissionais do Tribunal de Justiça e do Ministério

Público em 2000. Como complementação a esse curso, um grupo de juízes,

promotores e técnicos brasileiros realizaram uma visita para observação direta da

dinâmica dos Tribunais para Dependentes Químicos em New Orleans, EUA.

Nesse mesmo ano, em reunião do Fórum Permanente da Infância e

Juventude da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ, com a

presença de desembargadores, juizes, procuradores, advogados, médicos, foi

discutida a possibilidade de se instalar um tribunal especializado em substâncias

entorpecentes no Rio de Janeiro. Diante das dificuldades legais de se implantar um

tribunal especial para um tipo determinado de delito, foi considerada como melhor

solução unir esforços para criar uma metodologia de trabalho específica nas Varas

da Infância e da Juventude já existentes, aproveitando-se o fato da legislação

permitir, no caso de menores de idade acusados de pequenos delitos envolvendo

drogas, a substituição da internação, por tratamento médico e psicológico. Assim,

não haveria necessidade da criação de um novo tribunal, bastando reestruturar os

serviços já existentes nas Varas, de modo a atender aos objetivos desejados (Ata

da XIX Reunião do Fórum Permanente da Criança e do Adolescente,2000).

A partir dessa discussão, o Juiz Titular da Segunda Vara da Infância e da

Juventude, Guaraci de Campos Viana, decidiu implantar um programa similar ao

das “Cortes de Drogas Americanas”. Com essa finalidade, juristas e técnicos, como

comissários2, psicólogos e assistentes sociais, se reuniram para conceber um

2 Os comissários são funcionários públicos, que fiscalizam a aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente nas Varas da Infância e da Adolescência do Estado do Rio de Janeiro. Estes funcionários,

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projeto de implementação, auxiliados por alguns membros do Ministério Público

Estadual que estavam desenvolvendo, na Segunda Vara da Infância e da

Juventude, pesquisa voltada para a questão do uso de drogas entre adolescentes.

O projeto teve sua redação final a cargo do Promotor Titular da Segunda

Vara, Marcio Mothé Fernandes, hoje também Coordenador do Programa de Justiça

Terapêutica, e do Juiz Guaraci de Campos Viana.

O programa, que levou o nome de “Justiça Terapêutica”, foi criado

oficialmente nas Varas da Infância e da Juventude das Comarcas do Município do

Rio de Janeiro, Niterói, São Gonçalo e São João do Meriti pela Corregedoria-Geral

de Justiça, através do Provimento nº 20 de 24 de maio de 2001. A Coordenadoria

de Justiça Terapêutica foi criada pela Resolução nº 1130, de 21 de fevereiro de

2003, junto ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, com a função de

coordenar, supervisionar, orientar e integrar o trabalho desenvolvido, além

promover cursos de capacitação para os profissionais envolvidos e cuidar da

divulgação do programa.

Pressupostos teóricos e procedimentos metodológicos da pesquisa

Para a realização da pesquisa, partimos de alguns pressupostos teóricos

básicos. Em primeiro lugar, é preciso não esquecer que o Programa de Justiça

Terapêutica, aplicado no Rio de Janeiro, importou um modelo forjado por e para a

sociedade norte-americana. Esse modelo, ao ser transplantado para a realidade

brasileira, sofreu necessariamente a influência de uma sociedade organizada em

moldes diferentes e isso se refletiu em suas práticas.

A sociedade norte-americana e a brasileira possuem estruturas

semelhantes, caracterizadas por um regime constitucional republicano e

democrático e por uma economia capitalista, mas apresentam grandes diferenças

quando examinamos seus modelos jurídicos de controle social explícitos tanto nas

selecionados através de concursos públicos, podem ter formação em direito, psicologia, assistência social e pedagogia.

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doutrinas, quanto nas práticas cotidianas de administração de conflitos e de

produção de verdades no campo jurídico.

O sistema jurídico norte-americano se legitima por sua suposta origem

popular, democrática e local, e se reproduz através de um processo de ritualização

que objetiva a internalização das regras de convívio social, numa sociedade

heterogênea e dividida em classes, concebida como composta por indivíduos

diferentes entre si, mas que comungam de uma igualdade formal perante a lei, que

lhes garante, inclusive, o direito de serem diferentes, desde que obedeçam normas

mínimas que os tornem aceitáveis pela sociedade local (Kant de Lima, 1999:23-

24).

Nesse contexto, os conflitos sociais são previsíveis e a sociedade estimula

a sua explicitação, elegendo a negociação como forma de resolvê-los, o que

implica na realização de sucessivas barganhas entre as partes, cujo resultado é a

construção de uma verdade consensual e restrita a um grupo determinado e

localizado (Kant de Lima, 2004:140). Nesse sentido, é interessante notar que tanto

as formas de motivação, quanto as sanções aplicadas aos jovens inseridos nas

Drugs Courts, são estabelecidas localmente (Juvenile Drug Courts: Strategies in

Practice, 2003: 54).

No Brasil, o sistema jurídico guarda as marcas de uma sociedade

hierárquica e excludente, apresentando-se, segundo uma tradição iluminista, como

fruto da reflexão de uma elite, não reivindicando, por conseguinte, nenhuma origem

popular como forma de legitimação.

Em conseqüência, os conflitos não devem ser explicitados, pois são

interpretados como reflexo de desordem social, normas sociais tendem a ser vistas

como constrangimentos externos e a verdade não decorre de negociação, mas é

imposta por aqueles que têm o conhecimento técnico e a autoridade moral para

desvendá-la.

A tradição inquisitorial é flagrante nesse tipo de sistema jurídico em que

desobediência às leis não constitui transgressão a regulamentos explícitos e

acessíveis, que podem ser interpretados e negociados segundo os interesses de

cada grupo, mas sim a regras gerais, de difícil acesso para o leigo, interpretadas

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de forma particular pelos detentores de um saber privilegiado, que objetiva garantir

a hierarquia e a complementaridade entre os diferentes grupos sociais (Kant de

Lima: 1999:26).

Baseada em princípios inquisitoriais, essa cultura judiciária relaciona-se de

forma punitiva com a explicitação de conflitos, elegendo a confissão da culpa e a

conciliação das partes como a melhor forma de resolvê-los (Kant de Lima,

2003:251). Ao contrário do que acontece nos Estados Unidos em que se parte

sempre da presunção da inocência – pois só são julgados os que não assumem a

culpa –, e se reconhece o silêncio como direito e indicador de não culpabilidade, no

Brasil, parte-se normalmente da presunção oficiosa da culpa e o silêncio pode

prejudicar a defesa (Kant de Lima, 1999:28-29).

Na sociedade brasileira, em que o Estado exerce o papel de mediador das

diferenças culturais, sociais, raciais, religiosas e de gênero existentes na população

(Amorim, 2003:212), a obediência ou não às leis é vista como escolha entre a

liberdade e o constrangimento de origem externa, entre o desejo individual e a

submissão a um interesse geral e difuso, quase sempre colocado sob suspeição de

estar sendo manipulado em benefício de outros (Kant de Lima, 1999: 25).

Portanto, apesar da sociedade brasileira atual estruturar-se formalmente

como um regime constitucional republicano e democrático, em que todos são

iguais perante a lei, juridicamente, enfatiza, de forma alternada e alternativa, o

modelo igualitário e o hierárquico, dependendo das circunstâncias e do contexto

argumentativo que se deseja estabelecer (Kant de Lima, 2004:140), permitindo que

dispositivos constitucionais e jurídicos importados, universalistas e igualitários,

muitas vezes sejam aplicados de maneira tipicamente hierárquica (Kant de Lima,

1995:3-4)

Esse quadro nos permite compreender porque determinados procedimentos

característicos das Drugs Courts norte-americanas, como a transação e a

negociação, adquirem um sentido diferente, quando aplicados no Programa de

Justiça Terapêutica do Estado do Rio de Janeiro. Por outro lado, não devemos

esquecer que, mesmo nos Estados Unidos, as possibilidades de negociação e

transação apresentam limites. As Drugs Courts têm sido acusadas de não oferecer

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muitas possibilidades de escolha para aqueles a quem é dada a chance de

ingressar em seus programas. Uma charge, publicada na internet no site

www.narconews.com,, no ano 2003, mostra um jovem, vestindo uma camisa

estampada com uma folha de maconha, sendo levantado no ar por uma mulher

representando a Justiça, que lhe comunica a possibilidade de escolher entre uma

cadeia superlotada ou uma enfermeira de fisionomia masculinizada, portando uma

enorme injeção em frente a uma porta onde está escrito Justiça Terapêutica (ver

anexo).

Essa charge é muito significativa, pois indica que, mesmo em uma

sociedade cuja justiça é caracterizada por princípios de negociação, transação e

presunção da inocência, podem ocorrer práticas coercitivas que limitam as efetivas

possibilidades de escolha. Por outro lado, tanto a permanência no programa

quanto o cumprimento de suas exigências são garantidas por mecanismos de

coerção explícitos. Segundo a juíza Laura Safer Espinoza do Tribunal de Justiça do

Estado de Nova York (Vídeo conferência sobre “Justiça Terapêutica”, www.

tj.sp.gov.br, 2004), se o acusado admitir a culpa e for recebido no programa, fica

obrigado a cumprir integralmente o tratamento, sob pena de receber sanções que

podem chegar a sua expulsão, o que o torna passível de ser preso e mesmo de

receber uma pena maior do que receberia caso não tivesse ingressado nele.

Nas Drug Courts, a abstinência da droga é uma das principais exigências

para a permanência no Programa, por isso, os testes de urina são freqüentes,

realizados rotineiramente e também de forma aleatória, para que os jovens sejam

pegos de surpresa constituem o mecanismo mais utilizado para garanti-la. r o

cumpriAs americanas levam em conta o teste de urina. A abstinência da droga é

um importante instrumento utilizado para o progresso no programa. Estes testes

são realizados com freqüência, isto é, eles têm uma rotina e também de

forma.Mas isto pode variar de um local para outro. Além do teste, outro importante

aspecto para o progresso no tratamento é a freqüência na escola, nos grupos de

trabalho, além do tratamento psicológico individual.

Nos EUA há audiências freqüentes, onde é indispensável a presença do jovem.

Além disso, o acompanhamento do tratamento pela família é essencial para seu

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progresso . Devendo haver motivações e sanções, apoiadas pela família do jovem,

para que ele cumpra as exigências e regras do programa. Estas motivações e

sanções devem variar conforme o lugar. Podendo ser no caso das motivações

prêmios ou elogios. Já as sanções podem ser a prisão por um pequeno período de

tempo, uma maior permanência no programa, além de, no caso de um falta grave,

a expulsão do programa o que acarretaria uma pena maior do que se ele não

tivesse tido a oportunidade de entrar no programa. Estas motivações e sanções

devem ser aplicadas de forma imediata, previsível e persistente, para que não

perca a eficácia. (Juvenile Drug Courts: Strategies in Practice).

Para a realização da pesquisa, adotou-se metodologia qualitativa, em

especial o uso de entrevistas abertas, realizadas com as equipes judicial e técnica

das Varas da Infância e Juventude; com os jovens da Vara de São Gonçalo; com a

equipe do Instituto de Pesquisa Heloisa Marinho – IPHEM; e com o Grupo de

Estudo e Tratamento do Alcoolismo e outras Dependências – GEAL/UFF. Foi

utilizada também a técnica de observação participante em audiências judiciais na

Segunda Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro, na Vara de São João

do Meriti, e em reuniões do Programa Especial para Usuário de Drogas - PROUD,

realizadas uma vez por semana na Segunda Vara da Infância e da Juventude.

Também foi organizado um grupo focal3 com jovens inseridos no Programa

de Justiça Terapêutica da Segunda Vara da Infância e da Juventude, o que

permitiu conhecer certas visões/representações dos usuários sobre o programa,

que dificilmente teriam sido verbalizadas sem o ambiente de troca e debate

proporcionado pela interação grupal.

O uso de metodologia qualitativa justifica-se pela preocupação em melhor

captar os aspectos subjetivos envolvidos nas relações entre os atores do

Programa, bem como as particularidades das práticas nas diferentes instituições

envolvidas.

3 Sobre a técnica de grupo focal ver Greenbaun, 1988; Krueger, 1988 e 1991; Minayo, 1999 e Morgan, 1988.

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Cap.1 Menor, justiça e trabalho no Brasil

Desde fins do século XVIII, a preocupação com a transformação das

crianças e jovens órfãos e/ou abandonados em adultos produtivos e a valorização

do trabalho como elemento disciplinador tornaram-se visíveis na sociedade

portuguesa.

Essa preocupação se refletiu em inúmeros documentos, entre os quais o

Compromisso da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (1739), que aponta a

necessidade de que essas crianças e jovens “...nem por falta de criação venham a

ser prejudiciais à República, nem por falta de ocupação fiquem expostos aos males

que a ociosidade costuma causar”.

Pouco tempo depois, em um contexto de reforma dos padrões

assistenciais na Europa, o Alvará de 31 de janeiro de 1775 determinaria que, após

os sete anos, os meninos e meninas abandonados na roda dos expostos das

Santas Casas de Misericórdia4, que não fossem incorporados às famílias das

criadeiras, fossem registrados no Juizado de Órfãos para serem encaminhados às

residências mais abastadas, onde deveriam fazer “o serviço de que foram capazes

conforme a sua idade” (Venâncio, 1999:141-142).

O mesmo alvará, ao lado do trabalho doméstico, recomendava o envio dos

órfãos para o aprendizado de ofícios manuais, entre os quais figuravam atividades

como costura e fiação para meninas, enquanto os meninos podiam tornar-se

ferreiros, louceiros, seleiros, entalhadores, enfim artesãos dedicados a diversos

serviços (Venâncio, 1999:149-150). Outro destino possível para os meninos era o

Arsenal de Marinha, onde ingressavam na dura vida de grumetes; o Exército ou os

seminários; enquanto as meninas podiam ser aceitas nos recolhimentos e

conventos.

4 As rodas dos expostos eram mecanismos cilíndricos que giravam em torno de um eixo e permitiam que o bebê ali depositado fosse recolhido pelas Santas Casas de Misericórdia, sem que o responsável pela entrega fosse identificado. Esses mecanismos foram instalados em Salvador e no Rio de Janeiro, entre 1726 e 1738. As Santas Casas se responsabilizavam pela criança até os 7 anos de idade, através do trabalho contratado das criadeiras, que cuidavam delas em suas próprias casas (Venâncio, 1999:28).

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Esse alvará continuaria vigente no Brasil independente. Nessa época, o

termo menor começou a ser usado pelos juristas brasileiros como critério para

definir a responsabilidade penal.

O Código Criminal do Império, de 1830, indicava três faixas etárias antes

da maioridade penal, aos 21 anos: os menores de 14 anos, que não tinham

nenhuma responsabilidade penal; os maiores de 14 e menores de 17, que eram

passíveis de penas por “cumplicidade”; e os maiores de 17 e menores de 21, que

não podiam ser condenados às penas mais graves como as galés5.

Mas, apesar de serem isentos de responsabilidade penal, entre os 14 e os

17 anos, os jovens podiam ser recolhidos em casa de correção, a critério do juiz, o

que, na prática, significava o envio para a prisão, já que as casas de correção para

menores só foram instituídas no fim daquele século.

O Código de 1890 estabelecia que, entre 9 e 14 anos, o menor poderia ser

colocado em regime educativo disciplinar, se o juiz considerasse que havia agido

“com discernimento”. Entre 14 e 21 anos, os jovens eram beneficiados com

atenuantes nas penas. A partir dessa época, o termo menor se incorporou ao

vocabulário judicial, e os juristas expressavam sua preocupação com as

instituições para crianças infratoras ou abandonadas e com o estabelecimento dos

tribunais da criança.

Por esta época, já é digna de nota a influência norte-americana, junto com

a européia, na orientação dessas questões. Foi nos Estados Unidos,

especificamente no norte, em Massachusetts, Filadélfia e Nova Iorque, que

surgiram, a partir de 1825, as primeiras instituições voltadas para o disciplinamento

dos menores criminosos. Regidas pela disciplina quaker, baseada no trabalho

físico como elemento regenerador, essas instituições deram origem às escolas

agrícolas e industriais.

No fim do século, seriam estabelecidas as “children courts” e as “juvenil

courts”, assim como uma legislação que, em nome do bem estar da criança e do

humanitarismo, permitia aos juízes intervir nas famílias, retirando seus filhos, sob

5 Originado do serviço prestado nas embarcações reais, o termo galés passa a ser empregado para as penas que determinavam o trabalho em obras públicas.

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alegação de que eram vítimas de más influências, para entregá-los às instituições

educacionais.

Essas questões repercutiam no Brasil, onde foram criadas diversas

instituições para abrigar crianças abandonadas ou consideradas perigosas.

Paralelamente, estabeleceu-se uma discussão, confrontando os que enfatizavam a

necessidade de prevenção, através da assistência aos menores, e os que

enfatizavam o papel punitivo das casas de correção (Torres Lodoño, 1991:129-

134).

Em 1923, é criado o Juízo de Menores no Brasil. Valendo-se da Lei 4.242,

que considerava “abandonado” o menor órfão, sem habitação certa ou meios de

subsistência, ou cujo responsável fosse julgado incapaz de sua guarda, os juízes

pressionavam as famílias a cuidar de seus filhos, reproduzindo a ação de seus

colegas norte-americanos.

Em 1927, o país ganharia o seu primeiro Código de Menores, de autoria do

Juiz de Menores Mello Mattos. Esse código, já em seu primeiro capítulo referia-se

a dois tipos de menores: os abandonados e os delinqüentes. Essas duas

categorias estarão presentes nas discussões sobre o trabalho do menor.

Sob influência dos debates em torno da publicação da Declaração dos

Direitos da Criança (Genebra,1924) e da fundação da Organização Internacional

do Trabalho (1919), o Código de 1927 proibia formalmente o trabalho da criança

com idade inferior a 12 anos e estabelecia as condições para o trabalho do “menor”

com idades entre 12 e 14 anos, que passava a depender de autorização judicial,

expedida apenas nos casos de evidência de necessidade extrema.

Por outro lado, o Juízo de Menores, dirigido por quase dez anos por

Cândido de Mello Mattos, encarregou-se da criação de vários estabelecimentos

destinados à proteção da infância. Essas instituições tinham a dupla função de

proteger a mão-de-obra infantil da exploração fabril, marcante à época, e retirar

das ruas os menores delinqüentes.

A intervenção do Estado na questão do menor, inaugurada pela ação do

Juízo de Menores, vinha ao encontro da proposta de Moncorvo Filho, defendida no

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livro Histórico da Proteção à infância no Brasil, publicado em 1926, que teve

grande repercussão na época (Alvim e Valladares,1988:6-7).

Em 1938, é fundada a Casa do Pequeno Jornaleiro, dirigida pela primeira

dama do país, com o objetivo de regulamentar a venda de jornais por crianças em

todo o Brasil. Em 1940 também é criado o Serviço de Assistência ao Menor–SAM,

subordinado ao Ministério da Justiça, voltado para o recolhimento de menores

abandonados e delinqüentes (Alvim e Valladares,1988:7- 8). Em 1943, a

regulamentação do trabalho do menor é incluída na Consolidação das Leis do

Trabalho - CLT, através de normas especiais de tutela e proteção (Brito, 2000:78).

Na década de 1940, surgem ainda diversas instituições privadas

destinadas à formação de jovens trabalhadores para a indústria e o comércio:

Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial-SENAI (1942), Serviço Social da

Indústria-SESI (1946), Serviço Social do Comércio - SESC (1946) e Serviço

Nacional de aprendizado Comercial - SENAC (1946).

Todas essas iniciativas, estatais ou privadas, refletem a utilização do

trabalho e o recolhimento da infância abandonada como estratégias de combate à

criminalidade infanto-juvenil (Alvim e Valladares, 1988:8), numa época em que a

questão se agravava pelo processo de industrialização e urbanização do pós-

guerra, acelerado nos anos 50, pela política do desenvolvimentismo que marcou o

governo de Juscelino Kubitscheck.

Nos anos 60, a Lei 4.513 (1964) e a criação da Fundação Nacional do Bem

Estar do Menor - FUNABEM (1968) e suas correlatas nos Estados (FEBEM),

denotam uma mudança na política de assistência à infância e o combate `a

criminalidade infanto juvenil, nos quadros do regime autoritário recém instalado. “O

chamado problema do menor foi inserido nos aspectos psicossociais da política de

segurança” (Passetti, 1991:151).

Nesse quadro, a antiga associação entre pobreza e criminalidade é

enfatizada e o termo menor consolida-se como estigma (Passetti, 1991:172).

Justificada pela necessidade de promover o desenvolvimento econômico do país,

as necessidades de mercado terão grande influência sobre as decisões em

relação à permissão da utilização da mão-de-obra infantil. Assim, a idade mínima

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para inserção no mercado de trabalho foi reduzida de 14 (idade determinada desde

o Código de 1927) para 12 anos (Brito, 2000:79). Na década de 70, houve uma absorção acelerada de “menores” no

mercado formal de trabalho no Brasil, embora a maioria continuasse a trabalhar em

condições de informalidade. A presença desses jovens trabalhadores informais nas

ruas dos grandes centros urbanos chamou a atenção da sociedade para o

problema, reforçando a associação entre criminalidade infanto-juvenil e a vida nas

ruas. A necessidade de recolher essas crianças (denominadas pivetes ou

trombadinhas), em instituições especializadas torna-se tema de debates e termina

por dar ensejo à CPI6 do Menor, instalada na Câmara dos Deputados em 1976. A

CPI delineia uma nova configuração para a questão do menor, evidenciando a

defasagem do Código de 1927, sobretudo por não contemplar de modo suficiente o

problema do menor infrator.

Como reflexo dessa conjuntura, em 1979, é instituído um novo Código de

Menores, que denota maior preocupação com o menor infrator do que com o

menor trabalhador, insistindo na questão da penalização, que pode ser

exemplificada pelo recurso à prisão cautelar.

Por outro lado, nesse mesmo ano, num contexto favorável, propiciado pelo

Ano Internacional da Criança e a ampliação das ações da UNICEF no Brasil, é

criado o Movimento de Defesa do Menor, em São Paulo, atuando, primeiramente,

através de denúncias de maus-tratos sofridos por crianças e jovens, cometidos

pela polícia ou verificados no espaço da FEBEM (Valladares e Alvim, 1988:10-11).

Nos anos 80, a crise econômica da sociedade brasileira, marcada pela

recessão e desemprego, aliada às novas exigências de escolaridade regular para

os trabalhadores, decorrente, entre outros fatores, da internacionalização da

economia, prejudicaram ainda mais a absorção dos menores no mercado de

trabalho formal (BRITO, 2000:79-80). Ao mesmo tempo, a sociedade brasileira vive

um momento de clamor popular pela democratização plena e extensão da

cidadania a todos os brasileiros. A questão do menor integra as discussões e

propostas, beneficiando-se desse novo contexto. Gestado a partir da segunda

6 Comissão Parlamentar de Inquérito.

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metade da década de 1980, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei

Federal 8069 de 13/07/1990) consolida uma abordagem do problema pautada por

novos parâmetros, afinados com a disseminação global dos chamados direitos da

criança, no bojo da emergente retórica universalista dos direitos humanos

(SCHUCH, 2003:157). Refletindo essa conjuntura, a Constituição de 1988

recuperou a idade de 14 anos como limite para a entrada no mercado de trabalho

formal, com exceção para a condição de aprendiz.

A partir do ECA, o trabalho do menor passa a ser pensado como fator de

inserção democrática, através de sua dimensão educativa e social (Brito, 2000:80).

A ênfase na questão educacional redimensiona o papel da escola e/ou trabalho na

trajetória de formação cidadã, buscando garantir legalmente mecanismos de

inclusão da infância e da juventude (Sento-Sé : 2003,11). Sob este ângulo, apesar

do trabalho não ser visto como algo adequado a crianças e jovens, quando se trata

da população pobre, pode, junto com a escola, constituir lócus de proteção contra a

entrada no mundo do crime (Alvim, 1994/b:127-128).

No que diz respeito aos jovens infratores, o estatuto estabelece a criação

de programas especializados e regionalizados de execução de medidas

socioeducativas (SCHUCH, 2003:158). Para atender a essa determinação

constitucional de estadualização dos sistemas, em 1994, o Departamento de Ações

Socioeducativas – DEGASE foi criado no Rio de Janeiro (BRITO, 2000:15).

Os atos definidos pelo Direito Penal como crimes e contravenções, quando

praticados por adultos, constituem infrações, se cometidos por jovens entre 12 e 18

anos, e tornam esses jovens objetos da aplicação de medidas socioeducativas,

que podem ir, desde uma advertência até a internação em um estabelecimento

educacional (VERONESE, SOUZA, MIOTO, 2001:41).

O ECA possibilita, ainda que, antes de iniciado o procedimento judicial

para apuração do ato infracional, do qual resultará a possível aplicação de medidas

socioeducativas, seja concedida ao jovem o benefício da remissão do processo. A

concessão desse benefício deve considerar as circunstâncias e conseqüências do

ato, o contexto social e também a personalidade do adolescente e o grau de

participação no ato infracional (Estatuto da Criança e do Adolescente, 2001).

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17

Esse dispositivo legal abre a possibilidade de proporcionar ao jovem

infrator a inserção em programas alternativos, como o Programa de Justiça

Terapêutica do Estado Rio de Janeiro, que viabiliza a substituição das medidas

socioeducativas por tratamento compulsório, constituído por acompanhamento

médico-psicológico e orientação para a vida escolar e profissional.

O Programa, que atende a jovens infratores envolvidos com uso de drogas,

predominantemente oriundos das camadas mais pobres da população, enfatiza a

importância da inclusão desses jovens no mercado de trabalho como proteção

contra a entrada no mundo do crime, reforçando uma tradição presente na

sociedade brasileira desde o século XVIII.

Cap. 2. Caracterização do Programa de Justiça Terapêutica do Estado Rio de

Janeiro

O Programa de Justiça Terapêutica, aplicado no Estado do Rio de Janeiro,

implica na suspensão provisória do processo judicial, antes da representação da

promotoria. Esse procedimento é facultado ao Ministério Público, mediante

chancela do juiz, pelo instituto da remissão, previsto nos artigos. 126 ao 128 do

Estatuto da Criança e do Adolescente, instituído pela Lei n. º 8.069 de 13 de julho

de 1990.

O jovem que ingressa no Programa deixa de ser submetido às ações

socioeducativas normalmente aplicadas a jovens infratores, que vão desde

advertência até internação em um estabelecimento educacional (arts. 112 ao 125

do ECA), substituídas por um tratamento compulsório. Após o tratamento, que

consiste em um acompanhamento médico-psicológico e orientação para a vida

escolar e profissional, o processo é definitivamente extinto e o jovem tem sua “ficha

limpa”, ou seja, são eliminados seus antecedentes criminais.

O ingresso no Programa de Justiça Terapêutica é oferecido a todos os

jovens encaminhados à Vara da Infância e Juventude por ato infracional

relacionado com o consumo de drogas. Ao chegar, após a ocorrência ter sido

registrada na delegacia de polícia, o jovem é submetido a uma oitiva, que consiste

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18

em depoimento feito ao promotor com a presença de seu responsável legal. O

promotor avalia a viabilidade jurídica de sua inserção no Programa, a partir das

informações obtidas nesse primeiro contato.

Em seguida, o jovem é examinado por uma equipe de técnicos do

Judiciário, normalmente um assistente social e um psicólogo, que verificam o grau

de seu comprometimento com a substância entorpecente e as condições de seu

ingresso, que incluem o efetivo interesse e a disponibilidade para cumprir as

exigências do Programa.

Uma vez aceito como possível integrante do Programa, cabe ao jovem e

ao seu responsável decidir por sua inclusão ou não. Em caso positivo, o

responsável e o jovem usuário de drogas assinam, respectivamente, uma

autorização e um termo de compromisso.

Em seguida, há uma representação do promotor ao juiz, propondo o

julgamento do caso. Em audiência, o juiz ouve o promotor, a equipe técnica e,

eventualmente, o defensor do jovem, e decide pela sua inserção ou não no

Programa. Para que o jovem seja efetivamente encaminhado ao Programa, é

importante que o promotor e o defensor - que pode ser um defensor público ou um

advogado contratado pela família – concordem que essa é a opção mais adequada

para o caso.

A idade do adolescente encaminhado ao Programa de Justiça Terapêutica

deve ser igual ou superior a 12 anos e menor do que 18 anos. O jovem deve ter

uma família, não ser caracterizado como morador de rua, não ter passagem pela

polícia e não sofrer de co-morbidades, como a esquizofrenia.

Uma vez no Programa, o jovem é conduzido, de modo individualizado e

intensivo, a profissionais integrantes da equipe técnica, formada por assistentes

sociais, psicólogos, psiquiatras, médicos e comissários ou servidores

credenciados7, que têm por função orientar e acompanhar os adolescentes nas

atividades exigidas pelo Programa, além de assessorar, através de relatórios

bimestrais e audiências, o juiz na avaliação de sua execução. Esses relatórios

7Qualquer funcionário público pode ser designado para trabalhar no Programa de Justiça Terapêutica, mesmo sem ter uma formação específica que o qualifique para desempenhar as funções requeridas pelo Programa.

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19

também são enviados ao promotor e ao defensor, que, assim como o juiz, podem

discordar dele, através do “livre convencimento motivado”8.

As atividades do Programa consistem na participação do jovem em

reuniões semanais, em visitas dos supervisores à casa, à escola, ao local de

trabalho ou de estágio do jovem. Dependendo de sua situação específica, este

pode também ser encaminhado para tratamento em unidades de saúde pública ou

na rede privada conveniada ao Programa.

O Programa prevê também a verificação periódica, por meio de testagem

de urina, da abstinência de substância entorpecente. A desobediência a esta

norma pode acarretar, para o jovem, sanções determinadas pelo juiz, incluindo sua

expulsão do Programa.

O jovem que aceita participar do Programa, assim como seu responsável,

é informado de todas as suas condições e exigências e das penalidades que

poderá sofrer por seu descumprimento.

Segunda Vara da Infância e da Juventude da Cidade do Rio de Janeiro O Programa de Justiça Terapêutica da Segunda Vara da Infância e da

Juventude foi criado em junho de 2001, com a denominação Programa Especial

para Usuário de Drogas - PROUD. Sua equipe é formada por um médico, cedido

pelo Ministério da Saúde ao Ministério Público, três psicólogos e uma assistente

social, todos funcionários públicos; além de dois estagiários (um do curso de

Psicologia e um do curso de Direito).

Segundo uma das Promotoras da Segunda Vara da Infância e da

Juventude, o perfil do jovem que deve ser encaminhado para o PROUD é aquele ...que têm uma família estruturada9, que não

têm passagem pela polícia e não seja experimentador

esporádico, e sim viciado.

8 Essa sistemática da valoração das provas, com base no livre convencimento do magistrado, está expressa no artigo 131 do Código de Processo Civil Brasileiro, sendo também denominada de princípio da persuasão racional do juiz, que estabelece: “O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento”.

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20

No entanto, essa diferença entre viciados e usuários esporádicos não é

considerada como critério no provimento que criou o Programa de Justiça

Terapêutica, sendo, inclusive, de difícil avaliação na entrevista inicial que serve de

base para a indicação do jovem.

A equipe técnica do PROUD enfatiza que, uma vez que o jovem é

considerado apto para integrar o Programa, é necessário convencê-lo de que essa

é a melhor opção para o seu caso. Estabelece-se, assim, o que a própria equipe

denomina como “barganha”, isto é, a troca da eliminação do processo judicial pelo

afastamento das drogas e, mais que isso, por uma vida produtiva. Realizada com

sucesso, essa barganha cria o que a equipe denomina “demanda” por parte dos

jovens, isto é, a vontade efetiva de mudar de vida, o que incluiria o abandono do

uso de entorpecentes e o reconhecimento dos ganhos sociais daí advindos.

Na ocasião da pesquisa de campo, na Segunda Vara da Infância e da

Juventude não havia testes de urina há um ano e meio, o que, efetivamente,

impedia a verificação do cumprimento dessa exigência. Segundo informações da

equipe técnica, isso se devia à falta de dinheiro para o teste, que só foi realizado

durante o ano em que a Embaixada dos Estados Unidos doou o material

necessário.

Mas, a equipe técnica ressalta que, diferentemente do que ocorre na

América do Norte, a abstenção absoluta de drogas, embora seja uma exigência do

Programa, não é vista como fundamental durante o tratamento. Para eles, estar

abstêmio não é o mais importante, pois trabalham com o que denominam “projetos

de vida”, valorizando muito mais a reorganização da vida do jovem, numa

perspectiva global. O que efetivamente importa, sendo considerado critério de

avaliação do sucesso do Programa, é o afastamento do jovem do que eles

chamam de “comportamento de risco”, que inclui, além da relação com as drogas,

a permanência na escola ou no trabalho. Mais do que verificar a abstinência

absoluta, eles estão preocupados com a participação efetiva dos jovens nas

9 Família estruturada,na prática, significa não ser morador de rua.

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21

atividades do Programa, o que indicaria a interiorização dos valores sociais que

devem sustentar seu modo de vida daqui para frente.

Na Segunda Vara da Infância e da Juventude, de junho de 2001 até julho

de 2004, foram enviados 178 jovens para avaliação pela equipe técnica. Destes 42

faltaram à avaliação inicial; 3 faltaram à audiência; 39 cumpriram todas as etapas e

tiveram o processo extinto; 10 foram desligados por descumprimento das

condições; 4 faleceram; 3 tiveram nova apreensão por cometimento de delitos; 1 foi

enviado para outra comarca, e 12 não quiseram entrar no Programa.

Na ocasião da pesquisa, 57 jovens participavam do programa, apenas 29

dos quais cumprindo todas as exigências. Havia, ainda, 7 jovens com avaliações

marcadas para os meses seguintes.

Vara da Infância e da Juventude de São João de Meriti

O Programa de Justiça Terapêutica - PROJUSTE de São João de Meriti é

coordenado por uma assistente social e conta na sua equipe com duas

comissárias e uma ouvidora, que é voluntária e não funcionária pública.

Desde quando foi criado, em 2001, já passaram pelo programa 39 jovens,

dos quais 2 abandonaram as atividades, 19 tiveram o processo extinto e 18 ainda

estavam participando em julho de 2004, quando a pesquisa foi realizada.

Os jovens admitidos no Programa são submetidos periodicamente a testes

de urina para que se verifique se permanecem afastados das drogas. Na verdade,

a possibilidade de ser encaminhado para o teste funciona como uma ameaça para

aqueles que não vêm cumprindo à risca as exigências do Programa, já que os

testes não seguem uma rotina regular. Os jovens assistidos na Vara de São João

de Meriti são encaminhados para tratamento terapêutico na Casa da Vila, que é

uma unidade da Organização Não Governamental Reencontro de Obras Sociais e

Educacionais10 .

Além de receberem esse atendimento, os jovens são submetidos a

avaliações semanais, realizadas pela equipe técnica da Vara. Particularmente em

10 Instituição voltada para o atendimento de jovens com histórias de uso/abuso de drogas, que funciona, desde 1988, através de convênio com a Fundação para Infância e Juventude do Estado do Rio de Janeiro - FIA e em parceria com a Prefeitura de São João de Meriti.

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22

São João de Meriti, esse trabalho é acompanhado de perto pela juíza, o que é

facilitado pelo fato de seu gabinete ficar muito próximo à sala da equipe técnica,

que, assim, pode comunicá-la imediatamente de qualquer problema ocorrido com

algum dos jovens.

Ao contrário das outras Varas, em que as audiências são individuais e

realizadas apenas quando existe um problema grave a resolver, em São João de

Meriti há audiências de acompanhamento periódicas, mais ou menos de três em

três meses, das quais todos os jovens e seus responsáveis participam. Nas

audiências, a equipe técnica apresenta o caso de cada jovem, que é comentado

publicamente.

Nessas reuniões ocorre o que podemos caracterizar como punições

exemplares, à semelhança da justiça praticada nas sociedades do Antigo Regime.

Ao contrário do que ocorreria a partir da segunda metade do século XVIII, quando

a aplicação da pena se tornaria pouco a pouco a parte mais oculta do processo

judicial, no Antigo Regime esse momento constituía um espetáculo (Foucault,

1979). A punição, realizada através de terríveis suplícios, incluía rituais de

degradação do condenado, e era partilhada com o público, que, ao mesmo tempo

em que se colocava ao lado do poder – execrando com injúrias, zombarias e atos

de violência o réu – sentia-se aterrorizado com a possibilidade de vir a sofrer

castigo igual. Assim, cada execução tinha caráter exemplar, afastando pelo medo a

população do crime, ao mesmo tempo em que a tornava cúmplice do Estado na

aplicação da Justiça.

Ao incluir, nas audiências públicas, rituais de humilhação daqueles que

infringem as regras do Programa, a Vara de São João de Meriti aplica uma espécie

de punição exemplar perante os outros jovens, que, ao mesmo tempo em que são

chamados a compartilhar de uma atitude crítica diante do comportamento do

colega, sentem-se temerosos de serem expostos à mesma situação. Vale notar

que também a família do jovem fica exposta ao constrangimento, partilhando da

culpa por ele não se enquadrar no Programa, pois seu responsável – geralmente a

mãe – é convidado a permanecer de pé ao lado dele, enquanto seu caso é

comentado. Assim, além do jovem, seus responsáveis são também cobrados

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23

publicamente quanto ao acompanhamento de sua conduta e quanto à participação

nos grupos familiares.

Na audiência observada, os jovens que cumpriam as exigências do

Programa, participando com empenho em todas as suas atividades, foram, junto

com sua família, elogiados e aplaudidos por todos os participantes, enquanto

aqueles acusados de descumpri-lo foram criticados publicamente pela juíza,

promotor, defensor e integrantes da equipe técnica. Esses jovens foram chamados

de “burros” e “otários”, por continuarem levando uma vida de risco, expondo-se à

violência por parte dos traficantes e da polícia, e por prejudicarem sua saúde pelo

uso de drogas. Como argumento para o abandono das drogas foi citada, inclusive,

a possibilidade de “ficarem broxas”, isto é, perderem a potência sexual. Na

audiência, conjugou-se a exposição pública ao uso de uma linguagem popular,

como meio de pressionar os jovens e suas famílias.

O jovem que insistir no descumprimento das regras pode receber o que a

equipe técnica da Vara de São João de Meriti chama de “medidas sócio-

pedagógicas”, para diferenciá-las das medidas sócio-educativas, determinadas

juridicamente, através de processo judicial, de acordo com o Estatuto da Criança e

do Adolescente 11. As medidas sócio-pedagógicas compreendem, além da

exposição pública nas audiências, repreensões verbais particulares por parte do

juiz, aumento do número de sessões com a equipe técnica e, finalmente, a

exclusão do Programa, o que implica na reabertura do processo judicial.

Vara da Infância e da Juventude de São Gonçalo O Programa de Justiça Terapêutica de São Gonçalo não utiliza a

suspensão do processo judicial, o jovem que entra no Programa tem a medida

11 As medidas aplicadas a jovens infratores, podem ser as seguintes: advertência, obrigação de reparação de dano, prestação de serviços a comunidade, liberdade assistida, inserção em regime de semi-liberdade e internação em estabelecimento educacional, que estão previstas nos artigos. 112 ao 125 da Lei n. º 8.069 de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Além destas, de acordo com o art. 112, § VII, também podem ser aplicadas medidas previstas no artigo 101,§ I a IV, que são medidas específicas de proteção e se caracterizam por encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade, orientação, apoio e acompanhamento temporários, matrícula e freqüências obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental, inclusão em programa comunitário de auxílio e tratamentos voltados para alcoólatras e toxicômanos.

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24

sócio-educativa suspensa, mas continua respondendo ao processo. A Promotora

da Vara da Infância e da Juventude de São Gonçalo justifica esse fato pela maior

facilidade de se recorrer à medida sócio-educativa, caso o jovem descumpra as

exigências do Programa, do que se tivesse que pedir a reabertura do processo.

Seria uma forma da justiça economizar tempo, como ela explica:

Se o jovem não estiver se mantendo abstêmio,

ele é advertido e se não cumprir ele pode vir a ter que

cumprir a medida sócio-educativa, que já está na

sentença. Nossa aplicação da medida em sentença foi

uma maneira até de agilizar, se eu tivesse pedido a

suspensão do processo no inicio, se não tivesse ouvido

testemunhas, nós teríamos que começar tudo de novo...

Mas, é também uma garantia a punição do jovem, caso ele não se adapte

ao Programa:

…nossa experiência foi muito ruim quando agente

começou suspendendo o processo, por que o

adolescente não só descumpria o tratamento, como ele

sumia, e perdia-se a oportunidade de sentenciar.

O Programa é aplicado em São Gonçalo através de um convênio

estabelecido entre a Vara da Infância e Juventude, a Secretaria de

Desenvolvimento Social da Prefeitura de São Gonçalo, o Instituto de Pesquisa

Heloísa Marinho - IFHEM e o Grupo de Estudo e Tratamento do Alcoolismo e

outras Dependências - GEAL, da Universidade Federal Fluminense - UFF.

A Secretaria de Desenvolvimento Social da Prefeitura de São Gonçalo

repassa verbas para o IFHEM e o GEAL/UFF, que se responsabilizam pelo

tratamento dos jovens usuários de drogas, realizando um trabalho conjunto e

complementar. Assim, seus técnicos constituem a equipe técnica da Vara de São

Gonçalo, dividindo-se em dois grupos. A denominada “equipe judiciária”, composta

por duas psicólogas e uma assistente social, faz a avaliação inicial do caso e

Page 25: RelaToriO pesQuisa

25

acompanham os trâmites do processo; a “equipe terapêutica” é composta por duas

psiquiatras, uma para avaliação e outra para acompanhamento, quatro psicólogos,

uma assistente social e dois conselheiros químicos, dos quais um já foi usuário de

drogas. Um desses conselheiros acompanha o jovem durante todo o tempo de sua

permanência nas duas instituições, já que o tratamento implica em atividades

realizadas no IFHEM e no GEAL/UFF. Sua função é um misto de vigilância e

exemplo, já que se trata de um ex-usuário. O outro conselheiro é um enfermeiro,

cujo papel é aconselhar os jovens sobre os malefícios causados pela droga.

Também faz parte da equipe um professor de educação física e uma educadora,

que trabalha com cada jovem individualmente, ajudando-o em seus problemas

educacionais.

Como a equipe da Vara é reduzida, nenhum de seus funcionários

acompanha os casos dos jovens encaminhados para tratamento nas duas

instituições, nem supervisiona suas atividades.

O Programa exige o comparecimento diário e compreende também cursos

sobre qualidade de vida, atividades laborais voltadas para a conservação do

espaço institucional, atividades culturais, recreativas e esportivas, complementação

pedagógica, cursos de informática, orientação profissional e outros cursos

profissionalizantes, como marcenaria, padaria e confeitaria. O jovem tem ainda

acesso a terapia psicológica individual e de grupo (incluindo familiares), e, em

situações específicas, a prescrição de remédios para facilitar o abandono da droga.

Vara da Infância e da Juventude de Niterói

A equipe técnica da Vara da Infância e Juventude de Niterói é formada por

uma assistente social e uma psicóloga, que se responsabilizam pelo

acompanhamento de todos os jovens enviados à Vara por ato infracional, tanto os

encaminhados ao Programa de Justiça Terapêutica, quanto os que sofrem

processo judicial. Uma peculiaridade dos procedimentos dessa Vara é o fato de que a

indicação do jovem para o Programa, que implica na suspensão do processo

judicial, se dá apenas na esfera das decisões jurídicas. O encaminhamento é feito

Page 26: RelaToriO pesQuisa

26

pelo promotor, após a sessão de oitiva e deve ser confirmado pelo juiz, após

consulta ao jovem em audiência. Uma vez confirmado o encaminhamento, a

equipe técnica é mobilizada para acompanhar o caso, como explica uma das

técnicas:

em função dos prazos, não há tempo de fazer esta avaliação

inicial. Por isso, o promotor quando ouve o jovem tenta

perceber se deve enviá-lo ou não para a Justiça Terapêutica.

Ele já faz o indicativo em audiência, então o próprio juiz neste

caso tenta explorar se é caso de mandar para o Programa.

O jovem pode ser assistido por duas instituições: o Grupo de Estudo e

Tratamento do Alcoolismo e outras Dependências - GEAL/UFF, que também

atende os casos da Vara de São Gonçalo, ou o Centro Regional Integrado de

Atendimento ao Adolescente – CRIAA/UFF, que desenvolve programa de Apoio

Pedagógico a Adolescente Sobre o Tratamento em Hospital-Dia. A diferença

básica entre os dois tratamentos é que o CRIAA não realiza testes de urina para

verificação do afastamento das drogas, como faz o GEAL.

As duas instituições têm o compromisso de remeter relatórios bimensais à

equipe técnica da Vara, mas, como afirma uma de suas integrantes, nem sempre

essa regularidade é cumprida, por falta de pessoal. Esses relatórios são anexados

ao processo, servindo de base para a exclusão definitiva ou não do processo

judicial. Durante o tratamento, não ocorrem audiências com o juiz, que só se

verificam em casos muito especiais, quando o jovem praticamente abandona o

Programa.

Do início de 2001, quando foi implantado o Programa em Niterói, até 30 de

junho de 2004, 33 jovens haviam sido atendidos. Como observa uma das técnicas,

esse número, que ela considera baixo diante do número de jovens processados

por envolvimento com drogas, se explica pelas dificuldades para desenvolver o

Programa:

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27

falta infra estrutura, pois não adianta o juiz enquadrar

por enquadrar. Melhor mandar um número reduzido, e

fazer bem feito o pouco que faz.

Cap.3.O Programa de Justiça Terapêutica na visão de seus operadores

Os operadores do Programa de Justiça Terapêutica são o juiz, o promotor,

o defensor e a equipe técnica. Entre esses operadores, o Juiz ocupa lugar

preponderante, pois cabe a ele arbitrar sobre a inclusão ou não de determinado

jovem no Programa, decisão que, obviamente, se baseia na avaliação da

probabilidade de que as ações terapêuticas surtam efeito naquele caso específico,

isto é, promovam o que é considerado como recuperação do jovem, o que implica

não só em seu afastamento das drogas, mas também sua inserção em um modelo

de vida produtiva. Essa avaliação é feita com base no relatório da equipe técnica e

também através do contato com o jovem na audiência inicial.

Segundo um dos implementadores do Programa no Rio de Janeiro, o juiz

da Segunda Vara da Infância e da Juventude Guaraci de Campos Viana, ao

examinar esses jovens, o juiz deveria ir além de suas atribuições de julgar, se

tornar uma autoridade moral, com funções semelhantes às de um pai,

supervisionando cuidadosamente o desempenho do jovem no Programa.

Essa função é descrita pela Juíza da Vara da Infância e da Juventude de

São João do Meriti, nos seguintes termos:

... se ele não estiver atuante em todas as pontes, o programa

não funciona. Não tem papel de pai, nem de mãe, prefiro um

papel de tia, pois é a tia má, isto é, severa, e eles entendem

como sendo má. Sou bastante severa, mas não tenha dúvida

que todo o trabalho é voltado para eles, é por isso que sou

severa.

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28

Essa visão enfatiza o viés educacional que os operadores identificam nesse

tipo de justiça, e também revela o tipo de procedimento pedagógico comumente

aplicado. O juiz entrevistado, titular da Vara da Infância e Juventude de São João

de Meriti, ao submeter os jovens refratários ao Programa à execração pública nas

audiências coletivas, acredita estar utilizando um instrumento pedagógico legítimo

e eficaz para a sua recuperação e ressocialização.

Entre os critérios que servem de base para a decisão sobre o

encaminhamento ou não de determinado jovem ao Programa, existem fatores

objetivos e subjetivos. Para os juizes entrevistados, essa decisão depende, em

primeiro lugar, da diferenciação entre o “experimentador esporádico” e o

“dependente químico”, o que é feito com base no relatório da equipe técnica, pois,

conforme determina seu provimento de criação, o Programa deve ser dirigido

apenas aos que são classificados como dependentes químicos.

Vale notar que nem sempre é possível ter muito rigor na caracterização da

relação do jovem com a droga, sobretudo para qualificar uma dependência

química. Assim, esse termo, registrado no Provimento de criação do Programa,

acaba sendo utilizado de forma ampla, abrangendo casos diferentes. Deve-se

lembrar, ainda, que esse diagnóstico é feito com base na única entrevista que

precede a ida do jovem à audiência com o juiz. Um dos jovens ouvidos na pesquisa

relatou que ingressou no Programa após ter utilizado maconha uma só vez.

O outro critério usado pelos juízes é a avaliação da possibilidade do jovem

“ter recuperação”, isto é, sua disposição para afastar-se das drogas, estudar e

trabalhar.

Na verdade, a maior preocupação dos juízes quando o jovem termina o

tratamento é sua colocação no mercado de trabalho, vista como meio essencial

para evitar sua volta ao ato infracional, como afirma o juiz da Vara da Infância e da

Juventude de São João do Meriti:

...o mais difícil é conseguir uma colocação no

mercado de trabalho para estes jovens. Pois às vezes o

programa consegue a abstinência, consegue a adesão.

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29

Mas não consegue a colocação deles no mercado de

trabalho, porque ele precisa de dinheiro para

sobreviver...

Não se pode esquecer que o trabalho esteve desde cedo associado ao

tratamento de jovens infratores, como instrumento disciplinador, e também à

educação de órfãos e as crianças pobres, vistos como delinqüentes em potencial

(Venâncio,1999:142).

Essa preocupação dos juízes se verifica também nas equipes técnicas, que

incluem a valorização do trabalho como tema constante nos encontros com os

jovens, além de se empenhar em proporcionar seu ingresso em cursos

profissionalizantes. Na Vara da infância e da Juventude de São Gonçalo, os jovens

se ocupam também em atividades laborais voltadas para a conservação do espaço

físico que abriga o Programa.

Apesar do pouco contato que mantém com os jovens, excetuando o juiz de

São João do Meriti que realiza audiências coletivas bimensais, a visão do juiz

sobre o Programa influencia sua forma de implementação, pois cabe a ele

supervisionar sua execução na Vara na qual é titular.

Tão importantes quanto os juízes são os promotores do Ministério Público,

que é a instância jurídica responsável por conceder a remissão, como forma de

exclusão do processo (Estatuto da Criança e do Adolescente, art.126-128).

Quando chega às Varas da Infância e da Juventude, o primeiro contato do

jovem é com o promotor, durante a oitiva. Cabe a ele, portanto, a primeira

avaliação do jovem, para verificar se seu perfil se enquadra nos critérios do

provimento que instituiu o Programa, isto é, se não é morador de rua e se cometeu

delito considerado de menor potencial ofensivo, relacionado ao consumo

continuado de drogas. Os jovens identificados como traficantes, não têm direito a

esse benefício, a não ser na Vara de São Gonçalo, em que a inclusão no Programa

não implica na exclusão do processo.

O contato entre os promotores e os jovens resume-se basicamente a esse

depoimento inicial, após o que eles acompanharão o caso apenas através dos

Page 30: RelaToriO pesQuisa

30

relatórios bimensais da equipe técnica, embora exista a possibilidade do promotor

solicitar uma audiência especial em determinados casos, assumindo assim o

mesmo papel de educador do juiz.

A função do defensor, seja público ou advogado contratado pela família do

jovem é defender o jovem nas audiências com o juiz, de acordo com o que

estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente. Cabe a ele opinar quanto à

inclusão ou não do jovem no Programa, de acordo com o que considerar melhor

para o seu cliente. Ele também tem acesso aos relatórios da equipe técnica e deve

verificar se o relatório espelha o efetivo comportamento do jovem durante sua

participação no Programa, bem como estar atento ao prazo de permanência do

jovem sob a tutela do Estado, para que não permaneça mais tempo do que o

previsto.

Em São João do Meriti, o defensor participa das audiências coletivas, já

descritas, inclusive elogiando ou criticando publicamente os jovens de acordo com

seu comportamento no Programa.

Uma jovem entrevistada relatou não ter tido a presença de um defensor em

sua audiência com o juiz:

...na audiência estavam a juíza, a promotora, eu e

minha mãe, quem falou em minha defesa foi eu e ela.

Nesse caso, ocorrido na Vara de São Gonçalo, a situação é ainda mais

grave, pois, além de contrariar o artigo 141 do Estatuto da Criança e do

Adolescente, que garante o acesso à Defensoria Pública, aconteceu em uma Vara

cuja prática é não suspender o processo dos jovens encaminhados ao Programa

de Justiça Terapêutica, como já foi relatado anteriormente.

O Programa de Justiça Terapêutica requer, além dos operadores jurídicos,

a ação de equipes técnicas, responsáveis pelo tratamento terapêutico compulsório.

Essas equipes são grupos interdisciplinares, formados principalmente por

psicólogos e assistentes sociais.

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31

Para estes técnicos, apesar de ministrarem um tratamento compulsório,

eles devem ter a preocupação de “criar uma demanda” por parte dos jovens,

fazendo com que desejem realmente abandonar a droga e mudar de vida e

reconheçam no Programa um meio de consegui-lo, isto é, interiorizem as normas,

cuja transgressão levou-os à justiça.

A questão da abstenção das drogas durante o tratamento é vista de modo

diferente pelas equipes técnicas. Nos lugares em que ele é feito, de forma rotineira

ou esporádica, o teste é considerado elemento essencial para se decidir sobre a

expulsão do jovem do Programa, e a conseqüente reabertura do processo penal ou

sua remissão, através da exclusão definitiva do processo. Mas, para os técnicos da

Segunda Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro, onde não há recursos

materiais para sua utilização, o teste é visto como um instrumento dispensável,

pois o uso de drogas é considerado apenas um dos elementos que caracterizam

como “comportamento de risco”, que inclui o afastamento da escola e/ou do

trabalho, o relacionamento com a família, etc.

A grande preocupação percebida em todos os operadores do Programa é a

inserção dos jovens no mercado de trabalho, considerada meio essencial para sua

recuperação definitiva.

A Constituição de 1988 estabelece a idade de 14 anos como limite para a

entrada no mercado de trabalho, salvo na condição de aprendiz. O Estatuto da

Criança e do Adolescente - ECA considera o trabalho do “menor” como fator de

inserção democrática, através de sua dimensão educativo-social (Brito, 2000:80),

como mecanismos de inclusão da infância e da juventude na sociedade (Sento-Sé,

2003:11).

Mas, quando se trata de crianças e adolescentes oriundos das classes

populares, tanto o trabalho quanto a escola adquirem um significado particular,

tornando-se, além de meios práticos, instrumentos simbólicos de proteção contra a

entrada no mundo do crime e da marginalidade.

Os operadores do Programa de Justiça Terapêutica comungam dessa

visão, difundida na sociedade, inclusive entre as próprias classes populares,

valorizando o trabalho do adolescente como formador do futuro trabalhador (Alvim,

Page 32: RelaToriO pesQuisa

32

1994:127). Por isso há uma grande preocupação em viabilizar a contratação

desses jovens, através de convênios com entidades governamentais e privadas

que disponibilizam vagas para jovens inseridos no Programa. No entanto, os

operadores reconhecem que, numa situação de desemprego geral no país, a

colocação de jovens infratores no mercado de trabalho é tarefa árdua.

Há também a preocupação em conseguir vagas em escolas, públicas ou

privadas, sobretudo naquelas que oferecem cursos profissionalizantes.

O IPHEM e o GEAL/UFF oferecem, em suas instalações, cursos gratuitos

de padaria, confeitaria e informática para os jovens da Vara de São Gonçalo,

viabilizados através de acordo com a Prefeitura.

Cap.4.Os jovens assistidos pelo Programa de Justiça Terapêutica: suas motivações, expectativas e críticas

Durante a pesquisa foram feitas entrevistas individuais com seis jovens da

Vara da Infância e da Juventude de São Gonçalo, além de grupo focal com oito

jovens da Segunda Vara da Infância e da Juventude da cidade do Rio de Janeiro.

Nesta última, todos os entrevistados foram flagrados fumando maconha e

enquadrados por porte de drogas para uso próprio, delito previsto no artigo 16 da

Lei 6.368, de 21 de outubro de 1976 12 e classificado como ato infracional de menor

potencial ofensivo.

Já na Vara da Infância e da Juventude de São Gonçalo, cinco dos

entrevistados foram enquadrados por tráfico de drogas, conforme o artigo 12 da

mesma lei e um deles por ameaça, segundo o artigo 147 do Código Penal - Lei nº

2.848, de 07 de dezembro de 1940.

Segundo o provimento que criou o Programa de Justiça Terapêutica, os

jovens encaminhados à Vara de São Gonçalo não poderiam estar participando

dele, pois tráfico de drogas não é considerado delito de menor potencial ofensivo.

12 Que dispõe sobre medida de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependências física ou psíquica.

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33

No entanto, a juíza e a promotora concordaram em encaminhá-los, desde que

demonstrassem vontade de se afastar do tráfico e do uso de drogas.

Para os que foram enquadrados por tráfico, a inserção no Programa, é

feita de modo progressivo. Primeiro os jovens passam um tempo como internos em

uma das unidades do Departamento Geral de Ações Sócio-Educativas - DEGASE;

em seguida são enquadrados em regime de semiliberdade, sendo obrigados a

dormir na instituição. Somente quando, por seu comportamento, os jovens se

tornam aptos a passar para o regime de liberdade assistida, retornando às suas

famílias, com o acompanhamento de um supervisor, é que lhes é oferecida a

oportunidade de ingressar no Programa de Justiça Terapêutica.

Na verdade, o benefício legal do regime de liberdade assistida significa que

a justiça acredita na recuperação daquele jovem e isso pode justificar sua inserção

no Programa, como explica a promotora:

Um menino do tráfico, em um programa destes é

um veneno, por que ele pode levar o adolescente que

está lá para um outro mundo, então primeiro ele têm que

se afastar deste mundo que é pernicioso, ter um

distanciamento para a gente ter certeza de que ele vai se

envolver com o programa. O programa exige não só

disponibilidade do adolescente, mas a consciência de que

ele tem que sair, ele têm que deixar o mundo das drogas

como um todo, seja ele traficante ou usuário.

É preciso esclarecer que a inclusão no Programa, nesses casos, não implica

a remissão do processo. Na verdade, legalmente, esses jovens se encontram em

regime de liberdade assistida. A diferença é que, uma vez no Programa, a equipe

técnica passa a desempenhar as funções que caberiam ao supervisor do jovem,

isto é, orientar e fiscalizar seu comportamento, verificando sua freqüência e

aproveitamento escolar, além de procurar viabilizar sua inserção no mercado de

trabalho.

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34

Para os jovens, essa inclusão significa, fundamentalmente, a possibilidade

de se livrar da unidade sócio-educativa. Os entrevistados pareciam desconhecer a

alternativa do regime de liberdade assistida, como se pode perceber através do

seguintes depoimentos:

...quis entrar no programa porque a juíza mandou,

se eu não viesse para cá eu iria para o Padre13.

A juíza me mandou escolher, ou eu seria presa, ou

iria para uma clinica de recuperação, eu fiz um

escândalo, falei que não iria para nenhum dos dois, e a

juíza falou que quem mandava era ela. Neste momento

minha mãe já tinha assinado o documento de entrada no

programa e eu não tinha visto, minha mãe não tinha

falado nada comigo. Aí a juíza falou que agora eu era

obrigada a ir, se eu não fosse iriam me mandar um

mandado de busca.

Me perguntaram na audiência se eu preferia voltar

para o Padre Severino ou cumprir a pena em uma

clinica de recuperação. Eu escolhi cumprir em uma

clinica de recuperação.

Em São Gonçalo, o medo de ser internado em uma das unidades do

DEGASE destaca-se como o principal motivo para que os jovens aceitam entrar no

Programa, pelo fato de já terem passado por essa experiência.

As condições reconhecidamente precárias e as dificuldades com o corpo

de funcionários justificam que essas unidades sejam vistas pelos jovens como

verdadeiras prisões, conforme afirma um entrevistado:

13 Instituto Padre Severino, unidade de triagem do DEGASE, localizada na Ilha do Governador.

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35

Achei melhor ir para o Programa porque estava

sofrendo muito na prisão

Outro fator apontado como motivo para a aceitação do Programa nas

outras varas, é a possibilidade de terem sua “ficha limpa” ao fim do tratamento, o

que não aconteceria se eles respondessem ao processo.

Para os jovens, a inserção no Programa não é vista como uma solução

negociada, que, em princípio deveria caracterizar esse tipo de justiça, e sim como

uma imposição, de que não podem discordar sob pena de irem “presos”. Essa

visão não se deve à atuação especial dos operadores de alguma Vara específica,

verificando-se nas duas Varas que tiveram jovens entrevistados. Um dos jovens da

Segundo Vara do Rio de Janeiro declarou:

era o único jeito que tinha só podia ficar aqui, não

podia ser liberado.

Por outro lado, a participação do responsável nessa decisão também não

se caracteriza como verdadeira negociação, pois, nas audiências, as mães – que

são maioria esmagadora entre os responsáveis – sofrem vários tipos de

constrangimento, que acentuam seu compreensível sentimento de culpa diante do

que aparece como fracasso na educação de seus filhos. Além disso, sua condição

social precária, espelhada nas roupas e modo de falar, as coloca em situação de

extrema desigualdade diante das autoridades do Programa, sejam as da esfera

jurídica, sejam as da esfera terapêutica.

A flagrante ausência de pais nas audiências está ligada a diversos fatores,

destacando-se as relações de gênero, que enfatizam a responsabilidade feminina

no acompanhamento dos problemas relativos à prole, e o significativo número de

famílias geridas por mulheres sozinhas. É importante registrar que essa ausência é

vista pelos operadores do Programa como elemento propiciador da delinqüência e

da reincidência, o que reitera a tradicional imagem do pai como provedor e protetor

da família, embora a realidade sócio-econômica venha modificando esse papel.

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36

Todos os jovens entrevistados vinham cumprindo as exigências do

Programa, comparecendo às seções de terapia individual e/ou em grupo e às

outras atividades oferecidas, e muitos ressaltaram que o apoio dos psicólogos era

importante para ajudá-los a abandonar as drogas. Nesse contexto, o teste de urina

é visto, às vezes, como um instrumento legítimo e eficaz de controle, como se pode

depreender desses depoimentos:

Achei que fazer o teste seria um jeito de me fazer

parar.

Achei legal fazer o teste pois, não poderiam confiar

só na nossa palavra.

Para os jovens de São Gonçalo, que freqüentam diariamente o IPHEM e o

GEAL/UFF, as atividades desportivas e o encontro com amigos também

constituem um motivo para o comparecimento ao Programa, mas, de modo geral,

todos se sentem constrangidos a cumprir as exigências. Um dos jovens afirmou

que a ameaça de ser entregue ao juiz era o principal motivo para que ele não

faltasse às atividades. Outro declarou :

...acho que se eu deixar de vir aqui (IPHEM e

GEAL/UFF) eles mandam a polícia ir lá em casa.

Embora, nas entrevistas, os jovens reconheçam pontos positivos no

Programa (parar de usar drogas, fazer amigos, gostar de conversar com os

psicólogos), afirmando que, se não tivessem ingressado nele, teriam entrado para

a “vida do crime”, todos apontam como principal motivo de seu ingresso o medo de

serem presos e a possibilidade de permanecer com a “ficha limpa”. Esses foram

também os principais motivos para quererem parar com o uso de drogas.

Alguns, porém, colocaram em dúvida a eficácia do Programa, como nos

mostra o depoimento de um jovem da Segunda Vara da Infância e da Juventude:

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37

Eu não queria estar aqui não, não vou falar que

enche o saco, mas não adianta de nada não, sou

sincero, é mais pela pessoa. Isso ajuda, mas acho

que não vale a pena, mudar depende da iniciativa

da gente.

Quando perguntados sobre o que iria mudar em sua vida ao sair do

Programa, as respostas se dividiram. Alguns mostraram acreditar na mudança

como decorrência de sua inserção no Programa:

Minha vida vai mudar, pois entrei fumando

maconha, mas agora vou estudar e trabalhar.

quando eu ficava, relaxado, era a melhor coisa

que tinha. Agora eu vejo que é maior atraso de

vida. Não leva a nada, só me trazia prejuízo.

Outros jovens reafirmaram a escolha pessoal como o fator preponderante:

Não adianta não, pode colocar psicólogo para

falar com você, se não tomar a decisão por si

mesmo não adianta.

Para os jovens entrevistados, as drogas são associadas ao prazer

momentâneo, por deixá-los tranqüilos, relaxados, alegres, rindo à toa. Essa visão

contrasta com a apresentada pelo Programa, que considera o uso de drogas um

“atraso de vida”, por impedir que os jovens estudem e trabalhem.

A dimensão do prazer, associada à idéia de uso de drogas como uma

forma de inserção social nos grupos de jovens, que marca os mecanismos de

construção de identidade dos jovens, é apontada pelos operadores do Programa

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38

como causadora de atitudes anti-sociais e desviantes. Isso torna necessário todo

um trabalho de convencimento por parte da equipe técnica, para que esses jovens

mudem a percepção que têm do papel do uso de drogas em suas vidas e desejem

efetivamente abandoná-lo.

Conclusão

Ao serem transplantados para o Brasil, dando origem ao Programa de

Justiça Terapêutica, os Tribunais para Dependentes Químicos (Drug Courts) norte-

americanos sofreram significativas mudanças em seus procedimentos, decorrentes

da influência de uma cultura jurídica diferente da que lhes deu origem.

Enquanto, nos Estados Unidos, o sistema jurídico é legitimado por uma

suposta origem popular, no Brasil, a justiça se apresenta, segundo uma tradição

iluminista, como fruto da reflexão de uma elite, adequando-se a uma sociedade

excludente, em que a igualdade formal perante a lei – tal como existe nos EUA –

apesar de garantida constitucionalmente, não se efetiva de fato.

Assim, no Brasil, ao contrário de que ocorre na sociedade norte-americana,

a explicitação dos conflitos sociais não é estimulada, sendo vista como ameaça à

ordem pública. A verdade produzida no campo jurídico não é, portanto, concebida

como fruto de negociação entre um grupo localizado e determinado, e sim como

algo imposto pelos que detém a autoridade e o conhecimento técnico necessários

para desvendá-la. Nesse sistema jurídico, de tradição inquisitorial, o Estado exerce

papel de mediador das diferenças de interesse e as leis tendem a ser vistas como

constrangimentos externos aos indivíduos.

Isso explica porque certos dispositivos jurídicos, originalmente

universalistas e igualitários, terminam por serem aplicados de maneira impositiva,

conforme interpretação do grupo que detém o controle do aparato jurídico, como

ocorre no Programa de Justiça Terapêutica do Estado do Rio de Janeiro, em que

procedimentos característicos Drugs Courts norte-americanas, como a transação e

a negociação, adquirem um sentido diferente.

Nesse quadro, os jovens não percebem sua inserção no Programa como

uma solução negociada e sim como uma imposição, da qual não podem discordar,

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sob pena de irem “presos”, isto é, serem submetidos às medidas sócio-educativas

administradas pelo DEGASE. O medo da internação e a possibilidade de

permanecerem com a “ficha limpa”, pela suspensão de seu processo, são

apontados pelos jovens como principal motivo de seu ingresso.

Por outro lado, os operadores do Programa tentam “criar uma demanda”

por parte dos jovens, isto é, fazê-los desejar abandonar a droga e mudar de vida,

através da interiorização de valores e regras. Entre os valores considerados

fundamentais para garantir o afastamento efetivo do “mundo do crime", figura o

trabalho, considerado meio essencial para a recuperação definitiva desses jovens.

Dessa forma, os responsáveis pela aplicação do Programa de Justiça Terapêutica

do Estado do Rio de Janeiro repetem princípios que, desde há muito, norteiam o

tratamento dispensado aos jovens, infratores ou não, das camadas pobres na

sociedade brasileira.

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