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UNIVERSIDADE FEDERAL DA FRONTEIRA SUL CAMPUS ERECHIM MOVIMENTOS E ORGANIZAÇÕES SOCIAIS DO MUNICÍPIO DE ERECHIM: uma caracterização exploratória Acadêmica Matildes Regina Pizzio Tomasi Prof. Dr. Cassio Cunha Soares (orientador) Relatório Final de Pesquisa (PIBIC/2011) Erechim 2012

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA FRONTEIRA SUL CAMPUS ERECHIM

    MOVIMENTOS E ORGANIZAES SOCIAIS DO MUNICPIO DE ERECHIM: uma caracterizao exploratria

    Acadmica Matildes Regina Pizzio Tomasi Prof. Dr. Cassio Cunha Soares (orientador)

    Relatrio Final de Pesquisa (PIBIC/2011)

    Erechim 2012

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    MATILDES REGINA PIZZIO TOMASI DR. CASSIO CUNHA SOARES (ORIENTADOR)

    MOVIMENTOS E ORGANIZAES SOCIAIS DO MUNICPIO DE ERECHIM: uma caracterizao exploratria

    Relatrio final apresentando os resultados do projeto intitulado Auto-organizao popular, sociabilidades emergentes e movimentos sociais aprovado no edital 103/UFFS/2011, para avaliao pelo comit assessor de pesquisa da UFFS.

    Orientador: Dr. Cassio Cunha Soares Grupo de pesquisa Anticapitalismos e Sociabilidades Emergentes (GPASE) Linha de pesquisa: Autoorganizao popular e movimentos sociais

    Erechim 2012

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    RESUMO:

    O presente trabalho consiste no relatrio final do projeto de pesquisa Auto-organizao popular, sociabilidades emergentes e movimentos sociais (PIBIC/UFFS/2011). Busca contribuir com a compreenso da matriz formativa e a caracterizao preliminar dos movimentos e lutas sociais existentes no municpio de Erechim/RS atravs de um exploratrio mapeamento de organizaes, coletivos e movimentos da sociedade civil local existentes atualmente. A pesquisa, embora se assente na coleta de dados extrados a partir de notcias de rgos de comunicao regionais e fontes originrias de agncias pblicas do municpio, orientadas pela anlise do material bibliogrfico existente sobre o assunto, se fundamenta em uma leitura diacrnica do processo, situando como principal marco histrico de anlise o perodo da redemocratizao brasileira (ps-1989), sem se desvincular de elementos da histria regional que apontam para a correlao entre a constituio de muitos desses citados movimentos sociais e o prprio processo de formao histrico-social e cultural da regio do Alto Uruguai.

    PALAVRAS-CHAVE: movimentos sociais, organizaes sociais, lutas sociais, Erechim/RS.

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    SUMRIO:

    Resumo 3

    1. Introduo 5

    2. Objetivos 9 3. Metodologia 10

    4. Resultados 11

    4.1. Movimentos, lutas e organizaes sociais 11

    4.1.1 Aproximaes tericas 11

    4.1.2. Tenses e descontinuidades entre o social e o popular 15

    4.1.3. Sociabilidades emergentes e autoorganizao popular 16

    4.2. Formao histrica e socioterritorial da Regio do Alto Uruguai 18

    4.3. Notas sobre a formao do capitalismo na regio do Alto Uruguai 23

    4.4. Formao da agricultura de base familiar e camponesa na regio 26

    4.5. Resistncias populares e organizaes sociais 32

    4.5.1 MASTER 32

    4.5.2. MST 34

    4.5.3. Sindicalismos 34

    4.5.3.1. Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura Familiar do Alto Uruguai (SUTRAF-AU)

    38

    4.5.4. Os setores progressistas da Igreja Catlica 38 4.5.5. Centro de Apoio aos Pequenos Agricultores (CAPA) 40 4.5.6. Centro de Educao Popular (CEPO) 41 4.5.7. Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) 42 4.6. guisa de concluso: caracterizao preliminar e exploratria dos movimentos, organizaes e lutas sociais no municpio de Erechim

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    5. Referncias Bibliogrficas 48

    6. Anexo 51

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    1. INTRODUO:

    Esta pesquisa surgiu luz da experincia acumulada junto ao Grupo de Trabalho Anticapitalismos & Sociabilidades Emergentes, do Conselho Latinoamericano de Cincias Sociais (CLACSO), grupo que rene 17 pesquisadores de ps-graduao de 7 pases latinoamericanos (Cuba, Argentina, Mxico, Brasil, Guatemala, Nicargua e Venezuela). Simultaneamente, se inseriu academicamente na UFFS atravs da criao do grupo de pesquisa Anticapitalismos e Sociabilidades

    Emergentes - GPASE, promovendo a linha de investigao Autoorganizao popular, sociabilidades emergentes e movimentos sociais.

    Ao redor do conceito de sociabilidades emergentes (categoria coletiva auto-elaborada ao longo dos trabalhos do GT ACySE/CLACSO), buscamos interpretar um conjunto de novos processos e dinmicas protagonizados por atores inseridos no bojo de diversos movimentos e processos sociais, que traduzem certas modalidades de

    (re)criao de laos, vnculos e relaes sociais baseados nos princpios e prticas da horizontalidade, do apoio mtuo, da solidariedade, da apropriao do valor de uso, da

    cooperao, da autoorganizao, da tolerncia, do igualitarismo e da liberdade, conduzidos potencialmente na direo da reconstituio de experincias sociais e/ou comunitrias que negam ou problematizam a lgica de reproduo do mundo material e imaginrio segundo os princpios hegemnicos da mercantilizao/instrumentalizao

    capitalista. Esta proposta se situa no marco de um rico processo colaborativo de construo terica promovido por investigadores latinoamericanos inseridos no

    CLACSO. Vale acrescentar que tais investigadores, no entanto, refletem a partir de um topos ou de uma coordenada muito particular: do imbricamento entre a experincia intelectual/acadmica e a prtica ativista/militante (certamente nas proximidades daquilo que Maristela Swampa denomina hoje como intelectuais anfbios, outrora intelctuais orgnicos ou engajados, se remetemos estes termos a suas respectivas simbologias e sedimentaes histricas).

    O projeto se pautava, como consta em seus objetivos gerais e especficos (ver abaixo), pelo desejo de realizar um ambicioso mapeamento dos principais movimentos sociais da regio do Alto Uruguai, culminando em uma caracterizao minuciosa dos

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    mesmos e em um posterior experimento qualitativo de acompanhamento de um ou dois

    casos exemplares, naquilo que poderiam sinalizar como arranjo autoorganizativo que apontasse para elementos do que denominamos teoricamente como sociabilidades

    emergentes. A pesquisa parecia idealmente factvel e executvel, e seus resultados, no somente endossaria a UFFS como instituio promotora de canais de dilogo privilegiado com os movimentos sociais da regio (reiterando sua genealgica vocao), como pretendia situar nossa instituio no circuito latinoamericano de reflexes e discusses no campo das cincias sociais com uma agenda capaz de reunir pesquisa e ativismo.

    Lamentavelmente, subestimamos nossa capacidade de mobilizar recursos,

    informaes, meios materiais e tempo para cumprir integralmente essa ambiciosa meta. Avaliando nesse momento, com um certo distanciamento, um projeto dessa natureza poderia muito bem figurar, com a devida calibragem terico-metodolgica, em uma instigante tese de doutorado. Mas no foi o caso. Passemos, portanto, descrio e

    apresentao dos procedimentos dessa investigao e dos seus resultados. Este trabalho consiste em um esforo exploratrio de caracterizao dos

    movimentos e organizaes sociais atualmente existentes no municpio de Erechim/RS. Tratando-se de um projeto de iniciao cientfica, ou seja, de introduzir a estudante no complexo universo da investigao social, com todas suas implicaes, nos vimos impelidos a mudar a escala: da regio do Alto Uruguai para Erechim. Claro que,

    Erechim, por se situar em referida regio, e por sua importncia econmica, cultural e poltica, no deixa de ser um cenrio importante de onde se pode inferir tendncias regionais em curso, no duplo movimento de estimular processos e ser a resultante deles.

    Tal levantamento e caracterizao, embora assentado na coleta de dados

    extrados a partir de notcias de rgos de comunicao regionais e fontes originrias de agncias pblicas do municpio, foi densamento precedido e orientado pela anlise de

    material bibliogrfico existente sobre o assunto, e se fundamentou em uma leitura diacrnica do processo formativo da vida associativa e poltica local, situando como principal marco histrico de anlise o perodo da redemocratizao brasileira (ps-1985), sem se desvincular, porm, de elementos da histria regional que apontam para a correlao entre a constituio de muitos desses citados movimentos sociais e o prprio processo de formao histrico-social e cultural da regio do Alto Uruguai.

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    Considerando que a pesquisadora bolsista acadmica do curso de histria, o

    levantamento, estudo e debate das fontes foi a etapa da pesquisa na qual mais nos detivemos, e onde qualitativamente a estudante melhor demonstrou sua capacidade e

    talento intelectual.

    A etapa de coleta de dados dos movimentos e organizaes sociais do municpio de Erechim, vale dizer, contou com o apoio solidrio (e errtico) de estudantes voluntrios reunidos em torno do GPASE: Vinicius Fruscalso, Sian Alegre e Anglica Rossi. Foram registradas mais de uma centena de organizaes da sociedade civil local. Novamente, as dificuldades de pessoal exclusivo para a pesquisa, bem como recursos, nos impediu de realizar entrevistas que pudessem caracterizar

    minuciosamente o perfil dessas organizaes. O que conseguimos, no entanto, no desprezvel: uma relao atualizada com contatos e endereos, para futuras incurses e

    projetos. Do registro foi possvel tecer algumas consideraes exploratrias sobre tais organizaes, bem como situ-las no campo das principais demandas sociais que

    representam. Simultaneamente, organizamos durante o perodo de vigncia do projeto um clipping com as principais notcias veculadas nos meios de comunicao da cidade (em sua verso digital) sobre movimentos, organizaes e lutas sociais, que tambm amparou parte de nossa caracterizao aqui apresentada.

    O desenvolvimento da pesquisa, que consta no item Resultados deste relatrio (pg.X), est estruturado da seguinte maneira: O primeiro captulo, Movimentos, lutas e organizaes sociais: aproximaes tericas, arquitetado em trs sees, tenta apresentar um breve e sinttico panorma das teorias/paradigmas mobilizados para estudar os movimentos sociais, elucidando os principais conceitos com os quais operamos nossas discusses e anlises. Com o segundo captulo,

    Formao histrica e scioterritorial da Regio do Alto Uruguai, pretendemos situar histrica e territorialmente as condies sob as quais emergiram os movimentos e lutas

    sociais na regio, e por isso sua ligao orgnica com o captulo 3, Notas sobre a formao do capitalismo na regio do Alto Uruguai, ao considerarmos a constituio de muitos desses movimentos pela chave analtica da resistncia popular. Com o captulo 4, Formao da agricultura de base familiar e camponesa na regio,

    contextualizamos os elementos que definem uma dimenso importante da atividade econmica regional e suas implicaes em termos de desdobramentos na morfologia

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    scio-cultural, cujo principal signo o seu lugar tanto na bandeira de luta dos movimentos mais expressivos quanto na agenda governamental nos ltimos anos. O captulo 5, Resistncias populares e organizaes sociais, visa dar conta do complexo leque de movimentos histricos que teceram as vias sob as quais se desenvolveu a identidade dos movimento populares e a prpria sociedade civil na regio. E por finalizamos com o captulo 6, guisa de concluso: caracterizao preliminar e exploratria dos movimentos, organizaes e lutas sociais no municpio de Erechim, onde apresentamos os resultados da coleta e registro de informaes sobre as organizaes sociais existentes no municpio, com uma breve anlise sobre seu perfil e sua insero nas lutas sociais.

    Para finalizar consideramos que, sob as condies mencionadas e os erros de percurso, foi extremamente rico, alentador e pedaggico o processo de construo da

    pesquisa na prtica. Tanto pela sua dimenso formativa (onde se incluem professor e aluno - juntos), quanto pelos potenciais desdobramentos que o resultado aponta, ao alimentar trabalhos dotados de orgnica continuidade.

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    2. OBJETIVOS:

    Investigar, atravs das prticas e representaes dos movimentos sociais organizados que atuam na regio do Alto Uruguai, os obstculos e potenciais para o

    aprofundamento da prxis democrtica, autogestionria e participativa, e mapear as tendncias existentes em curso, relacionadas a estes mesmos movimentos, que sinalizam para a emergncia de processos de autoorganizao no mundo popular.

    Objetivos especficos:

    1. Mapear e caracterizar os movimentos sociais organizados que atuam na regio do Alto Uruguai.

    2. Introduzir o estudante/bolsista na discusso mais recente sobre a bibliografia latinoamericana que trata do tema.

    3. Possibilitar ao estudante/bolsista acesso s investigaes atualmente em curso por parte dos pesquisadores do GT Anticapitalismos & Sociabilidades Emergentes, de

    CLACSO, de modo a inici-lo no campo das reflexes mais contemporneas das cincias sociais da Amrica Latina. 4. Promover o intercmbio e a troca de informaes entre professores, estudantes da

    UFFS e pesquisadores latinoamericanos, visando futuras conexes e atividades internacionais.

    5. Problematizar e estimular a reflexo sobre as interfaces entre investigao e ativismo poltico.

    Obs.: Preservamos ipsis litteris os objetivos originais do projeto. No deixa de ser curioso observar que, mesmo no sendo alcanado o objetivo geral, por razes apontadas na introduo, todos os objetivos especficos foram desenvolvidos (com destaque para o primeiro, em outra escala e profundidade)

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    3. METODOLOGIA:

    Inicialmente a pesquisa foi ancorada ao redor do crculo de leituras e reflexes organizado pelo GPASE (envolvendo vrios dos seus integrantes), onde se cotejou selees e recortes da bibliografia sobre autoorganizao popular e sociabilidades

    emergentes, realizando assim a ponte com as investigaes mais relevantes do citado GT ACySE do CLACSO. A partir dessas atividades tericas, a estudante bolsista foi orientada a produzir pequenos textos, preparando-se assim para a familiarizao com a

    linguagem textual acadmica. Todos os textos elaborados foram publicados no blogue mantido pelo GPASE: .

    Como parte da ambientao terica, tambm estimulamos o contato do nosso grupo de estudantes com membros do GT ACySE do CLACSO, atravs da oportunizao de sua participao no mbito da II Reunio Internacional do GT Anticapitalismos & Sociabilidades Emergentes realizada em novembro de 2011, na

    Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), municpio de Guararema/SP. A etapa seguinte consistiu no levantamento e sistematizao das fontes

    bibliogrficas que tratam sobre a formao histrico-social e territorial da regio do Alto Uruguai, com nfase no municpio de Erechim/RS, bem como sobre os movimentos, organizaes e lutas sociais da regio. Positiva foi a descoberta de uma literatura produzida localmente por muitos agentes que de modo direto ou indireto

    tomaram parte na formao dos prprios movimentos sociais. Toda essa bibliografia foi analisada e debatida atravs de reunies orientadas e seminrios, que tambm resultou

    em snteses e notas textuais.

    A ltima etapa foi dirigida para a coleta e registro das organizaes sociais com presena no municpio de Erechim, atravs da pesquisa eletrnica na internet e em

    documentos de agncias pblicas, organizaes civis e meios de comunicao local. Desse processo resultou a elaborao de um pr-catlogo das organizaes sociais de

    Erechim, bem como um clipping focado nas mobilizaes sociais cobrindo eventos do ano de 2011 e 2012 (em anexo, gravado em disco). Esse material emprico subsidiou as consideraes e a caracterizao exploratrias apresentadas no presente relatrio.

    Tal metodologia aqui descrita e seguida foi adaptada a partir de razes justificadas anteriormente.

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    4. RESULTADOS:

    Movimentos e Organizaes Sociais do Municpio de Erechim: uma caracterizao exploratria

    4.1. Movimentos, lutas e organizaes sociais 4.1.1 Aproximaes tericas

    O estudo sociolgico sobre os movimentos sociais se confunde com a prpria histria disciplinar da sociologia enquanto campo autnomo do conhecimento. Muitas vezes, subsumidas nas reflexes e debates sobre mudana e reproduo social, as anlises e interpretaes sobre processos sociais organizados ou espontneos que culminaram em resistncia ou inovao cultural, poltica, econmica e social

    conduziram a prpria razo de ser da moderna cincia social. Porm, h de se reconhecer a formao de escolas e correntes de pensamento

    que, de algum modo, fundamentaram o que podemos chamar de uma sociologia dos movimentos sociais ou das aes coletivas (ALEXANDER, 1998; DAGNINO & ESCOBAR, 2000; GOIRAND, 2009; ALONSO, 2009; GOHN, 2010). Tais genealogias podem ser cotejadas a partir de diferentes critrios normativos e epistemolgicos que orientaram paradigmas diversos. GOHN compila esses paradigmas a partir de uma forma de organizao que relativamente tradicional nas cincias sociais, cruzando aspectos geopolticos e temporais: paradigmas norte-americanos e europeus, clssicos e contemporneos. Se geopoliticamente tais divises apontam para a adoo de premissas/filosofias de fundo como o pragmatismo, o neofuncionalismo, o

    individualismo metodolgico, o culturalismo, o holismo metodolgico, etc, do ponto de vista sciotemporal o que parece estar em jogo o lugar da questo da classe e da revoluo (transitando dos movimentos operrios e de trabalhadores para movimentos da sociedade civil).

    Os principais estudos sobre movimentos sociais latinoamericanos ao longo das dcadas de 1970, 1980 e 1990 foram fundamentalmente influenciados por variantes gramscianas do marxismo e pelo paradigma europeu (como as teorias dos novos movimentos sociais, especialmente nas leituras de Touraine e Melucci). No entanto,

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    segundo GOHN, o estudo sobre os movimentos sociais latinoamericanos aqui

    desenvolvidos se caracterizaram por sua escassa sistematizao terica, alimentando sobretudo produes de carter histrico-descritivo. Segundo essa autora, os intelectuais

    latinoamericanos estavam mais preocupados em dirigir suas energias para legitimar a oposio ao regime militar e promover o processo de redemocratizao, e nesse sentido orientaram grande parte de sua produo terica sobre os movimentos sociais. GOHN busca organizar e sugerir elementos, na prtica sem muito sucesso, para salientar a constituio de um suposto paradigma latinoamericano. Mas para alm de uma opo unilateral entre uma e outra perspectiva (inclusve a terceira, latinoamericana), no deixa de ser interessante a atitude pluralista de muitos pesquisadores latinoamericanos que buscam compreender e analisar os desdobramentos dos debates entre tais paradigmas e, nesse cruzamento de abordagens, situar tais teorias

    em novas coordenadas, ao ponto, inclusive, de subverter muitas de suas premissas (MANEIRO, 2007). Ao mesmo, no podemos deixar de sinalizar tambm para a existncia de leituras descolonizadoras radicais que buscam levar s ltimas consequncias a crtica epistemolgica a esses paradigmas, apontando para possveis snteses, reprogramaes ou recriaes tericas situacionais (FLOREZ-FLOREZ, 2007).

    Para fins desta modesta pesquisa, consideraremos os seguintes parmetros histricos e sociais, muitos deles sugeridos por GOHN (2010: pgs. 227-240), para fundamentar um conceito de movimento social vlido para compreender o repertrio de aes coletivas constitutivo da sociedade brasileira contempornea, fixando como marco sciotemporal de referncia o processo de redemocratizao: a) existncia de uma grande diversidade de agentes sociais como protagonistas (no exclusivamente das classes subalternas); b) ao coletiva orientada pela prtica/forma de fazer poltica com vistas crtica e superao das relaes sociais tipificadas pelo populismo/clientelismo;

    c) hegemonia dos movimentos populares ante movimentos de outro tipo (como os identitrios e/ou de minorias); d) papel proativo de setores considerados progressistas da igreja catlica; e) suporte financeiro e organizativo de ONGs financiadas com recursos internacionais; f) pr-existncia da questo indgena e especificidade da questo racial; g) relaes polticas complexas com o Estado; h) papel organizativo e mobilizador das ideologias polticas e partidos; i) forte extrao de gnero (protagonismo muitas vezes

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    escamoteado das mulheres); j) existncia de uma rede de intelectuais e assessores apoiadores; l) coexistncia do novo e velho sindicalismo; e m) centralidade (ainda que ignorada) da questo agrria.

    Se tais elementos acima elencados so importantes para conformar um conceito de movimento social que responda s especificidades da formao histrico social brasileira mais recente, por sua vez necessrio delimitar alguns desses aspectos que respondem por caractersticas mais genealgicas dos movimentos, comparando com seus desenvolvimentos ulteriores. Nessa dimenso, podemos destacar as seguintes consideraes com vistas ao que foi anunciado acima: c) por movimentos populares se considera, na literatura brasileira, aqueles movimentos, em sua maioria urbanos,

    orientados pela superao de situaes de precariedade material (equipamentos pblicos de sade, educao, por habitao, contra a carestia, etc). Alm do bvio problema do recorte urbano do popular, tais movimentos entraram em refluxo nos anos 1990; d) a comunidade eclesistica catlica, luz da teologia da libertao, exerceu um papel

    inquestionvel no processo de constituio de muitos movimentos, porm, esse ativismo religioso saiu de cena nos anos 1990 - o que no significa o total esgotamento do ativismo social catlico; e) com os processos de pacificao das guerrilhas centroamericanas e a derrocada do socialismo real no leste europeu, a maior parte das

    ONGs que atuavam na Amrica Latina foram descapitalizadas e se viram foradas a buscar mecanismos endgenos de financiamento, mais uma vez nos anos 1990; g) se nos anos 1970 e 1980 os movimentos sociais brasileiros construram boa parte do discurso de mobilizao apoiados na oposio e ideia de autonomia em relao ao Estado, o que se seguiu foi um complicado processo de institucionalizao (ou mais precisamente, constitucionalizao) dos conflitos sociais, culminando com uma progressiva incorporao da agenda e quadros dos movimentos no aparelho de Estado; e h) ainda que as ideologias atualmente no mais se expressem visivelmente em termos de oposio capitalismo x socialismo, as ressignificaes (de vrios matizes) entre esquerda e direita continuam presentes e pautam os projetos polticos, bem como a ligao com os partidos, bancadas parlamentares e governos.

    A partir dessas consideraes, GOHN apresenta a seguinte definio de

    movimentos sociais: so aes sociopolticas construdas por atores sociais coletivos pertencentes a diferentes classes e camadas sociais, articuladas em certos cenrios de

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    conjuntura socioeconmica e poltica de um pas, criando um campo poltico de fora social na sociedade civil. As aes se estruturam a partir de repertrios criados sobre temas e problemas em conflitos, litgios e disputas vivenciados pelo grupo na sociedade. (2010: pg. 251)

    Comparativamente, podemos analisar as afinidades com a concepo de ALEXANDER (que por sua vez se aproxima muito das ltimas leituras de Touraine):

    O termo movimentos sociais diz respeito aos processos no institucionalizados e aos grupos que os desencadeiam, s lutas polticas, s organizaes e discursos dos lderes e seguidores que se formaram com a finalidade de mudar, de modo freqentemente radical, a distribuio vigente das recompensas e sanes sociais, as formas de interao individual e os grandes ideais culturais (1998: pg. 6).

    Das construes conceituais acima, podemos destacar pelo menos trs de suas caractersticas constitutivas com as quais iremos operar: a) se fundamenta e manifesta como ao coletiva; b) se materializa atravs de um coletivo social que compartilha elementos de uma identidade comum, ou pelo menos, afinidades scioculturais em alguma escala; e c) se realiza por excelncia em um lugar, esfera ou espao no-institucionalizado, ainda que no esteja restrito a ele.

    Apesar de se confundir com as prprias lutas sociais, movimentos so processos que invariavelmente mobilizam ou se realizam atravs de organizaes sociais, ainda

    que no necessariamente dependam delas, em seu sentido mais formal, para existirem. importante estarmos atentos para as complexas triangulaes possveis entre movimento, luta e organizao social, em suas variadas formas de manifestao e entrelaamento, que no necessariamente se orienta por uma linearidade lgica e

    intercalada, podendo se apresentar simultaneamente, inclusive como aspectos de um mesmo processo social em diferentes escalas e dimenses. Porm isso no significa que

    devamos reproduzir vcio fetichista (em geral praticado por governos corporativistas e gestores tecnocrticos) de correlacionar rgida e diretamente movimento e organizao social como uma nica e mesma coisa, fazendo da luta social o modo de ao automtico do movimento.

    certo que a ao coletiva de um movimento se traduz em lutas na gramtica social. Mas as lutas podem e devem ser vistas tambm em uma perspectiva mais ampla e de longa durao (VAKALOULIS apud CICERO, 2010: pg.3), como as lutas

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    nacionais e anticoloniais, as lutas das classes trabalhadoras, as lutas ambientais, as lutas

    agrrias, etc, aglutinando constelaes de movimentos que por sua vez aglutinam constelaes de organizaes.

    4.1.2. Tenses e descontinuidades entre o social e o popular

    Outra clivagem ou diferenciao oportuna a se fazer sobre os movimentos sociais aquela relativa a sua extrao popular. Ainda que todo movimento popular seja social, o inverso no necessariamente verdadeiro. E para atribuir sentido apropriado ao termo, importante salientar o que entendemos por popular.

    No campo discursivo dos movimentos sociais comum a sua auto-atribuio como popular, na perspectiva quase automtica de prov-los de legitimidade social.

    Popular, como derivado do povo, nesses casos transita entre aquilo que no Estado, em oposio aos que governam, at os subalternos e oprimidos em geral. No primeiro

    caso, comum inclusive a apropriao multiclassista (ou anticlassista) da noo de povo na sua acepo ingnua (e liberal) como sociedade civil em oposio a sociedade poltica. O popular o que quer se projetar como governo (ou no governo), e s oposio circunstncial ao Estado (assim como condio sine qua non para a existncia do mesmo). No segundo caso, temos construes discursivas mais complexas, pois podem se referir a pelo menos trs realidades (no necessariamente excludentes): a) o popular como classe social os trabalhadores; b) o popular como indivduos (de classes e fraes de classes) inseridos em estruturas de privaes materiais e simblicas de vrias ordens; e c) o popular como comunidade materializada socioespacialmente de forma segregada a periferia.

    Para os efeitos dessa pesquisa, tomaremos por popular os movimentos, organizaes e lutas sociais em sintonia com o segundo caso explicitado acima, ainda

    que movimentos, organizaes e lutas sociais no necessariamente so populares em

    estado puro, podendo assumir diferentes e contraditrios matizes, que devem ser analisados e avaliados em cada contexto e situao.

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    4.1.3. Sociabilidades emergentes e autoorganizao popular

    Muitos estudos contemporneos sobre os movimentos sociais tm se debruado sobre o potencial dos mesmos em promover a ativao da esfera pblica e a

    democratizao da relao Estado-Sociedade (at onde a mesma possvel no marco das relaes de produo e reproduo de uma sociedade capitalista, e/ou da existncia do prprio Estado como organismo autonomizado e exterior sociedade civil). Mas no bojo deste importante e interminvel debate, escassas e/ou invisibilizadas tm sido as anlises que buscam compreender estas dinmicas democrticas radicais no interior dos prprios movimentos sociais, naquilo que elas apresentam de grmen ou potencial

    criativo para a instituio de novos mundos possveis (no sentido, por exemplo, que Marx atribua praxis da Comuna de Paris como ante-sala da emancipao). A compreenso dos limites, contradies e potencialidades dos processos de (re)criao de laos e vnculos sociais no interior dos movimentos sociais contemporneos, na perspectiva da construo de relaes internas coletivas, participativas, autogeridas, auto-reflexivas, em suma, autnomas, para falar nos termos de Castoriadis, o

    horizonte que anima esta investigao, que realiza a opo por interpretar a democracia como algo alm das fetichizaes procedimentalistas, por isso, buscando identificar sim

    o que poderamos chamar de o contedo da democracia no mbito das relaes sociais mais elementares, quais sejam, as sociabilidades, entendidas como arranjos interativos (e portanto, organizacionais) e representaes de coletividades (ou ordens morais/sociais).

    Nesta condio, tambm nos situamos em um espao de reflexo motivado pela ideia de compreender e situar os sentidos, atributos e dimenses da ao social e poltica

    canalizada pelos movimentos sociais para alm dos Estados e dos partidos polticos como representaes exclusivas e quase monoplicas do discurso e da prtica da mudana social coletivamente orientada.

    Ao enfatizar os novos elementos destas prticas e representaes sociais

    emergentes (em consonncia com as recentes perspectivas descolonizadoras que florescem nas cincias sociais) nos aproximamos de uma atitude que rene poltica e epistemologia. Nos inscrevemos tambm no mbito da crtica que visa superar a crena atual da carcomida teoria democrtica que aponta solues para o dfict de democracia

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    e justia em nossas sociedades como questo de exclusiva engenharia institucional. Isto no significa rejeio a processos institucionais e constituintes que esto se produzindo em alguns casos nacionais (como Bolvia e Equador) a partir da incluso de demandas que transcendem as formas tradicionais de nao e cidadania, assim como as experincias de inovao participativa. Por outro lado dialogamos com certa experincia crtica o repertrio simblico dos movimentos anti-sistmicos conformados a partir do sistema mundo moderno/colonial capitalista (QUIJANO & WALLERSTEIN, 1992), no assimilados pelos processos convencionais que viriam a canalizar toda sorte de protesto social, oposio e resistncia a consolidao do Estado e do mercado como eixos vertebrais organizadores da vida dos povos.

    Nesta perspectiva, concebemos como sociabilidades emergentes um conjunto de prticas sociais e representaes do social orientadas por elementos como a

    horizontalidade, a liberdade, o respeito diferena, a solidariedade, a livre criao, a apropriao social de valor de uso e a incluso como fundamentos do estabelecimento

    de laos sociais e da constituio de coletividades autodeterminadas. Consideramos que esta definio apriorstica, presente em distintas articulaes e discursos dos movimentos sociais, frtil em sua dimenso problematizadora, em que eclipsa a distncia nunca suturada entre as experincias e as expectativas. Este tipo de

    sociabilidade, em trminos de seu significado para as possveis mudanas polticas deste sculo, muitas vezes refratrias s ferramentas tericas tradicionais utilizadas pelas

    cincias sociais (LANDER, 2005) e pelo discurso hegemnico que disciplina o poltico institucional na topologia privilegiada de estadocentrismo (WALLERSTEIN, 1998; 2001). Apesar de sua aparente invisibilidade, constatamos uma insinuante multiplicao das sociabilidades no interior de processos, organizaes e incluso instituies

    estabelecidas, ou seja, articuladas em diversas configuraes no interior ou em relao marginal com o Estado e o mercado como os conhecemos. E cremos que sua presena

    fragmentria pode ser o sintoma de dinmicas configuradoras de novos sujeitos e arenas sociais, no caminho da emancipao humana.

  • 18

    4.2. Formao histrica e socioterritorial da Regio do Alto Uruguai

    At meados do sculo XIX a regio do Alto Uruguai era conhecida como Mato Castelhano e estava sob o domnio espanhol. Segundo Illa Font, abrangia uma extenso de terra que cobria desde o Rio Pelotas-Uruguai at os campos das Vacarias. Aps ser conquistada por Portugal, se formaram os primeiros municpios no Estado:

    Porto Alegre, Rio Grande, Santo Antnio da Patrulha e Rio Pardo, [...] Posteriormente o territrio erechinense passaria jurisdio do Municpio de So Borja, criado em 21 de abril de 1832, depois ao Municpio de Esprito Santo da Cruz Alta, criado a 28 de maio de 1834; a seguir do Municpio de Passo Fundo, criado a 28 de janeiro de 1857, at a criao do Municpio de Erechim em 30 de abril de 1918. (Illa Font, 1983: p. 62,63).

    Illa Font tambm revela que nesta regio foram encontradas trilhas de carreteiros,

    utilizadas como rota comercial entre o sul e o sudeste brasileiro, assim como vestgios de antigas redues jesuticas, embora as fontes no tenham sido comprovadas, ele transcreve um relato de Josino dos Santos Lima:

    Esta povoao teve pouca durao. de crer, segundo o P. Teschauer, que esta povoao e mais aldeias se achassem na zona entre Nonoai, Passo Fundo, Vacaria e Rio Uruguai, portanto no atual Municpio do Boa Vista do Erechim. (FONT, 1983: p.62).

    E complementa: [...] alm de velhas fortificaes, ou simples muros de pedra, identificamos como resqucios de redues que teriam sido fundadas pelos jesutas, entre outras, a de Santa Tereza no municpio de Passo Fundo e nas imediaes da barra do rio Forquilha (FONT, 1983: p.62) 1.

    Outros estudos apontam para a confirmao destas hipteses, como os de tala Becker: Em 1845, o missionrio Antnio de Almeida Leite Penteado faz uma experincia de catequese com os kaingangs das proximidades de Passo Fundo, quando

    consegue atrair a uns 400 indivduos (BECKER, 2006: p.129). Ainda no sculo XIX, com o fluxo de imigrao europeia estimulado pelo Estado e direcionado

    fundamentalmente para a regio sul do pas, h uma nova tentativa de recriar as experincias das redues jesuticas, para atenuar os conflitos entre indgenas e

    1 O historiador cruz-altense Josino dos Santos Lima (Folhinha da Serra, 1921) extraiu de uma narrativa do

    padre Carlos Teschauer (Histria do Rio Grande do Sul) referncia a fundao de uma reduo jesutica, em 1628, pelos padres Ruz Montoya e Dias Tanho, com a colaborao do tuxuva Coh, cujos filhos governavam as aldeais prximas, e do morubixaba Curit, um chefe at ento insubmisso. (FONT, 1983: p.62).

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    imigrantes: O que de concreto o governo imperial consegue com a ajuda de jesutas espanhis a fundao de trs aldeamentos; o objetivo central dos mesmos era o de reunir os ndios dos diferentes grupos moradores das reas atingidas. Instalados, entre 1848 e 1850, so conhecidos como Aldeamento do Guarita, fundado pelo Pe. Pars com ndios do Cacique Fongue, no atual municpio de Tenente Portela. Guarita teve como chefe ndio o prprio Fongue escolhido para essa funo. O aldeamento resolveu o problema dos fazendeiros de Cruz Alta, onde tambm existia um grupo Kaingang, assim como o das estncias de Santo ngelo e So Joo. A segunda concentrao Nonoai, fundada em 1849 em terras do velho Cacique Nonohay. O aldeamento deveria reunir os ndios dessa rea, hoje municpio de Nonoai, bem como os ndios da rea perturbada do Cacique Braga, atingida pela colonizao alem em quase sua totalidade. (BECKER, 2006: pgs.129-130).

    Podemos observar indcios de vrios processos de aldeamento (reduo) na regio. E de acordo com a historiografia local, existiam trs aldeamentos indgenas em Erechim no perodo de sua ocupao territorial: Ventarra, Votouro e Liso, habitados por

    indgenas Guarani e Kaingang. Conforme KARNAL: Em 1919 os Ventarras eram em nmero de 34, ocupando uma rea de 753 hectares; os Votouros compunham-se de 148 habitantes, com uma rea de 3.538 hectares, e os Lisos tinham 41 habitantes. (KARNAL, 1926: p.19). O autor no especifica a extenso territorial ocupada pelo grupo de indgenas denominados lisos.

    Alm de indgenas havia tambm negros, caboclos e colonos brancos que, de

    alguma forma, buscavam um stio pacificado para se fixar. Conforme Cassol: Um fluxo migratrio trouxe para as matas de Erechim fugitivos da sangrenta revoluo de 1893, oriundos dos mais diversos pontos do Estado, especialmente das regies mais assoladas pelos maragatos e pica-paus, pois ambos usavam como invarivel praxe a matana e o saqueio dos bens (CASSOL, 1979: P. 127).

    Aparentemente, foi possvel o estabelecimento de uma convivncia relativamente

    pacfica, apoiada at mesmo na miscigenao com os Kaingang, entre os novos e velhos habitantes. Pode-se dizer que estas populaes adaptaram-se a regio por terem

    encontrado as condies necessrias para sua sobrevivncia, sobretudo como uma zona de refgio. Como principal atividade econmica, praticavam a caa, coleta e formas

    rudimentares de agriculturar, constituindo ncleos de populaes relativamente seminmades:

    O sentido de honra e fidelidade grupal predominar sobre o esprito de clculo e de convenincia. O esprito de fatalidade e sincretismo religioso dominar a cultura desta populao seminmade, no limiar do entrechoque de culturas e interesses e do caldeamento tnico. (CASSOL, 1993: p. 89-90).

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    Apesar de alguns grupos Guaranis, pode-se dizer que a regio era habitada

    predominantemente por Kaingang, que tiveram seu territrio restringido por colonizadores que vieram desde So Paulo e posteriormente do Paran, encontrando o

    Mato Castelhano como refgio. A historiografia local faz referncia a eles como Coroados, mais j possuram muitas denominaes: Eram conhecidos pelos nomes de Botocudo, Aweikoma, Xokleng, Aweikoma-Kaingang, Bugre, entre outros. Apareceram pela primeira vez na literatura com o nome de Guaian. (BECKER, 2006: p.127). Os Kaingang eram vistos como bravos e arredios na poca das misses jesuticas por no se submeterem s redues. Porm os Kaingang do Alto Uruguai do sculo XIX eram pacficos, dceis e recebiam bem os estrangeiros que chamavam de

    birivas, facilitando para que muitos expatriados, desertores e foragidos fizessem morada nesta regio. Sobre a situao do caboclo no Alto Uruguai Cassol destaca que:

    O caboclo era o dono de tudo, suas terras no tinham limites. [...] O primeiro morador conhecido em nossas terras foi Andronico Manuel de Assuno que aqui construiu sua morada em 1889. [...] Em 1909 j havia vrias famlias designadas pelo apelido de Birivas. [...] os descendentes dos bandeirantes, que vindos em busca de ouro e prata, por aqui ficavam cruzando a raa com os Kaingangs. Aos caboclos Birivas se foram juntando, com o passar dos anos, os foragidos da justia. (CASSOL, 1979: p. 127).

    No entanto com a construo de ferrovias, e a reorganizao dos espaos econmicos que elas implicam, criam-se novos panoramas para a regio, modificando-

    se estruturalmente muitos de seus aspectos fsicos e culturais. Iniciam-se novas ondas migratrias e, consequentemente, se introduzem novos elementos para complexificar as formas de relao homem/natureza em curso. As formas de vida dos caboclos e indgenas no correspondiam s novas prticas que deveriam ser implantadas, pois a

    civilizao precisava avanar, atingindo, ocupando e refuncionalizando todas as regies do Estado para alimentar as demandas do progresso nacional. Assim a cidade

    de Erechim foi construda a partir da necessidade de expanso das colnias velhas de imigrao italiana como Caxias do Sul, Flores da Cunha e Garibaldi. Com a dificuldade de encontrar terras livres para alojar descendentes de imigrantes e, manter a poltica migratria implantada por iniciativa do Estado gacho que aps a vitria castilhista na Guerra civil de 1893/95 abre a oportunidade histrica de esculpir o projeto poltico instrumentalizado pela constituio de 14.7.1891 do Rio Grande. (CASSOL, 2003: p. 56). E que compreende tambm:

  • 21

    O regulamento de 1900 cria ampla estrutura para implementar esta colonizao, discriminando as terras, medindo e demarcando. A parte segunda ter 110 artigos regulamentando a colonizao, incluindo a formao de ncleos, recepo e estabelecimento de imigrantes, preo, distribuio, concesso e vendas de lotes, dvida colonial, ocupao e posse de lotes, obrigaes, ttulos de propriedades, transferncia, abandono e perda do lote, concesso de lotes urbanos, direo e execuo do servio de colonizao e pessoal. (CASSOL, 2003: p. 57).

    Com estas iniciativas o Estado recorre s reas ainda florestadas, de solo acidentado e difcil acesso, como o Alto Uruguai. E tambm com a construo da ferrovia que trazia consigo uma promessa de desenvolvimento e modernidade para a regio, seguindo os ideais positivistas do governador Carlos Barbosa. No comeo o sculo XX iniciam as colonizaes e as demarcaes de terras para a nova ocupao do

    territrio, de acordo com os dados do IBGE: Por proposta do engenheiro Trres Gonalves, diretor-chefe da Diretoria de Terras e Colonizao, o presidente do Estado, Carlos Barbosa Gonalves criou em 6 de outubro de 1908 a COLNIA ERECHIM, cujo topnimo, no dialeto Caigang (Coroado), quer dizer "Campo Pequeno". Em fevereiro de 1910 teve inicio a construo de casas da sede provisria, denominada povoado Erechim, hoje Getlio Vargas. Aportaram sede da colnia a primeira leva de imigrantes, composta de quatro famlias, com 28 pessoas, e mais imigrantes isolados, totalizando 36 almas. (IBGE, Erechim, 2009)2.

    Pode-se dizer que a criao do municpio de Erechim alm de suprir a insuficincia de terras das colnias velhas, pretendia tambm povoar uma regio de

    terras ainda no exploradas. E que a construo da ferrovia So Paulo - Rio Grande favoreceu muito, pois alm de facilitar o acesso tambm beneficiou no escoamento da

    produo e encurtou distncias. Com o crescimento demogrfico da colnia, bem como seu reposicionamento como espao econmico, sua sede seria transferida ainda duas vezes para novos locais, descrito em detalhes por em seu livro Histria de Erechim, onde se pode observar minuciosamente a evoluo das relaes entre rea ocupada,

    nmero de habitantes, nmero de casas residenciais e comerciais, decretos assinados pelos rgos do Estado que garantiam a ocupao, diferentes nomeaes e tambm a

    transferncia da Sede da Colnia para o povoado de Paiol Grande. At que em 30 de

    2 Dados do IBGE Erechim. Disponvel em: Acesso em 04/05/2012.

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    abril de 1918, o oitavo distrito foi elevado categoria de municpio, sendo denominado Erechim e tendo por sede a vila Boa Vista (KARNAL, 1926: p. 08).

    KOMKA e MORANDINI defendem que a cidade de Erechim foi construda com

    o intuito de urbanizao a partir de moldes positivistas, ressaltando a preocupao em preservar uma rea florestal, como tambm de seguir um padro de planejamento espacial racional, com avenidas largas dando origem a uma malha xadrez. Argumentam que:

    ao realizar o planejamento do ncleo urbano original de Erechim, a inteno foi homenagear a Paris, na poca, vista pelos positivistas, como Meca do Ocidente. A ideia era transcrever na Praa Cristvo Colombo, hoje Praa da Bandeira, com seis avenidas confluindo para ela, a inspirao no Arc duTrionphe - para onde convergem doze avenidas da capital Francesa. [...] A concepo, luz dos ideais republicanos, se deu partindo das diretrizes bsicas [...] sob influncias do urbanismo barroco e pelos conceitos de racionalidade e ordem provenientes do positivismo (KOMKA, MORANDINI, 2011: pg.06).

    No entanto BEATRICI afirma que desde o incio da colonizao as desigualdades

    comearam a se acentuar com a distribuio de terras, pois as duas empresas responsveis, a Companhia Colonizadora Luce e Rosa e a Jewish Colonization Association (JCA) eram empresas privadas e favoreceram quem tinha mais dinheiro, por poderem comprar as melhores terras e em quantidades maiores, com todos os seus

    desdobramentos no mbito das relaes sociais e da territorialidade imaterial. Conforme PIRAN (2001: p. 24) desde o incio a contradio se faz presente: veja-se que, enquanto aos poloneses, vindos mais tarde, vende-se lotes de 12,5 ha, JCA permite-se comprar lotes de at 250 ha.

    E complementa BEATRICI:

    Neste ponto, j comeam a aparecer mais nitidamente elementos da territorialidade imaterial. Novas concepes (trabalho, produo, campo, propriedade, etc.) passam a se fazer presentes nas relaes sociais, explicitando as tenses/contradies sociais. Esses elementos da territorialidade imaterial foram fundamentais na materialidade do capitalismo, visto que os grupos dominantes exerceram tanto as funes de domnio (acesso ao poder e uso da fora funo coercitiva) quanto s de direo (intelectual e moral persuaso) para fazer hegemnico o seu projeto. (BEATRICI, 2011: p. 43).

    Percebe-se que as desigualdades se multiplicam e se estruturam socialmente com o processo de reordenamento do espao econmico e da cultura de ocupao que lhe acompanha. Desde a demarcao das terras, que favoreciam alguns setores de

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    imigrantes, at a excluso e marginalizao dos nativos, subjugados e desterritorializados:

    O resultado final da colonizao para os Kaingang foi coloc-los numa situao mais ou menos igual dos perodos iniciais, isto , a necessidade de continuar a luta pela posse, de fato, das suas terras, frente a entidades econmicas de interesses vrios. A rea continua a mesma, o alto Rio Uruguai, na poro compreendida entre o atual municpio de Lagoa Vermelha e o municpio de Santo Augusto, outrora pertencente Palmeira das Misses. Nela os Kaingang esto aldeados sob os cuidados da FUNAI praticando, entre outras atividades, a agricultura mecanizada do trigo, milho e soja numa reserva demarcada de 51.940 hectares. O contingente indgena, parcialmente mestiado, est distribudo em cerca de 20 Postos surgidos das primeiras aldeias. Alguns destes postos se uniram, outros se dividiram, outros mesmo desapareceram (BECKER, 2006: pg. 131).

    Portanto no difcil compreender que as novas dinmicas de ocupao scio-territorial da regio do Alto Uruguai, induzidas pelo Estado e atores econmicos

    consorciados a ele, favoreceram a insero da regio nos marcos do desenvolvimento do capitalismo no pas, com todas as consequncias que lhe so inerentes: a produo da

    conflitualidade social baseada na criao de uma populao de assalariados desgarrados da terra ou provenientes de pequenas propriedades insustentveis economicamente (pequenos colonos); e a expulso ou a espoliao de grande parcela dos territrios ocupados pela populao autctone (indgena ou refugiada). A confluncia das demandas daqueles que foram subalternizados pelo processo ainda em curso de refuncionalizao econmica da regio, tambm evocado como desenvolvimento

    (imigrantes convertidos em fora de trabalho e povoadores originais destitudos das condies de reproduzir seus modos de vida tradicional) a grande e principal varivel que ainda hoje explica a centralidade do que podemos entender por luta pela terra na regio do Alto Uruguai.

    4.3. Notas sobre a formao do capitalismo na regio do Alto Uruguai

    possvel analisar a constituio do capitalismo no Alto Uruguai a partir de dois momentos distintos: no primeiro momento com a colonizao propriamente dita (sculo XIX), com o objetivo da ocupao induzida que foi tornar a regio produtiva, culminando com a distribuio dos lotes atravs da qual se institucionalizou a propriedade privada. Antes da chegada dos imigrantes, o caboclo fazia uso da terra

    conforme a sua necessidade, no precisava ser proprietrio para usufru-la, [...] era o

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    dono de tudo, suas terras no tinham limites (CASSOL, 1979: p. 127). O segundo momento, a partir dos anos 60, com a agricultura moderna e expansionista, priorizando o cultivo do trigo e da soja, voltada para o mercado externo. Neste sentido percebesse-se como o modelo de organizao produtiva capitalista vai se organizando. Conforme BEATRICI:

    Este foi um processo gradual e que teve como base material o desenvolvimento do modo de produo capitalista, concretizado na regio atravs do projeto oficial de colonizao. Por sua vez, a viso de mundo dos imigrantes encontrava reciprocidade em vrios princpios/valores subjacentes ao projeto de colonizao, contribuindo, desde o incio, para uma formao mais acelerada de aspectos imateriais do territrio e, inclusive, impulsionando-o. No foi por acaso tambm que o governo e as empresas colonizadoras foram buscar a fora de trabalho que concretizaria tal projeto entre os imigrantes/migrantes europeus. (BEATRICI, 2011: p. 72).

    Com a chegada dos ncleos de imigrantes so produzidas as primeiras

    consequncias da modernidade capitalista na regio, com os desenvolvimentos dos processos de desigualdade e excluso, como o aldeamento indgena e a marginalizao

    do negro e do caboclo. Tambm os processos produtivos que redefiniram a paisagem local, com o desmatamento para a extrao de madeira e a organizao do espao agrcola.

    Mas no deixa de ser interessante a observao de PIRAN, para quem o Alto

    Uruguai, foi a ltima poro do territrio [gacho] a ser incorporada ao processo capitalista. (PIRAN, 2001: p. 20). Pois a sua caracterizao geogrfica foi um fator decisivo para que a regio permanecesse afastada dos processos expansionistas fomentados pela colonizao, pois alm de ser uma regio afastada dos centros urbanos, no sculo XIX era de difcil acesso e possua uma rea florestada e de solo acidentado no qual ele se refere como:

    [...] refgio de presidirios ou perseguidos pela lei, de debandados da revoluo de 1893 (tidos como bandidos perigosos). Enfim, reduto ltimo dos indgenas (encurralados pelo avano da colonizao em outras regies) que resistiam de diferentes formas sua desterritorializao e dizimao. (PIRAN, 2001: p.21)

    Cumprindo-se o objetivo da colonizao agrcola no Alto Uruguai que era abastecer o mercado urbano e fornecer matria-prima para o processo incipiente de industrializao regional, atravs da agricultura de pequena escala (compatvel com as caractersticas fsico-geogrficas de grande parte da regio, e que viria a ser conhecida

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    hoje como agricultura familiar), que instituda com o horizonte de produzir excedente, ainda que atravs de um nico produto, [...] sem esquecer o papel, poltico-ideolgico (ser proprietrio, trabalhar e acumular) estratgico (implantar o imprio da lei, evitar importunar o latifndio) que tal projeto de colonizao desempenha. (PIRAN, 2001: p. 25). Porm, a grande abertura encontrada pelas polticas expansionistas que ocorre a partir dos anos 60, com a modernizao e mecanizao agrcola, comeou a colocar em xeque o lugar da pequena propriedade no mbito da produo, especialmente tendo em vista a vocao e potencial exportador do sul do pas. Com destaque para a produo de trigo e soja, fomentando as lavouras com grandes reas cultivadas, com o intuito de abastecer o mercado internacional.

    neste cenrio que se desenvolve uma nova fase da agricultura capitalista de monocultivo agroexportadora, que ir determinar o que e em que condies deve ser

    produzido. Toda esta conjuntura, endossada pela ideologia do progresso e desenvolvimento, transformou a vida do pequeno agricultor/colono, causando-lhe

    empobrecimento e forando-o ao xodo rural. Estes processos tiveram incio na dcada de sessenta e pice nos anos oitenta, no

    cenrio de enfraquecimento da Ditadura Militar, em grande medida pela materializao dos limites do milagre econmico, progressivamente posto luz

    atravs da carestia e dos altos ndices inflacionrios. Dilataram-se ainda nos anos noventa com as polticas neoliberais e o peso das relaes comerciais do MERCOSUL,

    que exigia maior produtividade e preo baixo, impossibilitando ao pequeno agricultor sua insero nesta nova realidade econmica.

    Para PIRAN tal crise se abre e se desenvolve com as novas demandas geradas pela insero do Brasil no mbito do circuito econmico internacional, inerente sua

    prpria opo histrica como economia de mercado agroexportadora. Com a tentativa de estabelecer acordos que possam satisfazer a necessidade expansionista do capital,

    criou-se o MERCOSUL, que contribuiu com o quadro desfavorvel da agricultura no Alto Uruguai. Pois a Argentina possui um solo mais mido e frtil que facilita o cultivo com pouco investimento. No caso brasileiro, em especial da regio em questo, necessita de um elevado gasto com a recuperao do solo, fertilizantes, defensivos

    agrcolas, em suma, investimento pblico que as recentes polticas neoliberais baniram do horizonte.

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    O que est em andamento um processo de substituio do Estado de Bem-Estar Social pelo Estado Mnimo. Isto : recursos que o Estado vem aplicando em educao, sade, habitao, previdncia... devem agora ser colocados a servio da iniciativa privada. o Estado Mnimo garantindo a liberdade do capital, viabilizando a iniciativa privada. (PIRAN, 2005: p.108).

    Na condio de ltima fronteira do processo de colonizao e ocupao

    (formal) do Estado do RS, a regio do Alto Uruguai apresentou muitos obstculos para a implementao de um modelo de agricultura capitalista sintonizado com as dinmicas nacionais e internacionais tal como preconizado pelas elites polticas e econmicas modernizadoras. Nesse sentido, parece ter cumprido um papel mais importante como

    espao para alocar o excedente populacional oriundo de outras regies do estado e um conjunto de investimentos desdobrados do prprio desenvolvimento de atividades econmicas oriundas dessas mesmas regies prsperas (ou mesmo de outras partes do pas) que criaram as condies para seu crescimento como importante polo comercial e industrial. Ao pequeno colonato e campesinato, expressivo demograficamente, mas insignificante do ponto de vista do modelo econmico nacionalmente referenciado e valorizado, no restou muitas opes alm de demandar do poder pblico polticas de valorizao das dinmicas econmicas especficas da pequena propriedade, dificilmente

    concebidas para alm de uma insero dependente dos imperativos do mercado interno e do mercado externo agroexportador, muitas vezes ainda em conflito direto ou indireto com as populaes chamadas tradicionais (em especial, indgenas e quilombolas). A partir desses condicionantes se pode analisar aspectos estruturais que iriam compor a base dos movimentos associativos e das lutas sociais que tiveram o Alto Uruguai e seu

    entorno como cenrio privilegiado.

    4.4. Formao da agricultura de base familiar e camponesa na regio

    A regio agrcola do Alto Uruguai constituda de pequenas propriedades rurais, com menos de 100 hectares, que correspondem a 97,92 e 97,59 % nos anos de 1970 e 1985, respectivamente (PIRAN, 2001: p.40), da rea total, situao no muito diferente dos perodos iniciais da ocupao pelos imigrantes. Condies que favoreceram a policultura, ou seja, uma agricultura diversificada, onde colono/agricultor cultiva, em pequenos espaos e quantidades, os alimentos necessrios para sua subsistncia e de sua

    famlia, contando basicamente com a mo de obra familiar. No Alto Uruguai este tipo

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    de agricultura, no foi uma questo de escolha ou vocao, mas pelo fato de no possuir

    espao para o latifndio, conforme PIRAN: No Alto Uruguai, particularmente em sua poro norte, de relevo mais acidentado e solo menos propcios a tal modelo, a implantao e a expanso da empresa rural capitalista so inibidos. A agricultura familiar encontra a um refgio, no no sentido de estar livre do domnio capitalista, mas como lugar privilegiado sua no excluso. Tambm no se quer dizer que esteja definitivamente a salvo do processo de seleo-excluso, inerente a expanso capitalista no campo. O que se afirma que, nesta poro do territrio, a excluso dos agricultores familiares, ou por outra, a implantao da empresa rural foi menos rpida e intensa que em outras reas do planalto (regio da produo, por exemplo), reservando aos agricultores familiares presena ainda mais significativa. Mais que isso: a estes, o capitalismo reserva (sempre) as piores terras. (PIRAN, 2001: p.39).

    Est caracterstica j estava presente desde o incio da ocupao, quando o colono recebia uma rea para plantar, cheia de mato e sem estradas, na qual ele deveria

    retirar o sustento da famlia e ainda produzir excedente para poder quitar a dvida pelo pedao de terra que adquiriu. Mas apesar das dificuldades, a vinda para a regio

    representava uma grande esperana para estas pessoas:

    Sair da misria proletria da Europa ou do espectro da pobreza em Caxias e Guapor para se tornar proprietrio em Erechim, ter sua casinha, sua roa, seus porcos, bois, cavalos, vacas, galinhas, instrumentos de trabalho... nas piores condies, jamais se morreria de fome... Haveria dignidade (at se considerado superior... aos negros, brasileiros), possibilidade de criar filhos, trabalhar com eles e, quem sabe com o tempo, comprar mais terra, estabelecer uma casa de comrcio, at uma industriazinha... (CASSOL, 1977).

    O estabelecimento de agricultores na regio significa que se pretendia desenvolver uma rea de colnias agrcolas que pudessem abastecer a cidade e talvez alguns outros pontos do estado. Sobretudo com produtos diversificados capazes de comporem a cesta bsica alimentar. Esta inteno parece explcita quando se percebe um determinado grau de dependncia entre o pequeno agricultor e as relaes comerciais que ele praticava. Apesar de s poderem adquirir uma pequena propriedade,

    esta parecia ser a nica alternativa possvel e muitas vezes precisaram buscar outras fontes de renda como trabalhar nas construes de estradas, para no desistirem. Como

    podemos conferir nos trechos das cartas que escreviam:

    Informando-nos junto ao seu Milano, vendeiro, comissrio de polcia e nica autoridade num rio de diversas dezenas de quilmetros, a respeito da possibilidade de obter trabalho remunerado [...] disse-nos ele que talvez pudssemos encontrar em Erechim trabalho de desaterro, pois iam abrir uma

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    estrada de rodagem para uma nova sde. O pagamento era pouco mas sempre seria uma possibilidade de obter-se o que a roa no proporcionava. Tendo-se acabado por muito tempo os vales governamentais, j devamos alguns cento e tantos mil reis na venda por arroz, acar, charque, toucinho e farinhas, apesar de j haver vendido o ltimo relgio de bolso com corrente que no fazia falta na vida do colono que trabalhava de sol a sol e vai almoar quando a sobra do chapu lhe fica junto aos ps, sinal de meio dia. (RIO BRASIL Apud BEATRICI, 2011: pg.73)

    Para isto trabalhvamos todos sem cessar, sem domingos nem feriados, pois para ns os dias de descanso eram apenas os de chuva, porque a chuva fraca j no nos importunava mais. Quando pela madrugada chovia pedamos Deus que fizesse chover forte todo o dia para nos propiciar descanso na choupana. No trabalhar na roa num dia bom ou de pouca chuva parecia-nos at um sacrilgio apesar da religio considerar pecado trabalhar aos domingos. (RIO BRASIL Apud BEATRICI, 2011: pg.72).

    PIRAN explica que a agricultura regional passou por duas fases distintas, que ele

    classifica como tradicional e moderna. A agricultura tradicional corresponde primeira fase, o incio da colonizao na regio, em que predominam o uso de recursos naturais:

    fertilidade natural do solo e mo-de-obra direta (familiar) (PIRAN, 2001: pg. 31). Com instrumentos de trabalhos simples, como enxada, arado de trao animal, foice, machado e mquina manual para plantar. As tcnicas que utilizavam eram saberes bsicos passados de gerao em gerao e investimento de poucos recursos, por contar

    com a fertilidade natural do solo, e por no exigir alta produtividade. Cultivavam vrios produtos, mesmo que em pequenas quantidades, de tudo um pouco, e possuam

    animais domsticos, alm de porcos, galinha e vaca leiteira. Como esclarece o autor:

    Isto leva alguns autores a identificar, como objetivo principal desta fase, a subsistncia familiar, s comercializando o excedente. No h dvida de que a manuteno da famlia demanda grande parte do esforo produtivo; contudo, isto no permite afirmar que a produo se organiza com tal objetivo. Desde o incio, os agricultores familiares organizavam sua produo para o mercado, mesmo porque necessitavam de excedentes para pagar suas terras e complementar a manuteno familiar. Isto era conseguido, no apenas comercializando o excedente no consumidos pela famlia, mas dedicando-se efetivamente ao cultivo ou criao para o mercado (PIRAN, 2001: pg.31).

    Alm da dvida com a terra, tinha tambm a dvida no comrcio local, onde o

    colono se abastecia de artigos que necessitava e no podia produzir, para pagar com a safra. Possuam dvidas tambm com as indstrias, das quais dependiam para os processos de transformao de trigo em farinha ou dos sunos em banha. Porm, para o autor, a subordinao ao mercado (ao Capital) acontece somente jusante, isto , na hora da venda do produto. montante e durante o processo produtivo, gozam de

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    autonomia (PIRAN, 2001: pg. 33). E destaca como principais caractersticas da agricultura tradicional:

    Predomnio de uma tecnologia simples; Relao com o mercado via comerciantes dos povoamentos, vilas e indstrias (empresas de capital local); Grande importncia da indstria domstica, do artesanato e das fbricas vinculadas produo agrcola; Autonomia relativa dos agricultores na relao com o setor urbano industrial. (PIRAN, 2001: pg.33).

    Para o autor, a segunda fase, da agricultura moderna se inicia na dcada de 1960 e apresenta caractersticas especficas e diferenciadas da primeira fase. A enxada e o arado so substitudos pelos tratores e mquinas agrcolas, com intenso consumo do

    petrleo, tendo em vista uma agricultura voltada para a exportao, iniciando com a produo de trigo, seguida pela soja e posteriormente a combinao dos dois produtos, e com a produo de milho e sunos, mais tarde as aves, o gado leiteiro e a fruticultura, que encontraram espao principalmente nos municpios ao sul da regio (Ibia e Serto). Destaca suas principais caractersticas:

    Crdito abundante e barato (at meados dos anos 70); Uso intenso de insumos industriais, melhoramentos genticos, energia

    mecnica; Instrumentalizao da economia brasileira, patrocinada pelos norte-

    americanos via programas Aliana para o progresso e Alimento para os pobres;

    Desaparecem a indstria domstica e pequenas fbricas, surgem as grandes empresas de capital externo regio e implantam-se agroindstrias e sistemas integrados de reproduo;

    Enfraquecem os pequenos comerciantes e surgem os grandes atacadistas, representantes de fbricas de insumos e grandes cooperativas;

    Extenso da rede bancria e criao do crdito cooperativo (repasse do Banco do Brasil);

    Crescente integrao-subordinao ao mercado via agroindstrias e perda total da autonomia diante do mercado monopolizado ou oligopolizado;

    Drenagem da riqueza, aqui produzida, para fora da regio (PIRAN, 2001: pg.35).

    No entanto esta reproduo do sistema inibida no norte do Alto Uruguai, principalmente nos municpios de Mariano Moro e Itatiba do Sul, onde foram destinadas as piores terras para os camponeses pobres, sobretudo por se tratarem de pequenas reas de terra para cada proprietrio, e por causa do solo que se apresenta

    como dificuldade para o trabalho realizado com tratores e colheitadeiras. Neste

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    contexto, entra em cena a Microrregio Colonial de Erechim, na qual predomina a mo-

    de-obra familiar. O Alto Uruguai concebido e construdo globalmente sob o comando do capital que, contudo, fragmenta-o, porquanto a ocupao feita com a implantao de propriedades mdias e grandes (empresas capitalistas) e propriedades pequenas (agricultura familiar). Internamente, na regio, podemos, de alguma forma identificar dois territrios distintos: no sul, o da empresa rural capitalista que exclui o agricultor familiar que a foi instalado no incio; no Norte, o dos agricultores familiares que hoje resistem excluso que o avano do capitalismo, via projeto neoliberal, procura lhe impor. (PIRAN, 2001: pg. 48).

    Portanto para o autor o fator determinante para que a agricultura familiar pudesse se desenvolver no Alto Uruguai dependeu antes de tudo da topografia da regio, por possuir um solo pedregoso, acidentado, florestado e de difcil acesso, rejeitada pelo latifndio. Essa agricultura diversificada e em pequenas rocinhas, garantiu o sustento de vrias famlias, por isso ganhou significado e se colocou progressivamente no mbito de

    uma alternativa possvel. Embora esta alternativa em outras circunstncias tenha contribudo para a desterritorializao de ndios, negros e caboclos, forando-os a migrarem para as periferias urbanas e rurais. No entanto, no podemos ver a agricultura familiar como um obstculo para o avano do capitalismo, mas em grande medida como

    a territorialidade onde no era propcio o desenvolvimento do latifndio e da agricultura mecanizada.

    A industrializao do meio rural surge como proposta para reproduzir a lgica da cidade dentro do campo, a mesma eficincia e maximizao da produo/lucro. Dessa maneira, sabendo que a lgica camponesa outra, que ela, entre outras coisas, se assenta na produo para consumo prprio primeiramente, na tcnica pensada a partir do lugar, na valorizao dos valores culturais, na utilizao consciente dos recursos naturais. (GABOARD e EDUARDO, 2011).

    Ao mesmo tempo, cabe ressaltar as diferenas tericas e prticas entre os projetos da agricultura de tipo familiar e a camponesa. Embora muitas vezes as remisses a estas categorias nos induzem a pens-las como sinnimos ou termos

    correlatos, especialmente se levarmos em considerao que ambas traduzem modos especficos de organizar o trabalho e a produo consorciados com o espao de moradia

    onde a estrutura social e comunitria baseada na famlia possui grande centralidade, a experincia e o contato com os grupos sociais que se identificam como uma categoria ou outra muitas vezes nos permite perceber uma especificidade de ordem cultural ou antropolgica que nos aponta perspectivas diferentes, seno mesmo antagnicas,

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    relativas ao modo como essas unidades produtivas (na falta de um termo mais adequado ou menos viciado para tratar da pequena propriedade) estabelecem vnculos com a economia de mercado ou com a prpria dinmica mais ampla de reproduo do

    capital.

    Em outras palavras: mesmo subordinadas ao capital, enquanto a agricultura familiar muitas vezes se situa em um padro de produo de subsistncia que almeja, atravs da acumulao propiciada pelo aumento do excedente e da produtividade, alimentar um ideal de empreendedorismo rural que inevitavelmente cair nos circuitos da competio que s poder se desenvolver mediante a ampliao dos negcios e do prprio acesso ao mercado consumidor, ou seja, em crescimento empresarial (pelo vis cooperativo ou no), a agricultura camponesa se orienta por um conjunto de valores e normas culturais, muitas das quais pejorativamente compreendidas como tradicionais, que se baseia em um modelo muito particular da relao homem/natureza (avesso ou resistente ao que correntemente se entende por instrumentalidade/mercantilizao

    da terra), tanto quanto em uma noo do prprio territrio como lugar de identidades ancestrais/comunitrias que demandam ser preservadas como foco primrio de reproduo do prprio grupo social. No significa dizer que a agricultura camponesa no se relaciona com o mercado ou no produza excedente (o que seria um contrassenso pela sua prpria insero em um contexto social dominado pela economia de mercado), mas que tais atividades esto submetidas a um arranjo comunitrio do qual dependem e com o qual mantm uma relao muitas vezes conflituosa ou contraditria, condicionando ou mesmo inibindo as a forma sob a qual se opera o processo de acumulao tipicamente capitalista.

    Se a primeira modalidade de organizao da pequena propriedade tende, em

    sua forma mais acabada e desenvolvida, a estimular a formao do monoplio agroindustrial, a segunda modalidade, alcanando o mximo de desenvolvimento sob

    sua prpria lgica, fomentaria uma rede de pequenas unidades produtivas descentralizadas e associadas entre si capaz de propiciar o intercmbio de insumos e produtos atravs de canais paralelos (como algumas feiras locais e cooperativas de produo e consumo). Tais consideraes, no entanto, apenas pretendem esboar como tipologias analticas os modelos da pequena agricultura em questo, sem objetar que do

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    ponto de vista emprico muitas dessas caractersticas podem (e devem) ser encontradas imbricadas tanto em uma quanto outra experincia referenciada.

    4.5. Movimentos populares e organizaes sociais

    Desde o incio do sculo XX, com a chegada de imigrantes na Regio do Alto Uruguai, iniciam-se complexos processos de ocupao e desocupao territorial. A

    chegada do colonizador de origem europeia, a incorporao forada dos povos negros contrabandeados de outro continente, a desterritorializao e aldeamento dos indgenas e a produo subalterna dos caboclos como agentes colaterais da colonizao forjou inmeros conflitos que condicionou o modelo de relaes sociais e as formas de

    ocupao territorial vigentes. No contexto da produo capitalista da regio do Alto Uruguai, os rudos e contradies oriundos do tensionamento das relaes de

    subordinao e de apropriao territorial estabelecidas constituram o substrato social que forneceu os elementos que iriam compor o imaginrio e alimentar as prticas de muitas lutas e organizaes sociais emergentes. ndios, caboclos, negros e colonos pobres, aglutinando-se como classes perifricas (ainda que jamais de modo homogneo e sem conflito), passaram a ser vistos como intrusos em seus prprios territrios. Desta forma despontaram demandas e lutas por melhores condies de vida, direito ao

    trabalho digno e a um pedao de terra, originando sindicatos, associaes e movimentos sociais, dos quais destacaremos alguns exemplos de significativa importncia para a regio do Alto Uruguai.

    4.5.1 Movimento dos Sem Terra (MASTER)

    No inicio do sculo XX a escassez de terras para abrigar o crescimento das famlias camponesas oriundas dos processos migratrios passou a ser uma questo

    dramtica e preocupante. Por volta de 1940, um primeiro movimento para solucionar o problema foi o de estimular um processo de ocupao pelo norte do estado do RS at o oeste do estado de SC.

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    Nos anos de 1960 essa migrao foi freada e a regio enfrentou uma crise no campo, aumentando intensamente nova demanda por terra. Entrou em pauta uma proposta de reforma agrria defendida pelo ento governador do estado, Leonel Brizola,

    com o objetivo de desapropriar terras que no pertencessem a brasileiros, como no caso de fazendeiros uruguaios que possuam grandes latifndios em territrio gacho. Tal medida resultou em interminveis e indefinidos processos judiciais. Neste contexto surgiu o Movimento dos Sem Terra (MASTER), com a proposta de assentar as diversas famlias que durante o processo de ocupao/desocupao, modernizao e expanso capitalista no Alto Uruguai, foram desterritorializadas, situao que se repete em vrios pontos da regio, conforme TEDESCO:

    A Regio do Alto Uruguai compreende, dentre outros, os municpios de Sarandi, Rondinha, Constantina, Ronda Alta, Liberato Salzano, Rodeio Bonito, Nonoai, parte do planalto, territrio esse ocupado, a partir dos anos de 1930, por descendentes de imigrantes, porm de forte presena de caboclos e indgenas j estabelecidos, sendo estes vtimas de um sistema de intruso que durou quase meio sculo em suas reservas florestais como o caso em 1941 em Serrinha Nonoai. (TEDESCO, 2007: pg.47).

    A esta luta somaram-se muitos grupos que por vrias razes se sentiam

    prejudicados, vtimas ou excludos deste processo. A luta pela terra passou a ganhar expressiva visibilidade, resultando em muitas ocupaes para acelerar as negociaes com o Estado, inclusive e mais dramaticamente, em reservas indgenas, entendidas

    como terras pblicas: Assim, a usurpao das terras tribais para fins de reforma agrria era vista na poca como algo inevitvel, e que dependeria apenas do fator tempo. To pouco havia da parte da sociedade civil organizada, nem mesmo da igreja, maiores preocupaes para que isso fosse evitado. Ao contrrio nas reservas de Nonoai (Parque Florestal de Toldo Indgena), tanto a igreja, quanto a classe poltica, independentemente do partido, deixavam transparecer que havia terras suficientes para abrigar ndios e posseiros. A expresso h muita terra para pouco ndio era frequente para justificar a permanncia de posseiros no interior das reservas, ignorando o modo de vida tribal, suas representaes simblicas e sua organizao social. (TEDESCO e CARINE, 2007: pg.120).

    Na poca se criou uma situao insustentvel na regio por conta de ocupaes

    ocorridas nas reservas indgenas, que lideranas polticas e religiosas entendiam como legtimas e necessrias, e muitos posseiros foram dessa forma assentados em pleno territrio destas comunidades.

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    4.5.2. Movimento dos trabalhadores rurais sem terra (MST)

    BONAVIGO e BAVARESCO analisam a formao do MST a partir do episdio

    de ocupao e assentamento da fazenda Annoni, no norte gacho. Apesar de anteriormente j existirem os movimentos pela Reforma Agrria, como o MASTER, com o assentamento da fazenda Annoni e as lutas pela terra que se multiplicaram nesse contexto que o MST se consolidou na regio e, progressivamente, se afirmaria como movimento de carter nacional. Durante o perodo em que as famlias permaneceram acampadas, esperando a deciso judicial para ocupar a fazenda Annoni, foram elaboradas e discutidas muitas das diretrizes do movimento, para que pudesse servir de

    orientao para a luta pela terra, com nfase cooperao agrcola como nica possibilidade de viabilizao econmica, poltica e social dos assentamentos. Como os

    autores descrevem: Entre os fatores implicados neste aparente consenso, pode-se considerar que os setores da Igreja Progressista defendem esta proposta como possibilidade de atingir o ideal de uma via comunitria onde predominem os valores da partilha, da solidariedade e da fraternidade; os rgos do Estado, tais como o Incra, Emater e Secretaria da Agricultura, nela visualizam a possibilidade de viabilizao econmica dos assentamentos em lotes reduzidos e com recursos escassos, alm de aliviar sua responsabilidade em relao ao processo de conduo dos assentamentos, os tcnicos nela veem a possibilidade de diversificao da produo e do uso de tecnologias alternativas; o MST entende esta proposta como possibilidade de buscar o desenvolvimento econmico e social dos assentamentos, como tambm desenvolver novos valores, considerados necessrios para a mudana da sociedade, ou seja, alm de atingir objetivos sociopolticos, organizativos e econmicos, transformar a cooperao numa ferramenta de luta e de resistncia ao capitalismo, uma vez que investe na organizao dos assentados em ncleos de base e proporciona a liberao de militantes para a luta econmica e poltica. Assim, a cooperao se tornaria instrumento pedaggico para o desenvolvimento da conscincia organizativa rumo a uma sociedade socialista.(BONAVIGO E BAVARESCO, 2008:p. 38-39).

    4.5.3. Sindicalismos

    De acordo com ZANELLA a institucionalizao das prticas sindicalistas no Alto Uruguai se deu em 1937, no governo de Getlio Vargas. Neste perodo o Estado inaugurou uma relao com o sindicato como importante instrumento de regulao das demandas e controle da classe trabalhadora. Garantiu estrategicamente vrios benefcios para os sindicalizados, tais como: carteira de trabalho, frias remuneradas, salrio

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    mnimo, entre outros. No entanto, muitos trabalhadores resistiam em participar do

    sindicato. Com apoio da Igreja Catlica que ajudou a convencer os trabalhadores a se filiarem ao sindicato, o Governo conseguiu maior adeso, e em retribuio a este favor,

    tornou obrigatrio o ensino religioso em todas as escolas pblicas do Brasil. Com a Ditadura Militar, o sindicato perdeu foras e desempenhou com mais empenho um papel de conciliador entre Estado e trabalhadores, exercendo basicamente atividades burocrticas ou distribuio seletiva de benesses, como agendamento de consultas mdicas e odontolgicas, encaminhamento de aposentadorias, distribuio de tickets de leite, etc.

    ZANELLA destaca que o perodo de 1978 a 1990 foi de extrema importncia para o sindicalismo no Alto Uruguai, por ser tratar do ressurgimento e da afirmao do sindicalismo regional. Destaca que a causa principal deste ressurgimento a conjuntura nacional, que culminou com o enfraquecimento da ditadura militar. O descontentamento do trabalhador diante de tais acontecimentos fortaleceu o sindicalismo, pois era a nica

    forma de reivindicao disponvel, tanto em nvel nacional como regional, assim como a forte influncia dos setores progressistas da Igreja Catlica, responsveis pela formao de lideranas sindicais.

    O autor tambm apresenta um quadro geral demonstrando a situao econmica

    nacional, causadora de um arrocho salarial, contabilizando uma perda salarial de 34,1% em 1973, que desencadeou no ressurgimento do movimento grevista a partir do ABC paulista em 1978, atingindo nvel nacional em 1980. As manifestaes populares tambm exigiam algumas medidas no setor poltico, direcionando o pas a uma redemocratizao e fim da ditadura militar, sobretudo a partir de 1983 com a criao da Central nica dos Trabalhadores (CUT), que tinha o objetivo de unificar as foras sindicais, fazendo oposio a Central Geral dos Trabalhadores (CGT). Pois a CGT, antiga CONCLAT3, desenvolvia uma atividade conciliadora, enquanto que CUT

    buscava manifestar um compromisso com um perfil representativo mais classista. Foi tambm neste perodo que surgiu no Alto Uruguai o novo Sindicato dos

    Trabalhadores Rurais (STR), pois a economia agrria tambm sofria vrias mudanas que prejudicava os agricultores, alm de outros problemas destacados por ZANELLA como: os baixos preos dos produtos agrcolas, a falta de assistncia mdico-

    3 Coordenao Nacional da Classe Trabalhadora

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    hospitalar, a falta de aposentadoria, a concentrao de renda e das propriedades no

    campo e o xodo rural (ZANELLA, 2004: pg. 202). A diferena fundamental que a nova conjuntura social e poltica favoreceu o desenvolvimento de um outro tipo de sindicalismo, pois o velho sistema no atendia mais as necessidades dos trabalhadores rurais, por ser um sindicalismo de tipo assistencialista e atrelado ao Estado. Neste contexto surgem novos ideais com as disputas entre vermelhos e pelegos. Os vermelhos eram sindicalistas ligados a CUT e os pelegos ligados FETAG. O autor descreve detalhes das disputas pelas direes dos sindicatos na regio, em que a maioria de sindicatos liderados por setores ligados a CUT em 1990 receberam apoio da Igreja Catlica.

    O autor afirma que a predominncia de lderes sindicais vinculados CUT beneficiou positivamente as aes do sindicalismo rural na regio, pois somarem-se as

    manifestaes nacionais e se fortaleceram enquanto categoria: Conquistaram direitos e foram reconhecidos como sujeitos no processo de desenvolvimento regional (ZANELLA, 2004: p.210), participaram ativamente de lutas por:

    Poltica agrcola, com garantia de preo, crdito e seguro para a produo;

    Reforma agrria com direito a terra para quem quisesse nela trabalhar; Contra a construo de barragens no rio Uruguai; A luta em torno da produo e venda do leite; Sade pblica, gratuita e de boa qualidade; Defesa do direito aposentadoria e ao salrio-maternidade; A luta das mulheres trabalhadoras rurais pelo direito a sindicalizao,

    ao talo de produtor, documentao, bem como a igualdade de gnero;

    Eleies diretas para presidente da Repblica. (ZANELLA, 2004: pg.210).

    Com estas lutas frequentes o STR conseguiu comprar o hospital de Aratiba, que

    beneficiou os trabalhadores rurais locais. O que causou uma grande adeso ao movimento sindical regional, quando em maro de 1987 o STR conseguiu reunir 12.000 agricultores no maior protesto da categoria da dcada em Erechim. Motivou tambm os movimentos de mulheres trabalhadoras rurais, tais como o Movimento da Mulher Camponesa (MMC) ligado a FETAG e a Organizao das Mulheres da Roa (OMR), ligado a CUT, que em 1989 participou do processo de criao do Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR).

    Neste perodo tambm houve uma renovao no sindicalismo urbano, novamente potencializado pela poltica de setores progressistas da Igreja Catlica, com atuao

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    intensiva atravs das CEBs. ZANELLA destaca que o marco inicial desta mudana se

    deu com a paralisao dos professores estaduais em abril de 1979 e a criao do ncleo regional de CPERS em junho do mesmo ano, seguida da greve de trabalhadores nas indstrias de Construo Civil e Mobilirio (1979), com a paralisao de um dia dos funcionrios da Indstria Madalozzo. E a greve nacional dos bancrios (1978/1979), na qual a categoria de Erechim acompanhou a paralisao em assembleia, mas no entrou em greve. A partir de 1983, com a formao da CUT, comearam a se disseminar as campanhas pela adeso na regio, sendo o do Sindicato dos Trabalhadores nas Indstrias da Alimentao o primeiro a aderir proposta da CUT, seguido pelo 15 Ncleo do CPERS. Surgiu tambm a Equipe Sindical Urbana da CUT (ESUC) que resultou na formao de lideranas sindicais e apoiou a criao de novos sindicatos: Sindicato dos Trabalhadores Rodovirios de Erechim e o Sindicato dos Empregados em

    Estabelecimento de Sade, que se somaram s lutas sindicais urbanas regionais, reivindicando:

    [...] as campanhas salariais das diversas categorias de trabalhadores, o cumprimento de acordos coletivos de trabalho e da legislao trabalhista, a garantia do pagamento dos adicionais de insalubridade e periculosidade, a manuteno e ampliao dos direitos sociais trabalhistas no processo constituinte, sade pblica, gratuita e de boa qualidade, direito a aposentadoria especial, melhoria e cumprimento do plano de carreira, melhores condies de trabalho, liberdade e autonomia sindical e eleies diretas para presidente da Repblica (ZANELLA, 2004: p.233).

    Porm, com nmero menor de greves no setor privado em relao ao pblico, devido a precariedade do estatuto da estabilidade ocupacional nesse setor. Alm de

    representarem na regio empresas de pequeno e mdio porte, favorecendo a uma relao amistosa entre os funcionrios e os empregadores. Definitivamente as maiores paralisaes ocorreram durante as greves nacionais das categorias do funcionalismo pblico.

    4.5.3.1. Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura Familiar do Alto Uruguai (SUTRAF-AU)

    A representao sindical da agricultura familiar na regio se d atravs do SUTRAF Alto Uruguai, com abrangncia nos 29 municpios da regio, integrado

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    Federao dos Trabalhadores da Agricultura Familiar no Sul do pas (FETRAF-Sul, criada em 2001), filiada CUT, por ser gestada dentro da mesma. um sindicato voltado a agricultura familiar, que difere do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR). O SUTRAF tem se destacado pela defesa do ecologismo popular e da luta por polticas pblicas para a agricultura familiar. E aposta na agricultura familiar como

    um eixo estratgico para o desenvolvimento sustentvel no Brasil, j que a mesma visa sustentabilidade alimentar, produo de alimentos de qualidade, carter social do trabalho e da renda, e apresenta principalmente fortes laos de cooperao (GABOARD e EDUARDO, 2011: p 09).

    Por manifestar preocupaes pblicas com as questes ambientais, mantem posies contrrias aos transgnicos e uso de agrotxicos. Seu objetivo principal consolidar a representao da agricultura familiar e apoiar as cooperativas de produo como as agroindstrias familiares.

    4.5.4. Os setores progressistas da Igreja Catlica

    Os setores progressistas da Igreja Catlica tiveram uma papel muito significativo nos processos de mobilizao e organizao social e poltico na regio. Sobretudo no

    que diz respeito formao de lideranas atravs das Comunidades Eclesiais de Bases e luz da Teologia da Libertao, que se fundamenta em trs princpios: Ver, julgar e agir. Dentre as atividades desenvolvidas por esses setores da Igreja Catlica esto vrias instncias e organismos que abrangeram toda a regio do Alto Uruguai, como:

    Comisso Pastoral da Terra (CPT); Pastoral da Juventude (PJ); Juventude Operria Catlica (JOC); Pastoral Operria (PO); Curso de Assessoramento de Jovens (CAJO); Treinamento de Ao Pastoral (TAPA). A JOC e a ACO, foram criadas em Erechim na dcada de 70, por intermdio do Padre Adelar de David e da Irm Deonilse Rovani. Alm desses, outros grupos foram criados na regio, como o Grupo Paulo VI que deu origem luta contra as barragens e a Escola de Servidores que preparava lideranas comunitrias para toda a Diocese de Erechim. As CEBs deram substantivo suporte tambm para movimentos regionais como a Comisso Regional de Atingidos por Barragens (CRAL), as Mulheres Trabalhadoras Rurais e o MST.

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    SEMINOTTI refora a importncia da atuao dos setores progressistas da Igreja e sua significao na formao de lideranas regionais, sobretudo nos anos de 1970 e 1980, com destaque para os anos finais da Ditadura Militar, no contexto de luta pela redemocratizao do pas. Perodo em que a sociedade civil brasileira, dinamizada por intelectuais, classes populares, lderes sindicais e religiosos, construiu um protagonismo na crtica:

    ao autoritarismo, a misria e as discriminaes existentes no Brasil. Ocorre a socializao da poltica, a reflexo sobre a realidade brasileira [...] H uma ampliao das classes sociais populares para alm do proletariado e do campesinato (SEMINOTTI, 2009: p.04).

    A adeso e apoio dos setores progressistas da Igreja aos movimentos sociais que comearam a aflorar no final dos anos 70 ocorreu por conta de rupturas internas sofridas na Igreja:

    Internamente a Igreja Catlica vive um processo de mudanas a partir do Conclio Vaticano II em 1966 e principalmente das Conferncias de Medelln em 1968 e Puebla em 1979. Abriu-se espao para a atuao dos setores progressistas da Igreja Catlica a qual passou a pregar a Teologia da Libertao atravs de vrias pastorais e das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) (SEMINOTTI, 2009: p.06).

    Na regio do Alto Uruguai os setores progressistas da Igreja participaram ativamente das disputas eleitorais entre a CUT e a FETAG pela direo dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais, sempre apoiando as lideranas ligadas CUT, utilizando-se

    da estrutura material das parquias, a influncia dos religiosos sobre as comunidades rurais, sua capacidade de mobilizar apoiadores para alm das fronteiras do municpio...

    (SEMINOTTI, 2009: p.11) No entanto o autor observa o distanciamento e o enfraquecimento da atuao dos

    setores progressistas da Igreja a partir dos anos 1990. E chama a ateno para as contradies das aes dos setores progressistas diante da realidade que se formava e

    como saiu de cena aps alcanar o seu objetivo:

    [...] podemos concluir que o objetivo dos setores progressistas da Igreja, em meio s mudanas na conjuntura nacional, foi de intervir no campo poltico com o objetivo de realizar as mudanas na estrutura poltica, econmica e social do pas. A formao das lideranas e a conquista das direes dos sindicatos de trabalhadores com a proposta da CUT tornaram-se instrumentos de organizao social, com capacidade de interveno poltica. Os sindicatos passaram a fazer de sua ao, um mecanismo para a criao e o fortalecimento do Partido dos Trabalhadores na regio Alto Uruguai. Basta observar que lideranas sindicais, dos movimentos populares e padres dos setores progressistas da Igreja Catlica, estudaram o socialismo, combateram

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    o capitalismo e tiveram envolvimento partidrio, participando da criao e organizao do Partido dos Trabalhadores nos municpios onde residiram (SEMINOTTI, 2009:p.15).

    Enquanto ZANELLA percebe a ao dos setores progressistas da Igreja como positiva para a formao e constituio de muitos movimentos sociais na regio, SEMINOTTI aponta alguns elementos interessantes que podem nos auxiliar na compreenso do processo de captura dos atores populares pelas estruturas partidrias de oposio que inevitavelmente se constituram em uma das bases de sustentao e

    legitimao do processo de modernizao e pluralizao dos mecanismos de recrutamento de elites para o aparelho estatal, refuncionalizando o papel de corrente de transmisso (ou circuito de produo de consenso e atenuao da conflitualidade social) dos movimentos sociais em relao ao Estado, tal como o projeto varguista (que na realidade era um projeto histrico que transcendia o Brasil) operou com o velho sindicalismo pelego.

    4.5.5. Centro de Apoio aos Pequenos Agricultores (CAPA)

    Outra entidade presente na campo dos movimentos sociais do Alto Uruguai o

    Centro de Apoio aos Pequenos Agricultores (CAPA). Criado em 1978, ligado a Igreja Evanglica de Confisso Luterana (IECLB) com a finalidade de apoiar o pequeno agricultor no momento em que este comeava a sofre