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CDU 301 RELENDO DURKHEIM E WEBER A PARTIR DO APORTE DA SOCIOLOGIA HISTÓRICA João Morais de Sousa1 Márcia Thereza Couto2 Introdução Questões acerca do reavívamento das conexões entre a Sociologia e a História, e da possibilidade de uma Sociologia Histórica, têm formado um rico campo de debate no seio da teoria social. Emergindo sobretudo a partir das últimas três décadas, a discussão ecoa até o presente, promovendo, inclusive, releituras em autores clássicos. A explicação histórica como recurso à Sociologia tem pautado tanto os trabalhos daqueles que a concebem como podendo construir leis de causalidade para a vida social, quanto dos que apostam na negação de uma explicação causal em favor de interpretações do significado da ação humana. Não é possível deixar de salientar a multiplicidade, e por que não dizer ambigüidade, das distintas formas de equacionar o problema do uso da História na Sociologia. Neste sentido, o presente trabalho pretende abordar as interfaces entre estas disciplinas e a possibilidade de uma "sociologia histórica", a partir de uma releitura em "Da divisão do trabalho social" de E. Durkheim e nos escritos sobre a tese da "ética protestante e o espírito do capitalismo" de M. Weber. O recurso mais ou menos acentuado da História na Sociologia vem se dando entre as correntes que estiveram/estão preocupadas em entender como se estrutura o social através da mudança histórica.3 1 Mestre em ciência Política e Doutorando em sociologialUFPE. 2 Mestre em Antropologia e Doutoranda em sociologia/IJFPE. 3 Neste sentido, não negamos a existência de correntes consideradas a-históricas (como a do marxismo estruturalista de Althusser) em que se nega a possibilidade ou mesmo importância da explicação histórica na sociologia, entrando assim em confronto com as teorias sociológicas da mudança social. Cad. Est. Soc. Recife. v. 15,n. 1, p. 179-196, janíjun., 1999

Relendo Durkheim e Weber a Partir Do Aporte Da Sociologia Histoprica

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  • CDU 301

    RELENDO DURKHEIM E WEBER A PARTIR DO APORTE DASOCIOLOGIA HISTRICA

    Joo Morais de Sousa1Mrcia Thereza Couto2

    Introduo

    Questes acerca do reavvamento das conexes entre aSociologia e a Histria, e da possibilidade de uma Sociologia Histrica,tm formado um rico campo de debate no seio da teoria social.Emergindo sobretudo a partir das ltimas trs dcadas, a discussoecoa at o presente, promovendo, inclusive, releituras em autoresclssicos. A explicao histrica como recurso Sociologia tempautado tanto os trabalhos daqueles que a concebem como podendoconstruir leis de causalidade para a vida social, quanto dos queapostam na negao de uma explicao causal em favor deinterpretaes do significado da ao humana. No possvel deixarde salientar a multiplicidade, e por que no dizer ambigidade, dasdistintas formas de equacionar o problema do uso da Histria naSociologia. Neste sentido, o presente trabalho pretende abordar asinterfaces entre estas disciplinas e a possibilidade de uma "sociologiahistrica", a partir de uma releitura em "Da diviso do trabalho social"de E. Durkheim e nos escritos sobre a tese da "tica protestante e oesprito do capitalismo" de M. Weber.

    O recurso mais ou menos acentuado da Histria na Sociologiavem se dando entre as correntes que estiveram/esto preocupadasem entender como se estrutura o social atravs da mudana histrica.3

    1 Mestre em cincia Poltica e Doutorando em sociologialUFPE.2 Mestre em Antropologia e Doutoranda em sociologia/IJFPE.3 Neste sentido, no negamos a existncia de correntes consideradas a-histricas (como a domarxismo estruturalista de Althusser) em que se nega a possibilidade ou mesmo importnciada explicao histrica na sociologia, entrando assim em confronto com as teorias sociolgicasda mudana social.

    Cad. Est. Soc. Recife. v. 15,n. 1, p. 179-196, janjun., 1999

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    Parece justificada a suposio de que "os usos" da histria na disci-plina vinculam-se s tradies macro-analticas ou s que procuram"snteses". Tal idia decorre de um debate na sociologia ondeapregoa-se que um dos pontos centrais para os praticantes de umasociologia histrica seria o de situar ou enfatizar nos diferentes estudosa questo da "grande transformao" da sociedade ocidental, ou desua passagem para a modernidade e para o industrialismo (ver, porexemplo, Giddens, 1984 e 1991; Abrams, 1982). certo que, mesmoem termos bastante divergentes, os "clssicos" travaram lutas para aconstruo de uma cincia da sociedade tendo como pano de fundoa preocupao com os problemas especficos da estrutura edesenvolvimento do moderno capitalismo ocidental. Tal fato,entretanto, no implica uma abordagem unvoca do problema emtermos do passado da disciplina ou mesmo em termos atuais.

    Saindo deste debate mais geral, uma aproximao em relaoaos objetivos mais especficos deste trabalho significa, em primeirolugar, discutir a relao entre Sociologia e Histria e como esta seprocessa na teoria social de Emile Durkheim e Max Weber e, emseguida, tentar identificar como ela traz (sim, no e em que medida)subsdios para o empreendimento de generalizao em sociologia.Para isto, entretanto, necessrio justificar a importncia de talinvestida.

    Dentre os que trabalham com questes de como, por qu equando a sociologia encontra a histria, C. Tilly (1981) mostra-seesclarecedor em termos da construo de respostas aproximativas.Argumenta - tal como Abrams (1962) que, em termos do desenvol-vimento da disciplina o importante contexto histrico de sua formaoproporcionou, desde o incio, uma aproximao entre ambas. Mostra,tambm, que a partir dos anos 60 esta aproximao acentua-se. NaCincia Social/Sociologia dois campos apresentam esta interface: asanlises de mudana estrutural e as anlises de ao coletiva. Nestasltimas, o reporte histria proporciona a compreenso dos "ricosresduos histricos" da vida social cotidiana (TiIly, 1981).

    J Kalberg (1994), enfatiza a emergncia da sociologia histricasobretudo a partir dos anos 70; quando numerosos cientistas comeama produzir estudos "historicamente informados". Tais estudos, segundoo autor, vm significar crticas ao paradigma estrutural funcionalista4 importante considerar, tal como Skocpol e Semens (1995) fizeram, a existncia de pelomenos trs distintas formas de incluso da Histria comparativa em abordagens da macro-sociologia (Histria Paralela Comparativa, Histria Comparativa de Contraste Orientado e HistriaComparativa Macro-Analtica), assim como diferenciaes no interior delas.

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    por nomes coma Bendix e Collins, que o consideram como 'esttico"e "a-histrico" e protestos contra o dogma do universalismo, promo-vidos, por exemplo, por Scopkol. Em suma, apesar das diferentesrespostas dadas s questes de como, porque e quando, a "interface"entre estas duas disciplinas possvel, o aporte sempre necessrio.

    Mais que isto, a Histria no reprova a Sociologia, e osmateriais histricos no constituem evidncias brutas esperando umaanlise sociolgica (Tilly, 1981). A teoria sociolgica necessita debases histricas. Em acordo com o posicionamento de Stinchcombe(1978), os socilogos erraram buscando no a aplicao de teoriapara histria, mas usando a histria para desenvolver teorias.

    Nos ltimos anos, portanto, no apenas o debate sobre aSociologia Histrica contempornea tem consumido intelectuais eproduzido debates s vezes controversos no seio da disciplina.Significativo , tambm, a retomada dos clssicos na busca de "pistas"que poderiam responder a outras trs questes: como, em que medida,e com que grau de especificidade autores como Marx, Weber eDurkheim produziram um "encontro" entre tais disciplinas (Abrams,1982) e, para alm disso, como suas especficas construes terico-metodolgicas podem servir de base para os estudos posteriores deuma Sociologia Histrica (Zaret, 1980; Kalberg, 1994). E certo quese deve considerar outras questes envolvidas nas releituras dosclssicos, mas a busca de respostas para as que foram postas por sis justificam mais um empreendimento de carter aproximativo.A sociologia histrica de E. Durkheim em Da Diviso doTrabalho Social

    Partindo da forma como Durkheim utilizou dados histricosem Da Diviso do Trabalho Social, e como isso se configurar emuma sociologia histrica, no entramos no mrito da discusso dasdiferenas entre a Sociologia e a Histria, como faz Tilly:

    The division of labor, then, resembles the division betweenthe myco/ogist and the mushroom co//actor, between thecritic and the trans/ator, between the poltica/ analyst andthe city hall reporter, between brama and brawn. Historydoes the transcription, sociology the analysis (1981: 5).

    5 Kalberg (1994) mostra como em relaoao trabalho de Weberh diferentes interpretaes. Adespeito de tantos comentrios", o autor se prope a um exame detalhado dos escritos histricoscomparativos de Webor.

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    Nem enfatizamos a proposta de Abrams, que apresenta umacomo a essncia da outra:

    Sociological explanation is necessarily historical. Historicalsociology is thus not some special kind of sociology; rather,it is the essence of Lhe discipline (1982: 2).

    Apenas ressaltamos a importncia do instrumental terico-metodolgico de Durkheim utilizado nesta obra, mostrando que osprocedimentos utilizados preenchem os requisitos bsicos exigidospara se fazer uma pesquisa histrica de forma lgica e sistematizada,nos moldes definidos por Somers (1995), Somers e Skocpol (1995),Kane (1991), Abrams (1992) e ilily (1981). De forma concreta, utiliza-remos os argumentos de Abrams (1982) que trabalhou diretamentecom essa obra de Durkheim.

    O ponto de partida so os argumentos de Abrams segundo osquais para se fazer um estudo histrico, primeiro tem que se considerara significncia dos problemas e hipteses, observar as limitaes dacoleta de dados, a vastido do material bruto (matria-prima) e suacomplexidade. Ele chama ateno para o fato de o material bruto nopassar de detalhes em um catico fluxo de eventos (1982: 18).

    A partir desses argumentos, e identificando qual a principalpreocupao de Durkheim em Da Diviso Social do Trabalho,procuramos observar se essa preocupao tem significncia ou noconsiderando os critrios colocados acima.

    A questo central de Durkheim o problema da coeso social,que, em ltima instncia, envolve mais duas questes: odesregramento moral da sociedade, provocado pela falta de coesoe a individualizao crescente da sociedade industrial. Nestaperspectiva, a coeso social perpassa todo o seu trabalho e temsignificncia, j que envolve as duas categorias centrais da anlisesociolgica: sociedade e indivduo (estrutura e ao).

    Para entender a passagem para o industrialismo, Durkheimelabora um arcabouo terico-metodolgico (abstrato), chamado demodelo da Solidariedade Social, que se divide em dois tipos:solidariedade mecnica e orgnica.

    Esse modelo abstrato tambm est de acordo com o queAbrams (1982) escreve, quando afirma que no se pode fazer histriano vcuo, e aponta as dificuldades e os cuidados que devem sertomados com a infinidade do material bruto. Segundo ele, paraobservar o sentido daquele caos (vastido do material bruto), deve-182 Cad. Est. Soe. Recife. v. 15, n. 1, p. 179-196, janljun., 1999

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    se atribuir a ele algum significado provisrio (idias que se tm arespeito de assuntos que podem existir dentro do fluxo e sobre comoeles so produzidos e mudados).

    Tomando o fenmeno da coeso social como parmetro,Durkheim adentrou-se na histria e observou como ele se transformouao longo dos tempos e como estava se dando na sociedade moderna.Partiu das sociedades primitivas sem se preocupar muito em precisaro tempo e o espao, porm, referiu-se sempre a situaes histricasconcretas.

    O sistema jurdico tomado como instrumental metodolgico.Durkheim observa que nas sociedades primitivas predomina asolidariedade mecnica e o direito repressivo. Relativiza ao afirmarque essa idia carece de preciso, j que nessas sociedades nohavia um sistema jurdico escrito. Para fortalecer esta hiptese e nofazer sociologia histrica no vcuo, o que demonstra o carter cientficodo seu mtodo, busca a confirmao nos mais antigos direitos escritos.Isto , na Bblia, nos quatro ltimos livros do Pentateuco: Exdo,Levtico, Nmeros e Deuteronmio. "Desses quatros ou cinco milversculos, s num nmero relativamente nfimo so expressas regrasque, a rigor, podem ser consideradas no-repressivas" (1995: 117).

    Em seguida, demonstrando domnio sobre esses escritos,identifica os versculos em que as regras no podem ser consideradasrepressivas e os objetos a que eles se referem (Durkhiem: 1995: 117-118).

    A sociologia histrica de Durkheim vai se configurando quandoele, sem uma seqncia temporal linear precisa, mostra como o direitorepressivo vai cedendo espao ao direito restitutivo, confirmando suasuposio de que, nas sociedades primitivas, a justia era quase quetotalmente repressiva. Cita a lei das XII Tbuas como caractersticade uma sociedade mais avanada e parecida com a atual, diferentedo que era o povo hebreu (onde o direito era extremamente religioso).

    Depois, remetendo-se histria das sociedades crists, citaa lei Slica e mostra que ela se refere a uma sociedade menosdesenvolvida do que era Roma no sculo IV. Dos seus 293 artigos,apenas 25 no tinham carter repressivo. Seguindo essa lgicaprogressista, constata que na lei dos Burgndios, uma sociedademais recente, dos seus 311 artigos, 98 no apresentavam carterrepressivo. E, por fim, analisando alei dos Visigodos, uma sociedadeainda mais recente, observa que mesmo o direito penal sendopredominante, o direito restitutivo tinha uma importncia quase igual(1995:120-125).Cad. Est. Soc. Recife. v. 15, n. 1, p. 179-196, jan./jun., 1999 183

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    O marco que Durkheim toma para conduzir suas investigaes,o f lo condutor de toda sua anlise sociolgica, a diviso social dotrabalho. Uma "lei geral", uma constatao histrica inegvel. Valelembrar que a diviso do trabalho em Durkheim (1995) no era vistacomo nos economistas clssicos. Nas suas prprias palavras:

    para estes [economistas], a diviso do trabalho consisteessencialmente em produzir mais. Para ns, esta produti-vidade maior apenas urna conseqncia necessria, umacontrapartida do fenmeno. Se nos especializamos, no para produzir mais, mas para poder viver nas novascondies de existncia que surgem.

    Nos estudos das sociedades primitivas, como colocado acima,ele se reporta ao direito repressivo e os conceitos so apresentadosde forma a no deixar brechas para explicaes baseadas em juzosde valor. Sua preocupao com as generalizaes "precisas".Quando define em que consiste o crime, fica claro esse cuidado.Para ele, a consistncia do crime est na prevalncia de caracte-rsticas comuns. "[ ... ] eles afetam da mesma maneira a conscinciamoral das naes e produzem a mesma conseqncia. So todoscrimes, isto , atos reprimidos por castigos definidos" (1995: 40).

    Voltando noo de crime, a questo que se coloca aseguinte: qual o meio de encontrar as caractersticas comuns emvrias espcies de crimes? Durkheim (1995) vai dizer que no enumerando os atos que foram classificados de crimes em todos ostempos. A resposta tambm no est nas propriedades intrnsecasdos atos impostos ou proibidos pelas regras penais, o queapresentaria, segundo ele, tamanha diversidade. A resposta seencontra nas relaes que mantm com uma condio que lhe exterior: "De fato, a nica caracterstica comum a todos os crimes que eles consistem (salvo algumas excees) em atos universalmentereprovados pelos membros de cada sociedade" (1995:43).

    Depois de discorrer sobre o crime, define outra importantecategoria do seu modelo: conscincia coletiva, como conjunto dascrenas e dos sentimentos comuns mdia dos membros de umamesma sociedade que forma um sistema determinado que tem vidaprpria (1995:50).

    Esta categoria fundamental para o conceito de solidariedademecnica. Durkheim no est preocupado com as particularidades,as especificidades dos indivduos das sociedades primitivas, onde a

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    conscincia coletiva determinante. Nelas, a relao indivduo versussociedade mostra que no h espao para o indivduo. A sociedade anterior. A importncia do indivduo s surge na solidariedadeorgnica mediante a diviso do trabalho. Mesmo a conscincia coletivasendo formada na relao entre indivduos, ela se toma independentee ganha vida prpria. Nas palavras de Durkheim (1995):

    Eles [indivduos] passam, ela [conscincia coletiva]permanece. a mesma no Noite e no Sul, nas grandes epequenas cidades, nas diferentes profisses. Do mesmomodo, ela no muda a cada gerao, mas liga umas soutras geraes sucessivas (1995: 50).

    O desinteresse de Durkheim pelas diferenas, asparticularidades do indivduo nas sociedades primitivas tem uma razo:nelas prevalecem as semelhanas. Da sua preocupao somentecom o que se repete regularmente, com o que invarivel, com o que comum a todos eles.

    Apesar da sua viso progressista, onde parte de um estgiointerior (a sociedade primitiva) para um superior (a sociedadeindustrial), Durkheim no utiliza a histria de forma contnua esistematizada, conforme afirmamos antes. Esse posicionamento levouAbrams a afirmar o seguinte:

    But here we must note that as an exercise in historicalsocio!ogy Durkheim's treatment of the division of labour isnotably unhistorical. Not only is there nothing in the wayof care fui historical documentation of the processes hedescribes anywhere in the book (1982: 27).

    Por um lado, concordamos com Abrams. Realmente no dpara perceber em seu trabalho um levantamento histrico tosistematizado e criterioso no que tange a uma lgica linear de espao tempo. Mas, por outro lado, discordamos no que tange coerncia legitimidade das informaes levantadas. Todas as vezes em queDurkheim se remete histria, as informaes so precisas e colhidasda forma mais criteriosa possvel, deixando evidente o seu profundo6 Essa hiptese fortalecida nessa passagem: 'No se deve dizer que um ato ofenda aconscincia comum por ser criminoso, mas criminoso porque ofende a conscincia comum.No o reprovamos por ser um crime, mas um crime porque o reprovamos. Quanto a intrnsecadesses sentimentos, impassvel especific-la; eles tm os mais diversos objetos e no sepoderia dar, deles, uma frmula nica" (1995: 52).

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    conhecimento da natureza dessas informaes. ocaso do seu dom-nio sobre a religio e o sistema jurdico, tanto nas sociedades primitivascomo nas sociedades modernas.

    O fato de ele no se dar o trabalho de voltar constantementepara a histria, deve-se ao seu instrumental terico-metodolgico:somente informaes referentes a alguns aspectos da justia e/oureligio so consideradas importantes para justificar as suassuposies.

    Abrams (1982) coloca que, embora Durkheim tenha faladoem leis histricas, ele estava muito mais interessado na conexo lgicaentre os dois tipos de solidariedade do que na conexo histrica.

    Ora, o prprio Abrams afirmou que no se pode fazer histriano vazio, ou, em outras palavras, necessrio um instrumental terico-metodolgico capaz de colher informaes histricas da forma maissistematizada possvel. As matrias-primas so vastas e infinitas epodem ser utilizadas de diversas maneiras. Cabe ao pesquisadormanuse-las de forma sistemtica e lgica. Dai a importncia doinstrumental de Durkheim. Nessa perspectiva, pode-se falar em umasociologia histrica no seu trabalho.

    importante entender a lgica do seu modelo para compre-ender, por exemplo, porque ele procura analisar as sociedades primi-tivas, no pelas diferenas dos indivduos, mas pelas semelhanas.A resposta parece simples e mostra seu interesse pela generalizao:ao contrrio da sociedade atual, havia mais semelhanas do quediferenas entre os indivduos.

    O controle da ordem social nestas sociedades se d pela forada conscincia coletiva. Para Durkheim, quanto mais forte, maior setorna a indignao contra as violaes sociais (os crimes). A justia definida por ela e tambm ela quem determina com preciso aspenas contra toda e qualquer violao das regras sociais. Enquantoa justia nas sociedades primitivas era fixada com rigor e exatidopelos sentimentos coletivos, na sociedade moderna (industrial), esserigor e preciso s sero feitos conforme cada caso, cada parte e deforma abstrata.

    O fato de Durkheim tomar os fenmenos jurdicos comoinstrumento metodolgico para estudar a passagem para a industria-lizao, evidencia sua preocupao com a falta de coeso ou com odesregramento moral da sociedade industrial. Do ponto de vistainstitucional, essa escolha justificada porque a justia, teoricamente, a responsvel pela manuteno do controle da ordem social.

    Na sociedade industrial onde predomina a solidariedade186 Cad. Est. Soe. Recife. v. 15,n. 1, p. 179-196, jan/jun., 1999

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    orgnica, h a prevalncia do direito restitutivo. A sano no maisexpiatria ou vingativa. Seu objetivo restaurar o estado das coisassegundo a justia. A falta de coeso o principal risco que a sociedadecorre, j que no pode haver sociedade sem coeso. O respeito sinstituies, s regras estabelecidas de fundamental importnciapara assegurar a paz social.

    Com a diferenciao das tcnicas, das profisses e dasfunes, ocasionada pela diviso do trabalho, a conscincia coletiva enfraquecida e a conscincia individual se fortalece. O grandedesafio na sociedade industrial manter um mnimo de conscinciacoletiva, j que sem esta no h sociedade. E importante destacarque, para Durkheim, normalmente a diviso do trabalho produzsolidariedade social, e espera-se que, com a especializao dasfunes, elas concorram de maneira regular. E caso a ordem sejaperturbada, precisa-se somente restabelec-la.

    Quanto ao parmetro utilizado para estudar a solidariedadeorgnica (o fenmeno jurdico) Ourkheim se refere aos direitosdomstico, contratual, processual, administrativo e constitucional. Soos elementos advindos desses direitos os responsveis pelasolidariedade social. Durkheim observa alguns casos em que a coesono vinha ocorrendo conforme a tendncia natural, cita as crisesindustriais e comerciais (crises econmicas) e afirma que elasacarretam falncias. A medida que o trabalho se divide, certas funessociais no vo sendo ajustadas umas s outras, acarretando, porexemplo, o antagonismo entre o trabalho e capital. A diviso dacincia, tambm, no forma mais um todo solidrio (1995:368-372).A estas situaes que fogem normalidade, ele chamou de anomia.

    A sociologia histrica de Durkheim vai se configurando,tambm, nessas passagens nas quais ele vai citando exemploshistricos concretos. Nelas, as informaes histricas levantadas somais precisas quanto ao tempo e ao espao.O dilogo entre Sociologia e Histria em escritos sobre a teseda "tica protestante e o esprito do capitalismo"

    Os escritos de Max Weber sobre religio constituem, semsombra de dvida, parte fundamental de sua obra. Se tomarmos adiviso que Aron (1996) faz desta, tais trabalhos representam um dosquatro temas centrais, ao lado dos escritos sobre metodologia, crticae filosofia, das obras propriamente histricas, e da sua obra-prima -"Economia e Sociedade" (na qual tambm figuram alguns importantestrabalhos de "sociologia da religio").Cad. Est. Soe- Recife. v. 15,n. 1, p. 179-196, jan/jun., 1999 187

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    Os trabalhos aqui selecionados para anlise, portanto, passa-ram por critrios que vo alm do "reconhecimento da celebridade" eda exausto. Antes, estiveram sujeitos ao carter da localizao emtermos de produo intelectual no que Cohn (1989) considera comoos trs principais perodos de produo de Max Weber. Somado aisto, os textos aqui reunidos relacionam-se diretamente com a teseacerca da "grande transformao" histrica que foi a base para amoderna civilizao ocidental e problema central investigado por ele.

    A tese da "tica protestante" representa a tentativa de "expli-car'/"compreender"a articulao entre modernidade, racionalidadee histria. Deforma geral, tal tese oferece, mesmo que indiretamente,uma viso aproximativa de outras temticas - metodologia em cinciassociais, cincia e ao, possibilidade de estabelecimento de leis decausalidade histrica e sociolgica, assim como a relao entreSociologia e Histria. Estes temas constituem uma obra que denotvel coerncia; que se encontra traduzida, aponta Cohn, na formacomo "( ... ) o modo de trat-los vo ganhando forma ao longo dosanos, mas j esto claramente delineados nos seus primeirostrabalhos" (1989:10).

    Iniciaremos a tarefa de levantar os aspectos centrais dostrabalhos selecionados a partir da ordem proposta. Em "A Etica...pode-se observar trs pontos que iro constituir as bases dapreocupao sobre a origem do capitalismo em Weber. A primeira dizrespeito sua constatao (segundo ele prprio ainda incipiente) deque o Ocidente, na era moderna, veio a conhecer um tipo nuncaantes encontrado de capitalismo: a organizao capitalstica racionalassentada no trabalho livre. Nos sculos XVI e XVII, aponta ele, amaior parte dos pases economicamente desenvolvidos eraprotestante. Este ponto de partida de Weber representa, sobretudo,a busca das origens ou da gnese de dois pontos fundamentais: doCapitalismo Burgus, e sobre o qual ele enfatiza que o que lhe interessano tanto o desenvolvimento da atividade capitalista como tal, "mas

    7 Respectivamente, de 1903 a 1906 (momento este em que se destacam importantes escritosmetodolgicos, assim como um de seus mais lidos e discutidos trabalhos, "A tica protestantee o esprito do capitalismo", o qual foi selecionado para reflexo); de 1911 a 1913 (perodo emque selecionei seu ensaio sobre as seitas protestantes na Amrica do Norte, a saber: Asseitas protestantes e o esprito do capitalismo") e, por ltimo, o perodo que compreende osanos de 1916 a 1919 (momento em que o autor retoma alguns dos temas de sociologia dareligio j trabalhados nos estudos sobre "A tica econmica das religies mundiais" e quepodero ser visualizados em "Religio e racionalidade econmica", texto tambm selecionado,8 Neste sentido ver Abrams (1982), especialmente no capitulo 'The transition to industrialism:rationalisation",

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    as origens desse sbrio capitalismo burgus, com a sua organizaoracional do trabalho" (1996: 9) e, paralelamente, do Racionalismo,no em termos gerais ou abstratos, mas a busca do reconhecimentoda peculiaridade especfica do racionalismo ocidental e de sua origem.

    Um segundo ponto remete noo de que o "novo" espritodo capitalismo no se resumia busca do mero enriquecimento. Oque possibilitou a superao dessa "inicial noo ingnua" decapitalismo, j que o capitalismo caracteriza-se para Weber em umaorganizao permanente e racional em busca de lucro semprerenovado, estava definido, em sua base, por um princpio de condutatica regulada no cotidiano.

    Em terceiro lugar emerge a constatao da "afinidade eletiva"entre o esprito secular do capitalismo e o protestantismo ascticocomo um todo, mas especialmente o calvinismo, que, para ele, ondese tem a fundamentao mais conseqente da idia de "vocao".Ray (1996) resume bem a idia de Weber: os calvinistas buscaram aprova da eleio pelo sucesso na atividade mundana. Por outro lado,o gozo da riqueza era condenado, o que impedia gastos em consumosdespropositais. Como conseqncia, o comrcio tornou-se reguladopor disposies motivacionais que antes inexistia.

    Neste ponto nevrlgico no s da formulao de Weber, masdas posteriores interpretaes feitas, faz-se necessrio considerarduas questes centrais. A primeira diz respeito preocupao deWeber em alertar para o carter no finalista ou imprevisto que osprogramas de reformas ticas tiveram para os reformadores religiosos.E neste sentido que Weber defende a aceitao da idia de que,para os reformadores, "( ... ) a salvao da alma era o nico pontoangular de suas vidas e obras. Suas metas ticas... eram apenasconseqncias de motivos puramente religiosos" (1996: 60). Asegunda, que parece mais importante para as interpretaesposteriores da tese weberiana, refere-se ao carter no deterministaou nonocausal da mesma. Segundo ele, "( ... ) no se pode sequeraceitar uma tese tola ou doutrinria segundo a qual o 'esprito docapitalismo'.., seria um produto da reforma". "O nosso desejo odeverificar se, em que medida, participaram as influncias religiosas namoldagem qualitativa e da expresso quantitativa desse 'esprito' pelomundo..." (idem:

    Continuando a tarefa aproximativa sobre o foco cronolgicodo desenvolvimento da tese de Weber, pode-se ver que os outrosestudos selecionados buscam aprofundar a "compreenso" daquesto proposta: em que medida as concepes religiosas tmCad. Est. Soc. Recife. v. 15, ii. 1, p. 179-196, jan.fjun., 1999 189

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    influenciado o comportamento econmico das diferentes sociedades.E assim que em seu trabalho "As seitas protestantes... e no posterior"Religio e raciona/idade econmica" Weber recorre anliseclaramente comparativa. Segundo ele, este tipo de anlise no operana busca do que seja comum a vrias configuraes histricas, mas,inversamente, permite trazer tona o que peculiar a cada umadelas. E neste sentido, salienta Cohn (1989), que a pesquisa histricaem Weber promove uma dupla tarefa: apontar traos e idiassemelhantes em pocas e lugares distintos e assinalar traospresentes em dado universo histrico particular que possam serapontados como "responsveis" pelas diferenas entre este e osdemais. Os dois textos, portanto, e cada um a seu modo, assumemtal proposta, a fim de possibilitar a explicao causal, perseguidapelo autor. Esta, para Weber, no pode ser exaustiva. Visto que noh uma seqncia nica causal e abrangente na histria, toda causaapontada para um determinado fenmeno ser sempre uma entremuitas outras tambm possveis assim como acessveis aoconhecimento cientfico.

    Resumidamente, v-se especificamente neste tpico que asua argumentao volta-se, em primeiro plano, para o ataque dasteses do "materialismo histrico" em dois pontos bsicos: o de que o"esprito do capitalismo" representa muito mais do que simples "super-estruturas" de "estruturas" econmicas e, por outro lado, a crtica auma interpretao materialista unilateral da cultura e da histria. Nesteltimo ponto, resume Ray (1996), sua crtica volta-se ao noentendimento de que a histria segue uma lgica de conseqnciasinvoluntrias, governadas por afinidades acidentais, e no poderia,portanto, seguir o tipo de leis de desenvolvimento proposto pelomaterialismo histrico.

    Voltando aos textos selecionados, observa-se em "As seitas..."a busca de Weber pela descrio e investigao do caso particularda Amrica com as seitas protestantes (especialmente os batistas eos quacres). Segundo ele, tais seitas, durante o perodo colonial naAmrica nas reas centrais da Nova Inglaterra, especialmente emMassachusetts, estabeleciam conscientemente a ligao entre ocomportamento religioso de tipo asctico e a cidadania plena noEstado. Em suas palavras, "A enorme significao social da admissodo pleno gozo dos direitos da congregao sectria.., funcionava entreas seitas como um estmulo tica profissional asctica, adequada omoderno capitalismo durante o perodo de sua origem" (Weber, 1982:358). Neste mesmo trabalho, apesar de dedicar-se anlise das seitas190 Cad. Est Soc. Recife. v. 15, n. 1,p. 179-196, janljun., 1999

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    na Amrica, Weber no se nega de estabelecer comparaes emrelao ao calvinismo e ao puritanismo na Europa, assim como emrelao Idade Mdia.

    Em relao comparao de carter temporal com a IdadeMdia, assim como em termos da anlise comparativa com referncias religies da ndia e China (hindusmo, taosmo, budismo e confucio-nismo), em suma, de quatro religies universais, faz-se necessrioexemplificar a forma como o autor trabalha com a anlise comparativa.Weber ratifica a importncia conferida racionalizao que umareligio apresenta, o que influenciar, de modo singular, a origem domoderno ethos capitalista burgus. Para ele, so dois os critriosbsicos, que se relacionam intimamente: "( ...) o primeiro o grau emque uma religio despojou-se da magia; o outro o grau de coernciasistemtica que imprime relao entre Deus e o mundo e, emconsonncia com isso, sua prpria relao tica com o mundo"(Weber, 1989:151).

    Comparando protestantismo e confucionismo, percebe-sequeo "desencantamento do mundo" foi levado s suas ltimas conse-qncias no primeiro, promovendo uma completa eliminao da magia.Enquanto no confucionismo a magia mostra-se intacta no significadopositivo da salvao, ao mesmo tempo em que no promoveu orompimento com a tradio, referenciada nos laos de parentesco, ede uma tica baseada na comunidade de sangue, o contrrio severifica no protestantismo. Em verdade, sublinha Weber, a separaoentre o confucionismo e o protestantismo apresenta-se "( ... ) nocontraste entre, a adaptao ao mundo num caso e a transformaodo mundo no outro" (Idem: 155, grifo nosso). Mas isso no significa,para ele, ausncia de racionalismo no confucionismo. Muito pelocontrrio. Em resumo, enquanto o nacionalismo confuciano significava "adaptao" racional ao mundo, o nacionalismo puritano significava "dominao" racional do mundo.

    Para alm da compreenso do uso e tratamento dos dadoshistricos, a investigao da possibilidade de uma sociologia histricaem Weber, ou de uma sociologia historicamente informada, torna-seclara quando recorremos ao aporte de sua epistemologia sociolgica.

    E inconteste o fato de que a sociologia nascente tendeu(considere, por exemplo, Comte e Durkheim) a tentar definir seusmtodos a priori. Ao contrrio destes, para Weber a abordagem do

    9 Tal principio, v-se, pode ser aplicado a todo e qualquer fenmeno religioso circunscrito histricoe culturalmente..

    Cad. Est. Soe. Recife. v. 15, n. 1, p. 179-196, janjun.. 1999 191

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    problema terico do mtodo deveria ser precedido por trabalhosempricos. Conforme Freund (1980), Weber concebia que o bommtodo era aquele que se mostrava til e eficiente ao nvel do trabalhoconcreto. Sua Sociologia caracterizaria-se, pois, por uma cincia queprocura compreender a ao social. Trata-se fundamentalmente deuma cincia da causalidade social, embora remetida elucidao dosentido da ao. Tal compreenso implica a percepo do sentidoque o ator atribui sua conduta. maneira de Abrams (1982),consideramos que tanto para Marx como para Durkheim asubjetividade (o indivduo) um problema menos importante a serinvestigado, se comparados com Weber. Isto porque, para ambos, aao pode ser explicada pelas questes estruturais. Assim, osignificado da ao inferido de um conjunto estrutural, e noestudado diretamente. Isso, entre outras coisas, distingue a sociologiahistrica de Weber.

    Em termos gerais, o problema do significado tem papel capitalna teoria weberiana. neste sentido que ele advoga que o "mtodocompreensivo" a melhor frmula para elucidar o significado de umadada atividade.

    O mtodo compreensivo de Max Webertorna claro o postuladoda irredutvel especificidade do objeto das cincias sociais. Mas oprincpio de causalidade faz-se necessariamente presente, o quedenota a crena de Weber na Sociologia como uma cincia "positiva".Para autores como Aron (1996), Freund (1980), Gusmo (1997) eCohn (1989), Weber tinha aguda conscincia das "fraquezas" ou"inconsistncias" deste mtodo. A validade deste e da cincia socialexigia que o cientista no projetasse seus prprios juzos de valor nainvestigao empreendida.

    A Sociologia, em Weber, enquanto cincia moderna , poressncia, um devenir (Aron, 1996). Neste sentido, observa-se o quantoWeber se distancia de Durkheim, o qual a concebia - no futuro -como uma cincia plenamente edificada num conjunto de leis sociais.

    Voltando questo de causalidade social, consideramos, talcomo Gusmo, que, para Weber, "( ... ) a elucidao da causalidadesocial era indissocivel da elucidao dos motivos dos agentes, desorte que, na ausncia desta ltima, no cabia falar numa explicaosociolgica" (1997: 22). A concepo de causalidade social , semdvida alguma, uma das grandes contribuies de Weber no campoepistemolgico. Ele observava que, na atividade humana, a causa eo efeito podem ser intercambiveis. Freund (1980) mostra como, nosdias atuais, tal concepo pode parecer banal. Entretanto, no o foi192 Cad. Est. Soc. Recife. v. 15,n. 1, p. 179-196, janfjun., 1999

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    em sua poca, quando toda nfase era posta na causalidademecnica. Continuando com Freund, v-se o quanto sua interpreta-o se aproxima da de Gusmo (1997) quando afirma que, para Weber,a causalidade no nada alm de uma explicao probabilsticaparcial. A causalidade rigorosa no existiria em cincia social: elatenderia a depender da avaliao do pesquisador e de umadocumentao mais ou menos boa.

    Um outro construto de importncia metodolgica formuladopor este autor que se consubstancia num ponto de convergncia entrea Sociologia e a Histria a noo de "tipos ideais". Todos os autoresat aqui citados concordam que a concepo de "tipo ideal" constitui-se enqpanto centro da doutrina epistemolgica de Weber. Todo "tipoideal", como Aron (1996) salienta, uma organizao derelaes inteligveis prprias a um conjunto histrico ou a umaseqncia de acontecimentos" (:482). Sendo assim, confrontados realidade, a pesquisa histrica enfrenta a tarefa de determinar emcada caso individual, o grau no qual tal construto ideal aproxima-seou diverge da realidade. As noes trabalhadas por Weber na teseda "tica protestante e o esprito do capitalismo" representam, pois, aconstruo e a comparao de tipos ideais com as mltiplas realidadesestudadas por Weber a partir de seu mtodo comparativo.

    Seguindo a retomada dos estudos analisados, pode-seconstatar o quanto tal empreendimento metodolgico concretizado.Weber advoga que um acontecimento deve ser explicado por umapluralidade de causas, cabendo ao pesquisador apreciar-lhes o peso.Relembrando a tese proposta, vemos que os principais representantesdo capitalismo em sua origem pertenciam a vrias seitas puritanas,cujas vidas pessoal e familiar eram rgidas. O xito nos negciosrepresentava indcios de "eleio religiosa". Como no desfrutavampessoalmente dos lucros, reinvestiam nos negcios, acumulando-os.Enfim, a inclinao para o ascetismo foi importante para o capitalismo.Torna-se notrio, como visto anteriormente, que Weber repete que opuritanismo no a nica causa do capitalismo. O construto de"pluralismo causal" o impediria disto. Trata-se, portanto, de uma firmerejeio de um conhecimento histrico de carter monocausal emfavor de uma sociologia histrica de carter multicausal.

    lo Pode-se, resumidamente, dizer que eles representam modelos de abstrao da realidadeconstrudos pelo pesquisador que, combinadas num quadro homogneo, permitem a anlise dosocial.

    Cad. Est. Soc. Recife. v. 15, n. 1, p. 179-196, jan./jun., 1999 193

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    ConclusoComo j enfatizamos, o propsito foi menos o de estabelecer

    comparaes entre uma 'Sociologia Histrica" durkheimiana e umaweberiana e mais o de tentar identificar parmetros tericos emetodolgicos nas obras analisadas destes autores que sirvam debase para uma resposta, sempre aproximativa, de como, por qu equando a sociologia encontra a histria.

    Da anlise da obra "Da diviso do trabalho social"fica a liodurkheimiana de que jamais devemos deixar de lado o rigor cientficona utilizao e maneios de fatos histricos. Se o cientista quer estudarum fato tem que se cercar de recursos assim como o fsico e o qumicocriam aparelhos para aprender a realidade. Para ele, a sociologia uma cincia causal. No se baseia em especulaes; raciocniosapriorsticos artificiais. Ao contrrio, tem a pretenso de serconhecimento emprico e no devaneio; tem que ir aos dados daexperincia. Sua grande preocupao, como pde ser vista, eraestabelecer uma cincia monolgica da sociedade, que estabelecesseleis, relaes e varianas. Utiliza a comparao como aportemetodolgico, fundamental na relao entre sociologia e a histria.

    Considerando os autores aqui citados, principalmente Abrams(1982), a concluso que se chega que a pesquisa de Durkheim em"Da diviso do trabalho social, pode ser considerada como umasociologia histrica, na medida em que preenche os requisitos bsicos.

    A tese de Weber sobre a "tica protestante e o esprito docapitalismd' tem gerado discusses acaloradas praticamente desdea sua primeira publicao (por volta de 1904). Em termos gerais, taldebate deveria sertomado no nos termos simplistas da suplantaode uma explicao determinista por outra (como o prprio Weber jsalientou), mas em termos da preocupao constante do sculo XXcom as questes de mtodo histrico e com a gnese da modernidade,de onde vislumbra-se a possibilidade de posicion-la no debate daarticulao entre a Sociologia e a Histria, assim como na discussoacerca da constituio de uma Sociologia Histrica.

    Seguindo o raciocnio de Abrams (1982), entendemos que acausalidade histrica para Weber no implica o estabelecimento deli No existe seno um meio de demonstrar que uni fenmeno causa de outro, e compararos casos em que esto simultaneamente presentes ou ausentes, procurando verse as variaesque apresentam nestas diferentes combinaes de circunstncias testemunham que um dependedo outro" (1995:109). "( ... ) se, pois, desejarmos empregar o mtodo comparativo de maneiracientfica, isto , conformando-nos com o princpio de causalidade tal qual se desprende daprpria cincia, deveremos tomar por base das comparaes que instituirmos a seguinteproposio: a um mesmo efeito corresponde sempre uma mesma causa (idem:1 12).

    194 Cad. Est. Soc. Recife. v. 15, n. 1, p. 179-196, jan/jun., 1999

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    um mundo social governado por leis gerais abstratas (tal como vistoem Durkheim, por exemplo). Por incorporar vrios aspectos do social,tem como propsito a compreenso e a explicao no do capitalismocomo tal, mas do esprito do capitalismo. O trabalho de uma sociologiahistrica do capitalismo seria, portanto, primeiro compreender a ticana qual ele cresceu e, secundariamente, explicar como um tal ethosveio a existir. Assim, se as teses de Weber levantam (ou no)investigaes empricas, sua estratgia de explicao pode ser vistacomo de fundamental importncia para sociologia histrica. Mesmoporque, como demonstra Aron (1996), a concepo de Weber era ade que nas cincias da realidade humana deve-se distinguir duasorientaes: uma no sentido da histria (do relato daquilo que noacontecer mais), a outra no sentido da sociologia (em termos dereconstruo conceitual das instituies sociais e de seufuncionamento). Ambas, salienta Weber, so complementares.

    Por certo, h grandes diferenas nas aproximaes entre aSociologia e a Histria em ambos, especialmente pela forma, segundoressaltamos, como encaram a Sociologia e como utilizam o mtodocomparativo a fim de consubstanciar os objetivos que deveriam serperseguidos pela nascente "cincia da sociedade". Mas necessrioreconhecer tambm que cada um a seu modo buscou respostas paraa dinmica das transformaes que estavam ocorrendo sobretudo apartir da segunda metade do sc. XIX ou, em outras palavras, apassagem para a modernidade e o industrialismo. Foram, sobretudo,as questes postas e o intento de respond-las que fez com que seapoiassem na Histria e buscassem nela justificativas paracomprovarem suas proposies acerca da vida social. Portanto, justo reconhecer que, mais que uma sociologia "historicamenteinformada", produziram uma "Sociologia Histrica", cujo atualreavivamento deve necessariamente contemplar outras releiturasdestes e de outros clssicos.BibliografiaABRAMS, Philip (1982), Historical sociology. West Compton House:

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