Religião e Identidade Cultural Negra

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Religião e Identidade Cultural Negra

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  • cadernos de campo, So Paulo, n. 20, p. 1-360, 2011

    Religio e identidade cultural negra: catlicos,

    afrobrasileiros e neopentecostais

    VAGNER GONALVES DA SILVA

    Este artigo dedicado memria de Rita Amaral

    Introduo

    Estamos realizando h alguns anos uma pesquisa cujo objetivo analisar os papeis que as religies afrobrasileiras vm desempenhan-do no processo de construo das identidades culturais de origem negra no Brasil contempo-rneo1. Considerando, entretanto, que nas l-timas dcadas muitas denominaes religiosas, alm das afrobrasileiras, tm se mobilizado em torno dos smbolos da herana negra no Bra-sil, gerando disputas e controvrsias, este artigo pretende indicar de forma abreviada algumas possveis linhas interpretativas deste processo2.

    Para que possamos entender alguns aspec-tos deste processo comearei estabelecendo al-gumas denies bsicas destas denominaes, ou melhor, das articulaes que estas mantm entre si por aproximao ou distanciamento.

    Numa denio curta, apenas para esta ex-posio, as religies afrobrasileiras so basica-mente religies do transe, do sacrifcio animal e do contato direto com os deuses como meio de comungar valores e estabelecer sociabilida-des em comunidades relativamente pequenas. Em termos dos deuses cultuados e consideran-do os dois modelos mais conhecidos destas re-ligies, o candombl e a umbanda, podemos dizer que no candombl jeje-nag cultuam--se basicamente entidades designadas pelos termos orix e vodum, nomes genricos dos deuses originariamente provenientes da frica

    Ocidental. No candombl angola cultuam-se os inquices, deuses originrios da frica Cen-tral, e caboclos, entidades que representam os espritos da populao indgena brasileira. A umbanda (religio que associou deuses africa-nos, santos catlicos e espiritismo kardecista e esta difundida nacionalmente entre as camadas pobres e mdias da populao brasileira) en-globa as entidades do candombl e redene a cosmologia num esquema evolucionrio, como uma escada, com os santos e orixs ocupando os degraus mais altos. Estes so, por isso, tidos como espritos de luz. Os caboclos e os pretos--velhos (espritos dos africanos escravizados) so considerados espritos intermedirios. Exus e pombagiras so tidos como o lado esquerdo ou espritos das trevas e esto situados no de-grau mais baixo desta escala, pois esto associa-dos ao demnio pela inuncia do catolicismo.

    J o catolicismo cultua basicamente a san-tssima trindade (formada pelas guras do deus-pai, deus-lho e esprito santo) e muitos intermedirios como Maria (me do deus--lho), santos e anjos. O neopentecostalismo (religio crist que cresceu vertiginosamente no Brasil das ltimas trs dcadas entre as ca-madas pobres) se coloca entre estes sistemas e os articula como se fosse uma espcie de porta que permite ou no a passagem de um sistema para outro. Certamente que o principal objeti-vo do neo-pentecostalismo eliminar todos os intermedirios dos outros sistemas pela promo-o da guerra contra o mal entendida como a guerra de Jesus contra Exu que visto como se fosse a manifestao do demnio3. Brevemente

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    podemos dizer que o candombl pensa a si pr-prio como uma religio de origem africana na qual os orixs ocupam uma posio central e a umbanda como uma religio afrobrasileira na qual caboclos e pretos-velhos so as principais entidades. Em termos grcos, poderamos des crever o continuum conforme acima.

    O dilogo entre o terreiro e os espaos p-blicos de culto na cidade historicamente garan-tiram a reproduo do sistema religioso para alm dos muros do terreiro. Exemplicarei com um conjunto de relaes nesse nvel. As praias do litoral brasileiro so espaos de culto fora dos terreiros. Nelas, Iemanj, orix femi-nino associado ao mar, homenageada. Estas homenagens so feitas geralmente nos dias 2 de fevereiro e 8 de dezembro pela relao que tem com Nossa Senhora dos Navegantes e Nossa Senhora da Conceio, respectivamente. Nestas datas, so ofertados presentes a Ieman-j em grandes festivais. Mas, especialmente na noite de ano novo, milhares de pessoas, adeptas ou no das religies afrobrasileiras, enchem as praias brasileiras e oferecerem presentes a Ie-manj. Esta prtica, desvinculada do sistema propriamente religioso dos terreiros, mostra a apropriao de smbolos dos rituais afrobrasi-leiros pela populao, que percebe nela smbo-los compartilhveis.

    A presena da religiosidade afrobrasileira em praias, rios e lagos j se tornaram to legtima que em muitas existem monumentos a deuses associados a estes espaos. Estes espaos tm se

    tornado simultaneamente pontos de culto e de turismo. H alguns anos, a prefeitura da cidade de Salvador (Bahia) revitalizou a rea do Di-que do Toror e colocou ali esttuas dos orixs numa homenagem ao local que utilizado des-de o sculo XIX pelos adeptos do candombl para louvar as divindades das guas.

    Este fato foi duramente criticado pelos evanglicos que questionaram se um estado lai-co poderia patrocinar smbolos religiosos com dinheiro pblico. A resposta dada pelo prefeito foi de que os orixs no eram mais apenas sm-bolos religiosos, mas parte da herana cultural negra de Salvador e da cultura brasileira em ge-ral 4. Atualmente podemos encontrar no mapa turstico da cidade, ao lado dos endereos de museus e igrejas barrocas, a localizao de mui-tos terreiros. Curioso que os terreiros so in-dicados no mapa com o ox, machado bifacial usado por Xang, o orix da justia.

    De que forma ento estas esferas (religio, Estado e movimentos polticos) tem se articu-lado em torno desta disputa pelos smbolos da herana negro-africana no Brasil? Gostaria de comentar algumas destas articulaes.

    A primeira aquela ocorrida entre Igreja catlica e a populao negra e/ou movimen-to negro. A realizao em 1980 do primeiro Seminrio de Teologia Negra e o Centenrio da Abolio em 1988 impulsionaram o surgi-mento de diversas associaes catlicas voltadas ao negro sendo a mais importante a Pastoral Afrobrasileira com o apoio da Conferncia Na-

    Candombl Jeje-nagCandombl

    AngolaNeopentecostalismo

    Orix/ Vodum

    Er

    Inquice

    ErCaboclo Preto-Velho

    Exu

    Pombagira

    Encosto

    Demnio

    Deus-Pai

    Deus-Filho (Jesus)

    Esprito Santo

    Me de Deus (Maria)

    Santos

    (direita) mais luz Umbanda menos luz (esquerda) Catolicismo

    Quimbanda

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    cional dos Bispos do Brasil (CNBB). Um gru-po de padres negros desde ento tem investido num dilogo intenso com a tradio religiosa afrobrasileira5.

    No dilogo entre catolicismo e candombl, a pastoral afrobrasileira procura trazer elemen-tos religiosos africanos para o interior da litur-gia catlica, num processo autodenominado inculturao da liturgia, cuja apoteose a missa afro.

    A reinterpretao da imagem de Nossa Se-nhora da Aparecida, a padroeira negra do Bra-sil, vista como Senhora Quilombola um bom exemplo. A imagem desta santa uma esttua de Nossa Senhora da Conceio que te-ria sido achada num rio com a cabea separada do corpo, primeiro acharam o corpo e depois a cabea. As partes foram coladas e um rosrio foi colocado em torno do pescoo para disfar-ar a emenda, aproximando-a da imagem de Nossa Senhora do Rosrio, devoo das popu-laes negras. Temos aqui duas representaes: Conceio, padroeira do imprio portugus e Rosrio, padroeira do povo oprimido, como a populao negra. Como se a cabea da santa fosse o Estado e seu corpo, o Povo. Desde en-to, e pelo fato de a cor da esttua ter em-pretecido, resultado da ao da gua do rio, a imagem tem sido vista por uma parte da popu-lao como a padroeira negra do Brasil, confor-me se v nas imagens abaixo6.

    E mais recentemente sob a inuncia da pastoral afrobrasileira, Nossa Senhora Apare-cida tem sido louvada nas missas como Me Quilombola.

    Assim, a idia de me negra bondosa e pac-ca, aos poucos perde espao para o surgimento de imagens de resistncia como a de Anastcia, uma escrava de olhos azuis que teria resistido ao assedio sexual de seu senhor, portanto que se recusou condio de me de uma mestia-gem forada. Sua esttua apenas uma cabea de uma mulher amordaada. Curiosamente,

    parece indicar o caminho inverso em relao cabea colada de Nossa Senhora da Aparecida. Nas missas afros tem sido invocada como san-ta, uma nova verso de me negra. Seu martrio associa-se ao de Jesus, pois ambos portam os instrumentos de tortura: a coroa de espinhos na cabea ou a mordaa e o colar do cativeiro7.

    Na liturgia inculturada da missa afro ve-mos tambm que as tradies afros e catlicas dialogam. Na comunho, alm do po e vinho que representam o corpo e sangue de Cristo, os alimentos tradicionalmente oferecidos aos ori-xs so colocados ao p do altar, h atabaques e dana dos eis, e at a presena de sacerdotes das religies afrobrasileiras.

    No campo das polticas identitrias e reivin-dicatrias, grandes transformaes ocorreram nos anos de 1970 e 1980. As aes do MNU, Movimento Negro Unicado, foram impor-tantes no sentido de dar continuidade as dis-cusses polticas como o quilombismo, uma ideologia de resistncia em torno da imagem do lder escravo Zumbi dos Palmares. Com a celebrao dos 100 anos da Abolio da escra-vido, a reivindicao do movimento negro tornou-se cada vez mais articulada. A marcha organizada por este movimento no centro do Rio Janeiro, por exemplo, reivindicou maior participao do Estado brasileiro no combate ao racismo. A mudana da data da celebrao da emancipao negra de 13 de maio para o dia 20 de novembro, dia tido como o da mor-te de Zumbi, foi um ato simblico e poltico importante.

    Com a redemocratizao do pas iniciou-se uma nova etapa na relao da sociedade civil com o Estado. A Constituio de 1988 aten-deu parcialmente as reivindicaes do movi-mento negro. Foi criada a Fundao Palmares (sob o Ministrio da Cultura) e estabeleceu-se o conceito de quilombos como o de reas ha-bitadas por remanescentes de afrodescenden-tes com direito posse da terra. Nos anos de

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    1990 o conceito de quilombo estendeu-se para a rea urbana abrangendo inclusive terreiros de candombl. No governo de Fernando Henri-que Cardoso houve o reconhecimento ocial da existncia do racismo no Brasil e no gover-no seguinte, de Luis Incio Lula da Silva, foi criado um conjunto de aes direcionado para a populao negra como a SEPPIR (Secretaria de Polticas de Promoo da Igualdade Racial), aes armativas e a Lei 10.639 que tornou obrigatrio o ensino de Histria e Cultura Africana e Afrobrasileira nas escolas.

    Nesse perodo, o patrimnio cultural de origem africana comeou a ser valorizado nas polticas pblicas governamentais incluindo o tombamento de terreiros8. Em So Paulo, a demolio de um terreiro localizado numa rea em que seria construdo um acesso a uma avenida foi interrompida com o pedido da comunidade para o tombamento do terreiro. Menciono estes fatos, ainda que rapidamente, apenas para indicar que a relao entre etnici-dade, poltica identitria e religio comea a se mostrar muito mais complexa com o fortale-cimento de agncias negras e a presso da so-ciedade civil sobre a questo da desigualdade tnica. Entretanto, religio, cor e ao poltica nem sempre caminham lado a lado.

    Darei um exemplo. No Censo de 2000 realizado pelo IBGE vemos que a maioria da populao brasileira continua se declaran-do catlica, enquanto apenas 0,3 % se dizem pertencentes s religies afrobrasileiras. Cer-tamente muitos adeptos destas religies tm dupla pertena. Em relao cor, as religies afrobrasileiras continuam sendo as religies que renem mais adeptos negros e pardos em termos proporcionais (48%). E entre estas re-ligies, o candombl continua sendo a religio mais negra do Brasil em termos proporcionais. Mas em termos absolutos a maioria da popu-lao negra brasileira professa ocialmente a f catlica, o que explica a forca das tradies

    afrobrasileiras associadas ao catolicismo e as es-tratgias polticas de sacerdotes negros reivin-dicando uma identidade crist e afrobrasileira, enquanto lutam por igualdade racial. Ou seja, ver Nossa Senhora da Aparecida como Me Quilombola ou reverenciar o poder da escrava Anastcia potencialmente revelador da fora destes smbolos para a populao negra e cat-lica brasileira.

    Por outro lado, o crescimento das religi-es evanglicas, sobretudo as neopentecostais, mostra outro tipo de desao. O recm criado MNE Movimento Negro Evanglico, por exemplo, representa uma ao de pastores ne-gros que inspirado no modelo norte-americano de ao poltica procura negar a necessidade de relacionar identidade negra com as religies afrobrasileiras ou as tradies populares do ca-tolicismo. O nome sugestivo do livro de uma liderana desse movimento, pastor Davi (Oli-veira, 2004) - A religio mais negra do Brasil. Por que mais de oito milhes de negros so pen-tecostais?-, indica os caminhos ainda recentes deste movimento. Anal, em termos absolutos os nmeros realmente indicam que h mais evanglicos negros do que praticantes das re-ligies afrobrasileiras e as religies evanglicas so as que mais crescem no Brasil das ltimas dcadas. Enm, se para Edir Macedo (1996), famoso pastor da Igreja Universal do Reino de Deus, preciso expulsar o Exu tradio que faz do Brasil um vasto terreiro, ele prprio deve o sucesso de sua igreja aos exus que cons-tantemente so expulsos (Silva, 2007).

    De qualquer maneira, parece que o Brasil de hoje vive um dilema entre convices reli-giosas e polticas de apelo tnico. Se uma ala da igreja catlica quer abrir as portas para os orixs, alguns terreiros querem se separar dela, consequncia em parte do discurso desva-lorizado sobre o sincretismo e a mestiagem existente em certos segmentos do candombl reafricanizado e do movimento negro9. Se os

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    evanglicos dizem que nem orixs, santos ou exus fornecem caminhos para o cu ou para a justia social na terra, ao menos para muitos adeptos estes deuses continuam a atuar em suas vidas como heris ou viles responsveis por alegrias ou tristezas do dia a dia.

    Enm, se no plano da cultura nacional, os valores afrobrasileiros tm um papel importante no estabelecimento de uma identidade mesti-a (Brasil como pas das mulatas, do carnaval, samba, futebol, macumba, feijoada e sincretis-mo), os grupos que a teriam promovido, por ainda se encontrarem em situao de desvan-tagem social e econmica, se questionam qual deve ser o melhor caminho a seguir nesta en-cruzilhada de valores religiosos e aes polticas.

    Esquematizando as concluses

    Sem pretender esgotar o tema, mas indican-do as diretrizes que parecem permear o debate contemporneo, podemos dizer que nas religi-es afrobrasileiras o papel da etnicidade, quando acionado, vincula-se primordialmente aos sm-bolos da herana africana, os quais obviamente esto associados populao negra, preferencial-mente, e mestia. Nesse sentido, estas religies se tornam um campo legtimo de aplicao de polticas pblicas do Estado voltadas a estas po-pulaes e tambm um potencial campo de ao para os grupos ou movimentos negros interessa-dos em aglutinar instituies de preservao de patrimnios culturais de origem negro-africana. Nesse caso, verica-se uma articulao entre smbolos religiosos (vistos como culturais ou no), o Estado e os movimentos polticos (negros ou de aliados). Um bom exemplo a polmica envolvendo as esttuas dos orixs no Dique do Toror, em Salvador.

    Se pensarmos o lugar das religies afro-brasileiras no neopentecostalismo, vemos que os smbolos religiosos ou mesmo culturais

    so tidos como resultantes da ao demona-ca. Neste campo, professa-se a necessidade de se romper com a tradio do Brasil como um vasto terreiro, com o mito do candom-bl (Macedo, 1996). Do ponto de vista das polticas pblicas envolvendo a etnicidade, al-gumas lideranas evanglicas armam que h mais negros (em termos absolutos) nas religi-es evanglicas do que nas afrobrasileiras. Isso justicaria que as polticas pblicas tivessem como parceiras preferencialmente estas igrejas. O pentecostalismo como opo para os po-bres, negros e excludos (Oliveira, 2004). Nes-se sentido, vislumbra-se agora um potencial campo de ao para os grupos ou movimentos negros interessados em difundir discursos e aes que rompam com certos valores (morais e de conduta pblica) presentes nas religies afrobrasileiras em favor de valores ticos tidos como mais rgidos.

    Por m, se pensarmos o lugar das religies afrobrasileiras e da etnicidade no catolicismo da pastoral afrobrasileira, vemos que o sincre-tismo serviu como ponte entre a experincia crist e as religies de origem africana levando o catolicismo para o interior dos terreiros. Ago-ra, trata-se de trazer o terreiro para o interior da igreja fazendo com que a misso evangelizado-ra passe pela troca de experincias litrgicas, mas tambm pela luta pela igualdade e justia tnico-social.

    Ou seja, as formas pelas quais essas teologias e prticas se relacionam com esses novos agen-tes sociais e polticos parecem induzir a posicio-namentos inusitados sobre o que sincretismo, mestiagem, herana africana, cultura brasilei-ra, participao poltica, justia social etc. Um campo de observao bastante interessante que merece pesquisas que associem religio, cultura e esfera pblica sob a perspectiva destes atores que expressam na forma de transes de orixs, esprito santo e exus concepes sobre o que ou deveria ser o Brasil.

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    Anexo Religies Afrobrasileiras e Espao Pblico Uma Cronologia

    1591-951618-211763-69

    Visitaes do Tribunal do Santo da Inquisio: praticantes de religiosidades origem africana e afrobrasileira so perseguidos

    1824

    Constituio do Imprio: Catolicismo religio o#cial. Proibio de templos no catlicos (Outras religies devem #car restritas ao espao domstico ou em edifcios sem aparncia externa de templo). Notcias em jornais de terreiros instalados em espao urbanos.

    sc. XIX

    Fundao dos terreiros mais antigos ainda em funciona-mento: Casa das Minas e Casa de Nag (So Lus), Stio do Pai Ado (Recife), Casa Branca do Engenho Velho (Salvador).

    1890

    Cdigo Penal Republicano. Institui o crime de espiritismo, magia e seus sortilgios, (art. 157) e o de curandeirismo (art. 158), pelos quais muitos praticantes das religies afrobrasileiras so acusados e julgados.

    1891Constituio Republicana. Institui a separao entre Estado e religio e a liberdade de culto. Melhoram as condies de organizao dos terreiros

    c.1890

    Casa de Tia Ciata (Hilria Batista de Almeida) e de outras tias baianas, nas proximidades da Praa Onze, tornam-se ncleos de difuso do samba carioca com a presena de Donga, Sinh, Joo da Baiana, entre outros.

    1900Publicao de O animismo fetichista dos negros bahianos, de Raimundo Nina Rodrigues. A primeira etnogra#a sobre as religies afrobrasileiras

    1908Zlio de Moraes funda a Tenda Esprita Nossa Senhora da Piedade, tida, segundo um dos mitos de origem da umbanda, como a pioneira desta religio

    1910Fundao do Terreiro do Ax Op Afonj, por Me Aninha (Eugnia Anna dos Santos) em Salvador.

    1912Operao Xang: invaso e destruio dos principais terreiros de Macei e vizinhanas, acusados de serem aliados do governador deposto Euclides Malta.

    1930-45Governo ditatorial de Getlio Vargas. Funcionamento dos terreiros sob severa vigilncia das Secretrias da Segurana Pblica e dos Servios de Higiene Mental

    1934

    Publicao de O Negro Brasileiro, de Arthur Ramos, primeiro volume da coleo Bibliotheca de Divulgao Scient#ca, principal divulgadora de obras sobre as religies afrobrasileiras.

    Publicao de Jubiab, de Jorge Amado. Os temas do candombl passam a ser uma marca do mais lido escritor brasileiro da poca.

    Realizao do I Congresso Afrobrasileiro (Recife), orga-nizado por Gilberto Freire.

    1937Realizao do II Congresso Afrobrasileiro (Salvador), or-ganizado por dison Carneiro e Aydano do Couto Ferraz.

    1938Misso de Pesquisas Folclricas, idealizada por Mrio de Andrade, registra cenas e msicas de rituais religiosos afrobrasileiros e festas populares no Norte e Nordeste.

    1939

    Criao, no Rio de Janeiro, da Unio Esprita de Umbanda do Brasil, a primeira federao desta religio no pas.

    Carmen Miranda canta O que que a baiana tem?, no #lme Banana da Terra, vestida de baiana, uma estiliza-o do traje tpico das mes-de-santo do candombl.

    1940Cdigo Penal mantm os delitos de charlatanismo (art. 283) e curandeirismo (art. 284), pelos quais praticantes das religies afrobrasileiras continuam sendo acusados.

    1941Realizao do 1 Congresso Brasileiro de Espiritismo de Umbanda

    1946O francs Pierre Verger desembarca em Salvador onde passa a residir tornando-se um dos principais fotgrafos e etngrafos do candombl e de suas origens africanas

    1961

    Realizao do 2 Congresso de Umbanda

    Publicao de O candombl da Bahia rito nag, de Roger Bastide.

    1964

    Festas das religies afrobrasileiras (como a Festa de Iemanj) passam a fazer parte dos calendrios tursticos regionais

    Dia 31 de dezembro declarado o#cialmente Dia do Umbandista

    1971

    Morre Joozinho da Gomia, um dos mais populares pais-de-santo do Rio de Janeiro e So Paulo.

    Publicao de As religies africanas no Brasil, de Roger Bastide.

    1976Inaugurao da esttua de Iemanj na Praia Grande, So Paulo, e incluso de sua festa, realizada em 8 de dezembro, no calendrio turstico o#cial da cidade.

    1982

    Fundao do Museu Afrobrasileiro em Salvador com acervo de fotos e documentos etnogr#cos de Pierre Verger e painis dos orixs esculpidos na madeira por Caryb

    1983Morre Clara Nunes, a cantora que mais vendeu discos com temas das religies afrobrasileiras.

    1984Criao do Conselho Estadual de Participao e Desen-volvimento da Comunidade Negra em So Paulo com a participao de membros das religies afrobrasileiras.

    1986Morre Menininha do Gantois, a mais popular me-de-santo do Brasil.

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    1986-2005

    Processo de tombamento de terreiros por rgos governamentais:(1986) Casa Branca do Engenho Velho (Salvador, IPHAN).(1990) Ax Il Ob (So Paulo, CONDEPHAT).(1999) Il Ax Op Afonj (Salvador, IPHAN).(2002) Il Ax Omim Iy Yamass - Gantois (Salvador, IPHAN). (2002) Casa das Minas (So Lus, Maranho, IPHAN).(2003) Inzo Manzo Bandukenk Bate Folha (Salvador, IPHAN). (2005) Il Mariolaje - Olga do Alaketu (Salvador, IPHAN).

    1988

    Marcha de Zumbi contra a discriminao (Marcha do Centenrio da Abolio, RJ) Criao da Fundao Palmares (vinculada ao Ministrio da Cultura).

    1995

    Marcha Zumbi dos Palmares, contra o racismo, pela cidadania e pela vida, (Braslia, MNU), celebrando os 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares. Documento produzido cobra polticas de proteo s religies afrobrasileiras por parte do Estado.

    2000

    O Censo do IBGE (2000) aponta que apenas 0,3 % da populao brasileira se auto-declara pertencente s religies afrobrasileiras e que estas possuem o maior nmero de adeptos negros e pardos em termos propor-cionais (48%).

    Promulgao do Estatuto da Igualdade Racial (Projeto de Lei 3.198)

    2003

    Lei 10.639 do Governo Federal torna obrigatrio o ensino da Histria da frica e Cultura Afrobrasileira nas escolas do pas.

    Criao da SEPPIR (Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial)

    2004Salvador institui o Dia Municipal de Combate Intolern-cia Religiosa (21 de janeiro) em homenagem morte de me Gilda, vtima de perseguio religiosa.

    2005Fundao do Museu Afro Brasil em So Paulo, reunindo o maior acervo nacional de obras e documentos sobre a cultura afrobrasileira.

    2009Candombl e Umbanda so declarados patrimnios imateriais do Estado do Rio de Janeiro

    Notas

    1. A pesquisa foi concebida por Vagner Gonalves da Sil-va e Rita Amaral e sua realizao contou com o auxlio nanceiro da FAPESP e atualmente do CNPq. Para uma viso geral de sua proposta, veja Amaral e Silva, 2006 e o site: http://www.doafroaobrasileiro.org/.).

    2. Estes temas foram abordados em seminrios e pales-tras realizados em universidades norte-americanas durante o perodo de meu ps-doutoramento (2008-2009)

    3. A literatura sobre a guerra santa neopentecostal bastante extensa. Uma viso contempornea deste as-pecto que envolve aspectos de intolerncia religiosa pode ser encontrada em Silva, 2007.

    4. Sobre este tema, veja Sansi, 2007.5. Sobre este dilogo, consulte, entre outros, Oliveira,

    2011.6. Sobre este processo de empretecimento da imagem

    da santa, veja Santos, 2007.7. Sobre a Escrava Anastcia, veja, entre outros, Dias,

    2007.8. Veja Anexo - Religies Afrobrasileiras e Espao Pbli-

    co - Uma Cronologia.9. Sobre o tema, veja Collins, 2004; Santos, 2005; Van

    de Port, 2005; Hafbauer, 2006; Montero, 1994, en-tre outros.

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    autor Vagner Gonalves da Silva

    Professor do Departamento de Antropologia Social / USP Ps-Doutor em Antropologia Social / Harvard University

    Recebido em 10/10/2011Aceito para publicao em 10/10/2011