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A psicologia da religião - Numa visão holística (= da totalidade) ampla se diz tudo a respeito de tudo. De fato, a mesma realidade pode ser analisada por diferentes pontos de vista, inclusive pelas várias ciências. - Mesmo assim, nenhuma ciência está tão próxima da Religião quanto a Psicologia. De fato, nada é mais humano do que a vivência religiosa. A história da humanidade confunde-se com a história das religiões, nas quais já o homem primitivo ia buscar razões para a explicação de sua vida. Não consta, na história da civilização, a existência de um único povo que não tivesse sua religião. Existe, pois, no ser humano um instinto de procura da divindade, assim como uma obra de arte não assinada parece estar, eternamente, à procura de seu realizador. Nós somos uma obra de arte assinada, só que temos uma natural dificuldade de identificar a assinatura do escultor.

Religiao e Psicologia

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A psicologia da religio

A psicologia da religio

- Numa viso holstica (= da totalidade) ampla se diz tudo a respeito de tudo. De fato, a mesma realidade pode ser analisada por diferentes pontos de vista, inclusive pelas vrias cincias.

- Mesmo assim, nenhuma cincia est to prxima da Religio quanto a Psicologia. De fato, nada mais humano do que a vivncia religiosa. A histria da humanidade confunde-se com a histria das religies, nas quais j o homem primitivo ia buscar razes para a explicao de sua vida. No consta, na histria da civilizao, a existncia de um nico povo que no tivesse sua religio. Existe, pois, no ser humano um instinto de procura da divindade, assim como uma obra de arte no assinada parece estar, eternamente, procura de seu realizador. Ns somos uma obra de arte assinada, s que temos uma natural dificuldade de identificar a assinatura do escultor.

Esse instinto de procura da divindade como um elo escondido na alma de todo ser humano, um trao que se iniciou com a criao do primeiro homem, que, conservando o calor do toque da mo de Deus, se perpetua como fasca na alma de todo ser humano procura de suas origens divinas.

A existncia universal de religies, no tempo e no espao, reflete uma necessidade bsica, intrnseca do homem, de responder e explicar anseios internos, complexos, como ansiedade, medo e culpa diante do sentido do mundo, da vida e do outro. No so esses sentimentos, entretanto, que criaram as religies ou a idia de Deus, presente na estrutura mental e humana de toda pessoa que termina por criar esses sentimentos, diante da impossibilidade do homem ter acesso direto e claro divindade.

Da, talvez, uma explicao radical para a existncia de rituais religiosos de sacrifcios humanos, como ddiva suprema do homem a Deus, como forma desesperada, ou at ritualisticamente aprovada, de aplacar ou agradar a divindade por no saber ou poder atingi-la.

O sacrifcio humano uma forma brutal de venerao e de adorao; mas, segundo algumas culturas, talvez a nica capaz de devolver a Deus o dom da vida e de suplicar a ele a continuao dessa mesma ddiva.

O homem naturalmente religioso; traz nele a marca, o selo da propriedade divina. No estgio atual da evoluo do cosmos, o homem o mais belo exemplar da arte divina.

Os chamados grandes ateus da humanidade - Freud, Marx, Nietzsche e Sartre entre outros - de tanto neg-lo ou de tanto no prestar ateno a Ele, mas prestar extrema ateno a si mesmos terminaram por encontrar, em si mesmos, rastros da criao divina.

nesse contexto que se insere a Psicologia: psicologia, etimologicamente estudo da alma, como a cincia do invisvel que habita o corao humano.

Como pode a Psicologia fingir que as angstias do corao humano, ao procurar seu sentido ltimo, sua liberdade e seu destino, no lhe dizem respeito?

Psicologia a cincia que estuda o fenmeno humano na sua plena e dinmica relao pessoa-mundo. A ela interessa, por natureza, o pensar, o sentir, o fazer e a linguagem humana. Como estudo da alma humana nas suas mais complexas manifestaes (ligaes e coligaes, sejam de ordem fsica, biolgica, emocional, social, espiritual, psicolgica, enfim) ela ultrapassa a questo do comportamento, que, pretensamente, se pensa poder ser medido, pesado e contado.

A psicologia, sobretudo aquela acadmica, tem se comportado como se a religio no existisse. Na verdade uma contradio que a Psicologia se apresente como atia, materialista, se seu objeto ltimo de estudo algo imaterial, no pondervel, no universalizvel, dado que a cincia do indivduo nas suas manifestaes psicoemocionais.

Na realidade, tem existido um grande mal-entendido entre Religio e Psicologia. Uma, cincia de Deus; outra, cincia do homem. Mas estes dois saberes no se opem, se partirmos dos fatos e no de idias pr-concebidas.

Chega-se, ento, seguinte contradio. Por um lado, no se aceita a idia de Deus, pois Ele no pode ser comprovado cientificamente; e, por outro, bilhes de inteligncias humanas convivem com a idia de um Ser Superior. E a, uma certa Psicologia tem feito a pior coisa que uma cincia pode fazer: faz de conta que Deus no objeto de suas preocupaes epistemolgicas (= da cincia especfica da psicologia).

Na realidade, Deus um dado, um fato que estrutura e d identidade humanidade, enquanto conjunto de pessoas que se encontram em marcha numa contnua busca de prprio sentido e significado.

Deus no um dos problemas da humanidade; Ele o problema nmero um da humanidade; e , ao mesmo tempo, parte ou o nmero um de suas solues.

Quando as pessoas dizem que acreditam em Deusconsideram-no como o ser perfeito (porque no deveria faltar-lhe nenhuma das perfeies existentes no universo), eterno (porque est alm do tempo e do espao), criador (no podendo ser criado por outro antes dele): Ele cria todas as coisas, nada podendo escapar sua ao criadora.

E, quando o homem no tem uma noo clara destas trs caractersticas divinas (perfeito, eterno, criador de tudo), acaba humanizando Deus, at matando Deus: e a relao com Ele se limita a atitudes de reparao e de petio, raramente de adorao e de agradecimento.

No interessa Psicologia, nem Religio analisar Deus do ponto de vista terico. Interessa, sim, estudar como Deus vivido, experienciado pela pessoa humana no seu cotidiano.

A Psicologia, como cincia que estuda o comportamento humano, no pode fazer de conta que Deus no existe ou, se existe, que no cuida das pessoas.

90% dos brasileiros declaram acreditar em Deus. E, se Deus pertence ao emocional, ao sentimento do povo brasileiro, no h como a Psicologia fechar os olhos ante esta evidncia.

Essa viso religiosa do mundo, na qual Deus se insere, nasce do fato que o ser humano procura a soluo do prprio mistrio; experimenta uma sensao de plenitude atravs da vivncia do sagrado; e nasce tambm de uma relao com o mundo humano e material, na procura de uma harmonia interna que obedece a uma tendncia natural para a totalidade.

Assim, se olharmos Deus como Causa Primeira, Ele o princpio que torna o mundo possvel; e se O olharmos como um Bem, Ele fonte e garantia de tudo que existe de bom e maravilhoso no mundo e no homem.

Podemos ver a relao de Deus com o mundo de quatro modos, que importam em quatro concepes de Deus:

1. Deus e o mundo:

Deus pode ser considerado como criador da ordem do mundo (= um intelecto), ou como Natureza do mundo (que seria seu prolongamento), ou como o transcendente que criou o mundo mas distinto dele.

2. Deus e o mundo moral:

Deus pode ser considerado como Garante da ordem moral (se no existisse Deus, no haveria moral), ou a Providncia que guia o mundo e os homens, ou a Causa Livre da ordem moral, que respeita a liberdade humana.

3. Deus e a divindade:

Podemos ter o monotesmo, ou o politesmo.

4. A revelao de Deus:

Podemos ter o desmo (afirma que o homem pode chegar sozinho at Deus), ou o tesmo (afirma que Deus vai ao encontro do homem).

O homem um ser bio-psico-scio-espiritual. Essas quatro dimenses bsicas constituem sua estrutura experimental (aspecto geobiolgico), experiencial (aspecto psicoemocional), existencial (aspecto socioambiental) e transcendental (aspecto sacro-transcendental).

No se pode pensar a pessoa humana excluindo qualquer dessas dimenses. Do ponto de vista clnico, pode

se afirmar que diversas psicopatologias so facilmente identificveis como disfunes desses diversos sistemas.

Tambm no processo de desenvolvimento humano pode-se encontrar essa mesma ordem.

1. Num primeiro momento (at os 7 anos), a criana tenta localizar-se no mundo, construir sua geografia humana: experiementa seu corpo, formando as primeiras sensaes da prpria identidade corporal.

2. Num segundo momento (dos 7 aos 14 anos) a criana e o pr-adolescente ingressam no campo psicoemocional.

3. Num terceiro momento (dos 14 aos 21 anos) o adolescente passa a lidar no seu campo socioamabiental, no qual o existencial surge com toda sua fora, tentado faz-lo experienciar os valores que agora passam a ser individualizados, personalizados.

4. Num quarto momento (aps os 21 anos), se os trs primeiros campos se harmonizam, o adulto pode viver e reconhecer o campo sacro-transcendental, no qual o espiritual comea a apresentar-se de maneira adulta, fechando uma caminhada de procura e abrindo-se para a maturidade sem limites. Aqui a espiritualidade encontra seu campo fecundo.

A Psicologia, ainda, no lida, adequadamemte, com essas quatro dimenses humanas. Ancorou-se no psicolgico e no social, d passos tmidos na direo do campo geobiolgico, e lida mal com o campo espiritual, no qual toda a personalidade humana dever desembocar. Quando as outras trs dimenses desembocam, longe de perder sua identidade, plenificam-se, tornando-se o oceano humano que

junta beleza, mistrio e savcralidade, como, de resto, o que significa o caminhar humano.

Sem espiritualidade, a estruturao da personalidade fica como um prdio planejado para subir, mas que nunca chegar ao fim, porque lhe faltam as conexes entre os diversos andares. Espiritualidade no apenas o ponto de chegada, o ltimo andar, mas a argamassa que une todos os andares: organiza e d sentido existncia humana.

Uma psicologia, que lida mal com qualquer desses campos, fica esquizofrenizada, como um corpo que, alm de lidar mal com os ps, desconhece as potencialidades da cabea.

A Psicologia precisa encarar de frente a relao legtima homem-religio-Deus, pois constitutivo da essncia humana o fato de que o homem um ser-de-relao.

E a relao tpica da religio crena na garantia sobrenatural de salvao e tcnicas destinadas a obter e conservar essa garantia.... sobrenatural no sentido de situar-se alm dos limites abarcados pelos poderes do homem...Crena a atitude religiosa fundamental; tcnicas so os atos ou prticas de culto (orao, sacrifcio, ritual...) (ABBAGNANO, N. Dicionrio de filosofia. So Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 846-847)

A idia de salvao o elemento constitutivo do conceito de religio: o homem est consciente da sua limitao, da sua impotncia para atingir o misterioso; e Deus se torna a garantia da salvao.

Sem dvida, Deus o totalmente Outro; Ele , porm, o totalmente mesmo, o totalmente presente...o mistrio da evidncia que est mais prximo a mim do que meu prprio Eu (BUBER, Martin. Eu e tu. So Paulo: Centauro, 2003, p. 92).

De outro lado, importante lembrar que a idia de Deus no intuitiva. Primeiro, o homem depara-se com um sol que nasce todos os dias, com uma lua que aparece e desaparece, com o relmpago que ilumina o cu, com bilhes de pontinhos luminosos l em cima, com a chuva que, aparentemente, ningum sabe de onde vem, com os frutos que nascem de plantas que aparentemente no so a sua causa, com a barriga da mulher que vai crescendo e, depois, um dia, sai, de dentro dela, um novo ser, e, assim, ao infinito, e , da que nasce o mistrio, o imperscrutvel. O homem no consegue conviver com essa infinitude de informaes sem poder explic-la; ele no agenta toda essa majestade que o cerca; da ele encontra Algum em quem todas as explicaes se encontram e que, pela sua grandeza e majestade, torna-se, ele mesmo, misterioso. Eis o campo do religioso, do espiritual, do sagrado.

A inteligncia humana feita para descobrir e lidar com a verdade. Ela passa da complexidade de mil mistrios, dentro da qual ela se sente impotente, para a sntese de um nico mistrio: mistrio que produz, ele mesmo, no homem, o instinto do divino. O homem no inventa Deus, ele descobre Deus.

Esses processo de busca de Deus consome a alma do homem, mesmo daqueles que, por mil razes, dizem no crer na sua existncia. No o fato de algum no crer em algo que esse algo deixa de existir; como, tambm, no o fato de algum crer ou explicitar algo que esse algo passa a existir.

A experincia religiosa est no cerne da experincia humana, na sua alma: e a Psicologia torna-se o lugar desse encontro homem-espiritual, homem-sagrado-mundo.

Mas tambm invoca Deus aquele que abomina este nome e cr estar sem Deus, quando invoca com o impulso de todo o seu ser o Tu de sua vida (BUBER, 2003, p. 88).

A Psicologia, em algumas escolas, tem vivido um longo e calculado silncio no que diz respeito espiritualidade e religio. Esta atitude corresponde ao mecanismo de defesa de racionalizao: nego aquilo com que no posso lidar.

Na medida em que o esprito voltado sobre si renuncia a este sentido, ele obrigado a colocar no homem aquilo que no o homem; ele obrigado a reduzir o mundo e Deus a um estado de alma. Esta a iluso psquica do esprito (BUBER, 2003, p. 108).

a prpria impotncia existencial do homem que o leva a pensar e a sentir que ele no pode ser o todo poderoso, o nico, o que d sentido s coisas, e essa percepo o levou a se encontrar com Deus, como o absoluto real, o que d sentido a ele e a todas as coisas.

Tudo, no universo, o convida a perceber que ele apenas uma mnima parte desse concerto csmico que o rodeia e, ouvindo essa mgica msica, entendeu que no era ele o compositor. Foi, ento, procurar, alm, o compositor e grande maestro que rege, com infinita maestria, a pera da universalidade.

Muitos psiclogos tm visto a religio como expresso de uma vivncia sem fundamento, mistura de f e de magia, algo substitutivo do esforo pessoal para a auto-realizao, compensao de fracassos, expresso de uma boa f e ingenuidade, pio e ignorncia.

Ns respondemos analisando, antes de tudo, o significado do termo. Religio vem dos termos latinos relegere (re-ler), ou religare (re-ligar).

O primeiro sentido aponta para a atitude de re-ler a realidade, vivenciando o dilogo com o diferente, a solidariedade como expresso mxima do humanismo, a ecologia como vivncia harmnica entre o homem e a natureza ou ambiente. Dentro dessa viso, entramos necessariamente no conceito de tica como expresso profunda do respeito pelo Outro, entendido como Tudo que nos cerca e dentro do qual somos, nos movemos e existimos.

Religio, nesse contexto, no inclui o conceito de Deus num primeiro momento e se torna a expresso da vivncia do outro pela comunho e reverncia com o outro, seja ele o homem, a mulher, as plantas, os animais e, por meio dessa re-leitura, tudo se torna sagrado. Estabelece-se, assim, a religio, como o lugar do dilogo, da solidariedade, da ecologia.

Quando afirmamos que certas coisas so sagradas entendemos que elas tm um valor incomensurvel com relao a outros valores humanos (DURKHEIM, E. O suicdio. So Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 212).

Descobrir o sagrado das coisas descobrir o caminho da solidariedade entre os homens. Sagrado e tica tornam-se a dupla que d sentido experincia humana. No possvel pensar uma moral social comunitria sem pensar o sagrado. O sagrado o constitutivo da moral.

Quando se v o mundo com os olhos do sagrado, descobre-se que tudo tem relao com tudo, que tudo influencia tudo: existe um holismo (holos, em grego, significa tudo) csmico.

Evidentemente, antes de se deparar com o sagrado, o homem v o outro homem de carne e osso, ama e/ou odeia o outro, percebe que ningum uma ilha, junta e desfaz grupos pelos mais variados motivos, junta-se ou separa-se do outro, tenta se aproximar dos que pensam e fazem como ele, percebe que a coeso grupal o mais curto caminho entre dois pontos e, dessa multiplicidade de comportamentos, ele comea a perceber que o mundo dividido entre dois grandes campos: o Sagrado e o Profano. Quando ele re-l o sagrado, descobre o profano; e, quando ele re-l o profano, descobre o sagrado. Ele vive de representaes.

A religio , essencialmente, a experincia do sagrado e por meio da religio, no sentido que estamos colocando de re-leitura do homem-mundo, que o homem abandonou o caos ou olha o caos como uma possibilidade de crescer e encontrar o verdadeiro sentido das coisas.

nesse contexto que a Psicologia encontra seu verdadeiro campo de ao como cincia do comportamento humano. pelo pensar, do sentir, do fazer e da linguagem que o homem se plenifica, isto , que pode chegar ao mximo de si mesmo; e , tambm, pela perda da conexo entre esses quatro sistemas que ele se perde de si mesmo e do mundo.

O mundo das representaes , ao mesmo tempo, o mundo do humano e da espiritualidade. na juno desses dois mundos que ele se descobre como ele mesmo, como tendo um sentido nico, ltimo, no delegvel. Se ele perde essa conexo ou se ele se perde nessa conexo, ele se perde de si mesmo. Sua identidade individual se faz por meio de uma conexo do processo de socializao e de uma vivncia consciente da realidade, introjetada por suas representaes. Isso gera uma cosmoviso, um paradigma comportamental, pelo qual a pessoa se localiza no mundo. E, dentro dessa cosmoviso, o conceito de sagrado e de religio ocupa os pilares constitutivos do edifcio humano.

A grande funo da Psicologia penetrar no mundo da sensibilidade humana, penetra no mistrio de suas incertezas e da sua angstia, companheira milenar da caminhada pela busca do que signfica viver, ser homem, ou mulher.

De outro lado, na trilha de Santo Agostinho que entende que religio vem de re-ligar, penetramos no mundo da interdependncia, em que nada solitrio, muito menos o homem.

Assim, quando tentamos entender religio enquanto um re-ler, entramos na busca de sua origem, da validade intrnseca da religio; e, quando vemos a religio como re-ligar, entramos no campo da funo, da funcionalidade da religio enquanto prtica que garante a salvao do homem.

Atrs do batismo numa igreja crist, do rolo da Tor numa sinagoga dos judeus, ou de peregrinos reunidos diante da Caaba em Meca o que h de comum?

Com certeza h a idia do sagrado. Todos esses momentos so gestos sagrados e o sagrado que, separando-se do profano, re-liga a criatura ao seu Criador, garantindo a salvao sobrenatural.

O sagrado o inteiramente outro, ou seja, aquilo que totalmente diferente de tudo o mais e que, portanto no pode ser descrito em termos comuns... uma fora que, por um lado, engendra um sentimento de grande espanto, quase temor, mas que, por outro lado, tem um poder de atrao, ao qual difcil resistir (HELLERN, V.; NOTAKGR, H.; GAARDER, J. O livro das religies. So Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 18).

Quando falamos em religio, enquanto uma re-leitura do mundo, Deus aparece a posteriori, depois das coisas, depois do homem-mundo.

Quando, porm, falamos de religio enquanto uma re-ligao homem-Deus, estamos falando de um Deus a priori, como ponto de partida, do qual nascem as esperanas e para o qual caminham todas as coisas, um Deus que prometeu ser fiel aos que a ele fossem fiis.

Nessa concepo, o homem tenta comercializar com Deus seu processo de salvao pessoal. De algum modo, ele no duvida que, se seus rituais forem feitos adequadamente, o efeito, por uma questo lgica, se seguir. Ele acredita, ou espera, que Deus, embora livre absolutamente, lhe dar uma mo, se ele, homem, fizer sua parte. Se ele no consegue, tende a dizer que foi porque no fez o que devia, preferindo culpar-se a culpar Deus de no ter querido ouvi-lo, atend-lo.

H muitos tipos de gestos ritualsticos pelos quais ele espera agradar a Deus e receber as graas de que tanto espera, sobretudo a salvao. Eis alguns: oferenda, sacrifcio de purificao, orao, ritos de passagem, jejum, sacrifcio -de expiao, servio divino (Eucaristia, Santa Ceia), servio social (visita aos pobres, aos presos; esmolas)...

De uma maneira mais didtica essas prticas religiosas podem ser vistas sob dois aspectos: garantia de salvao e referncia s relaes humanas.

No primeiro aspecto, a religio oferece ao homem: 1. a garantia de libert-lo do mundo, considerado um mal; 2. a certeza infalvel que ela representa a verdade.

E, no segundo aspecto a religio oferece a garantia de que, ao viv-la, o homem pratica os verdadeiros valores morais que regulam a ordem na vida social (Cf. ABBAGNANO, 2000, p. 846-852).

Vamos continuar fazendo pontes entre Psicologia e Religio.

Abbagnano (2000), define Psicologia como disciplina que tem como objeto a alma, a conscincia ou eventos caractersticos da vida animal e humana, nas vrias formas de caracterizao de tais eventos com o fim de determinar sua natureza especfica (p. 809).

Vejamos os elementos que compem essa definio.

A Psicologia tem por objeto:

1. Estudar a alma;

2. Estudar a conscincia;

3. Os eventos caractersticos da vida animal e humana;

4. As vrias formas de caracterizao de tais eventos;

5. Determinar sua natureza especfica.

Trata-se, pois, de Psicologia enquanto estudo da totalidade do ser humano, sem dicotomizar, sem atomizar as experincias humanas e espirituais, que so o cotidiano de todas as pessoas.

E uma psicologia que estuda o ser, como uma totalidade dinmica, eternamente em processo, no se amedronta diante da idia de Deus, do sagrado, da espiritualidade, da religio, at porque so esses processos que constituem a identidade individual e social do homem e da comunidade.

Se as religies pertencem, milenarmente, ao inconsciente coletivo da humanidade, se muitos povos construram sua identidade a partir de suas crenas religiosas, se a experincia humana de angstia, medo, temor, assombro, assombro, bem como a vivncia do sentido do destino, da inevitabilidade da morte e a incerteza do alm sempre fizeram com que o homem, por meio de cultos e rituais, aplacasse e agradasse a divindade, por que a psicologia pode ou precisa passar ao largo da idia de Deus e, conseqentemente, de religio como se nada disso tivesse a ver com o homem?

Encontramos, em ABBAGNANO (2000, p. 209) a indicao de seis correntes fundamentais da Psicologia:

a) Psicologia Racional: estuda a alma de forma racional, a partir de princpios filosficos e no de forma emprica, a partir dos fatos. Foi usada por Christian Wolff (1679-1754).

b) Psicologia Psicofsica: o psicolgico atingindo o fsico. Por exemplo, um trauma, uma tenso, atingem o fsico (como cegueira, paralisia, perda de fala); ou as respostas galvnicas da pele (arrepio) provocam um mal-estar psicolgico. Foi proposta por Fechner (1860).

c) Behaviorismo (= comportamentismo), do termo ingls behavior(EUA), ou behaviour(Inglaterra). Em 1913, John B. Watson colocou o comportamento no lugar dos processos mentais como objeto da psicologia e descartou o mtodo introspectivo. Para ele, a conscincia no podia ser objeto da psicologia. O mtodo devia ser a observao.

Tambm ps de lado conceitos como inclinaes, foras, tendncias, propsitos etc. O comportamento era considerado como o conjunto de reaes musculares e glandulares de um organismo: a soma total de respostas a estmulos internos e externos (condies ambientais). Cf. Skinner.

d) Gestaltismo (de Gestalt = estrutura, forma). O objetivo desta psicoterapia o aqui e o agora em contraste com abordagens voltadas ao passado da pessoa. Foi proposta por Frederick Perls.

e) Psicologia do Profundo, ou psicanlise. Busca as motivaes que no afloram ao nvel da conscincia do homem que age, mas que, nem por isso, deixam de influir em seu comportamento: so as foras inconscientes que determinam o comportamento humano. Cf. Freud.

f) Psicologia Funcional: o estudo dos fenmenos psquicos como processos adaptivos, de ajustamento. Esta escola surgiu com William James, que se props estudar as funes mentais que visam o ajustamento do organismo ao ambiente.

Jorge Ponciano Ribeiro comenta, a esse respeito, o seguinte:

Pronto, agora sim. O homem pode ser, exaustivamente compreendido ou entendido: est todo dividido, um pedao para cada teoria. E, no leilo acadmico, quem der mais, leva (p. 33).

Esta crtica se baseia na convico de que estas disputas no consideram o homem em si, mas as vrias teorias entre elas, que so abstratas. Alm disso, Ribeiro acredita que no a Psicologia, como cincia, que lida mal com a idia de religio, mas apenas alguns psiclogos, devido influncia de Freud e de outros autores.

Na realidade, Deus mora, silenciosamente, em cada uma de suas criaturas. No entanto, na religio, ou em prticas religiosas que as pessoas o procuram de uma maneira mais formal, embora muitos tambm, convivam com Ele valendo-se de experincias absolutamente pessoais.

Qualquer que seja a opo religiosa pessoal do psiclogo, este precisa aprender a conviver com um Deus que mora na humanidade ou no cosmos e que se expressa, freqentemente, nos homens, inclusive nos clientes do psiclogo por meio de gestos que incluem f, amor, esperana e tambm, muitas vezes, medo, temor e angstia.

Naturalmente esta empatia fica mais fcil quando o psiclogo religioso.

Quanto mais olharmos para o outro com seus prprios olhos, mais entraremos na esfera do sagrado, do espiritual que habita nele e no mundo.

Assim se expressa o filsofo contemporneo Martin BUBER:

So trs as esferas nas quais o mundo da relao se constri:

A primeira a vida com a natureza em que a relao permanece no limiar da linguagem.

A segunda a vida com os homens na qual a relao toam forma de linguagem.

A terceira a vida com os seres espirituais em que a relao, embora sem linguagem, gera a linguagem.

Em cada uma dessas esferas, em cada ato de relao, vislumbramos a orla do Tu eterno; em cada uma percebemos um sopro dele; em cada Tu ns nos dirigimos ao Tu eterno, segundo o modo especfico de cada esfera. Todas as esferas so includas nele, mas ele no est includo em nenhuma. Por meio delas, irradia-se uma presena nica (2003, p. 148).

Estamos falando de Deus; da solidariedade, do dilogo, da ecologia humana. No estamos falando de um Deus que as religies ensinam ou impem; estamos falando com Ele e no dele. Esse o Deus da Psicologia, um Deus que est muito alm das disputas acadmicas . Ele no invade ningum: apenas espera ser encontrado. Tambm se no for encontrado, Ele continua onde est. S tem medo dele aqueles que falam dele; os que falam com Ele acabam se tornando bons, cordiais e fiis amigos.

Psicologia e Religio: uma longa caminhada, um dilogo mediado pela relao homem-Deus.

Psicologia e Religio: nenhuma das duas tem que provar nada a outra. Se cada uma ficar profundamente na sua dimenso, terminaro por se encontrar, uma a outra, porque onde est a verdade, tudo est includo.

Bibliografia

1) Texto bsico

RIBEIRO, Jorge Ponciano. Religio e Psicologia. In: HOLANDA, Adriano (Org.). Psicologia, religiosidade e fenomenologia. Campinas: Alnea, 2004. p. 11-36.

Jorge Ponciano Ribeiro Doutor em Psicologia pela Universidade Pontifcia Salesiana de Roma (1975); ps-doutor na Sussex University, Inglaterra (1990), Professor titular de Psicologia Clnica da Universidade de Braslia.

2) Textos citados

ABBAGNANO, N. Dicionrio de filosofia. So Paulo: Martins Fontes, 2000.

BUBER, M. Eu e tu. So Paulo: Centauro, 2003.

DURKHEIM, E. O suicdio. So Paulo: Martins Fontes, 2000.

DYER, D.R. Pensamentos de Jung sobre Deus: profundezas religiosas da psique. So Paulo: Madras, 2003.

HELLERN, V.; NOTAKGR, H.; GAARDER, J. O livro das religies. So Paulo: Companhia das Letras, 2002.

PAGE \# "'Pgina: '#''" lgo imaterial, no pdervel, no universalizvel, dado que a cincia do indivduo nas suas manifestaes psicoemocionais.