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Religião, Identidade e Dominação na Síria Um conflito global e secular Melissa Bevilaqua Sampaio Contreiras Brasília, 2019.

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Religião, Identidade e Dominação na Síria

Um conflito global e secular

Melissa Bevilaqua Sampaio Contreiras

Brasília,

2019.

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Sumário

1. Introdução Erro! Indicador não definido.Período colonial 3Pós-independência Erro! Indicador não definido.O governo de Bashar7Questões regionais 7Guerra Fria 8O Neo-Imperialismo Norte Americano e a Guerra ao Terror 9Estopim do Conflito 11Curdos: um povo sem

território 14Consequências no Presente 16Conclusão 18Bibliografia Erro! Indicador não definido.

1. Introdução

Para uma boa compreensão do conflito que ocorre na Síria é necessário elucidar

dois pontos cruciais e nem sempre óbvios. O primeiro deles é o fato de que a Guerra na

Síria começou muito antes de 2011, no sentido de que para o seu entendimento é de

suma importância uma análise de sua historiografia, que expõe como se deu toda a

construção do conflito. O segundo é que o que chamamos de guerra civil é, na verdade,

uma guerra que envolve um Estado-nação e todos os seus segmentos, interesses

político-econômicos das grandes potências mundiais, além de uma disputa de poder

regional.

A história da Síria permeia os caminhos de antigos impérios e civilizações. Seu

território, contendo importantes rotas de comercialização, foi palco de muitos

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acontecimentos. Presenciou os feitos de grandes impérios como o romano e o persa,

estando, assim como grande parte dos territórios do Oriente Médio, sob posse do

Império Turco Otomano até o fim da chamada Primeira Guerra Mundial. A origem do

conflito a ser estudado encontra-se no momento em que os interesses das potências

modernas passam a afetar o oriente.

Após a decisão dos europeus de expandirem não só o seu mercado consumidor,

mas suas áreas de exploração de recursos e mão de obra barata, as sociedades orientais

se tornam vítimas do imperialismo europeu. A partir desse momento, os ocidentais

colocam em prática suas estratégias de dominação, que têm como objetivo a submissão

dos povos dominados à forma de organização colonial. Um exemplo dessas estratégias é

a construção de uma narrativa na qual a grandiosidade do oriente está atrelada ao

passado e, no momento presente, devem aceitar sua intrínseca inferioridade em relação

aos europeus. Com um passado tão grandioso, o que sobra para o futuro? Segundo a

lógica colonial, nada sobra. Dessa forma, muitas vezes, nem mesmo os povos

subjugados acreditavam ter o que era necessário para vencer seus dominadores.

A Síria não compõe a seleta parte da história europeia que os ocidentais

decidiram chamar de mundial. A principal consequência disso, nos dias atuais, é o seu

apagamento do cenário político internacional e do cotidiano social. Uma vez superada a

antiguidade, pouco se difunde sobre o que aconteceu e vem acontecendo naquela região.

Perceba que é interessante para as grandes potências que o resto do mundo não tenha

entendimento do que acontece na Síria, das razões e consequências do conflito para

aquele povo e para sua terra, ou seja, que não descubram a lógica de dominação por trás

disso.

Tal lógica caracterizou o oriente como um problema, estigmatizando seu povo,

governo e ações. Um problema exige soluções e é com base nessa justificativa que até

hoje as grandes potências do mundo continuam interferindo ativamente nos processos

de modernização de suas antigas colônias.

2. Período colonial

O período colonial criou as condições e desenhou o mapa no qual se estabelece o

conflito. As fronteiras criadas pelos colonizadores através de um complexo processo de

tratados, acordos e conflitos não faziam sentido para os povos que ali viviam.

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Territórios eram fragmentados ou agrupados de acordo com os interesses europeus,

ignorando por completo as questões religiosas, culturais, sociais e históricas de suas

ditas colônias.

Os mesmos países que ajudaram os sírios a conquistar sua independência do

Império Turco Otomano, em 1916, paralelamente firmavam acordos secretos que

permitiam a partilha do Oriente Médio entre as duas principais potências da época, o

Reino Unido e a França. É o caso do acordo Sykes-picot, que não chegou a definir as

fronteiras atuais, mas representa o espírito das ambições coloniais que permaneceu por

um longo período. Assim, em 1920 a França recebe da Liga das Nações o mandato dos

locais que chamamos atualmente de Líbano e Síria.

Objetivando a manutenção da dominação, a política de dividir para governar foi

um fator central que guiou o período colonial. Inicialmente, os franceses

proporcionaram à maioria sunita do território uma maior participação política, devido ao

seu caráter moderado. Com o tempo perceberam que a criação desse núcleo de poder

fomentava um sentimento de nação, relembrando o projeto de criação de um grande

estado árabe da época em que conquistaram sua independência do império Turco

Otomano, interrompido pelo acordo Sykes-Picot. Entendendo que sua autoridade estava

em risco, a França decide por dividir a área de predominância sunita nas províncias de

Damasco e Aleppo. O sentimento nacionalista árabe que vinha se construindo se

fortaleceu com a decisão da divisão gerando uma revolta controlada e vencida pelos

franceses em 1927. Entretanto, as constantes divisões não foram capazes de alterar a

organização política que se configurou, posteriormente, como uma república unificada.

Cada vez mais Estados, que antes eram autônomos, eram anexados à principal entidade

política, durante o longo processo de independência iniciado em meados da década de

trinta. Gradualmente a França passou a reduzir sua presença militar e sua interferência

nos assuntos internos. Até que em 1946 foi formalizada a independência da República

da Síria. Obrigada a se inspirar em um projeto de estado francês, nasce essa nova

república, cuja a sociedade é marcada pela tentativa de unificação de diversas minorias

étnicas e religiosas.

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3. Pós-independência

A história política da Síria pós independência é marcada por disputas de poder,

gerando uma série de golpes e contragolpes até 1971, momento em que Hafez al Assad

se estabelece, também por meio de um golpe militar. Uma característica predominante

em todo o Oriente Médio durante esse período foi a dificuldade em integrar a enorme

diversidade que formava a população de cada país e a consequente crise de legitimidade

de poder dos líderes em relação às sociedades. Assim, a Síria em um período de 35 anos

contou com quase vinte presidentes ocupando o cargo mais alto do executivo.

Um ideal não imperialista se sobressaiu na formação dos Estados que temiam

por sua recém conquistada autonomia. Essa ideia traduzida para o cenário do mundo

árabe se configurou como o movimento pan-arabista. A partir desse momento nota-se a

formação de diversos partidos de cunho socialista e nacionalista no Oriente Médio,

dentre eles, o partido de maior influência na Síria, o partido Baath. Os ideais socialistas

juntamente com a ideia da unificação dos países de língua e civilização árabe trazia uma

onda de esperança e possibilidades para a região. E foi acreditando neste instrumento

transnacional de formação de uma identidade que a Síria decide se unir ao Egito

ocorrendo, em 1958, a criação da República Árabe Unida. Entretanto, a RAU, sob a

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liderança de Nasser, priorizava os interesses egípcios em detrimento das necessidades

sírias. Dessa forma, em 1961, um golpe militar encabeçado pelo partido Baath, põe fim

a República Árabe Unida. Poucos anos depois o partido sobe ao poder oficialmente,

difundindo uma ideologia que implicava na remoção da burguesia tradicional do poder e

na implementação de reformas sociais. Internamente, passam a ser pensadas políticas de

distribuição igualitária de terras e no que diz respeito à política externa adotada, a Síria

juntou-se na guerra contra Israel pela libertação do povo palestino.

A Síria perdeu a guerra e alguns territórios para Israel, o que, mais uma vez,

colocou em risco a estabilidade política do país. É então que Hafez al Assad assume o

controle político da Síria. Com grande carisma, o novo presidente, sendo parte da

minoria alauíta, insere em seu discurso e na vida política as diversas minorias étnico-

religiosas sírias. Somado esse apoio das minorias Hafez foi capaz de consolidar seu

poder ao institucionalizar uma visão militarizada no partido Baath.

O modelo de Estado que se estabeleceu veio acompanhado de uma estabilidade

autoritária. A permanência de Hafez no poder por vinte e nove anos, até a data de sua

morte em 2000, foi caracterizada por sua dominação dos instrumentos de poder, pela

criação de uma base social ampla capaz de sustentar-lhe e a instauração de um sistema

presidencial centralizado acompanhado do culto à sua personalidade.

Consequentemente, sua autoridade, tornou possível converter os principais aparatos do

poder estatal em instrumentos de poder pessoais.

O elemento minoritário, sempre presente em seu regime, buscava a ascensão

socioeconômica e política, não somente dos alauítas, mas de outras minorias próximas,

como os drusos, os xiitas e os cristãos. Dessa maneira, Hafez conseguiu com que os

diversos setores do poder, ressaltando aqui o exército, fossem extremamente leais a ele.

Enquanto isso, cedia à maioria sunita alguns direitos a participação na vida política e

econômica do país, evitando revoltas e mantendo-os sob seu controle.

A constituição promulgada em 1973 e o regime parlamentarista sírio refletiam

com clareza a execução da autoridade não só de Hafez al Assad, mas do Partido Baath

como um todo. O parlamento unicameral possuía a maioria de suas cadeiras destinadas

aos representantes da Frente Nacional de Progresso, criada pela constituição e tendo

como seu principal membro o partido Baath.

Pode-se concluir que os quase trinta anos do governo de Hafez foram marcados

por um profundo temor da perda da estabilidade. A via desesperada escolhida pelo

presidente para manter o controle foi a repressão de todos que se opunham às suas

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políticas por meio da violência. Um dos maiores exemplos desses atos violentos foi o

chamado Massacre de Hama. Em 1982, as Forças Armadas da Síria bombardearam a

cidade de Hama, a fim de exterminar a campanha sunita contra o regime.

Muitas decisões no âmbito econômico também foram tomadas com único

objetivo de se manter a estabilidade do governo. As concessões à burguesia sunita se

materializaram nas políticas que garantiam o ressurgimento do setor privado e

promoviam as exportações. Entretanto, a presença de classes divergentes no país e a

burocracia estatal juntamente com as medidas voltadas para o desenvolvimento

econômico, fizeram surgir uma nova burguesia, dividida entre uma burguesia comercial

e os aliados do regime que enriqueceram. Em contrapartida, muitos benefícios das

políticas de Assad chegaram ao campo. A equalização das posses de terra, a propagação

da educação e o aumento da renda rural tornaram possível um aumento da

produtividade do campo. Assim, a atividade rural permaneceu, até os últimos anos de

governo de Hafez como segunda principal atividade exportadora do país.

Os anos 90 impulsionaram em todo o Oriente Médio uma liberação econômica.

Nesse momento, a Síria se encontrava em uma situação na qual seu serviço público

estava inflado e ineficiente e o setor privado estagnado devido às rígidas regulações do

estado. Além disso, o país não foi capaz de estreitar suas relações internacionais.

Isolado e com a economia pouco diversificada, na última década do mandato de Hafez,

sua economia crescia a depender da exportação de petróleo. O setor petrolífero ocupava

dois terços das exportações e quase a metade dos gastos governamentais.

Depois da morte de Hafez, as elites estatais mostraram que não estavam

dispostas a abrir mão do poder. Eleições foram realizadas, mas só existia uma

candidatura e era proibido qualquer tipo de oposição política. Dessa forma, Bashar al

Assad assume a posição de seu pai.

4. O governo de Bashar

No instante em que assumiu o cargo presidencial haviam dois caminhos que

poderiam ser seguidos: o de uma política reformista ou seguir as estratégias de seu pai.

Formado em medicina, até então, não era conhecido por sua vocação política, mas

inspirava na população síria uma sensação de que uma nova fase estava por vir. Bashar

estava inclinado a reformar e modernizar diversos setores do país, nunca, entretanto,

deixando de prezar pelo legado de seu pai. Seu regime pode, assim, ser caracterizado

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como modernizador e autoritário ao mesmo tempo. Realmente muitas reformas foram

realizadas, mas sem que a estrutura do regime se alterasse.

Conhecia a lógica ocidental por ter morado na Grã-Bretanha e trouxe para

ocupar as principais posições políticas ao seu lado técnicos formados no ocidente. Dessa

forma, começou a explorar os sistemas ocidentais. Direcionou a economia para o

mercado, o setor privado foi extremamente estimulado e começaram a ser realizados

acordos internacionais. Todavia, alguns elementos estruturais dificultavam a entrada da

Síria por completo no sistema capitalista. A corrupção e os grandes monopólios

desaceleravam os processos de introdução da competição em setores importantes da

economia e desestimulavam acordos econômicos internacionais.

O desejo de Bashar em prol de uma liberalização da economia por um breve

momento pareceu anteceder o que viria a ser uma liberalização da política. Em seus

primeiros meses de governo reduziu o culto à personalidade e tomou decisões que

implicavam em uma relativa abertura da mídia e em um fortalecimento da sociedade

civil. Essas políticas a favor da liberdade de expressão duraram até o momento em que

se intensificaram os protestos por uma democracia multipartidária. A liberalização

política não se concretizou, já em 2002 o autoritarismo violento caracterizava o regime

de Bashar al Assad.

5. Questões regionais

O terreno já estava preparado e as condições internas formadas para o que viria a

ser a Guerra na Síria. É importante que se entenda este conflito como proveniente de um

sistema de ações mundiais. As relações que as novas repúblicas e reinos do Oriente

Médio desenvolviam, refletiam suas inimizades ou afeições históricas. Assim, os

principais atores regionais que participam e fomentam a guerra, agem no sentido de

assegurar suas convicções, reforçar suas alianças e se opor ao seu inimigo. Hoje, as

nações tardiamente independentes do Oriente Médio, associaram suas convicções à

diretrizes ideológicas das grandes potências mundiais, permitindo que os interesses

destas permeassem suas ações.

As principais nações nas disputas regionais eram a Turquia, o Egito, Irã e Arábia

Saudita, e juntamente com Israel e Iraque fazem parte da principal teia de relações da

Síria. Foram agentes de sua história e consequentemente ajudaram na construção do

conflito. A posição anti-imperialista do partido Baath levou a Síria a se aliar à nações de

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orientação nacionalistas e anti-estadunidense, como foi o caso da união com o Egito em

1958, que acaba deixando de ser um dos protagonistas na crise síria do século XXI,

focando em questões internas. Esse posicionamento do governo sírio era atrativo para o

Irã que, além de ser aliado da Rússia, era xiita, sendo assim, se opunha aos grupos

sunitas da região, principalmente à Arábia Saudita. E enquanto o governo do Partido

Baath se inclinava em direção a ideais não imperialistas, automaticamente virava um

problema para Israel e para a Turquia, que representavam os ideais estadunidenses no

Oriente Médio.

A conquista do status de nação independente por vários países do Oriente Médio

ocorreu paralelamente ao fim da Segunda Guerra Mundial e ao início do período

conhecido como Guerra Fria. Isto posto, percebe-se que em um momento pós

independência as potências coloniais, França e Inglaterra, que antes exerciam grande

influência sobre a região perdem seu posto para os novos líderes da polarização

mundial, a União Soviética e os Estados Unidos.

6. Guerra Fria

Os efeitos da nova ordem mundial foram sentidos no Oriente Médio

principalmente após a crise do Canal do Suez em 1956, e mais especificamente na Síria,

a partir da década de setenta, período no qual Hafez al Assad estreita as relações do

governo sírio com a União Soviética. As marcas dessa aliança traduziram-se em um

aumento dos acordos comerciais entre as duas nações, na garantia de apoio político e

em alianças militares que envolviam a importação de equipamentos soviéticos.

Simultaneamente, os Estados Unidos reforçaram suas alianças com Israel e Iraque para

se contrapor a revolução iraniana e alguns anos mais tarde firmaram importantes

parcerias com o governo saudita. A Guerra Fria continuava a se sustentar na velha

dinâmica colonial que implicava em uma disputa por um maior número de zonas de

influência pelas grandes potências. União Soviética e Estados Unidos, através de

estratégias expansionistas, competiam pela e às custas da dominação de outros povos.

As aproximações das potências com as nações árabes, muitas vezes não eram nem

mesmo ideológicas, na realidade, se resumiam a interesses militares e geopolíticos.

Uma boa relação com a União Soviética significava problemas com os Estados

Unidos. Para o regime sírio, esses problemas se materializaram em dois conflitos, na, já

mencionada, guerra contra Israel e na guerra civil do Líbano. A Síria, em 1976,

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mobilizou contingentes a fim de serem transpostos para a capital libanesa, com o

objetivo de interferir na guerra civil iniciada no ano anterior. Seis anos mais tarde,

Israel, sob a égide estadunidense, desloca efetivos para territórios libaneses, que lá

permaneceram por dois anos. A justificativa era a de completar uma missão de paz e

garantir a soberania do Líbano. Assim como ocorreu na guerra do Vietnã, Afeganistão e

guerra Irã-Iraque, estas nações agiam como representantes de uma disputa mais ampla

entre norte-americanos e soviéticos. Alimentar esses conflitos era extremamente

benéfico para as potências mundiais que, além de garantir um mercado consumidor para

sua produção bélica, viam nesses espaços uma oportunidade para demonstrar seu

poderio político e militar.

7. O Neo-Imperialismo Norte Americano e a Guerra ao Terror

Com a queda da União Soviética e, consequente, o fim da Guerra Fria, os

Estados Unidos puderam reforçar sua presença e diminuir a zona de influência da então

Federação Russa na região, antes bipolarizada, do Oriente Médio. O período que se

seguiu e se estende até os dias atuais é marcado por uma série de intervenções políticas

e militares do governo estadunidense nos territórios e nas relações entre as nações

asiáticas. As principais justificativas a favor dessas ações norte-americanas foram a luta

contra o terrorismo, principalmente depois do ataque de 11 de setembro, e a luta pela

preservação dos direitos humanos, que eram ignorados pelas ditaduras árabes.

Malgrado, o regime de Hafez al Assad possuísse todas as características

ditatoriais que o ocidente passou a condenar e estivesse estritamente ligado à União

Soviética, ele foi capaz de manter sua estabilidade até a data de sua morte. Nos dez anos

que precederam o governo de Bashar, a nação foi classificada como maléfica à

sociedade juntamente com outros países de cunho socialista. E, diferentemente de

alguns desses países que possuíam relevante importância econômica em escala mundial,

a Síria manteve suspensa sua relação com o governo norte-americano.

Nesse momento, é necessário salientar como as práticas de dominação se

renovam e se adaptam ao seu tempo e às especificidades do local onde estão sendo

introduzidas. Possuem, no entanto, uma característica em comum, o uso da via militar -

e, consequentemente, da violência - que está sempre pairando os processos de

dominação, esperando o momento que será utilizada. No período colonial uma tática

efetiva consistia em obrigar os povos dominados a renegar importantes aspectos de sua

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cultura e história, sendo esse o único meio de alcançar o progresso em direção à

modernidade. Na Guerra Fria, o ocidente apenas soube utilizar uma situação que já

estava determinada. A submissão vinha da ideia difundida de uma necessidade de se

lutar contra um inimigo comum. Impedir o crescimento do comunismo justificava

qualquer ação, por mais autoritária que fosse.

No início do século XXI os EUA já haviam se estabelecido como a mais

importante e poderosa potência mundial e para se manter como tal, perceberam que

deveria ser construída uma nova dinâmica de dominação. O inimigo comum a ser

combatido passou a ser o terrorismo, e com esse objetivo foram justificadas diversas

sanções, intervenções militares e operações secretas em territórios do Oriente Médio. E,

garantir os direitos humanos, passou a amparar, muitas vezes, a permanência física de

norte-americanos na região, ou seja, um controle mascarado de tutela.

A campanha militar conhecida como Guerra ao Terror, de George W. Bush,

iniciada como resposta aos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, fundamentou

legalmente a invasão tanto do Afeganistão, em 2001, quanto do Iraque, em 2003.

Ambas as invasões resultaram em guerras e na morte de milhares de civis. O combate

ao Talibã e a al-Qaeda fracassou, visto que foram capazes de ressurgir, fortificados, para

continuar a disputa da região. Enquanto isso, o governo norte-americano desviando seu

foco para o Iraque, visa tirar do poder o ditador Saddam Hussein, seu antigo aliado na

guerra contra o Irã. A guerra do Iraque perdurou ainda por mais oito longos anos. Nesse

período, mesmo depois da morte de Saddan, o exército estadunidense permaneceu no

território. A ineficiência dessa ocupação gerou uma onda de violências, permitindo que

grupos, como a própria al-Qaeda, se fortificassem. Em resposta à violência, Bush

aumentou a presença militar no Iraque, até a sua retirada em 2011.

Com o fim da Guerra Fria, no século XXI, diversos regimes pró-soviéticos

viraram alvos das potências ocidentais. Em vários locais do leste europeu e da Ásia

surgiram oposições, originárias de manifestações populares, financiadas,

principalmente, pelos Estados Unidos. As tentativas de derrubada de governos anti-

ocidentais no Oriente Médio ficaram conhecidas como Primavera Árabe.

8. Estopim do Conflito

O regime de Bashar al Assad optou por uma liberalização de sua economia, o

que, em um país tão diverso quanto a Síria, apenas acentuou as desigualdades

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existentes. A dificuldade em realizar acordos internacionais para impulsionar as

exportações e importações e com o setor rural em crise devido a uma seca, a economia

se estagnou. O empobrecimento da população, o desamparo do governo com relação ao

campo e o desemprego fomentaram insatisfações sociais. Além disso, o caráter

ditatorial e autoritário do governo não correspondia com os ideais de democracia e de

formação de um Estado inspirado no ocidente que haviam, nas últimas décadas, se

espalhado pelo globo.

O advento da tecnologia e dos meios de comunicação foi de suma importância

nesse momento. As redes sociais possibilitaram um maior contato, com fins de

organização social, não somente entre a população de uma nação, mas entre diferentes

países. E foi assim que em 2011 eclodiram revoltas populares que clamavam pela

derrubada de seus governos ditatoriais na Tunísia, Egito, Líbia e Síria. A função da

mídia, no ocidente, era propagar a ideia de que qualquer ação era justificada na luta em

prol da democracia e nos países árabes, deveria comunicar e organizar a sociedade em

torno de revoluções.

Na Tunísia e no Egito os regimes ditatoriais cederam. A Líbia enfrentou uma

guerra civil que só foi vencida pelos rebeldes após o início da intervenção militar

estrangeira. Na Síria, dois fatores principais vão impedir que o seu destino se pareça

com o dos outros países que integraram a primavera árabe. O primeiro é o, já

mencionado, caráter minoritário do governo da família Assad, que foi capaz de construir

um exército extremamente leal. Além dessa força militar, muitos setores da população o

apoiavam, isso fica claro ao se perceber que paralelamente às manifestações que

ocorreram em oposição, ocorriam marchas civis pró-governo. O segundo é o

exacerbado uso de violência por parte do governo para conter revoltas populares.

Manifestações pacíficas começaram a ser realizadas em 2011. A população síria

reivindicava o fim do estado de emergência, vigente desde 1963, a legalização dos

partidos políticos e a condenação dos corruptos. No início, Bashar pareceu se mostrar

conivente com algumas dessas reivindicações, sem, no entanto, deixar de mostrar que a

qualquer momento poderia fazer uso da força física. Em março, alguns estudantes

picharam um muro na cidade de Daraa, ao sul do país, com dizeres que supunham a

queda do presidente. Os jovens foram presos e com isso as manifestações populares

inflaram. Nesse momento, como de praxe, o governo de Assad opta pela repressão

violenta. Os óbitos gerados a partir de então causaram ainda mais revolta na população,

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nacionalizando por completo o movimento, que estava inspirado com o fim de outras

ditaduras árabes.

A violência que só aumentava por parte do Estado desencadeou, no âmbito

internacional, a adoção, a mando dos Estados Unidos, de diversas sanções ao regime

sírio, proibindo, principalmente, a importação do petróleo, que continuava a ser o setor

mais lucrativo do país. Internamente, cada vez mais pessoas pegavam em armas, se

organizando em torno do que chamaram de Exército Livre da Síria. Estava formada a

oposição e, assim, iniciou-se, oficialmente, a guerra que perdura até hoje na Síria.

Em 2012, o fluxo de capital estrangeiro que entrava para armar a oposição,

fortalecia grupos que seguiam correntes extremistas, garantindo uma divisão eminente

daqueles que lutavam contra Assad. As três vertentes principais que desmembraram a

oposição são, primeiramente, os rebeldes que persistem nos ideais liberais-

democráticos, mantendo vivo o sentimento que iniciou a Primavera Árabe; os grupos

que, ideologicamente, se baseavam em uma interpretação extremada do wahabismo,

uma ideologia difusora de uma versão fundamentalista do Islã; e, por fim, grupos

étnicos com ideais separatistas, sendo essencialmente representados no conflito pelos

curdos.

Na medida em que ambos faziam alianças militares e políticas, a oposição

seguia conquistando territórios e Bashar se mantinha com o forte apoio das Forças

Armadas. A guerra ganhava força e atraía cada vez mais a atenção internacional, a Síria

estava se preparando para ser o palco de guerras que não eram dela. Enquanto isso a

população sofria, no final de 2013 já contabilizavam-se mais de 100 mil mortes e 2

milhões de refugiados.

Enquanto o ELS e o regime de Assad ocupavam-se um com o outro, o grupo

conhecido como Estado Islâmico instalou-se em território sírio, anunciando a criação de

um novo califado em julho de 2014. O Estado saudita juntamente com outros países

aliados ao ocidente, cuja ideologia - o wahabismo - implica na perseguição de não

muçulmanos da região, incluindo xiitas, financiaram e armaram qualquer um que

estivesse disposto a lutar contra Bashar. Possibilitando, assim, a criação do EI, uma vez

que faz parte dos grupos ramificados da oposição que receberam essa ajuda. A partir

desse momento, seu rápido crescimento sustentou-se no capital de entes privados - que

financiavam o grupo por medo, no caso de empresas localizadas em território do

califado, ou por afinidade - na grande adesão estrangeira, principalmente de iraquianos

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sunitas marginalizados e na sua inédita estratégia de guerra que envolvia uma

exacerbada crueldade.

Seus meios de obtenção de recurso possibilitaram a conquista de diversos

territórios na Síria e no Iraque - em 2014 possuíam uma área com as mesmas dimensões

da Grã-Bretanha - e a realização de ataques terroristas assumidos em cidades da Europa

e no Líbano, nos anos de 2015 e 2016. Rapidamente se tornaram uma ameaça para a

segurança internacional e chamaram a atenção, principalmente, dos Estados Unidos ao

ameaçar o território iraquiano, no qual o governo norte-americano havia gastado 2

bilhões de dólares para combater o terrorismo.

Adentrar o território ocupado pelo grupo - que chegou a controlar a oposição

sunita em Damasco, a cidade de Raqqa e as periferias de Aleppo - tornou-se perigoso,

consequentemente, havia pouca cobertura da mídia. O que beneficiava os Estados

Unidos por não mostrar o fracasso da Guerra ao Terror. Além disso, sem muitas

possibilidades de se retratar o que estava acontecendo em grande parte do território

sírio, tornava-se mais fácil para a grande mídia construir o pensamento que fosse

conveniente, apagando, dessa forma, as questões de cunho político que estruturavam as

ações do EI do seu discurso. Os atos extremamente violentos e cruéis do grupo

passaram a ser atrelados somente a uma questão de extremismo religioso.

Os países que haviam ajudado a oposição sem prestar atenção em quem era esse

grupo e no que ele estava se tornando, como os EUA e a Arábia Saudita, passaram a

temer por seus territórios e áreas de influência, desviando sua atenção para o combate

ao Estado Islâmico. Essa mudança de estratégia dos atores internacionais após 2014

teve grandes consequências no desenrolar da guerra. A oposição, agora representada

pela Coalizão Nacional, sofreu um enfraquecimento. Por conseguinte, os riscos que

Assad representava foram relativizados. Assim, sem deixar de se preocupar com as

ameaças do EI e com o risco que ele representava para o seu regime, afinal a família

Assad é de origem alauíta e seu modelo de Estado é laico, Bashar dispôs de tempo para

recuperar o fôlego e reestruturar suas estratégias.

9. Curdos: um povo sem território

Enquanto isso, no norte da Síria os curdos haviam declarado, em 2012, uma

república autônoma, que passou a ser regida como uma Federação em 2016. E, embora

mantenham relações com outras nações, nenhum país ou organização reconhece a

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autonomia da Federação Curda. Com história milenar, os curdos ocuparam territórios

sob a influência dos mais diversos povos. No momento presente, a situação não poderia

ser diferente, os curdos encontram-se alojados em vários países - na Turquia, Síria, Irã e

Iraque - e esse é um ponto crucial para o entendimento da problemática que envolve o

Curdistão. Não existe uma única solução, pois esta depende dos interesses de diferentes

governos e grupos étnicos.

Devido à sua posição geográfica,a área reivindicada pelos curdos sofreu diversos

ataques. Entretanto, foi em 1925 que foi negada a existência do povo curdo,

principalmente pela Turquia. Os curdos viam sua tentativa de criação de uma nação se

afastar a cada passo que dava a humanidade, a política colonial que estrutura as bases do

capitalismo exclui a maioria dos integrantes desse grupo do mundo moderno. A

construção ideológica derivada do imperialismo dividiu o território curdo e deu

legitimidade ao poder de outras nações exercidos sob o Curdistão. O sentimento

nacionalista que emergia, quando transferido para a política, criou uma classe que se

percebia como um poder hegemônico sobre qualquer outro grupo étnico. Os exércitos

nacionais engajavam-se em conter atos de resistência popular e para reprimir qualquer

avanço econômico ou social do grupo, sua identidade foi negada pelo mundo árabe e

políticas assimilacionistas implantadas.

Seguindo uma conduta socialmente emancipadora, foi criado, inicialmente, por

um pequeno grupo de curdos residentes em território turco o Partido dos Trabalhadores

do Curdistão (PKK) em 1973. Entendiam que só teriam sua cultura respeitada no

momento em que o Oriente Médio passasse por uma mudança política prezando por um

ideal de democracia. É necessário que nas respectivas constituições das potências que

abrigam o curdistão estejam assegurados os direitos do povo curdo.

“A solucao para a questao curda deve ser tentada em conjunto com um processo de

democratizacao de todos os paises que exercem seu poder sobre o Curdistao de maneira

hegemonica. Este processo, porem, nao e limitado a tais paises, mas deve estender-se

por todo o Oriente Medio. A paz no Curdistao esta intimamente ligada a democracia no

Oriente Medio. Um Curdistao livre somente e concebivel como um Curdistao

democratico.” (ÖCALAN, Abdullah. Guerra e paz no Curdistão. Köln: International

Initiative Edition, 2008; P.35)

A única maneira de fazer parte da sociedade moderna árabe incluía a negação da

própria identidade curda. Assim, em meados dos anos 2000, na Síria, os curdos

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passaram a se organizar de forma mais contundente e a criar seus próprios partidos

políticos. Em 2003, iniciou-se uma onda de protestos que demandavam a

descriminalização da língua curda, direito a exercer sua cultura e a participação política.

Tais protestos eram inicialmente pacíficos, afinal, todos temiam a repressão violenta

característica do governo de Bashar, que tendia a ser pior com os curdos do que com

outros grupos de oposição ao regime. No ano seguinte, a violência por parte do exército

sírio aumentou e leis que restringiam ainda mais os direitos dos curdos foram

aprovadas. Entretanto, por mais que tenham sofrido uma derrota, estes acontecimentos

possibilitaram o reconhecimento dos curdos como uma força importante de oposição ao

governo, uma vez que eram capazes de levar milhares de pessoas às ruas. Inicia-se a

formação de uma frente unificada da oposição.

10. Consequências no Presente

Percebe-se, dessa forma, que a Primavera Árabe é a resultante de uma série

eventos histórico-políticos que começam com a queda do império Turco Otomano e tem

suas consequências nos dias atuais. Já em 2011, no início da onda de protestos, tanto

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potências regionais quanto globais já possuíam suas principais justificativas para

interferir mais do que financeira ou politicamente no conflito da Síria. Todos os atores

envolvidos diretamente no conflito possuem seus próprios interesses e objetivos de

guerra. Entende-se, assim, que as coligações que se formam durante a guerra não são de

matriz ideológica e nem partilham das mesmas estratégias.

Os principais atores regionais do conflito foram o Irã, o aliado fundamental de

Bashar; a Turquia e a Arábia Saudita, ambas se posicionando contrárias ao governo,

alinhadas com os EUA, sendo que a primeira assume um importante papel na questão

curda - entende-se como o ápice de seu envolvimento no conflito a invasão ao território

sírio para combater as forças curdas ligadas ao PKK - e a segunda na oposição que faz

tanto ao governo das minorias religiosas de Assad, quanto ao seu aliado - o Irã - cujo

Estado se organiza em torno de práticas xiitas. No que se estende para além do Oriente

Médio, as principais interferências ficam a cargo da Rússia e dos Estados Unidos,

embora ainda possam ser citadas as antigas potências coloniais, França e Inglaterra em

menor medida.

Em 2013, ao afirmar que Bashar utilizava armas químicas no conflito, os EUA

fizeram sua primeira ameaça de um ataque unilateral, o que foi repreendido por

Moscou. No entanto, é em 2014, com a justificativa de enfraquecer o EI, que uma

coalizão liderada pelo governo norte americano começa a realizar ataques aéreos em

território sírio-iraquiano. No ano seguinte, a Rússia inicia o seu bombardeio, sem deixar

de mostrar sua prioridade de apoiar a administração síria. O que fica evidente no

discurso de Vladimir Putin que preza pela estabilização da autoridade legítima e pelo

estabelecimento de condições para atingir um acordo político.

Todavia, esse posicionamento perpassa o apoio histórico ao regime de Bashar. A

Rússia tem forte interesse em demarcar sua posição no sistema internacional enquanto

pólo de poder relevante, e o faz indo de encontro a securitização da agenda

internacional pautada pelos Estados Unidos. Afirmando que as incursões estadunidenses

no Oriente Médio são contrárias ao modelo de fóruns multilaterais de negociação e ao

papel concedido à Organização da Nações Unidas, que deveria ser a responsável pela

manutenção da paz mundial. Além disso, a presença do contingente norte-americano no

entorno russo representa uma afronta e uma ameaça às suas áreas de influência. Sua

posição se consolida no momento em que participa das Negociações de Viena, em 2015,

ao lado das principais potências regionais e extrarregionais.

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A atuação desses dois pólos ideológicos pode ser definida através do conceito de

guerra híbrida.

“As Guerras Hibridas sao conflitos identitarios provocados por agentes externos, que

exploram diferenças históricas, étnicas, religiosas, socioeconômicas e geográficas em

países de importância geopolítica por meio da transição gradual das revoluções

coloridas para a guerra não convencional, a fim de desestabilizar, controlar ou

influenciar projetos de infraestrutura multipolares por meio de enfraquecimento do

regime, troca do regime ou reorganizacao do regime.” (KORYBKO, Andrew. Guerras

Híbridas: das revoluções coloridas aos golpes. Editora Expressão Popular; Entrevista

concedida à mídia alternativa TUTAMEIA, em 19 de outubro de 2018.)

Além das estratégias militares convencionais e não-convencionais que são

utilizadas, a dominação, no momento presente, soube manusear a seu favor os

instrumentos dispostos na era da informação. A primeira fase organizacional da Guerra

Híbrida acontece na internet. Isso fica evidente na análise de um primeiro momento da

primavera árabe, no qual percebe-se uma rápida disseminação de informação e aumento

de discussões políticas online. Além das pessoas se sentirem mais confortáveis de

expressarem o que pensam através da tela de seus celulares, os articuladores desses

movimentos políticos buscaram informações importantes sobre seus alvos, conectando-

se com eles por meio de campanhas informativas direcionadas. O sistema de

comunicação também permite que quem o detenha transmita a mensagem que desejar.

A verdade sobre as motivações do conflito não pode ser encontrada nas televisões e

redes sociais. A todo momento são criadas imagens falsas tanto do que é e do que faz o

Oriente, como do Ocidente.

11. Conclusão

Agora, em 2019, depois de aproximadamente 360 mil mortes, começam a surgir

preocupações com consequências reais no sentido de encontrar uma solução para o

conflito. Foram iniciadas, há dois anos as negociações que ficaram conhecidas como o

processo de Paz de Astana. Os atores internacionais presentes nas conversas são o

governo russo e iraniano, como aliados de Damasco; e o governo turco, colocando-se do

lado dos rebeldes. Segundo a Rússia, uma nova cúpula para que se possa discutir a

questão síria com os presidentes destas três nações está prevista para o início deste ano.

Ressalta-se aqui o não envolvimento direto do governo norte americano nas

negociações de paz, o que, gradualmente, ofusca as promovidas pela ONU.

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Em dezembro de 2018, autoridades estadunidenses informaram que planejam

uma retirada completa dos 2 mil militares ainda presentes em território sírio. Isso

supostamente irá ocorrer uma vez que o Estado Islâmico foi derrotado, segundo Donald

Trump. A decisão anima o governo russo, embora este afirme que possui dúvidas

quanto ao seu cumprimento. Afinal, é possível afirmar que a saída dos Estados Unidos

levará a uma perda de sua influência, mesmo que ainda possuam bases militares no

Iraque. Em contrapartida, a retirada dos militares dos EUA preocupa a população curda,

que recebe o apoio da potência desde o início do conflito. Sem o apoio físico de seu

aliado, temem que a tensão com a Turquia possa se agravar.

As milícias curdas liderando a aliança intitulada de Forças Democráticas Sírias

tiveram um papel central na luta contra o EI, que perdeu mais de 90% do território que

ocupava em 2014. Contudo, os curdos e outras nações, majoritariamente aliadas dos

EUA, afirmam ainda existir a necessidade de se continuar lutando com o mesmo vigor

contra o terrorismo. A França e o Reino Unido, por diferentes motivos, seguem a

mesma linha de discurso, afirmando que mesmo com a retirada dos norte-americanos,

continuarão em território sírio.

Um conflito que já vem sendo desenhado há um século se complexifica ainda

mais em 2011. Dessa maneira, para entender o que ocorre no Oriente Médio e

consequentemente na Síria é necessária a compreensão de que as questões que revestem

os conflitos não podem ser analisadas como políticas, religiosas e econômicas

separadamente. Diferentemente de como foi estruturado o pensamento ocidental que

levou a formação dos Estados Democráticos de Direito na Europa e na América do

Norte, no Oriente, a formação do Estado está intimamente ligada à religião e à

existência de diversos grupos étnicos. Essa especificidade construída, também, pelo seu

passado colonial, determinou as ações que eclodiram na Primavera Árabe. “As decadas

de dominacao por ditaduras seculares ou religiosas, de orientacao socialista ou nao, nao

apagaram o desejo de autodeterminacao da maioria dos arabes.” (SCHIOCCHET,

Leonardo. 2011; P. 74). Entretanto, essas lutas populares e seus atores acabaram

mostrando-se mais uma vez peças de xadrez no jogo das grandes potências ocidentais.

As implicações dos acontecimentos históricos do Oriente Médio mostram como

a guerra na Síria pode ser considerada uma guerra verdadeiramente mundial e

compreender os processos de dominação que são o pano de fundo da crise permite a

percepção de que o conflito não ocorre de forma isolada no tempo e espaço. Os

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principios desencadeadores da guerra nao provêm de ideais “pre-modernos”, o povo

árabe e todas as outras etnias envolvidas no conflito não pertencem ao passado.

“[...] o Oriente Medio hoje nao pode ser visto como politicamente “atrasado” em

relacao ao Ocidente, [...] para se entender o Oriente Medio deve-se antes de tudo

entendê-lo como “moderno”, tal qual se compreende o Ocidente. Isto porque o Oriente

Medio participou ativamente de praticamente todos os processos sociais geralmente

elencados como desencadeadores da modernidade no Ocidente. [...] entre estes

principais processos sociais estao: a construcao territorial de identidades sociais ligadas

aos Estados Nacionais que comeca no inicio do seculo XX; revoltas populares em favor

de autodeterminacao que em muitos casos teve carater democratico – ainda que

democracia no Oriente Medio possa significar algo bastante diferente que o canone

liberal propoe; o reordenamento ideologico trazido pela Guerra Fria e, depois, pelo

mundo pos-polarizado entre os Estados Unidos e a URSS [...]” (SCHIOCCHET,

Leonardo. Extremo Oriente Médio, admirável mundo novo: a construção do Oriente

Médio e a Primavera Árabe. 2011. P. 72)

Isto posto, entende-se que uma análise historiográfica permite que possam ser

pensadas respostas para questionamentos sobre o futuro. O aparente caminho que segue

a guerra indica o fim do seu ápice de violência. Entretanto, isso não significa o fim do

conflito. As mais diversas questões sociais que construíram a história da região

continuarão pairando sobre o globo. Como ocorrerá, não somente, a reconstrução física

do território sírio, mas da identidade de seu povo? Como se reorganizará espacialmente

o território? Há, ainda, a ameaça de ataques de grupos extremistas? Bashar continuará

possuindo a mesma força e apoio? Como se organizará o Estado após os longos anos de

guerra ? Como irá se comportar a oposição ao governo, uma vez que Bashar continue no

poder? Quais hão de ser as consequências do conflito para a região do Oriente Médio

como um todo? Até que ponto as grandes potências irão intervir? Qual será o papel da

tecnologia nos próximos anos, tanto como um instrumento de comunicação de massas,

como um instrumento militar? Os curdos irão conseguir o tão almejado reconhecimento

internacional, e mais especificamente, a turquia reconhecerá o Curdistão? O povo sírio

conseguirá ser livre?

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