28
Relíquias da casa velha: literatura e ditadura militar, 50 anos depois Tânia Pellegrini 1 Perdoem a cara amarrada, Perdoem a falta de abraço, Perdoem a falta de espaço, Os dias eram assim. [...] E quando brotarem as flores E quando crescerem as matas E quando colherem os frutos Digam o gosto pra mim. Ivan Lins e Vítor Martins Um parâmetro Decorridos cinquenta anos do golpe militar de 1964 – já cristalizado como matéria histórica e tema que tem me acompanhado ao longo de décadas –, é possível repensar questões importantes ainda hoje para a crítica cultural e literária. De modo geral, posso afirmar, desde logo, que a ditadura permanece como uma espécie de parâmetro inescapável para a compreensão de tudo o que veio depois, uma espécie de casa velha a que sempre se volta à procura de vestígios, resquícios e pistas talvez ainda reveladoras, apesar dos inúmeros inventários, balanços, mapeamentos e sínteses escritos depois. Estudando-os, pois já constituem ampla bibliografia, 2 é possível encontrar uma série de pontos recorrentes, mesmo sendo seus objetivos e pressupostos críticos bastante diversificados. Além de a censura ser um tópico que recebeu muita atenção, sobretudo no que se refere a sua influência em autores e obras, o método usual de dividir longos períodos em décadas é predominante, com qualificativos já sedimentados; desde os “dourados” anos 1960, considerados o ponto inicial do processo, passando pelos “anos de 1 Doutora em teoria e história literária e professora do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, SP, Brasil. Docente permanente do Programa de Pós- graduação em Estudos de Literatura e do Programa de Pós-graduação em Sociologia da mesma universidade. E-mail: [email protected] 2 Ver uma relação dos mais citados, certamente incompleta, na bibliografia geral.

Relíquias da casa velha: literatura e ditadura militar

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Artigo de Tânia Pellegrini publicado na revista Estudos de Lit. Bras. Contemp.

Citation preview

  • Relquias da casa velha: literatura e ditadura militar, 50 anos depois

    Tnia Pellegrini1

    Perdoem a cara amarrada, Perdoem a falta de abrao, Perdoem a falta de espao,

    Os dias eram assim. [...]

    E quando brotarem as flores E quando crescerem as matas E quando colherem os frutos

    Digam o gosto pra mim.

    Ivan Lins e Vtor Martins

    Um parmetro Decorridos cinquenta anos do golpe militar de 1964 j cristalizado

    como matria histrica e tema que tem me acompanhado ao longo de dcadas , possvel repensar questes importantes ainda hoje para a crtica cultural e literria. De modo geral, posso afirmar, desde logo, que a ditadura permanece como uma espcie de parmetro inescapvel para a compreenso de tudo o que veio depois, uma espcie de casa velha a que sempre se volta procura de vestgios, resqucios e pistas talvez ainda reveladoras, apesar dos inmeros inventrios, balanos, mapeamentos e snteses escritos depois.

    Estudando-os, pois j constituem ampla bibliografia,2 possvel encontrar uma srie de pontos recorrentes, mesmo sendo seus objetivos e pressupostos crticos bastante diversificados. Alm de a censura ser um tpico que recebeu muita ateno, sobretudo no que se refere a sua influncia em autores e obras, o mtodo usual de dividir longos perodos em dcadas predominante, com qualificativos j sedimentados; desde os dourados anos 1960, considerados o ponto inicial do processo, passando pelos anos de 1 Doutora em teoria e histria literria e professora do Departamento de Letras da Universidade Federal de So Carlos (UFSCar), So Carlos, SP, Brasil. Docente permanente do Programa de Ps-graduao em Estudos de Literatura e do Programa de Ps-graduao em Sociologia da mesma universidade. E-mail: [email protected] 2 Ver uma relao dos mais citados, certamente incompleta, na bibliografia geral.

  • Relquias da casa velha

    estudos de literatura brasileira contempornea, n. 43, p. 151-178, jan./jun. 2014. 152

    chumbo da dcada de 70, seguindo pela dcada perdida dos anos 80 e pela do desencanto dos anos 90, chega-se ao sculo XXI prematuramente assumido por vrios crticos como corte temporal significativo , em que se antev um admirvel mundo de novas tecnologias e subjetividades encapsuladas em violncia e plasma, refletidas nas produes culturais. Em resumo, um longo perodo de consequncias, cujas causas principais teriam forte relao com o tempo da ditadura militar brasileira.

    E realmente foi esse o tempo em que se gestaram projetos e situaes determinantes para uma espcie de ponto de inflexo no curso e na dinmica do processo de desenvolvimento cultural do pas, que vinha se fazendo em ritmo pausado. Dentre esses arranjos, cabe de fato destacar a ao da censura, pois a truculncia de seu aparato, incidindo diretamente sobre a produo simblica, inspirou um sem-nmero de investigaes posteriores a sua vigncia, que procuraram esmiuar, na filigrana de cada criao artstica, suas marcas reais ou imaginrias. O que parece ter ficado um pouco de lado ou, melhor dizendo, o que chamou pouco a ateno dos pesquisadores de literatura foi seu arcabouo institucional, enquanto pedra angular de toda a estruturao do campo cultural no perodo. Operada com eficincia e agilidade, sobretudo nos anos mais duros do regime, a censura forneceu a camuflagem necessria para a firme ancoragem de um novo modo de produo cultural no Brasil, interligado ao que se passava internacionalmente, sendo que, no nvel da criao, com o amparo de polticas recm-criadas, incentivou direta ou indiretamente uma srie de solues temticas e formais novas ou mesmo antigas, ento revisitadas, em todas as reas culturais.

    Nesse sentido que este ensaio amparado em consulta a jornais e revistas de vrias dcadas, alm de revisitar parte da produo crtica sobre o tema e de retomar tambm minhas prprias pesquisas anteriores3 procura traar uma viso geral das relaes entre as aes especficas do regime militar para o campo cultural com modificaes significativas nas matrizes preexistentes na prosa de fico, sobretudo temticas, que foram traduzindo o mal-estar e a perplexidade geradas naqueles anos difceis, bem como suas derivaes at os dias de hoje. 3 Refiro-me aos meus livros Gavetas vazias: fico e poltica nos anos 70 (1996) e A imagem e a letra: aspectos da fico brasileira contempornea (1999) e a alguns escritos esparsos.

  • Tnia Pellegrini

    153 estudos de literatura brasileira contempornea, n. 43, p. 151-178, jan./jun. 2014.

    Tempos difceis

    Tomando, ento, a censura como ponto inicial, pode-se dizer que, de

    modo geral, a viso mais linear a seu respeito tende a fixar os anos 1970, os anos de chumbo, como aqueles em que ela atuou com maior peso, determinando uma espcie de esttica do reflexo, na medida em que efetivamente imps seus padres de criao, como se sabe, cortando, apagando, proibindo ou engavetando incontveis peas, filmes, canes, novelas de TV, artigos de jornal e obras literrias. Por essa lente, toda a produo que conseguiu vir luz j conteria, refletida em sua forma, elementos que visavam burlar a percepo do censor, numa espcie de cdigo cifrado que s aos iniciados seria dado deslindar.

    Mesmo sob censura, porm, entre as famosas receitas culinrias truncadas, figuras e smbolos, poemas variados e os versos dOs lusadas, que enchiam as pginas proibidas, muitos jornais e revistas de grande circulao na poca, termmetros sensveis das mudanas culturais, bem como artigos e ensaios acadmicos, consagraram as expresses hoje emblemticas vazio cultural e geleia geral, indicando um cido pessimismo: nada se estava produzindo ou no correspondia mais a padres reconhecveis aquilo que se produzia. Apostava-se, inclusive, que, no fim desse tempo to duro, tanto as gavetas dos criadores quanto as dos censores estariam irremediavelmente vazias. Ledo engano, pois a grande produo desses anos, como se viu depois, traz marcas e cicatrizes, sobre as quais foi possvel refletir.

    Nos jornais alternativos de ento, os nanicos, como eram chamados, tais como Opinio, Movimento, Verso, Em tempo, Pasquim e outros que conseguiam juntos, s com venda em bancas, uma circulao superior a das revistas Veja e Manchete , abrigava-se a produo mais crtica, com nomes respeitveis de todas as reas culturais. Por exemplo, Otto Maria Carpeaux, num breve balano sobre a produo cultural de 1972, Arte e sobrevivncia, para Opinio, escreveu:

    Os descontentes com esse estado de coisas costumam denunciar um grande responsvel: a censura. Certamente a censura no a amiga desinteressada da literatura, das artes, do teatro, do cinema; e tem averso marcada contra as cincias sociais. Mas muito mais forte que a censura afigura-se-me a autocensura. E a autocensura sempre se inspira no medo da censura. Seu motivo

  • Relquias da casa velha

    estudos de literatura brasileira contempornea, n. 43, p. 151-178, jan./jun. 2014. 154

    principal o instinto de autoconservao econmica, que desaconselha os conflitos, preferindo s artes e s cincias conflitantes, o comodismo e a apatia (Carpeaux, 1973, p. 6).

    Visto de hoje, j com distanciamento maior (talvez sempre no de todo suficiente), sabe-se que o centro do problema no exatamente esse, que existem a mais nuances e matizes, envolvendo questes estruturais ligadas ao projeto econmico e poltico do regime e evidenciando um planejamento estratgico especfico para a rea cultural, encarada ento como elemento catalisador para os objetivos de modernizao, integrao e segurana nacional do pas, alm de sua insero no ritmo do capitalismo internacional. Por conseguinte, pensar que a institucionalizao da censura foi o nico fator a incidir sobre a produo cultural olhar para um lado da questo, girar o eixo interpretativo para um lado s, ou, dito de outro modo, tomar a parte pelo todo.

    No meu modo de entender, um dos aspectos mais importantes para uma viso ampliada do fenmeno deixando de lado anlises tpicas de autores e obras, pois no disso que se trata aqui refere-se consolidao dos esquemas mercantis de produo cultural e literria, ou seja, consolidao de uma indstria cultural brasileira, que se efetivou sombra da censura. Assim, parece claro que reduzir as caractersticas dos produtos dessa indstria, durante a ditadura, apenas influncia de uma censura que se queria contornar, deixar de lado o formidvel processo de gradativa e inexorvel transformao nos modos de produo cultural como determinante das novas tendncias que se gestavam, e que podem ficar mais claras com um exame das aes governamentais nesse mbito. Evidentemente, essa determinao no foi uma rua de mo nica, pois todo processo desse tipo comporta tenses inescapveis, uma vez que envolve diferentes instncias e mediaes de criao, produo, veiculao e consumo.

    O planejamento da cultura, entendido nesses termos, pode ser demonstrado a partir da criao do Conselho Federal de Cultura, j em 1966, e da anlise dos documentos ali produzidos, que visavam estabelecer as bases de uma Poltica Nacional de Cultura, criando rgos governamentais com essa finalidade. No entanto, as aes governamentais no constituram uma poltica homognea nem linear, estando permeadas de ambiguidades e contradies. Os trabalhos do Conselho Federal de Cultura demoraram bastante e, em 1973, foi promulgado o documento Diretrizes para uma Poltica Nacional de Cultura,

  • Tnia Pellegrini

    155 estudos de literatura brasileira contempornea, n. 43, p. 151-178, jan./jun. 2014.

    seguido de outro, a Poltica Nacional de Cultura, em 1975. Enquanto esses documentos eram elaborados, o governo ocupava-se com procurar neutralizar, usando censura e represso, a produo cultural da esquerda, barulhenta e ativa, o que levou Roberto Schwarz a escrever que o pas estava irreconhecivelmente inteligente (Schwarz, 1978, p. 61), expresso que frequenta quase todos os textos crticos referentes ao perodo.

    Essa inteligncia insuflava, ento, uma generosa ebulio dos processos criativos, de sentido amplo e de alta voltagem ideolgica, pelo menos at a promulgao do Ato Institucional no 5, em 1968. At ento, literatura, teatro, msica, cinema e educao buscavam conscientizar o povo, estabelecendo um circuito coletivo de comunicao e de troca de experincias que, se por um lado acreditava serem os intelectuais e artistas os faris do povo, por outro, a despeito disso, estabelecia mediaes e constitua uma promessa de socializao da cultura e de modernizao em termos democrticos (Galvo, 1999). Com relao a esse panorama, Marcelo Ridenti argumenta:

    Vislumbrava-se uma alternativa de modernizao que no implicasse a submisso ao fetichismo da mercadoria e do dinheiro, gerador de desumanizao. A questo da identidade nacional e poltica do povo brasileiro estava recolocada: buscava-se ao mesmo tempo recuperar suas razes e romper com o subdesenvolvimento, o que no deixa de ser um desdobramento esquerda da chamada era Vargas, propositora do desenvolvimento nacional com base na interveno do Estado (Ridenti, 2010, p. 88, grifo meu).

    Como eu disse, j so relquias de uma casa velha, porm, de acordo com meu foco de interesse, importante retom-las e destacar que, depois do AI-5, legalizando a censura, a primeira metade da dcada de 1970 foi marcada por um esforo explcito do governo4 para neutralizar a produo cultural de esquerda, com vistas a assumir definitivamente o processo cultural, em uma etapa subsequente.

    nesse contexto que a interveno do Estado evidenciou, sobretudo por meio da Poltica Nacional de Cultura, de 1975, em primeiro lugar, uma disposio de subsidiar atividades culturais que vinham

    4 O Decreto-Lei, de 26 de janeiro de 1970, do Presidente Emilio G. Medici, dispe, no seu artigo 1o: No sero toleradas as publicaes e exteriorizaes contrrias moral e aos bons costumes, quaisquer que sejam os meios de comunicao (Reimo, 2011, p. 124).

  • Relquias da casa velha

    estudos de literatura brasileira contempornea, n. 43, p. 151-178, jan./jun. 2014. 156

    encontrando dificuldades crescentes de sobrevivncia em funo de critrios estritos do mercado, principalmente a conservao do patrimnio histrico e artstico nacional, j catalogado como museolgico e cheio de simbologia, ou atividades eruditas como pera, bal, msica clssica etc.. Atividades, por assim dizer, neutras e de nfima penetrao popular, pois, de acordo com Sergio Micelli, o patrimnio constitui, [portanto], o repositrio de obras do passado sobre cujo interesse histrico, documental e por vezes esttico, no paira qualquer dvida. Trata-se de obras e monumentos que, no mais das vezes, j se encontram dissociados das experincias e interesses sociais que lhes deram origem (Micelli, 1984a, p. 28).

    Em segundo lugar, como sublinha o mesmo Micelli, em outro artigo, o governo deixava a cargo da empresa privada as melhores oportunidades de investimento e faturamento no campo da produo cultural mais dinmica:

    Parece haver, assim, uma segmentao irreversvel do mercado de bens culturais. Cabe aos grandes empreendedores particulares explorar as oportunidades de investimento naquelas atividades e frentes de expanso capazes de assegurar as mais elevadas taxas de retorno sobre o capital, tais como os fascculos, a televiso, as estaes de rdio FM, discos, as fitas cassete ou o videocassete, destinado aos modernos meios de reproduo eletrnica (Micelli, 1984a, p. 26).

    Combinam-se, por conseguinte, fatores diversos, e, nos dois documentos governamentais acima citados, Natlia Morato Fernandes sublinha o claro objetivo de desbaratar a cultura de oposio:

    O documento de 1973 parte da caracterizao ampla de cultura e busca articular participao e desenvolvimento. [...] D, portanto, certa nfase ao carter espontneo do processo cultural, do qual deveria participar o cidado comum. [...] a nfase no cidado comum, que apresentada como componente antielitista, tem, na verdade, a funo de tornar dispensveis as elites indesejveis que se identificariam com os segmentos sociais adversos ao regime (Fernandes, 2013, p. 181).

    importante frisar que Fernandes utiliza anlises j elaboradas por Gabriel Cohn e ele quem, referindo-se Politica Nacional de Cultura, destaca a combinao entre uma concepo essencialista e uma concepo instrumental da cultura, pois j no se invocam mais as

  • Tnia Pellegrini

    157 estudos de literatura brasileira contempornea, n. 43, p. 151-178, jan./jun. 2014.

    exigncias de segurana e fortalecimento nacionais, a essncia do regime; afirma-se agora que o desenvolvimento brasileiro no apenas econmico, mas social, sendo que dentro dele h um lugar de destaque para a cultura como instrumento poltico-social. Propem-se, assim, o incremento da participao no processo cultural, o incentivo produo e a generalizao do consumo: Caberia ao Estado criar os mecanismos necessrios para assegurar o acesso de todos ao consumo de bens culturais, estimulando assim a consolidao do mercado para tais produtos (Cohn, 1984, p. 88).

    A Poltica Nacional de Cultura expressa o clima da abertura lenta, gradual e segura iniciada no governo Geisel, no s pelo que significa para a rea cultural especificamente mas porque a insere no mbito maior das estratgias de Estado, considerando-a tambm como um produto com valor estabelecido at no mercado internacional, o que, para o Brasil da poca, ainda no era algo que se levasse to a srio, devido ao vis nacionalista dominante. Ou seja, passa-se ento a considerar a brasilidade cultural como um produto de exportao j bem mais elaborado e rentvel do que as bananas de Carmem Miranda.

    Sempre sombra da censura, que s foi extinta em 1979, com o fim do AI-5,5 criaram-se diversos rgos de estmulo e ao mesmo tempo de controle, tais como o Concine (Conselho Nacional de Cinema), em 1976, e a Funarte (Fundao Nacional de Arte), em 1975, reformulando-se outros, como a Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes), que fora fundada em 1969. Articulam-se, portanto, nesses documentos, metas muito claras de consolidao da indstria cultural no Brasil, que j existia de forma incipiente, com muito de artesanal e voluntrio, desde dcadas anteriores (lembre-se, por exemplo, da era do rdio), e cuja importncia poltica, institucional e econmica, nesse momento, estratgica para o projeto modernizador do regime.

    Com relao literatura ou, mais propriamente, ao mercado editorial, destaca-se a iniciativa do Instituto Nacional do Livro (criado em 1937, no governo Vargas), de fomentar durante a ditadura militar uma poltica de subsdios, iniciando o financiamento de parte das tiragens de livros tcnicos, didticos e paradidticos, o que gerou um aumento palpvel da produo. Essa poltica de subsdios, alm de se

    5 Emenda Constitucional no 11, de 13 de outubro de 1978, revogando o Ato a partir de 1o de janeiro de 1979.

  • Relquias da casa velha

    estudos de literatura brasileira contempornea, n. 43, p. 151-178, jan./jun. 2014. 158

    dirigir majoritariamente para as editoras de livros didticos, estendeu-se para editoras de outro tipo, com o apoio a tradues de livros estrangeiros e a publicaes de diversos livros de fico, inclusive por meio de coedies e de subsdios para a implementao de um parque grfico moderno (Calabre, 2005).

    Sergio Micelli enfatiza que, no todo, foi a nica vez na histria republicana que o governo formalizou um conjunto de diretrizes para orientar suas atividades na rea cultural, prevendo ainda modalidades de colaborao entre os rgos federais e de outros ministrios [...] (Micelli, 1984b, p. 57).

    Artistas e intelectuais de todas as reas percebem com clareza os rumos do processo ento instaurado. Em um debate organizado pelo alternativo Opinio, Dez anos de cinema nacional, do qual participaram vrios cineastas, dois anos antes da emisso da Poltica Nacional de Cultura, portanto, Zelito Viana j comenta com objetividade:

    No Brasil cresce cada vez mais a dependncia de qualquer atividade econmica em relao ao Estado. E o cinema tambm uma atividade econmica. O Estado interfere cada vez mais fortemente tanto nas empresas privadas que fazem cinema quanto premiando, financiando e orientando a atividade de qualquer um. Essa influncia cresceu sobretudo a partir de 1967, quanto o INC [Instituto Nacional do Cinema] foi criado. [...] Por outro lado, atravessamos hoje no Brasil uma fase industrial muito desenvolvida, fato que vai se refletir no campo do cinema. [...] A capitalizao intensiva e extensiva que da deriva, com novos critrios seletivos, vai funcionar tambm como um poderoso fator que redefine as condies e as possibilidades do nosso cinema (Viana, 1973, p. 7).

    Tempos ambguos

    No quadro acima delineado, importante levar em conta que o

    processo de organizao e controle da cultura, estabelecido nos documentos de 1973 e 1975,6 coincidiu com a elevao do padro de vida das camadas mdias da populao, que aos poucos vinha se constituindo como um pblico novo e ampliado para os modernos bens 6 Uma anlise mais detida desses documentos, que no nosso objetivo aqui, pode levantar ainda muitas outras interpretaes importantes para o processo de industrializao da cultura no Brasil de ento.

  • Tnia Pellegrini

    159 estudos de literatura brasileira contempornea, n. 43, p. 151-178, jan./jun. 2014.

    culturais, sobretudo os ligados comunicao, acentuando-se seu crescimento a partir do milagre econmico, do incio dos anos 1970. Nesse contexto, portanto, a censura funcionou claramente como uma espcie de expresso ideolgica do tipo de orientao que o Estado pretendia imprimir cultura, num momento de descenso forado da produo engajada e participante dos anos 1960, tornando evidente o esforo do regime para assumir tal espao, como uma das tticas da estratgia maior de derrotar a esquerda, legitimar-se perante a opinio pblica e modernizar o pas. Fernandes tambm considera esse ponto:

    Assim, mesmo quando esteve preocupado com a criao de rgos e instituies culturais oficiais, responsveis pela implementao de uma Poltica Nacional de Cultura pautados pelo referencial da tradio e com o objetivo de proteger e ao mesmo tempo incentivar a cultura e a identidade nacionais os governos militares estavam dando as condies para a consolidao da indstria cultural no pas (Fernandes, 2013, p. 188, grifo meu).

    Empenhado em fragilizar a produo cultural de esquerda do perodo anterior, como destaquei, o Estado firmou sua poltica especfica, calcada na ideologia de integrao e de segurana nacionais. Estabeleceu-se, dessa forma, uma contradio aparente. Enquanto criava rgos estatais de estmulo cultura e investia em infraestrutura por meio de emprstimos e subvenes (por exemplo, para a modernizao das grficas, editoras, emissoras de rdio e TV, alm de crdito para aquisio popular de aparelhos), reforando a necessidade de organizao em moldes empresariais, em que a profissionalizao e o mercado eram os pontos cruciais, o Estado controlava com a censura, atendendo assim tanto aos seus prprios interesses quanto aos da indstria cultural em expanso. Na verdade, a contradio no existe. Trata-se de uma chave que gira para os dois lados: ambiguamente impede um tipo de orientao, a de contedo ideolgico de esquerda, promovendo uma espcie de higienizao, que interessava ideologia da segurana nacional, mas incentiva outro, aquele que prega Ptria, Deus, moral e bons costumes.

    necessrio lembrar que a ideologia de Segurana Nacional constituiu a base do pensamento da ditadura militar em relao sociedade, concebendo o Estado como uma entidade poltica que detinha o monoplio da faculdade de coagir, ou seja, de impor at pela fora as normas a serem obedecidas, para ser percebido como o centro de todas as

  • Relquias da casa velha

    estudos de literatura brasileira contempornea, n. 43, p. 151-178, jan./jun. 2014. 160

    atividades sociais relevantes; da a preocupao com a integrao, fundamentada em uma instncia que pudesse integrar, a partir de um centro, diversidades e divergncias. Nesse sentido, a cultura tornara-se efetivamente preocupao estratgica e questo de poder, tanto por sua fora simblica quanto pelo potencial econmico: integrar para no entregar foi um dos lemas importantes do regime. Nesse sentido, precisa a observao de Renato Ortiz:

    No se pode esquecer que a noo de integrao estabelece uma ponte entre os interesses dos empresrios e dos militares, muito embora ela seja interpretada pelos industriais em termos diferenciados. Ambos os setores veem vantagens em integrar o territrio nacional, mas enquanto os militares propem a unificao poltica das conscincias, os empresrios sublinham o lado da integrao do mercado (Ortiz, 1988, p. 118).

    Em resumo: criaes especficas em todas as reas foram censuradas, fortalecendo-se o controle estatal sobre produo e circulao de bens culturais, mas sua produo geral cresceu e firmou-se, amparada pelo projeto modernizador do governo militar, que envolveu a consolidao de um setor industrial moderno no pas, de fato iniciado em dcadas anteriores, incluindo agora a crescente penetrao, em nossa economia, de capitais externos associados s empresas nacionais, inclusive as que produziam cultura. Mas os investimentos maiores, no perodo em questo, ficaram a cargo do Estado, sendo que, depois de consolidados, os empreendimentos passaram para o setor privado ou seu controle foi assumido por grupos particulares, como concesso pblica. Segundo Micelli:

    Os projetos em pauta teriam contribudo para ampliar a presena governamental justamente naquelas reas da produo cultural que dispem de um mercado consumidor em expanso e de cuja rentabilidade comercial dependem as maiores redes privadas de entretenimento e informao atuantes no pas (Micelli, 1984b, p. 63).

    Dessa maneira, ocorreu muitas vezes um processo duvidoso de troca de favores, como no caso das estaes de rdio e emissoras de televiso, em que uma das moedas de troca era a censura programao. A propsito, Flora Sssekind destaca trs estratgias diferentes na implementao do expansionismo cultural dos governos militares, aglutinadas no que chamo troca de favores: o desenvolvimento de uma esttica do espetculo, uma estratgia

  • Tnia Pellegrini

    161 estudos de literatura brasileira contempornea, n. 43, p. 151-178, jan./jun. 2014.

    repressiva ladeada pela determinao de uma poltica nacional de cultura e um hbil jogo de incentivos e cooptaes (Sssekind, 1985, p. 13). Assim, a combinao de censura e cooptao, por meio de estmulos e favores, alm da poltica especfica para a cultura, que apontei, estabeleceu um campo de foras muito claro, no interior do qual a esttica do espetculo imprimiu sua marca indelvel, principalmente pela difuso da imagem televisiva como a maior plataforma de informao e entretenimento do pas de ento, na certeza de um controle social efetivo em cada casa que possusse o seu aparelho transmissor (Sssekind, 1985, p. 13).

    Enfatizo que, at ento, a televiso era o veculo cuja relao entre criao e mercantilizao fazia-se mais evidente e direta, pelo fato de transmitir ao mesmo tempo publicidade, informao e cultura, para todas as classes sociais. O espetculo que utilizo nos termos de Guy Debord 7 vai traduzindo assim as transformaes econmicas, polticas e sociais do pas e conquistando novas faixas de pblico, pois estas so vitais para a sobrevivncia no s da televiso, de implantao ainda recente, como do projeto modernizador do governo e do prprio regime. Nesse aspecto, integrar significa, por meio dos estmulos especficos do espetculo, incorporar setores marginais ao mercado, padronizar aspiraes e preferncias, diluir ou elidir diferenas, erodir tradies regionais, homogeneizar sonhos e gostos, modernizar hbitos e estabelecer preferncias, de acordo com as necessidades criadas pelo prprio mercado de bens materiais e simblicos. Arnaldo Jabor quem enfatiza esse ponto, com ironia, comparando televiso e cinema:

    O cinema no vai tirar da TV o seu pblico, que uma coisa conquistada. A TV um problema poltico, no um problema cultural, um problema de segurana nacional. A TV a arma mais importante da integrao nacional e no estou querendo competir com a TV, que no sou otrio (Jabor, 1973, p. 8).

    No cerne do problema poltico representado pela TV, no se pode deixar de mencionar, mesmo que rapidamente, a telenovela brasileira, que passa a ser parte intrnseca da estrutura montada, por seu poder de estabelecer interlocues imaginrias e relevantes com o pblico, expressas por meio de mecanismos e convenes formais

    7 O espetculo no um conjunto de imagens, mas uma relao entre pessoas, mediada por imagens (Debord, 1997, p. 14).

  • Relquias da casa velha

    estudos de literatura brasileira contempornea, n. 43, p. 151-178, jan./jun. 2014. 162

    profundamente moldados pela esttica do espetculo. O risco para o regime era sua capacidade no apenas de representar a realidade, mas de constru-la, em direes muitas vezes imprevistas e no planejadas; e, embora sempre procurando no fugir completamente dos padres morais, ticos e polticos estabelecidos, sua narrativa, sendo ficcional, poderia suscitar leituras diversificadas, uma vez que toda fico tece complexas relaes com a subjetividade do receptor. Assim, colocava-se de fato como um problema de segurana nacional e foi um dos produtos culturais mais censurados do perodo.8

    O cinema, por sua vez, sempre muito vulnervel aos interesses mercantis, por ser uma atividade que exige grandes investimentos, enfrentou como pde as questes quase incontornveis da sua introduo definitiva no esquema industrial. Segundo Ferno Pessoa Ramos,

    a questo da introduo no esquema industrial foi, no decorrer dos anos 60/70, o verdadeiro to be or not to be do cinema nacional. O Cinema Novo, por exemplo, debate-se em vo, durante anos, contra a indstria cultural e acaba no final tendo de ceder a seus atrativos. O dilema dos primeiros filmes (como atingir o povo sem passar pela indstria) substitudo pela afirmao de que o mercado (e a distribuio industrial) um mal necessrio (Ramos, 1986, p. 3).

    Material e ideologicamente controlados, portanto, os produtos culturais foram acentuando cada vez mais seu carter de mercadoria, a ponto de ser comum empregar o termo mecenas para o Estado, aquele que pagava, mas exigia fidelidade em troca (Holanda e Gonalves, 1980). o que enfatiza Millr Fernandes: claro que o governo s financia as obras e os artistas que lhe interessam. Porque os intelectuais que demonstrarem qualquer sinal de rebeldia no sero financiados (Fernandes, 1983, p. 7).

    Em suma, os interesses gerais do Estado e dos novos empresrios da cultura tornaram-se os mesmos; a questo da censura foi conjuntural, mas foi sua sombra e com seu auxlio que se pde formar e fortalecer um mercado integrado de bens culturais, pea agora importante no processo de internacionalizao da economia do pas.

    Desse modo, lcito dizer que, no conturbado processo de construo de uma moderna indstria cultural no pas, a estrutura

    8 Vale citar como um exemplo Roque Santeiro, de Dias Gomes, censurada no dia de ir ao ar o primeiro captulo, em 1975. Foi readaptada e veiculada depois, em 1985 e 1986.

  • Tnia Pellegrini

    163 estudos de literatura brasileira contempornea, n. 43, p. 151-178, jan./jun. 2014.

    profunda da censura foi mais essencial e atuante que a aparente: enquanto esta se preocupava com cortes e vetos a criaes especficas, aquela buscava uma espcie de equalizao do controle estatal sobre todo o processo cultural, de maneira a eliminar aos poucos os vestgios de formas de produo artesanais, s possveis num Brasil pr-moderno, que se queria superar, incompatvel com o processo de globalizao que j ento acelerava os passos.

    Novos tempos

    No contexto geral acima descrito, desfaz-se a ltima iluso de

    independncia da cultura em relao economia; at ento, vista unicamente como criao de esprito, em graus diversos nas diferentes reas, parecera permanecer sempre imune aos avanos do mercado, que l fora j dava as cartas havia muito tempo. O resultado da poltica sistemtica do regime para a rea cultural foi a definitiva impresso do selo do mercado na criao, substituindo o ritmo lento de dcadas anteriores, ainda com muito de precrio e artesanal, por uma grande pressa produtiva, no atendimento e formao de pblicos potenciais. Pode-se afirmar que, desde ento, o mercado passou a ser definitivamente um elemento constitutivo da produo cultural, exercendo uma profunda influncia, de fora do mbito artstico, entranhando-se nas configuraes de contedo e forma.

    No que se refere literatura, como j apontei, o setor livreiro aumentou exponencialmente o nmero de edies, de ttulos e de exemplares publicados, beneficiando-se das polticas de incentivo, que tambm estimularam a produo de papel e baratearam seu custo, alm de subvencionar a importao de mquinas mais modernas. Uma das iniciativas do governo foi a criao da Embralivro, que tencionava criar dois mil pontos de vendas de livros em todo o territrio, agilizando a distribuio, desde ento diagnosticada como o principal gargalo da indstria editorial (Micelli, 1984b, p. 63).

    Grande parte dos autores nacionais comea a aprender a encaixar sua produo nesses novos parmetros, por dois motivos: tm que competir num mercado inflado por produtos estrangeiros (cresceu muito o nmero de best-sellers traduzidos), bem adequados ao gosto do novo pblico, j formado basicamente pela TV, se possvel conseguindo auxlio do Instituto Nacional do Livro para publicao; ao mesmo

  • Relquias da casa velha

    estudos de literatura brasileira contempornea, n. 43, p. 151-178, jan./jun. 2014. 164

    tempo, procuram enganar a censura os mais progressistas , para no compactuar com ela. Isso ter uma profunda implicao na forma e no contedo dos textos, cuja anlise caso a caso j constitui uma ampla e variada fortuna crtica.

    A destacar que, s voltas com a nova situao, adotam-se atitudes e se produzem textos que, grande parte das vezes, foram respostas pessoais inseridas nesse campo de foras exterior ao plano esttico, como se viu, com presses e limites bem determinados. Estes tm a ver com o desenvolvimento especfico do mercado livreiro, sempre instvel, com altos e baixos sucessivos que tambm refletem as peculiaridades do leitorado brasileiro, reconhecidamente pouco afeito leitura, devido a causas conhecidas e discutidas de longa data:9 a educao precria, o ensino deficiente, a existncia rarefeita de bibliotecas, os baixos salrios, o alto preo do livro, a influncia da televiso etc.. E o resultado de tudo isso, para a criao literria, segundo o diagnstico de Lygia Fagundes Telles, no incio da dcada perdida, :

    O que acontece, atualmente, que a literatura brasileira est no seu pique, cresceu assustadoramente o nmero de escritores. Mas a verdade que a maior parte est em encalhe, so muito ruins. Eu recebo livros muito ruins, j publicados e no os consigo ler. Hoje em dia todo mundo quer escrever. Se o homem est impotente, ele resolve escrever um livro. Se a mulher foi abandonada, ela resolve escrever um livro. claro que entre os novos tem muita gente de potencial. Apesar de todas as dificuldades, o mercado sempre estar aberto para a boa literatura (Telles, 1981, p. 8).

    Concorde-se ou no com a percepo da autora, naquele momento, a reorganizao da produo cultural e literria, com todas as implicaes nacionais do processo, na verdade tambm reflete a formidvel reorganizao da cultura nos pases capitalistas em geral, a cujo ritmo o Brasil se ajusta, o que j discutido por intelectuais e estudiosos. Em um debate sobre identidade cultural, tambm no Folhetim, em 1981, Roberto Schwarz declara:

    De certo modo, estamos assistindo liquidao da esfera da cultura como ela era definida tradicionalmente em nossa

    9 Essas causas atualmente assumem outro peso e outros contornos, devido ao surgimento da internet, o que j demanda critrios de anlise adequados nova situao.

  • Tnia Pellegrini

    165 estudos de literatura brasileira contempornea, n. 43, p. 151-178, jan./jun. 2014.

    sociedade. Sinais dessa modificao: os assuntos culturais mais discutidos e que chamam mais ateno dos intelectuais so assuntos da esfera dos mass media. [...] Hoje se discute telenovela com a mesma paixo intelectual com que, noutro momento, se discutiriam os romances de Graciliano Ramos. Da mesma forma, aparece no processo a desapario da fronteira entre os diversos gneros artsticos [...] o que significa, na verdade, uma ampla reorganizao da esfera da cultura no conjunto da civilizao capitalista (Schwarz, 1981, p. 6).

    Nesse mesmo debate, o poeta Cacaso acrescenta consideraes que tangenciam a mesma realidade, mas caminha em sentido oposto:

    Atualmente, o mercado a grande justificativa para a criao brasileira. Eu no vejo mais hoje em dia, na dcada passada e na que comea agora, no vejo nenhum tipo de ideologia forte motivando a criao. Vejo muito o criador de cultura, o artista diante do mercado. [...] Quer dizer, o fato de voc mergulhar no mercado capitalista, a partir de um certo momento, isso traduzido em liberdade para quem cria, porque voc pode ter uma rea maior de manobra e de autocontrole da criao, o que vem do fato de voc ter remunerao objetiva pelo seu trabalho (Cacaso, 1981, p. 7).

    Se Schwarz v a imerso no mercado como perda, ou melhor, como uma modificao substancial no prprio conceito de cultura, Cacaso analisa-a como ganho objetivo, isto , como liberdade de criar garantida pelo mesmo mercado, sobretudo porque j no existe mais o forte apelo ideolgico que alimentara a criao em dcadas anteriores. De qualquer modo, essa interpretao diferente do mesmo fenmeno indica que se coloca uma nova realidade para o setor, aos poucos construda durante o regime militar, e da qual, naquele momento, poucos tinham clareza quanto ao verdadeiro significado. Desde Baudelaire, que perdeu seu halo de poeta na rua enlameada, passando por Benjamin, que a retoma como aura, a discusso desse tema est posta. Menos acalorada atualmente, necessrio dizer, sobretudo porque, terminado o regime militar, o Brasil j estava solidamente instalado no mercado internacional de bens culturais e aos poucos foi se perdendo a hesitao peculiar s avaliaes feitas no calor da hora, dando lugar certeza que o sucesso do projeto, agora realizado, conseguiu estabelecer: criao produo. Referendando todo o percurso acima descrito, a revista Leia Livros, que circulou de 1978 a 1990, especializada em livros e autores

  • Relquias da casa velha

    estudos de literatura brasileira contempornea, n. 43, p. 151-178, jan./jun. 2014. 166

    (o que tambm significativo da sade do mercado naquele momento), publica no editorial, em 1990:

    O fenmeno ainda localizado e s contempla uma pequena elite. Mas os primeiros passos j foram dados e no resta dvida de que a profissionalizao do escritor um processo que est em curso. [...] E o mais importante que no se trata de um fenmeno contingencial, que muda ao sabor dos ventos da economia ou da poltica nacional. Porque o que parece estar em jogo aqui uma mudana de mentalidade, a emergncia de uma nova e moderna concepo das relaes entre autor e editor e a conscientizao de que as normas do mercado, que regem outros setores da produo, tambm devem vigorar no mundo dos livros (Escrever, 1990, p. 3).

    Considerando a data dessa assertiva, a ltima frase fundamental para entender o alcance do processo efetivado ao longo de 25 anos, desde 1964: as aes empreendidas pelo Estado militarizado, no campo cultural como um todo, conjugadas com as condies internacionais de desenvolvimento do capitalismo, foram fortes o suficiente para conseguir penetrar no corao da instncia criativa, consolidando uma mudana de mentalidade j em gestao anteriormente tambm na esfera literria, agora pautada indelevelmente pelas normas do mercado. Pode-se dizer assim que, a partir da ditadura militar, o Brasil ingressou definitivamente na ps-modernidade aqui entendida como Fredric Jameson a define ,10 com todas as conhecidas peculiaridades nacionais das transformaes ocorridas e que s sero acentuadas a partir de ento.

    Essas peculiaridades relacionam-se ao fenmeno de aparente acelerao da histria global, impulsionado pela proliferao de imagens e simulacros, pela abundncia de informaes, por uma nova relao com o tempo e o espao da decorrentes, com a multiplicao de estmulos e referncias reais, imaginrias e simblicas, com uma espcie de flutuao de percepes e sensibilidades, que geram novas estruturas de sentimento, para dizer como R. Williams (1979), no incio quase intraduzveis literariamente, mas que aos poucos encontram modos expressivos adequados. Dessa maneira, sobretudo quando termina a

    10 Cabem aqui algumas palavras sobre o emprego apropriado deste conceito [...] cuja principal funo correlacionar a emergncia de novos traos formais na vida cultural com a emergncia de um novo tipo de vida social e de uma nova ordem econmica chamada, frequente e eufemisticamente, de modernizao, sociedade ps-industrial ou sociedade de consumo, sociedade dos mdia ou do espetculo, ou capitalismo multinacional (Jameson, 1985, p. 17).

  • Tnia Pellegrini

    167 estudos de literatura brasileira contempornea, n. 43, p. 151-178, jan./jun. 2014.

    ditadura, acentuam-se as interaes entre aspectos globais, identidades regionais e locais, questes de gnero e raa, desafiando conceitos estanques e formalizando-se esteticamente, mas adequando-se tambm com frequncia ao gosto de um mercado j internacionalizado.

    Tempos modernos

    no interior desse quadro, portanto, que acredito terem ocorrido

    mudanas de fato significativas para a literatura, pois a consolidao da indstria cultural conseguiu estabelecer parmetros e paradigmas para as dcadas subsequentes, j ento direcionando a produo para diferentes nichos de mercado, tanto no que se refere aos temas quanto aos resultados formais, os quais, desde ento, passaram a sofrer, como nunca antes, o impacto das mais diferentes solues abrigadas sob a esttica do espetculo, principalmente as visuais, que se expandem celeremente.

    Ora, a literatura sempre manteve estreito vnculo com a visualidade, devido ao seu dilogo histrico com a pintura, a fotografia e o cinema, por exemplo, e sempre esteve, tambm, ligada a mecanismos de compra e venda. Mas agora as coordenadas do mercado, cuja linguagem explcita a imagtica, impem-se como parmetro quase unidimensional; parafraseando Debord, acima citado, o espetculo, que domina tudo, , na verdade, o mercado, em tal grau de acumulao que se transformou em imagem. Pode-se dizer, ento, que sua esttica a imagtica, a da reproduo do existente, para que ele perdure e se acumule sempre mais, predominantemente em termos quantitativos e adequados ideologia do consumo.

    Assim, temas e solues literrias novas encontradas ou recuperadas nos anos do regime, tanto como expresso individual, no corpo a corpo com a censura, quanto traduzindo as influncias vindas de fora, de algum modo j atuantes, passam a ser imitadas e reduplicadas depois, sendo rapidamente diludas as fontes que lhes deram origem. As aspas em novas a meu ver so necessrias, pois a ausncia delas s se justificaria se o termo traduzisse uma transformao radical, a substituio de algo por outra coisa completamente diferente, e no se referisse a modificaes, alteraes, retomadas, apropriaes ou outros termos equivalentes, estes sim adequados para definir a maior parte dessa produo.

  • Relquias da casa velha

    estudos de literatura brasileira contempornea, n. 43, p. 151-178, jan./jun. 2014. 168

    Refiro-me em especial s principais matrizes, representadas apenas como exemplo , por Joo Antnio, Dalton Trevisan e Rubem Fonseca, consolidadas durante os anos da ditadura, tematizando a excluso social e a violncia urbana, seja com microfices, como Trevisan, ou com brutalismo direto, como Fonseca; da deriva uma enxurrada de autores levantados pelo mercado e pelos efeitos visuais da fatura, como Maral Aquino, Marcelino Freire, Marcelo Mirisola e outros, pertencentes ao que se chamou de Gerao 90.11 Refiro-me tambm a Igncio de Loyola Brando, cuja herana modernista que ressoa nas ousadias formais de Zero (1975), como a apropriao do rumor da rua e a atomizao do discurso, vem sendo mimetizada por Luiz Ruffato e Loureno Mutarelli; prpria Clarice Lispector, de quem se veem sonncias e dissonncias nas inmeras vozes femininas que enchem as prateleiras das livrarias, os blogs e as redes sociais; a Graciliano Ramos, que, retirado da dcada de 1930, ainda hoje alimenta o neorregionalismo de Milton Hatoum e Ronaldo Correia de Brito.

    No utilizo aqui categorias valorativas para esses autores, e nem o caso, mas destaco que se inserem em um processo construdo sempre de continuidades, mais que de rupturas, como se pode verificar num exame mais acurado de seus textos. Cada uma dessas matrizes citadas estabelece-se como continuidade no interior da srie da literatura de fico, sendo possvel estabelecer sua linhagem desde que comeou seu processo de formao; e inegvel que cada momento histrico a ela soma novos aspectos temticos e formais, como influncia interna e/ou externa. Lembrem-se as vanguardas do incio do sculo passado instaurando a fragmentao na linearidade discursiva e a desconstruo do enredo; a sondagem psicolgica insuflando uma nova capacidade de penetrao ao realismo; a crise da representao inspirando a desconfiana na suficincia do real; a incorporao consciente de outras linguagens, como a fotografia, o cinema, a propaganda, isso tudo para ficar apenas nas matrizes do sculo XX.

    Chamo matrizes as formaes literrias durveis, que permanecem ao longo do processo histrico, s quais se acrescentam ou das quais se retiram, sem afetar seu ncleo, aspectos circunstanciais, devidos a cada momento, sendo que tais aspectos tm maior ou menor densidade ou 11 Denominao criada pelo mercado para agrupar escritores considerados jovens, que se expressam em temas e solues formais diversificadas, embora tenha sido a representao da violncia que garantiu maior visibilidade.

  • Tnia Pellegrini

    169 estudos de literatura brasileira contempornea, n. 43, p. 151-178, jan./jun. 2014.

    fora na dependncia dos fatores externos em jogo.12 O ncleo dessas matrizes durveis, na literatura brasileira em prosa, parece ser o realismo,13 que persiste nas suas expresses urbanas e regionais, introspectivas ou no, para usar a terminologia consagrada.

    Naquilo que me interessa, pode-se dizer que o perodo da ditadura militar teve fora e densidade suficientes para, por meio de seu aparato poltico e jurdico autoritrio e totalizador, constituir aspectos circunstanciais nacionais combinados com a conjuntura internacional de desenvolvimento da cultura, os quais, incidindo sobre a literatura, possibilitaram o ressurgimento de matrizes temticas e expressivas modificadas, que foram sendo retomadas, revisitadas e adaptadas nas dcadas subsequentes, num processo contnuo de continuidades e rupturas, mais ou menos intensas. Dessa forma, como sublinhei, o adjetivo novo dificilmente pode ser aplicado a qualquer aspecto; o que se pode chamar de novo, todavia, a amplitude e intensidade do modo mercantil de produzir literatura modo que no novo em si ,14 algo antes desconhecido no panorama nacional, consolidado ento, a que, nos dias de hoje, acrescenta-se a visualidade e a volatilidade intensas propiciadas pela tecnologia eletrnica.

    Nesse sentido, importa historicizar e periodizar tambm o termo contemporneo, no que se refere cultura e literatura, utilizado, a meu ver, com excessiva fluidez nos textos crticos em geral, sem o devido agendamento histrico. Com base na definio de matriz, aqui colocada, proponho entend-lo como um conceito de periodizao, que se inicia, no Brasil, com o regime militar e seu projeto de modernizao, acima exposto, propiciando um notvel processo de mudana nos modos de produo cultural, artstica e literria, que passaram a ser industriais e mercantis, incidindo direta e indiretamente sobre as matrizes literrias preexistentes. Obviamente no existe uma relao determinista nessa incidncia, mas uma tenso inescapvel entre ela e as subjetividades 12 clara aqui minha adeso aos conceitos de dominante, residual e emergente, de Raymond Williams. 13 Tambm de Raymond Williams o conceito de realismo que utilizo: Nenhum elemento, seja a sociedade ou o indivduo, prioritrio. A sociedade no um pano-de-fundo contra o qual as relaes pessoais so estudadas, nem os indivduos so meras ilustraes de aspectos dos modos de vida. Cada aspecto da vida pessoal radicalmente afetado pela qualidade da vida geral, mas a vida geral, no seu mago, totalmente vista em termos pessoais. (Williams, 2001, p. 304). Essa utilizao fica mais clara em meu texto Realismo: postura e mtodo (Pellegrini, 2007). 14 A histria do livro e da leitura pode comprovar isso.

  • Relquias da casa velha

    estudos de literatura brasileira contempornea, n. 43, p. 151-178, jan./jun. 2014. 170

    autorais, por sua vez tambm tensamente inscritas nessas formaes densas e complexas.

    Em artigo publicado no caderno Mais! do jornal Folha de S. Paulo, em 2000, fazendo um balano da literatura dos anos 1990, Flora Sssekind constata j uma geminao entre o econmico e o cultural muito distante dos aspectos de resistncia e solidariedade interna vividos durante a ditadura. Escrevendo durante o crescimento da poltica neoliberal do governo Fernando Henrique Cardoso, ela percebe, quinze anos depois do fim da ditadura, o sucesso daquele projeto cultural, influenciando as configuraes do que denomino matrizes literrias.

    Se, de 1964 a 1984, durante a ditadura, os traos eram a resistncia cultural, a solidariedade interna antiditadura [...] passa-se a viver, mesmo entre os setores mais crticos da sociedade, sob uma despolitizao generalizada e diretamente proporcional disseminao de uma financeirizao todo-poderosa a invocao recorrente s leis do mercado acoplada experincia neoliberal (Sssekind, 2000, p. 8).

    Essa financeirizao que , na verdade, a velha mercantilizao elevada ao seu patamar mais alto consegue desmontar os parmetros de contedo e forma, para remont-los em novas combinaes, mais adequadas aos valores que se impem e s subjetividades que se formam nesse quadro. Cria-se assim uma aparente instabilidade, resultado das tenses dos elementos em jogo, que quase se afigura como crise, mas na verdade apenas uma adequao posterior s coordenadas definidas no momento da ditadura, com seus constrangimentos claros e objetivos. Literariamente traduzida pela critica em geral como aquilo que se costuma chamar pluralidade ou multiplicidade, seja de temas ou de solues expressivas, essa crise articula-se como a apresentao de uma variedade prismtica que de fato a retomada de antigas matrizes, apenas recompostas de outra maneira, ou da mesma maneira com outras cores e matizes. Devido complexidade do problema a posto que no pretendo resolver aqui , pode-se dizer, com Fbio A. Duro, que a multiplicidade,15 tambm assumida como categoria crtico-analtica, um lugar-comum [que se] adequa ao esprito do nosso tempo: ela tem ares democrticos. Isso porque:

    15 Acrescento pluralidade.

  • Tnia Pellegrini

    171 estudos de literatura brasileira contempornea, n. 43, p. 151-178, jan./jun. 2014.

    A multiplicidade funciona assim como um leo lubrificante, no s para a maquinaria universitria, mas para a indstria da cultura como um todo. O paradoxo no deixa de ser interessante: o pressuposto da multiplicidade aquilo que faz com que todos os textos [...] assemelhem-se, com que todos se tornem iguais em sua suposta diferena (Duro, 2013).

    Tempos ps-modernos

    nesse sentido que talvez no seja equivocado afirmar que a prosa

    brasileira ps-ditadura continua em trnsito, pelo fato de retomar sempre, pluralizando-as ou multiplicizando-as, no sentido apontado, matrizes que a acompanharam desde a sua formao, como o realismo, incorporando alteraes e efeitos conjunturais. O problema que, muitas vezes, tenta-se conciliar o inconcilivel: o sentido de tradio que impulsionou a retomada delas, com todo seu lastro simblico e ideolgico, e, por meio da readequao de uma srie de elaboraes formais ainda relacionadas s inovaes modernistas (elises, cortes, diluies, fragmentaes, etc.), nunca abandonadas, naquele momento francamente contrrias reificao da arte, ensaiar uma aparente resistncia mercantilizao, que passou a dar as cartas desde ento.

    Trocando em midos, parece-me lcito afirmar que, terminado o regime militar, em 1985, alm de j estabelecer uma confortvel intimidade com o mercado, revigorado pelos incentivos de todos os tipos, como se viu, a fico abandona a anterior disposio de resistncia, em grande parte comprometida com um iderio poltico de esquerda, registrado nos seus testemunhos, confisses, romances-reportagens etc., de forte cunho realista, cujos expoentes foram Fernando Gabeira, Renato Tapajs, Aguinaldo Silva, Ivan ngelo e outros.

    No que tenham desaparecido, durante esse tempo, processos de formalizao mais sofisticados, de cunho introspectivo, como os sempre citados Quatro olhos, de Renato Pompeu, e Armadilha para Lamartine, de Carlos Sssekind, considerados novos ento. Acentuam-se outras solues temticas de recorte urbano, evidentemente ditadas no apenas pelo mercado mas por coordenadas sociais e polticas que se relacionam, inclusive, a impulsos internacionais: a voz das minorias (mulheres, negros, homossexuais), o universo das drogas, da violncia e da sexualidade, num tom geral que expressa o desencanto do final do sculo com as esperanas goradas de um pas que se sonhara mais justo.

  • Relquias da casa velha

    estudos de literatura brasileira contempornea, n. 43, p. 151-178, jan./jun. 2014. 172

    preciso frisar que o abandono do mpeto da resistncia apenas relativo, pois ela ainda pulsa, s que mais atomizada, calcada em micropolticas individuais, bem distantes da utopia coletiva de antes; assinale-se que a se representa a afirmao daquelas vozes outras abafadas, que conseguem aos poucos um espao de locuo, inclusive como decorrncia da prpria organizao desses segmentos sociais enquanto movimento poltico emergente ps-abertura; no se trata mais de resistir ditadura militar, mas a uma hierarquia ancestral em que predomina o discurso branco, masculino e cristo; so, portanto, outros sujeitos que se expressam, em dices marcadas por uma diferente perspectiva, pois muitas vezes vm de outro lugar social. Mas a tambm se instala o mercado editorial, que avidamente descobre nessas temticas fatias de mercado promissoras.16

    Como exemplo, destaquem-se o gradativo alteamento e modulaes das vozes femininas, que estimulam interpretaes crticas de interesse, como constata a revista Leia livros, j em 1990:

    Foi nos libertrios anos 60 que se comeou a levantar a poeira dos sculos e a se cunhar expresses como olhar feminino. Nos anos 80, como tudo indica, a questo no se esgotou, embora tenha adquirido outros contornos. [...] A escrita feminina obedeceria a uma outra lgica, onde o sujeito narrativo no ntegro, pleno, e por vezes se projeta no objeto, coisificando a palavra (Luzvarghi, 1990, p. 28).

    O mesmo acontece com a escrita dos homossexuais, registrada como ascendente e digna de nota, analisada no nmero seguinte da mesma revista: Se existe uma caracterstica homossexual na literatura, ela apareceria numa maneira ambgua de se expressar. [...] O homossexual vive num estado constante de ambiguidade (Rosenbaum, 1990, p. 15).

    No se trata aqui de aprofundar tais questes, mas de destacar que essa literatura, tambm de carter mltiplo, estrutura-se tensamente com base em matrizes j atuantes no Modernismo e suas marcas mais relevantes, em geral, so a distenso do limite entre realidade e imaginao, a recusa ao realismo puro, documental, sem escapar,

    16 Cresce aos poucos o espao ocupado individualmente, com autoras como Ana Miranda, Zulmira Ribeiro Tavares, Marilene Felinto e outras. J nos anos 2000 explodem vrias coletneas de contos, organizadas por Luiz Ruffato: 25 mulheres que esto fazendo a nova literatura brasileira (2004) e Mais 30 mulheres que esto fazendo a nova literatura brasileira, ambas da editora Record, em que os ttulos falam por si.

  • Tnia Pellegrini

    173 estudos de literatura brasileira contempornea, n. 43, p. 151-178, jan./jun. 2014.

    porm, de suas refraes: a subverso proposital dos parmetros tradicionais de narrao; a utilizao de ambivalncias e sugestes, pautando a representao em contradies, subvertendo padres tradicionais de entendimento e explorando nveis de conscincia e de linguagem. Tais caractersticas tambm frequentaram a fico produzida durante a ditadura, mas com menor incidncia, como indiquei; o que se percebe, mais ou menos a partir dos anos 1990, ou da dcada do desencanto, a centralidade da expresso subjetiva, o que j um sintoma de poca.

    Assumida como centro do mundo, a subjetividade, como princpio estruturante, manifesta-se em uma espcie de esgaramento da realidade circundante, desde que o foco de interesse passa a ser o prprio eu e aquilo que nele se reflete, pois a medida de todas as coisas; surgem e se afirmam como padro personagens sintonizadas com transformaes nos conceitos e escalas de valor; na verdade, so revivescncias das antigas matrizes introspectivas formalizadas no Modernismo, que se consolidaram sobretudo com Lygia Fagundes Telles e Clarice Lispector no por acaso mulheres , que agora se reconstroem em desencanto e niilismo, com sensvel atenuao do sentido crtico de antes. Fredric Jameson (1985) refere-se a esse tipo de narrativas como pastiches descontando-se a acidez do termo , frutos da viso esquizofrnica provocada por um mundo em que o sujeito se reduplica na imagem cindida de si mesmo.

    Leyla Perrone-Moiss (2012), todavia, identifica nessa mesma matriz uma espcie de resistncia possvel, na medida em que percebe em alguns autores e em seus recursos de fatura um trao muito forte de desconfiana, uma espcie de revivescncia da era da suspeita, definida por Natalie Sarraute, pois, segundo ela, desconfia-se do eu, do narrador, das histrias como representao e da literatura como instituio, alm de se rejeitar o excesso de informao, de consumo e de imagens. So os que ela chama de escritores exigentes, uma minoria, entre os quais alinha Nuno Ramos, Evando Nascimento, Julin Fuks e Alberto Martins. E acrescenta:

    E para quem escrevem esses escritores exigentes? Certamente para um nmero restrito de leitores, to inteligentes e refinados quanto eles [...]. Eles sabem que no entraro nas listas dos mais vendidos, como aqueles que satisfazem os anseios de entretenimento dos

  • Relquias da casa velha

    estudos de literatura brasileira contempornea, n. 43, p. 151-178, jan./jun. 2014. 174

    leitores de romances, esses mesmos to poucos num pas iletrado como o nosso (Perrone-Moiss, 2012, p. 5).

    Seja como pastiche ou exigncia, mas contrastando com a sutileza das subjetividades, emerge da matriz fonsequeana, que j era a traduo moderna17 da violncia constitutiva da sociedade brasileira, desde a sua fundao, o realismo bruto dos guetos e das favelas. outro tema que se aprofunda, expressando as ambguas relaes entre a modernizao brasileira e a violncia, acentuadas durante a ditadura e depois. Violncia e degradao misturam-se presena macia da cultura popular urbana, pervadindo as vidas de personagens sem presente e sem futuro. Esses temas aparecem vazados nas mais diversas maneiras de encarar a linguagem como representao, mas a principal est centrada no pacto realista, quase o registro in natura da ocorrncia quotidiana. Importa a o significante unvoco e a veracidade do sujeito narrador, trabalhando com matrizes da antiga denncia social, tambm facilmente aproprivel pela indstria, devido aproximao expressiva com os discursos e recursos da mdia, do cinema, da propaganda.18 a esttica do espetculo dando-se a ver como documento real, embora represente um aporte social significativo de subjetividades gestadas em meio pobreza e excluso das periferias, como mais uma das vozes antes inaudveis a conclamar coeses identitrias. A esse entrelaamento dos cdigos, o literrio e o imagtico, aos poucos, acrescenta-se mais um, o da internet, que explode definitivamente as fronteiras entre o literrio e o no literrio, na medida em que tudo se resume necessidade de comunicao rpida e facilmente inteligvel entre todos, aliando recursos de todos os suportes. Literatura, no incio do novo sculo, mais que mercadoria, passa a ser mercadoria digitalmente comunicvel.

    Publicidade, diversidade, pluralidade, multiplicidade, visibilidade. Seja qual for o sentido que se d a esses termos, inegvel que, a despeito de si mesmos, tornaram-se centrais para o exerccio da crtica hoje, pois so o mago do prprio ato criativo, como caracterstica da prpria linguagem enquanto resultado dos processos de subjetivao contempornea, 17 Utilizo moderno como um conceito de periodizao, relacionando-o ao ps-moderno posterior. 18 Foi Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins, o primeiro a explorar esses aspectos. Seguem-se Estao Carandiru (1999), de Druzio Varela, e Capo Pecado (2000), de Ferrz, todos de grande xito editorial, a ponto de gerar adaptaes cinematogrficas e seriados de televiso e (re)criar uma denominao prpria, literatura marginal, j com ampla bibliografia crtica. Desenvolvi esse tema em Vozes da violncia na cultura brasileira (Pellegrini, 2008).

  • Tnia Pellegrini

    175 estudos de literatura brasileira contempornea, n. 43, p. 151-178, jan./jun. 2014.

    submetida aos estmulos da condio ps-moderna. So termos que correspondem a traos temticos e formais facilmente detectveis em qualquer narrativa e cunhados para qualificar modelos textuais passveis de aplicao e reaplicao de antigas matrizes, cujas modificaes mais agudas deram-se durante a ditadura militar, com a gradativa consolidao da indstria cultural e do mercado literrio, de acordo com o projeto do regime. Desde ento, ao longo do caminho, de mistura com alguma exigncia minoritria, mas que garante esperana foram sendo incorporadas solues de aplicao pouco problemtica, bem adequadas a contratos com grandes editoras e ao mercado externo, bem como rarefao perceptiva e conceitual do leitorado interno, domesticado pela prpria indstria e pela indigncia educacional do pas, que essa indstria, hoje poderosa, com o empenho da ditadura, ajudou a sedimentar. Relquias de uma casa j velha de cinquenta anos.

    Referncias

    CACASO (1981). A democracia passa pela discusso do pluralismo cultural. Folha de S. Paulo, So Paulo, Folhetim Brasil, p. 6-9, 5 abr.

    CALABRE, Lia (Org.) (2005). Polticas culturais: dilogo indispensvel. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa.

    CARPEAUX, Otto M. (1973). Arte e sobrevivncia. Opinio, Rio de Janeiro, n. 9, p. 6, 1 a 8 jan.

    COHN, Gabriel (1984). A concepo oficial da poltica cultural nos anos 70. In: MICELLI, Sergio (org.). Estado e cultura no Brasil. So Paulo: Difel.

    DEBORD, Guy (1997). A sociedade do espetculo. Rio de Janeiro: Contraponto.

    DURO, Fbio Akcelrud (2013). Crtica da multiplicidade. Cult, So Paulo, n. 182, ago. Disponvel em: . Acesso em: 10 mar. 2013.

    ESCREVER vale a pena (1990). Leia Livros, n. 138, p. 2, abr.

    FERNANDES, Millr (1983). Os intelectuais e a poltica. Folha de S. Paulo, So Paulo, Folhetim, p. 7-8, 23 out.

    FERNANDES, Natlia A. Morato (2013). A poltica cultural poca da ditadura militar. Contempornea: revista de sociologia da UFSCar, So Carlos, v. 3, n. 1, p. 173-192.

  • Relquias da casa velha

    estudos de literatura brasileira contempornea, n. 43, p. 151-178, jan./jun. 2014. 176

    GALVO, Walnice Nogueira (1999). Musa sob assdio. In: Desconversa. So Paulo: Companhia das Letras.

    HOLANDA, Helosa B.; GONALVES, Marcos A. (1980). Poltica e literatura: a fico da realidade brasileira - anos 70. Rio de Janeiro: Europa.

    JABOR, Arnaldo (1973). Dez anos de cinema nacional. Opinio, Rio de Janeiro, n. 32, p. 6-8, 11 a 18 jun.

    JAMESON, Fredric (1985). Ps-modernidade e sociedade de consumo. Novos estudos CEBRAP, n. 12, p. 16-26.

    LUSVARGHI, Luiza (1990). Feminino plural. Leia, n. 135, p. 28-29, jan.

    MICELLI, Srgio (1984a). Teoria e prtica da poltica cultural oficial no Brasil. Revista de administrao de empresas, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 27-31.

    ______ (1984b). O processo de construo institucional na rea cultural federal (anos 70). In: MICELLI, Sergio (org.). Estado e cultura no Brasil. So Paulo: Difel.

    ORTIZ, Renato (1988). A moderna tradio brasileira: Cultura brasileira e indstria cultural. So Paulo: Brasiliense.

    PELLEGRINI, Tnia (1996). Gavetas vazias: Fico e poltica nos anos 70. Campinas: Mercado de Letras; So Carlos: Ed. UFSCar.

    ______ (1999). A imagem e a letra: aspectos da fico brasileira contempornea. So Paulo: Mercado de Letras; Fapesp.

    ______ (2007). Realismo: postura e mtodo. Letras de hoje, Porto Alegre, n. 42, p. 135-155.

    ______ (2008). Despropsitos: estudos de fico brasileira contempornea. So Paulo: Annablume; Fapesp.

    PERRONE-MOISS, Leyla (2012). A literatura exigente. Folha de S. Paulo, So Paulo, Ilustrssima, p. 4-5, 25 mar.

    RAMOS, Ferno P. (1986). Uma forma histrica de cinema alternativa e seus dilemas na atualidade. In: Vinte anos de resistncia: Alternativas da cultura no regime militar. Rio de Janeiro: Espao e Tempo.

    REIMO, Sandra (2011). Represso e resistncia: censura a livros na ditadura militar. So Paulo: EDUSP, Fapesp.

    RIDENTI, Marcelo (2010). Brasilidade revolucionria. So Paulo: Editora UNESP.

    ROSENBAUM, Yudith (1990). Filhos do terceiro sexo. Leia, n. 136, p. 28-29, fev.

  • Tnia Pellegrini

    177 estudos de literatura brasileira contempornea, n. 43, p. 151-178, jan./jun. 2014.

    SCHWARZ, Roberto (1978). Cultura e poltica, 1964-69. In: O pai de famlia e outros ensaios. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

    ________ (1981). A democracia passa pela discusso do pluralismo cultural. Folha de S. Paulo, So Paulo, Folhetim, p. 6-9, 5 abr.

    SSSEKIND, Flora (1985). Literatura e vida literria: polmicas, dirios & retratos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

    ________ (2000). Escalas e ventrloquos. Folha de S. Paulo, So Paulo, Caderno Mais!, p. 8, 23 jul.

    TELLES, Lygia Fagundes (1981). O editor, na verso do autor. Folha de S. Paulo, So Paulo, Folhetim, p. 8, 22 fev.

    VIANA, Zelito (1973). Dez anos de cinema nacional. Opinio, Rio de Janeiro, n. 32, p. 6-8, 11 a 18 jun.

    WILLIAMS, Raymond (1979). Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: J. Zahar.

    ______ (2001). The long revolution. Canada: Broadview Press.

    Recebido em dezembro de 2013. Aprovado em janeiro de 2014. resumo/abstract

    Relquias da casa velha: literatura e ditadura militar, 50 anos depois Tnia Pellegrini

    Este ensaio, amparado em consulta a jornais e revistas de vrias dcadas, alm de revisitar parte da produo crtica sobre o tema e de retomar minhas prprias pesquisas anteriores, procura relacionar as aes especficas do regime militar para o campo da cultura com a efetiva consolidao da indstria cultural brasileira. O pressuposto que essa consolidao engendrou, de forma tensionada, modificaes significativas nas matrizes preexistentes na nossa fico, sobretudo temticas, que foram traduzindo o mal-estar e a perplexidade geradas naqueles anos difceis, bem como suas derivaes at os dias de hoje.

    Palavras-chave: ditadura militar, indstria cultural, matrizes literrias.

    Relics of the old house: literature and military dictatorship, 50 years after Tnia Pellegrini

    This essay tries to relate specific actions of the military regime in the field of culture to the effective consolidation of a cultural industry in Brazil. It is based

  • Relquias da casa velha

    estudos de literatura brasileira contempornea, n. 43, p. 151-178, jan./jun. 2014. 178

    on a more or less alleatory search in newspapers and magazines of the period. It also revisits the critical literature about the subject and retakes my own previous researches. The assumption is that the cultural industry consolidation has produced in a tensioned way, significant modifications in the preexistent matrixes of Brazilian fiction, mainly in its themes, which translated the mallaise and perplexity of those difficult years, as well as their derivations to this day.

    Keywords: military dictatorship, cultural industry, literary matrices.