René Descartes - As Paixões da Alma

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  • 8/7/2019 Ren Descartes - As Paixes da Alma

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    AS PAIXES DA ALMA

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    PRIMEIRA PARTE

    DAS PAIXES EM GERALE OCASIONALMENTE

    DE TODA A NATUREZA DO HOMEM

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    Art. 1. O que paixo em relao aum sujeito sempre ao a qualqueroutro respeito.

    Nada h em que melhor apareaquo defeituosas so as cincias querecebemos dos antigos do que naquiloque escreveram sobre as paixes; pois,embora seja esta uma matria cujoconhecimento foi sempre muito procu

    rado, e ainda que no parea ser dasmais difceis, porquanto cada qual,sentindo-as em si prprio, no necessita tomar alhures qualquer observao para lhes descobrir a natureza,todavia o que os antigos delas ensinaram to pouco, e na maior parte topouco crvel, que no posso alimentarqualquer esperana de me aproximar

    da verdade, seno distanciando-me doscaminhos que eles trilharam. Eis porque serei obrigado a escrever aqui domesmo modo como se tratasse de umamatria que ningum antes de mimhouvesse tocado; e, para comear, considero que tudo quanto se faz ou acontece de novo geralmente chamadopelos filsofos uma paixo em relao

    ao sujeito a quem acontece, e umaao com respeito quele que faz comque acontea1; de sorte que, embora o

    1 "Ora, sempre julguei que uma e mesma coisaque denominada ao quando a relacionamos aotermo de onde ela procede e paixo com respeito aotermo no qual ela recebida." (A Hyperaspistes,agosto de 1641.)

    agente e o paciente sejam amidemuito diferentes, a ao e a paixo no

    deixam de ser sempre uma mesmacoisa com dois nomes, devido aos doissujeitos diversos aos quais podemosrelacion-la.

    Art. 2. Que para conhecer as paixesda alma cumpre distinguir entre assuas funes e as do corpo.

    Depois, tambm considero que nonotamos que haja algum sujeito queatue mais imediatamente contra nossaalma do que o corpo ao qual estunida, e que, por conseguinte, devemospensar que aquilo que nela uma paixo comumente nele uma ao; demodo que no existe melhor caminhopara chegar ao conhecimento de nossas paixes do que examinar a diferena que h entre a alma e o corpo, afim de saber a qual dos dois se deveatribuir cada uma das funes existentes em ns.

    Art. 3. Que regra se deve seguir para

    esse efeito.

    E nisso no se encontrar grandedificuldade, se se tomar em conta quetudo o que sentimos existir em ns, eque vemos existir tambm nos corposinteiramente inanimados, s deve seratribudo ao nosso corpo; e, ao contra-

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    rio, que tudo o que existe em ns, e queno concebemos de modo algum comopassvel de pertencer a um corpo, deveser atribudo nossa alma2.

    Art. 4. Que o calor e o movimento dosmembros procedem do corpo, e ospensamentos, da alma.

    Assim, por no concebermos que ocorpo pense de alguma forma, temosrazo de crer que toda espcie de pensamento em ns existente pertence alma; e, por no duvidarmos de quehaja corpos inanimados que podemmover-se de tantas diversas maneirasque as nossas, ou mais do que elas, eque possuem tanto ou mais calor (oque a experincia mostra na chama,que possui, ela s, muito mais calor emovimento do que qualquer de nossos

    membros), devemos crer que todo ocalor e todos os movimentos em nsexistentes, na medida em que nodependem do pensamento, pertencemapenas ao corpo.

    Art. 5. Que erro acreditar que a almad o movimento e o calor ao corpo.

    Por esse meio, evitaremos um erroconsidervel em que muitos caram, desorte que o reputo a principal causaque at agora impediu que se pudessemexplicar bem as paixes e as outrascoisas pertencentes alma. Consisteem ter-se imaginado, vendo-se que

    todos os corpos mortos so privadosde calor e depois de movimento, queera a ausncia da alma que fazia cessaresses movimentos e esse calor; e assimse julgou, sem razo, que o nosso calornatural e todos os movimentos de nos-

    2 Lembrana do princpio da distino das substncias enunciado na Meditao Sexta.

    sos corpos dependem da alma3, aopasso que se devia pensar, ao contrrio, que a alma s se ausenta, quandose morre, porque esse calor cessa, porque os rgos que servem para movero corpo se corrompem.

    Art. 6. Que diferena h entre umcorpo vivo e um corpo morto.

    A fim de evitarmos, portanto, esseerro, consideremos que a morte nunca

    sobrevm por culpa da alma, massomente porque alguma das principaispartes do corpo se corrompe; e julguemos que o corpo de um homem vivodifere do de um morto como um relgio, ou outro autmato (isto , outramquina que se mova por si mesma),quando est montado e tem em si o

    princpio corporal dos movimentospara os quais foi institudo, com tudo oque se requer para a sua ao, diferedo mesmo relgio, ou outra mquina,quando est quebrado e o princpio deseu movimento pra de agir 4.

    Art. 7. Breve explicao das partes docorpo e de algumas de suas funes.

    Para tornar isso mais inteligvel,explicarei, em poucas palavras, aforma toda de que se compe a m-

    3 A alma est implantada na mquina do corpo,mas no seu princpio de formao nem conservao. "Trata-se simplesmente de ntima associaoda alma com o todo e as partes da mquina j feita. . . Assim a natureza fsica realizaria mecanicamente uma mquina muito complicada, com disposies tais que uma alma poderia de alguma formacal-la, sem que tenha tido algo com a fabricaoe a imbricao de suas partes." (Guroult, II, pg.181.)4 No caso do homem, a deteriorao da mquinano conduz apenas sua destruio, mas tambm separao da alma e do corpo. A doutrina da unioda alma e do corpo na separao exclui, assim, radicalmente todo animismo ou vitalismo.

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    quina de nosso corpo5. No h quemj no saiba que existem em ns umcorao, um crebro, um estmago,msculos, nervos, artrias, veias e coisas semelhantes; sabe-se tambm que

    os alimentos ingeridos descem ao estmago e s tripas, de onde o seu suco,correndo para o fgado e para todas asveias, se mistura com o sangue queelas contm, aumentando, por essemeio, a sua quantidade6. Aqueles queouviram falar, por pouco que seja, damedicina sabem, alm disso, como secompe o corao e como todo o san

    gue das veias pode facilmente correrda veia cava para seu lado direito, eda passar ao pulmo pelo vaso quedenominamos veia arteriosa, depoisretornar do pulmo ao lado esquerdodo corao pelo vaso denominadoartria venosa7, e, enfim, passar dapara a grande artria, cujos ramos seespalham pelo corpo inteiro. E mesmo

    todos os que no foram cegados inteiramente pela autoridade dos antigos, eque quiseram abrir os olhos para examinar a opinio de Harvey no tocante circulao do sangue8, no duvi-

    5 Sendo possvel (arts. 3, 4, 5) e indispensvel inteligncia das paixes a distino entre as funesque dependem do corpo e as funes que dependemda alma, Descartes ir agora descrever sucessivamente as funes essenciais de um e de outro. At o 17, as funes do corpo.6 Cf. Tratado do Homem (Pliade, pgs. 808-809):devido fermentao que se produz no estmago,"as partes mais sutis" dos alimentos formam oquilo, que levado para o fgado, onde sofre a aoda hematose. "Este licor a se sutiliza. . . adquirecor e toma a forma do sangue. . . Ora, este sangue,assim contido nas veias, s tem uma nica passagem manifesta por onde possa sair delas, a saber, aque conduz concavidade direita do corao."7 Veia arteriosa: artria pulmonar; artria venosa:veia pulmonar.8 Descartes recusava atribuir a ao do corao auma contrao muscular, mas aderia inteiramente teoria circulatria de Harvey. "A opinio do Sr.Descartes sobre a circulao do sangue", relataBaillet, "granjeara-lhe grande crdito entre os doutos e contribura maravilhosamente para restabelecer nesta matria a reputao de William Harvey,que se vira maltratada por diversos mdicos dosPases-Baixos, a maioria dos quais ignorante ouobstinada em antigas mximas de suas faculdades."

    dam de que todas as veias e artrias docorpo sejam como regatos por onde osangue no pra de correr muito rapidamente, comeando seu curso nacavidade direita do corao pela veia

    arteriosa, cujos ramos se espalham portodo o pulmo e se juntam aos da artria venosa, pelo qual ele passa do pulmo ao lado esquerdo do corao; depois segue da para a grande artria,cujos ramos, esparsos pelo resto docorpo, se unem aos ramos da veia quelevam de novo o mesmo sangue cavidade direita do corao, de sorte que

    essas duas cavidades so como eclusas, atravs de cada uma das quaispassa todo o sangue em cada volta quefaz pelo corpo. Demais, sabe-se quetodos os movimentos dos membrosdependem dos msculos e que estesmsculos se opem uns aos outros, detal modo que, quando um deles seencolhe, atrai para si a parte do corpoa que est ligado, o que provoca aomesmo tempo o alongamento do msculo que lhe oposto; depois, se acontece numa outra vez que este ltimo seencolha, leva o primeiro a alongar-se epuxa para si a parte a que eles estoligados. Enfim, sabe-se que todos essesmovimentos dos msculos, assimcomo todos os sentidos, dependem dosnervos, que so como pequenos fios oucomo pequenos tubos que procedem,todos, do crebro, e contm, como ele,certo ar ou vento muito sutil que chamamos espritos animais9.

    Art. 8. Qual o princpio de todasessas funes.

    Mas no se sabe comumente de queforma esses espritos animais e nervoscontribuem para os movimentos e ossentidos, nem qual o princpio corpo-

    9 O Tratado do Homem dir: "Um certo ventomuito sutil, ou melhor, uma chama muito viva emuito pura".

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    ral que os faz agir; eis por que, emboraj tenha tratado algo do assunto emoutros escritos1 , no deixarei de dizeraqui sucintamente que, enquanto vivemos, h um contnuo calor em nosso

    corao, que uma espcie de fogo amantido pelo sangue das veias, e queesse fogo o princpio corporal detodos os movimentos de nossos membros1 \

    Art. 9. Como se faz o movimento docorao12.

    O seu primeiro efeito dilatar o sangue que enche as cavidades do corao; e isso causa de que esse sangue,tendo necessidade de ocupar maiorespao, passe com impetuosidade dacavidade direita para a veia arterial, eda esquerda para a grande artria;depois, cessando essa dilatao, torne

    incontinenti a entrar da veia cava paraa cavidade direita do corao, e daartria venosa para a esquerda; pois hpequenas peles nas entradas dessesquatro vasos, dispostas de tal modoque fazem com que o sangue no possapenetrar no corao seno pelas duasltimas, nem sair dele exceto pelasduas outras. O novo sangue que entra

    no corao a imediatamente rarefeito, do mesmo modo que o precedente; s nisso que consiste a pulsao ou obatimento do corao e das artrias;de sorte que esse batimento se reiteratantas vezes quantas entra sanguenovo no corao. tambm s issoque d ao sangue o seu movimento, e ofaz correr, muito rpida e incessante-

    1 Nomeadamente na quinta parte do Discurso.

    1 ' "Uma observao errnea lhe informa que ocorao o mais quente de todos os rgos. Tem,portanto, um ponto de partida: o corao um focode calor, deve esquentar e dilatar o sangue que oatravessa." (Osrio de Almeida, "Descartes Physio-logiste". Eludes Cartsiennes, Hermann, 1937.)

    12 Cf. a quinta parte do Discurso e Gilson, LeRole de la Pense Mdivale dans la Formalion duSvstme Cartsien, cap. 2.

    mente, em todas as artrias e veias,mediante o que leva o calor que adquire no corao a todas as outras partesdo corpo e lhes serve de alimento.

    Art. 10. Como se produzem no crebroos espritos animais.

    Mas o que h nisso de mais notvel que todas as partes mais vivas e maissutis do sangue que o calor rarefez nocorao entram incessantemente emgrande quantidade nas cavidades docrebro. E a causa que as conduz paraa, de preferncia a qualquer outrolugar, que todo sangue sado do corao pela grande artria toma seu cursoem linha reta para esse stio, e que, nopodendo entrar todo, porque o lugarpossui apenas passagens muito estreitas, s passam as suas partes mais agitadas e mais sutis, enquanto o resto se

    espalha por todos os outros locais docorpo. Ora, tais partes do sanguemuito sutis compem os espritos animais1 3 ; e no precisam, para tal efeito,receber qualquer modificao no crebro, exceto a de serem separadas dasoutras partes do sangue menos sutis1 4 ;pois o que denomino aqui espritos noso mais do que corpos e no tm

    qualquer outra propriedade, exceto ade serem corpos muito pequenos e se

    13 Em Galeno (De Usu Partium), os espritos vitaischegam pela cartida aos ventrculos do crebro,onde so transformados em espritos animais edisponveis para a funo sensrio-motora. EmDescartes, a distino clssica entre espritos animais (elaborados no crebro), espritos vitais (sados do corao) e espritos naturais (produzidos nofgado) abolida. "No mais h entre essas trs formas de espritos diferena qualitativa real, massomente uma diferena de calibre e mobilidadeentre elementos mais ou menos refinados." (Mes-nard, "Espirit de la Physiologie Cartsienne",Archives de Philosophie, vol. XIII.)' 4 "E assim, sem outro preparo ou mudana, exceto que elas so separadas das mais grosseiras e queretm ainda a extrema velocidade que o calor docorao lhes deu, deixam de ter a forma do sanguee se chamam espritos animais." (Tratado doHomem.)

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    virem o presente escrito no tenhamnecessidade de ler outros, repetireiaqui que h trs coisas a considerarnos nervos, a saber: a sua medula, ousubstncia interior, que se estende na

    forma de pequenos filetes a partir docrebro, onde toma origem, at asextremidades dos outros membros aosquais esses filetes esto ligados; depoisas peles que os envolvem e que, sendocontguas com as que envolvem o crebro, compem pequenos condutos emque ficam encerrados esses pequenosfiletes; depois, enfim, os espritos animais que, levados por esses mesmoscondutos do crebro at os msculos,so a causa de tais filetes permanecerem a inteiramente livres e estendidos, de tal modo que a menor coisaque mova a parte do corpo qual seliga a extremidade de algum deles levaa mover, pelo mesmo meio, a parte do

    crebro de onde vem, tal como ao sepuxar uma das pontas de uma cordamove-se a outra18.

    Art. 13. Que esta ao dos objetos defora pode conduzir diversamente osespritos aos msculos.

    Expliquei tambm na Diptricacomo todos os objetos da viso comu-nicam-se conosco apenas porquemovem localmente, por intermdio doscorpos transparentes que existem entreeles e ns, os pequenos filetes dos nervos pticos que se acham no fundo denossos olhos, e em seguida os lugaresdo crebro de onde provm esses ner

    vos; que os movem, digo eu, de tantasmaneiras diversas que nos fazem verdiversidades nas coisas, e que no soimediatamente os movimentos que seefetuam no olho, mas sim os que seefetuam no crebro, que representampara a alma esses objetos. A exemplo

    18 Cf. Meditao Sexta, 35.

    disso, fcil conceber que os sons, osodores, os sabores, o calor, a dor, afome, a sede e, em geral, todos os objetos, tanto dos nossos demais sentidosexternos como dos nossos apetitesinternos, excitam tambm alguns movimentos em nossos nervos, que setransmitem por meio deles at o crebro; e alm de esses diversos movimentos do crebro fazerem com que a almatenha diversos sentimentos, podemtambm fazer, sem ela1 9, que os espritos sigam mais para certos msculos

    do que para outros, e, assim, quemovam nossos membros, o que provarei aqui somente atravs de um exemplo. Se algum avana rapidamente amo contra os nossos olhos, comopara nos bater, embora saibamos tra-tar-se de nosso amigo, que faz isso spor brincadeira e tomar muito cuida

    do para no nos causar nenhum mal,temos todavia muita dificuldade emimpedir que se fechem; isso mostra queno por intermdio de nossa almaque eles se fecham, pois contra anossa vontade, a qual , se no a nica,ao menos a sua principal ao; assimporque a mquina de nosso corpo de

    tal modo composta que o movimentodessa mo contra os nossos olhos excita outro movimento em nosso crebro,

    0 qual conduz aos msculos os espritos animais que fazem baixar asplpebras20.

    Art. 14. Que a diversidade existente

    entre os espritos tambm pode diversi-Jicar-lhes o curso.

    1 9 H, portanto, dois circuitos possveis: a) movimento sensorial-sentimento da alma-ao; b) movimento sensorial-ao automtica. O art. 16 especificar o funcionamento desta ao automtica.2 0 Sobre a teoria cartesiana do reflexo, consultar olivro indispensvel de Canguilhem: La Formationdu Concept de Rflexe. . .

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    A outra causa21 que serve para conduzir diversamente os espritos animais aos msculos a agitao desigual desses espritos e a diversidade desuas partes. Pois, quando algumas desuas partes so mais grossas e maisagitadas do que as outras, passammais frente em linha reta nas cavidades e nos poros do crebro, e por essemeio so levadas a msculos diferentesdaqueles para onde iriam se tivessemmenos fora.

    Art. 15. Quais so as causas de sua

    diversidade.E essa desigualdade pode proceder

    das diversas matrias de que se compem, como se v nos que beberammuito vinho cujos vapores, entrandoprontamente no sangue, sobem docorao ao crebro, onde se convertemem espritos que, sendo mais fortes e

    mais abundantes do que aqueles que ase encontram comumente, so capazesde mover o corpo de muitas maneirasestranhas. Esta desigualdade dos espritos pode tambm proceder das diversas disposies do corao, do fgado,do estmago, do bao e de todas as outras partes que contribuem para a suaproduo; pois cumpre principalmenteobservar aqui certos pequenos nervosinsertos na base do corao, que servem para alargar e estreitar as entradas dessas concavidades, por meio doque o sangue, dilatando-se nelas maisou menos fortemente, produz espritosdiversamente dispostos. precisonotar tambm que, embora o sangue

    que penetra no corao provenha detodos os outros lugares do corpo, todavia acontece muitas vezes ser ele impe-

    2 ' Segunda causa: o efeito de lanamento varivelsegundo a desigualdade dos espritos, podendo estadesigualdade provir de causas diversas que o artigoseguinte especificar. A terceira causa: a ao daalma (cf. art. 12) ser analisada nos arts. 34-36.

    lido mais de certas partes do que deoutras, porque os nervos e os msculosque respondem a essas partes o pressionam ou agitam mais, e porque, conforme a diversidade das partes de ondevem mais, dilata-se diversamente nocorao, e em seguida produz espritosdotados de qualidades diferentes.Assim, por exemplo, o que provm daparte inferior do fgado, onde est o fel,dilata-se no corao de maneira diferente da do sangue oriundo do bao, eeste de modo diferente do do proveniente das veias dos braos ou das per

    nas, e enfim este diferentemente dosuco dos alimentos, quando, tendo denovo sado do estmago e dos intestinos, passa rapidamente pelo fgado ato corao.

    Art. 16. Como todos os membrospodem ser movidos pelos objetos dossentidos e pelos espritos sem a ajuda

    da alma.

    Enfim, preciso notar que a mquina de nosso corpo de tal modocomposta que todas as mudanas queocorrem no movimento dos espritospodem lev-los a abrir alguns poros docrebro mais do que outros, e recipro

    camente que, quando algum dessesporos est pouco mais ou menos aberto que de costume pela ao dos nervos que servem aos sentidos22, isso altera algo no movimento dos espritos edetermina que sejam conduzidos aosmsculos destinados a mover o corpo

    22 O Tratado do Homem descreve com maior pre

    ciso este mecanismo. "Se o fogo A se encontraperto do p B", as partes do fogo estiraro um nervoe abriro "no mesmo instante a entrada do porocontra o qual este pequeno fio termina. . . Ora,estando assim aberta a entrada do poro, os espritosanimais da concavidade entram nele, e so levadospor ele, em parte aos msculos que servem para retirar este p deste fogo, em parte aos que servem paravolver os olhos e a cabea a fim de olh-lo, e emparte aos que servem para adiantar as mos e dobrar todo o corpo para defend-lo."

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    da forma como ele comumente movido por ocasio de tal ao; de sorteque todos os movimentos que fazemossem que para isso a nossa vontade contribua (como acontece muitas vezes

    quando respiramos, andamos, comemos e, enfim, quando praticamos todasas aes que so comuns a ns e aosanimais) no dependem seno da conformao de nossos membros e docurso que os espritos, excitados pelocalor do corao, seguem naturalmente no crebro, nos nervos e nos

    msculos, tal como o movimento deum relgio produzido para exclusivafora de sua mola e pela forma de suasrodas.

    Art. 17. Quais so as funes daalma.

    Depois de ter assim consideradotodas as funes que. pertencem somente ao corpo, fcil reconhecer quenada resta em ns que devemos atribuir nossa alma, exceto nossospensamentos, que so principalmentede dois gneros, a saber: uns so asaes da alma, outros as suas paixes.Aquelas que chamo suas aes so

    todas as nossas vontades, porque sentimos que vm diretamente da alma eparecem depender apenas dela; domesmo modo, ao contrrio, pode-seem geral chamar suas paixes todaespcie de percepes ou conhecimentos existentes em ns, porque muitas vezes no nossa alma que os faztais como so, e porque sempre os re

    cebe das coisas por elas representadas23

    23 Trata-se da primeira definio das paixes,muito geral, pois compreende todas as percepes econhecimentos, isto , tudo o que, na alma, no tema alma como nica origem. A partir da, Descartes,por distines sucessivas, ir delimitar as paixesno sentido estrito.

    Art. 18. Da vontade.

    Nossas vontades so, novamente, deduas espcies; pois umas so aes daalma que terminam na prpria alma,

    como quando queremos amar a Deusou, em geral, aplicar nosso pensamento a qualquer objeto que no material; as outras so aes que terminam em nosso corpo, como quando,pelo simples fato de termos vontade depassear, resulta que nossas pernas semexam e ns caminhemos.

    Art. 19. Da percepo.

    Nossas percepes tambm so deduas espcies: umas tm a alma comocausa, outras o corpo2 4. As que tm aalma como causa so as percepes denossas vontades e de todas as imaginaes ou outros pensamentos que dela

    dependem; pois certo que no poderamos querer qualquer coisa que nopercebssemos pelo mesmo meio que aqueremos; e, embora com respeito nossa alma seja uma ao o querer alguma coisa, pode-se dizer que tambm nela uma paixo o perceber queela quer; todavia, dado que essa percepo e essa vontade so efetivamente

    uma mesma coisa2 6

    , a sua denominao faz-se sempre pelo que maisnobre, e por isso no se costuma cham-la paixo, mas apenas ao.

    Art. 20. Das imaginaes e outrospensamentos que so formados pelaalma.

    Quando nossa alma se aplica a ima-

    2 4 Arts. 19-20: a) as percepes que tm a almacomo causa.2 5 "No poderamos querer coisa alguma semsaber que a queremos, nem sab-lo a no ser poruma ideia; mas no afirmo de modo algum que estaideia seja diferente da prpria ao." (Cartas, aMersenne, 28 de julho de 1641.)

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    ginar alguma coisa que no existe2 6,coino a representar um palcio encantado ou uma quimera, e tambm quando se aplica a considerar algo que somente inteligvel e no imaginvel,

    por exemplo a sua prpria natureza, aspercepes que tem dessas coisas dependem principalmente da vontade quea leva a perceb-las; eis por que se costuma consider-las como aes maisdo que como paixes2 7.

    Art. 21. Das imaginaes que s tmpor causa o corpo.

    Entre as percepes que so causadas pelo corpo, a maior parte dependedos nervos; mas h tambm algumasque deles no dependem, e que se chamam imaginaes28, como essas deque acabo de falar, das quais, no obs

    tante, diferem pelo fato de nossa vontade no se empenhar em form-las, oque faz com que no possam ser includas no nmero das aes da alma, eprocedam apenas de que, sendo osespritos diversamente agitados, e encontrando os traos de diversas impresses que precederam no crebro,

    tomem a seu curso fortuitamente porcertos poros mais do que por outros.Tais so as iluses de nossos sonhos etambm os devaneios a que nos entregamos muitas vezes estando despertos,quando nosso pensamento erra negligentemente sem se aplicar por si

    2 6 A imaginao voluntria ("se aplica") ou criadora tambm pertence a este grupo.2 7 O campo das paixes propriamente ditas j estreduzido: s "as percepes que tm o corpo comocausa" merecem verdadeiramente esse nome.28 Arts. 21 a 27: b) as percepes que tm o corpocomo causa. Distinguem-se: 1." as que no resultamde uma mensagem sensorial e so produzidas pelocurso fortuito dos espritos.

    mesmo a nada29. Ora, ainda que algumas dessas imaginaes sejam paixesda alma, tomando a palavra na suamais prpria e mais perfeita significao, e ainda que possam ser todasassim denominadas, se se tomar o

    termo em uma acepo mais geral,todavia, posto que no tm uma causato notvel e to determinada como aspercepes que a alma recebe porintermdio dos nervos, e parecem serapenas a sombra e a pintura destas,antes que as possamos distinguir bemcumpre considerar a diferena que hentre estas outras.

    Art. 22. Da diferena que existe entreas outras percepes.

    Todas as percepes que ainda noexpliquei vm alma por intermdiodos nervos30 , e existe entre elas essadiferena pelo fato de relacionarmosumas aos objetos de fora, que feremnossos sentidos, e as outras ao nossocorpo ou a algumas de suas partes, eoutras enfim nossa alma.

    Art. 23. Das percepes que relacionamos com os objetos que existem forade ns.

    As que referimos a coisas situadasfora de ns, a saber, aos objetos denossos sentidos, so causadas, ao

    2 9 Acerca desses devaneios, cf. Cartas, a Elisabeth,de 6 de outubro de 1645. Se o sonho no suprime opensamento, a imaginao a se liberta da vontade:no posso sair do sonho minha vontade ( o corpoque responsvel pelo despertar). Permitindo srepresentaes resultantes do corpo viver uma vidaprpria, o sonho no ameaa, todavia, o Cogito,visto que o pensamento passivo ainda acolhe a asimagens como imagens. Eis por que sempre possvel passar da imaginao-paixo imaginaocontrolada. (Cf. Cartas, a Elisabeth, maio ou junhode 1645.)3 2." as que dependem dos nervos. Podemos dividi-las em trs rubricas: a) percepes referidas aosobjetos (art. 23); b) s afeces do corpo (art. 24); c) alma em particular (art. 25).

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    menos quando nossa opinio no falsa, por esses objetos que, provocando alguns movimentos nos rgosdos sentidos externos, os provocamtambm no crebro por intermdio dos

    nervos, os quais levam a alma a senti-los. Assim, quando vemos a luz de umfacho e ouvimos o som de um sino,esse som e essa luz so duas aesdiversas que, somente por excitaremdois movimentos diversos em algunsde nossos nervos, e por meio deles nocrebro, do alma dois sentimentosdiferentes, os quais relacionamos de tal

    modo aos objetos que supomos seremsua causa, que pensamos ver o prpriofacho e ouvir o sino, e no sentir unicamente movimentos que procedemdeles31 .

    Art. 24. Das percepes que relacionamos com o nosso corpo.

    As percepes que relacionamoscom o nosso corpo ou com qualquer desuas partes so as que temos da fome,da sede e de nossos demais apetitesnaturais, aos quais podemos juntar ador, o calor e as outras afeces quesentimos como nos nossos membros, eno como nos objetos que existem forade ns: assim, podemos sentir ao

    mesmo tempo, e por intermdio dosmesmos nervos, a frieza da nossa moe o calor da chama de que ela se aproxima, ou ento, ao contrrio, o calorda mo e o frio do ar a que est exposta, sem que haja qualquer diferenaentre as aes que nos fazem sentir oquente ou o frio que existe em nossamo e as que nos fazem sentir aqueleque est fora de ns, a no ser que,sucedendo uma dessas aes outra,

    3 ' As palavras importantes so "diversos" e "diferentes". As percepes sensveis nos informam nos sobre a existncia dos corpos, mas tambm sobreas variedades' geomtricas desses corpos, s quaiselas correspondem por intermdio da variedade dosmovimentos que eles produzem no crebro.

    julguemos que a primeira j existe emns e que a outra, a seguinte, no estainda em ns, mas no objeto que acausa.

    Art. 25. Das percepes que relacionamos com a nossa alma32.

    As percepes que se referem somente alma so aquelas cujos efeitosse sentem como na alma mesma e deque no se conhece comumente nenhuma causa prxima qual possamosrelacion-las: tais so os sentimentosde alegria, de clera e outros semelhantes, que so s vezes excitados emns pelos objetos que movem nossosnervos, e outras vezes tambm por outras causas. Ora, ainda que todas asnossas percepes, tanto as que se referem aos objetos que esto fora de nscomo as que se referem s diversas

    afeces de nosso corpo, sejam verdadeiramente paixes com respeito nossa alma, quando tomamos essetermo em sua significao mais geral,todavia costuma-se restringi-lo a fimde significar somente as que se relacionam com a prpria alma, e apenasessas ltimas que me propus explicaraqui sob o nome de paixes da alma.

    Art. 26. Que as imaginaes que dependem apenas do movimento fortuitodos espritos podem ser tambm paixes to verdadeiras quanto as percepes que dependem dos nervos3 3.

    Resta notar aqui que exatamente as

    32 Delimitao das paixes ao sentido restrito. Cf.o "quadro sintico" que resume essa classificaono Ensaio sobre a Moral de Descartes, de Lvio Teixeira, pg. 151.3 3 Retorno s "imaginaes" descritas no art. 21."Sombra e pintura" das percepes (a, b), elas nopodem imitar as percepes que se referem alma(c). Razo suplementar para distinguir a terceiracategoria das duas primeiras.

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    AS PAIXES DA ALMA 237

    mesmas coisas que a alma percebe porintermdio dos nervos lhe podem sertambm representadas pelo curso fortuito dos espritos, sem que haja outradiferena exceto que as impresses vindas ao crebro por meio dos nervoscostumam ser mais vivas e maisexpressas do que as excitadas nelepelos espritos; o que me levou a dizerno art. 21 que as ltimas so como asombra e a pintura das outras. preciso tambm notar que ocorre algumasvezes ser essa pintura to semelhante coisa representada, que podemos enga-

    nar-nos no tpcante s percepes quese relacionam aos objetos fora de ns,ou ento quanto s que se relacionama algumas partes de nosso corpo, masno podemos equivocar-nos do mesmomodo no tocante s paixes, porquanto so to prximas e to interiores nossa alma que lhe impossfvelsenti-las sem que sejam verdadeira

    mente tais como ela as sente. Assim,muitas vezes quando dormimos, emesmo algumas vezes estando acordados, imaginamos to fortemente certascoisas que pensamos v-las diante dens, ou senti-las no corpo, embora ano estejam de modo algum; mas,ainda que estejamos adormecidos esonhemos, no podemos sentir-nos

    tristes ou comovidos por qualqueroutra paixo, sem que na verdade aalma tenha em si esta paixo3 4.

    Art. 27. A definio das paixes daalma.

    Depois de haver considerado no que

    as paixes da alma diferem de todos osseus outros pensamentos, parece-meque podemos em geral defini-las porpercepes, ou sentimentos, ou emo-

    3 4 A hiptese do sonho infirma apenas a validadeobjetiva dos juzos sobre o mundo exterior. Eladeixa intacto o vivido pela conscincia enquantovivido.

    es da alma, que referimos particularmente a ela, e que so causadas, mantidas e fortalecidas por algummovimento dos espritos3 s .

    Art. 28. Explicao da primeira partedessa de/inio3 6.

    Podemos cham-las percepesquando nos servimos em geral dessetermo para significar todos os pensamentos que no constituem aes daalma ou vontades, mas no quando oempregamos apenas para significar

    conhecimentos evidentes; pois a experincia mostra que os mais agitadospor suas paixes no so aqueles quemelhor as conhecem, e que elas pertencem ao rol das percepes que aestreita aliana entre a alma e o corpotorna confusas e obscuras3 7. Podemostambm cham-las sentimentos, porque so recebidas na alma do mesmo

    modo que os objetos dos sentidos exteriores, e no so de outra maneira38

    conhecidos por ela; mas podemos cha-

    3 5 Definio das paixes no sentido estrito.3 6 Explicao da definio precedente do ponto devista da alma. Em que podem as paixes ser denominadas percepes (no sentido mais amplo dotermo), sentimentos (ou sensaes), emoes?3 ' No pode haver, portanto, conhecimento clarodas paixes. Lvio Teixeira observa: "Ele empregapara o conhecimento das paixes a forma gramatical do comparativo destinada a exprimir a relatividade desse conhecimento: o conhecimento melhor. . . Existe, pois, o conhecimento melhor oupior das paixes, no o conhecimento perfeitodelas". (Op. cit., pg. 152.)38 "Autrementse refere, pode-se interpretar razoavelmente, ao conhecimento pelas ideias claras e distintas, possvel para o objeto das sensaes, masno para o fenmeno misto da paixo." (Lvio Tei

    xeira, op. cit., pg. 153.) A cincia das paixes ser,portanto, um conhecimento claro e distinto de umavivncia intrinsecamente obscura e confusa. Eis porque, se Descartes quer explicar as paixes "na qualidade de fsico", isso no significa "que pretendaexplic-las unicamente pela Fsica, isto , pela fisiologia do corpo, mas que deseja consider-las segundo um mtodo racional que procura evidncias.apropriadas, todavia, natureza mesma do objeto,a qual aqui obscuridade e confuso intrnsecas".(Guroult, t. II, pg. 253.)

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    m-las melhor ainda emoes da alma,no s porque esse nome pode ser atribudo a todas as mudanas que nelasobrevm, isto , a todos os diversospensamentos que lhe ocorrem, mas

    particularmente porque, de todas asespcies de pensamentos que ela podeter, no h outros que a agitem e aabalem to fortemente como essaspaixes.

    Art. 29. Explicaes de sua outraparte.

    Acrescento que elas se relacionamparticularmente com a alma, paradistingui-las dos outros sentimentosque referimos, uns aos objetos exteriores, como os odores, os sons, as cores,e os outros ao nosso corpo, como afome, a sede, a dor. Acrescento, outrossim, que so causadas, sustentadas

    e fortalecidas por algum movimentodos espritos, a fim de distingui-las denossas vontades, que podemos denominar emoes da alma que se relacionam com ela, mas que so causadaspor ela prpria, e tambm a fim deexplicar sua derradeira e mais prximacausa, que as distingue novamente dosoutros sentimentos.

    Art. 30. Que a alma est unida atodas as partes do corpo conjuntamente3*.

    Mas, para compreender mais perfeitamente todas essas coisas, necessrio saber que a alma est verdadeira

    mente unida ao corpo todo4 0

    , e queno se pode propriamente dizer que elaesteja em qualquer de suas partes com

    3 9 Constituindo as paixes um dos aspectos dacomunicao entre o corpo e a alma, sero agoraanalisadas as modalidades desta.4 0 Primeira modalidade da unio: a alma, justamente por no ter extenso alguma, no enformaqualquer parte do corpo humano, em especial.

    excluso de outras, porque o corpo uno e de alguma forma indivisvel4 n,em virtude da disposio de seus rgos, que se relacionam de tal modouns com os outros que, quando algum

    deles retirado, isso torna o corpotodo defeituoso; e porque ela de umanatureza que no tem qualquer relaocom a extenso nem com as dimensesou outras propriedades da matria deque o corpo se compe, mas apenascom o conjunto dos seus rgas42,como transparece pelo fato de nopodermos de maneira alguma conceber

    a metade ou um tero de uma alma,nem qual extenso ocupa, e por no setornar ela menor ao se cortar qualquerparte do corpo, mas separar-se inteiramente dele quando se dissolve o conjunto de seus rgos.

    Art. 31. Que h uma pequena glndula no crebro, na qual a alma exercesuas funes mais particularmente doque nas outras partes.

    necessrio tambm saber que, embora a alma esteja unida a todo ocorpo, no obstante h nele algumaparte em que ela exerce suas funesmais particularmente do que em todasas outras43; e cr-se comumente que

    4 ' Essa indivisibilidade prpria ao organismo humano resulta de sua unio com a alma: "Nossocorpo, enquanto corpo humano, permanece sempreo mesmo nmero durante o tempo em que estunido mesma alma. E inclusive, nesse sentido, indivisvel. . .". (Carta a Mesland, citada in Gu-roult, II, pg. 181.)42 Essa penetrao da alma em lodo o corpo permite falar de uma "alma corporal" em um sentidomuito particular, que Descartes ressalta na carta de

    26 de julho a Arnauld: "Se por corporal entendemos o que pertence ao corpo, embora seja de outranatureza, a alma tambm pode ser dita corporal, namedida em que est apta a unir se ao corpo; mas sepor corporal entendemos o que participa da natureza do corpo, esse peso no mais corporal do quea nossa prpria alma".4 3 Segunda modalidade da unio: a alma deve tersua sede em um rgo que governa o movimentodos espritos animais. (Cf. Lvio Teixeira, op. cil.,pg. 154.)

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    esta parte o crebro, ou talvez o corao: o crebro, porque com ele que serelacionam os rgos dos sentidos; e ocorao, porque nele que parecesentirem-se as paixes. Mas, examinando o caso com cuidado, parece-meter reconhecido com evidncia que aparte do corpo em que a alma exerceimediatamente suas funes no demodo algum o corao, nem o crebrotodo 4 4 , mas somente a mais interior desuas partes, que certa glndula muitopequejia, situada no meio de sua substncia, e de tal modo suspensa por

    cima do conduto por onde os espritosde suas cavidades anteriores mantmcomunicao com os da posterior, queos menores movimentos que nela existem podem contribuir muito para modificar o curso desses espritos, e,reciprocamente, as menores modificaes que sobrevm ao curso dos espritos podem contribuir muito para alte

    rar os movimentos dessa glndula4 5

    .

    Art. 32. Como se conhece que essaglndula a principal sede da alma.

    A razo que me persuade de que aalma no pode ter, em todo o corpo,nenhum outro lugar, exceto essa gln

    dula, onde exerce imediatamente suasfunes que considero que as outraspartes do nosso crebro so todasduplas, assim como tempos dois olhos,

    4 4 Objetar-se- a Descartes que a gente no temcrebro em excesso para pensar. J Galeno, no DeUsu Partium, escrevia: "Crer que esse corpo (aglndula pineal) preside a passagem do esprito dar prova de ignorncia e atribuir demasiado a essa

    glndula. Se assim fosse, uma glndula desempenharia o papel e teria a dignidade de crebro". Mes-nard, que cita esse texto no artigo j mencionado(pgs. 208-209), conclui da que Descartes noconhecia Galeno, a no ser por uma obra de J. Sylvius, aparecida em 1555, onde o autor assume pordesventura, precisamente sobre este ponto, posiooposta do grande emprico.4 5 A mobilidade da glndula uma das condiesessenciais que Descartes invoca a fim de convert-laem sede da alma.

    duas mos, duas orelhas, e enfim todosos rgos de nossos sentidos externosso duplos; e que, dado que no temosseno um nico e simples pensamentode uma mesma coisa ao mesmo tempo,cumpre necessariamente que hajaalgum lugar onde as duas imagens quenos vm pelos dois olhos, onde as duasoutras impresses que recebemos deum s objeto pelos duplos rgos dosoutros sentidos, se possam reunir emuma antes que cheguem alma, a fimde que no lhe representem dois obje-tos em vez de um s. E pode-se conce

    ber facilmente que essas imagens ououtras impresses se renem nessaglndula, por intermdio dos espritosque preenchem as cavidades do crebro, mas no h qualquer outro localno corpo onde possam assim unir-se,seno depois de reunidas nessa glndul a 4 6 .

    Art. 33. Que a sede das paixes nofica no corao.

    Quanto opinio dos que pensamque a alma recebe as suas paixes nocorao, no pode ser de modo algumconsidervel, pois se funda apenas nofato de que as paixes nos fazem sentira alguma alterao 4 7; e fcil notar

    que essa alterao s sentida, comoque no corao, por intermdio de umpequeno nervo que desce do crebropara ele, assim como a dor sentidacomo que no p, por intermdio dos

    4 6 A glndula pituitria, pregada no osso esfe-nide, satisfaria essa condio, mas no dispe damobilidade da pineal. (Cartas, a Mersenne, 24 de

    dezembro de 1640.)4 7 Trata-se de uma ruptura com a tese peripatticae estica. Mme Rodis-Lewis, na sua edio do Trai-t(pg. 91), assinala um texto de 1641 onde esserompimento com a tradio atenuado: "As paixes, na medida em que pertencem ao corpo, tmcomo sede principal o corao, visto ser o principalrgo que elas alteram; mas, na medida em que afe-tam tambm a alma, aquela reside somente no crebro, pois s por meio dele que a alma pode serimediatamente tocada".

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    nervos do p, e os astros so percebidos como que no cu por intermdio desua luz e dos nervos pticos; de sorteque no mais necessrio que nossaalma exera imediatamente as suas

    funes no corao para nele sentir assuas paixes do que necessrio queela esteja no cu para nele ver osastros.

    Art. 34. Como agem a alma e o corpoum contra o outro.

    Concebamos, pois, que a alma tem asua sede principal na pequena glndulaque existe no meio do crebro, de ondeirradia para todo o resto do corpo, porintermdio dos espritos, dos nervos emesmo do sangue, que, participandodas impresses dos espritos, podemlev-los pelas artrias a todos os mem

    bros; e, lembrando-nos do que j foidito acima com respeito mquina denosso corpo, a saber, que os pequenosfiletes de nossos nervos acham-se detal modo distribudos em todas as suaspartes que, por ocasio dos diversosmovimentos a provocados pelos objetos sensveis, abrem diversamente os

    poros do crebro, o que faz com que osespritos animais contidos nessas cavidades entrem diversamente nos msculos, por meio do que podem mover osmembros de todas as diversas maneiras que esses so capazes de ser movidos, e tambm que todas as outras causas que podem mover diversamente osespritos bastam para conduzi-los adiversos msculos; juntemos aqui quea pequena glndula, que a principalsede da alma, est de tal forma suspensa entre as cavidades que contmesses espritos que pode ser movida poreles de tantos modos diversos quantasas diversidades sensveis nos objetos;

    mas que pode tambm ser diversamente movida pela alma48, a qual detal natureza que recebe em si tantasimpresses diversas, isto , que ela temtantas percepes diversas quantos

    diferentes movimentos sobrevm nessaglndula; como tambm, reciprocamente, a mquina do corpo de talforma composta que, pelo simples fatode ser essa glndula diversamente movida pela alma ou por qualquer outracausa que possa existir, impele os espritos animais que a circundam para os

    poros do crebro, que os conduzempelos nervos aos msculos, mediante oque ela os leva a mover os membros.

    Art. 35. Exemplo da maneira como asimpresses dos objetos se unem naglndula que fica no meio do crebro.

    Assim, por exemplo, se vemosalgum animal vir em nossa direo, aluz refletida de seu corpo pinta duasimagens dele, uma em cada um de nossos olhos, e essas duas imagens formam duas outras, por intermdio dosnervos pticos, na superfcie interiordo crebro defronte s suas concavida

    des; da, em seguida, por intermdiodos espritos que enchem suas cavidades, essas imagens irradiam de talsorte para a pequena glndula envolvida por esses espritos, que o movimento componente de cada ponto deuma das imagens tende para o mesmoponto da glndula para o qual tende o

    movimento que forma o ponto da48 a terceira causa da diversidade no curso dosespritos que procedem do crebro (cf. arts. 12 a16). Cabe notar que a correspondncia entre asimpresses da alma e os movimentos da glndulaconstitui uma descrio e de maneira alguma umaexplicao da unio (cf. Lvio Teixeira, op. cit., pg.155).

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    outra imagem, a qual representa amesma parte desse animal, por meiodo que as duas imagens existentes nocrebro compem apenas uma nicana glndula, que, agindo imediata

    mente contra a alma, lhe faz ver a figura desse animal.

    Art. 36. Exemplo da maneira como aspaixes so excitadas na alma.

    E, alm disso, se essa figura muitoestranha e muito apavorante, isto , se

    ela tem muita relao com as coisasque foram anteriormente nocivas aocorpo, isto excita na alma a paixo domedo e, em seguida, a da ousadia, ouento a do temor e a do terror, conforme o diverso temperamento docorpo ou a fora da alma, e conformenos tenhamos precedentemente garan

    tido pela defesa ou pela fuga contra ascoisas prejudiciais com as quais serelaciona a presente impresso; poisisso dispe o crebro de tal modo, emcertos homens, que os espritos refleti-dos da imagem assim formada na glndula seguem, da, parte para os nervosque servem para voltar as costas e

    mexer as pernas para a fuga, e partepara os que alargam ou encolhem detal modo os orifcios do corao, ouento que agitam de tal maneira as outras partes de onde o sangue lhe enviado, que este sangue, rarefazendo-se a de forma diferente da comum,envia espritos ao crebro que so pr

    prios para manter e fortificar a paixodo medo, isto , que so prprios paramanter abertos ou ento abrir de novoos poros do crebro que os conduzemaos mesmos nervos; pois, pelo simplesfato de esses espritos entrarem nessesporos, excitam um movimento particu

    lar nessa glndula, o qual institudopela natureza para fazer sentir almaessa paixo, e, como esses poros serelacionam principalmente com os pequenos nervos que servem para apertar

    ou alargar os orifcios do corao, issofaz que a alma a sinta principalmentecomo que no corao 4 9 .

    Art. 37. Como todas parecem causadas por qualquer movimento dos esp-ritos.

    E como acontece coisa semelhante49

    O mecanismo aqui descrito muito complexo.De uma parte, verifica-se um condicionamento: aligao "instituda pela natureza" entre a aberturade certos orifcios ventriculares e a paixo sentidapela alma. De outra parle, verifica-se um auto-refor-amento circular (feedback): '"Os espritos refleti-dos pela imagem assim formada sobre a glndula",quer por o direta sobre o corao, quer por umavariao no regime do sangue, modificam o regimedos espritos animais que seguem do corao para ocrebro, de modo que a alma, sentindo a paixo,torna a lanar os espritos no mesmo circuito. O que

    corresponde ao seguinte esquema:crebro

    glnduiapineal

    variao do regimesanguneo devido hematopoese visceral

    aco sobreo corao

    \

    \

    variao dovolume cardaco

    vanacao naabertura dosorifcioscardacos

    *variao na produo dosespritos e alimentaoanormal da glndula

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    com todas as outras paixes, a saber,que so principalmente causadas pelosespritos que esto contidos nas cavidades do crebro, enquanto tomam seucurso para os nervos que servem para

    alargar ou estreitar os orifcios docorao, ou para impelir diversamenteem sua direo o sangue que se encontra nas outras partes, ou, de qualqueroutra maneira que seja, para sustentara mesma paixo, pode-se claramentecompreender, de tudo isso, por queafirmei acima, ao defini-las, que socausadas por algum movimento particular dos espritos 50 .

    Art. 38. Exemplo dos movimentos docorpo que acompanham as paixes eno dependem da alma.

    De resto, assim como o curso seguido por essesespritos para os nervos docorao basta para imprimir movi

    mento glndula pela qual o medo posto na alma, do mesmo modo, pelosimples fato de alguns espritos iremao mesmo tempo para os nervos queservem para mexer as pernas na fuga,causam eles um outro movimento namesma glndula por meio do qual aalma sente e percebe tal fuga, quedessa forma pode ser excitada no

    corpo pela simples disposio dos rgos e sem que a alma para tantocontribua.

    Art. 39. Como a mesma causa podeexcitar diversas paixes em diversoshomens.

    A mesma impresso que exerce

    50 Comentrio da expresso algum movimento dosespritos (art. 27 e 29). O que significa "movimentoparticulardos espritos"? 1." que esse movimentodos espritos no comumente fortuito; 2. que no produzido pela variao da figura do movimento(como nas sensaes ou "sentimentos"), mas pelavariao da quantidade de movimento com respeito normal. Do ponto de vista psicofisiolgico, pode-se definir a "paixo" como emoo da alma ligadaa um automatismo circular de auto-reforamentocapaz de mltiplos condicionamentos.

    sobre a glndula a presena de um ob-jeto pavoroso, e que causa o medo emalguns homens, pode excitar, em outros, a coragem e a audcia, isto porque nem todos os crebros esto dis

    postos da mesma maneira, e o mesmomovimento da glndula que em algunsexcita o medo faz com que, em outros,os espritos entrem nos poros do crebro que os conduzem, parte aos nervosque servem para mexer as mos na defesa e parte nos que agitam e impelemo sangue ao corao, da maneirarequerida a produzir espritos prpriospara continuar esta defesa e manter avontade de prossegui-la51.

    Art. 40. Qual o principal efeito daspaixes.

    Pois cumpre notar que o principalefeito de todas as paixes nos homens

    que incitam e dispem a sua alma aquerer as coisas para as quais elas lhespreparam os corpos; de sorte que osentimento de medo incita a fugir, o daaudcia a querer combater e assim pordiante52.

    Art. 41. Qual o poder da alma comrespeito ao corpo.

    Mas a vontade , por natureza, de5 ' Tal constatao, comenta Lvio Teixeira, "mostra o carter aleatrio e no cientfico das paixes,mas permite ao mesmo tempo compreender por queo mesmo fato produz efeitos diferentes: que os crebros no so dispostos do mesmo modo. . . Dessemodo, ainda que no se saiba como o corpo e aalma se comunicam, pode-se explicar por que omesmo fato produz efeitos diferentes". (Op. cit.,

    pg. 156.)62 A "paixo" aparece, assim, como testemunhoexemplar da unio ntima entre alma e corpo. Namedida em que produzem esta acomodao espontnea que "as paixes so todas boas" (art. 211).Cf. a definio das paixes dada no Tratado doHomem: "Movimentos. . . que servem para disporo corao e o fgado, bem como todos os outros rgos dos quais pode depender o temperamento dosangue e em seguida o dos espritos, de tal sorte queos espritos que nascem ento estejam aptos a causar os movimentos exteriores que devem seguir".

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    tal modo livre que nunca pode sercompelida; e, das duas espcies depensamentos que distingui na alma,das quais uns so suas aes, isto ,suas vontades, e os outros as suas pai

    xes, tomando-se esta palavra em suasignificao mais geral, que compreende todas as espcies de percepes, os primeiros esto absolutamenteem seu poder e s indiretamente ocorpo pode modific-los, assim como,ao contrrio, os ltimos dependemabsolutamente das aes que os produzem, e a alma s pode modific-los

    indiretamente, exceto quando ela prpria sua causa53 . E toda a ao daalma consiste em que, simplesmentepor querer alguma coisa, leva a pequena glndula, qual est estreitamenteunida, a mover-se da maneira necessria a fim de produzir o efeito que serelaciona com esta vontade.

    Art. 42. Como encontramos em nossamemria as coisas de que nos queremos lembrar.

    Assim, quando a alma quer lem-brar-se de algo, essa vontade faz comque a glndula, inclinando-se sucessivamente para diversos lados, impila osespritos para diversos lugares do cre

    bro, at que encontrem aquele ondeesto os traos deixados pelo objeto deque queremos nos lembrar; pois essestraos no so outra coisa seno osporos do crebro, por onde os espritostomaram anteriormente seu curso devido presena desse objeto, e adquiriram, assim, maior facilidade que osoutros, para serem de novo abertos da

    mesma maneira pelos espritos quepara eles se dirigem; de sorte que taisespritos, encontrando esses poros, entram neles mais facilmente do que nos

    53 "Se existe algo absolutamente em nosso poder,so os nossos pensamentos, a saber, aqueles queprovm da vontade e do livre arbtrio." (Cartas, aMersenne, 3 de dezembro de 1640.)

    outros, excitando, por esse meio, ummovimento particular na glndula, querepresenta alma o mesmo objeto elhe faz saber que se trata daquele doqual queria lembrar-se.

    Art. 43. Como a alma pode imaginar,estar atenta e mover o corpo.

    Assim, quando se quer imaginaralgo que nunca se viu, essa vontadetem o poder de levar a glndula amover-se da maneira necessria paraimpelir os espritos aos poros do cre

    bro por cuja abertura essa coisa podeser representada; assim, quando se pretende fixar a ateno para considerarpor algum tempo um mesmo objeto, talvontade retm a glndula, durante essetempo, inclinada para um mesmo lado;assim, enfim, quando se quer andar oumover o prprio corpo de algumamaneira, essa vontade faz com que a

    glndula impila os espritos para osmsculos que servem para tal efeito.

    Art. 44. Que cada vontade naturalmente unida a algum movimento daglndula; mas que, por engenho ou porhbito, se pode uni-la a outros.

    Todavia, nem sempre a vontade deprovocar em ns algum movimento oualgum outro efeito que pode levar-nosa excit-lo; mas isso muda conforme anatureza ou o hbito tenham diversamente unido cada movimento da glndula a cada pensamento5 4 . Assim, por

    5 4 Nossa vontade no pode excitar quaisquer

    movimentos em ns. Certos movimentos, reflexosou mecanismos adquiridos s podem ser executadospor ocasio de outros movimentos voluntrios. Aalma ignora como se efetuam esses movimentos queso executveis apenas mediatamente: "Esta inclinao da vontade seguida pelo curso dos espritosnos nervos, e de tudo o que requerido para o movimento, o que ocorre por causa da disposio conveniente do corpo, de que a alma pode realmente noter de modo algum conhecimento..." (Cartas, aArnauld, 29 de julho de 1648.)

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    exemplo, se se quer dispor os olhospara olhar um objeto muito distanciado, essa vontade faz com que a pupila se dilate; e se se quer disp-los aolhar um objeto muito prximo, essavontade faz com que a pupila se contraia; mas se se pensa apenas em alargar a pupila, em vo teremos tal vontade, pois nem por isso conseguiremosalarg-la, j que a natureza no uniu omovimento da glndula que serve paraimpelir os espritos ao nervo ptico damaneira necessria a dilatar ou a con

    trair a pupila com a vontade de dilatarou contrair, mas antes com a de olharobjetos afastados ou prximos. Equando, ao falar, pensamos apenas nosentido do que queremos dizer, isto fazcom que mexamos a lngua e os lbiosmuito mais rapidamente e muito melhor do que se pensssemos em mex-los de todas as formas necessrias para

    proferir as mesmas palavras, dado queo hbito que adquirimos de aprender afalar fez com que juntssemos a aoda alma, que, por intermdio da glndula, pode mover a lngua e os lbios,mais com a significao das palavrasque resultam desses movimentos doque com os prprios movimentos.

    Art. 45. Qual o poder da alma comrespeito s suas paixes 5 s .

    Nossas paixes tambm no podemser diretamente excitadas nem suprimidas pela ao de nossa vontade, maspodem s-lo, indiretamente, pela representao das coisas que costumamestar unidas s paixes que queremoster, e que so contrrias s que quere-

    5 5 A possibilidade de ligar artificialmente certosautomatismos a certos atos voluntrios constituira base de um tratamento racional das paixes:pode-se modificar a paixo mudando a representao da coisa a ela unida.

    mos rejeitar. Assim, para excitarmosem ns a audcia e suprimirmos omedo, no basta ter a vontade de faz-lo, mas preciso aplicar-nos a considerar as razes, os objetos ou os exem

    plos que persuadem de que o perigono grande; de que h sempre maissegurana na defesa do que na fuga; deque teremos a glria e a alegria dehavermos vencido, ao passo que nopodemos esperar da fuga seno o pesare a vergonha de termos fugido, e coisassemelhantes.

    Art. 46. Qual a razo que impede aalma de dispor inteiramente de suaspaixes.

    H uma razo particular que impede a alma de poder alterar ou estancarrapidamente suas paixes, a qual medeu motivo de pr mais acima, em sua

    definio, que elas no so apenas causadas, mas tambm mantidas e fortalecidas por algum movimento particulardos espritos5 6 . Esta razo que elasso quase todas acompanhadas de alguma emoo que se produz no corao, e, por conseguinte, tambm emtodo o sangue e nos espritos, de modoque, enquanto essa emoo no cessar,

    elas continuam presentes em nossopensamento da mesma maneira que osobjetos sensveis a permanecem presentes, enquanto agem contra os rgos de nossos sentidos. E como aalma, tornando-se muito atenta a qualquer outra coisa, pode impedir-se deouvir um pequeno rudo ou de sentiruma pequena dor, mas no pode impe

    dir-se, do mesmo modo, de ouvir o trovo ou de sentir o fogo que queima a

    6 6 A vontade no pode vencer o automatismo circular que est unido paixo; neste caso. ela spode reter os gestos aos quais a paixo me dispe.Neste "esforo ltimo" Lvio Teixeira v "o ltimoreduto da vontade". (Op. ci., pg. 158.)

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    AS PAIXES DA ALMA 245

    mo, assim pode sobrepujar facilmenteas paixes menores, mas no as maisviolentas e as mais fortes, a no ser depois que se apaziguou a emoo dosangue e dos espritos. O mximo que

    pode fazer a vontade, enquanto essaemoo est em vigor, no consentirem seus efeitos e reter muitos dosmovimentos aos quais ela dispe ocorpo. Por exemplo, se a clera fazlevantar a mo para bater, a vontadepode comumente ret-la; se o medo incita as pessoas a fugir, a vontade podedet-las, e assim por diante.

    Art. 47. Em que consistem os combates que se costuma imaginar entre aparte inferior e a superior da alma.

    E to-somente na repugnncia queexiste entre os movimentos que ocorpo por seus espritos e a alma por

    sua vontade tendem a excitar aomesmo tempo na glndula que consistem todos os combates que se costuma imaginar entre a parte inferior daalma, denominada sensitiva, e a superior, que racional, ou ento entre osapetites naturais e a vontade; pois noh em ns seno uma alma, e estaalma no tem em si nenhuma diversi

    dade de partes5 7 : a mesma que sensitiva racional e todos os seus apetitesso suas vontades. O erro que se cometeu em faz-la desempenhar diversaspersonagens que so comumente contrrias umas s outras provm apenasde no se haver distinguido bem suasfunes das do corpo, ao qual unicamente se deve atribuir tudo quanto

    5 7 A representao precedente da relao entre avontade e as paixes apresenta a vantagem de confirmar a unidade da alma contra os que queremdividi-la em faculdades; a doutrina dos espritosanimais confirma que o irracional no homem no imputvel s almas inferiores (vegetativa e sensitiva), mas ao corpo.

    pode ser advertido em ns que repugnea nossa razo; de modo que no hnisso outro combate exceto que, comoa pequena glndula que fica no meiodo crebro pode ser impelida, de um

    lado, pela alma, e, de outro, pelos espritos animais, que so apenas corpos,como j disse acima, acontece s vezesque esses dois impulsos sejam contrrios e que o mais forte impea o efeitodo outro. Ora, podemos distinguirduas espcies de movimentos excitadospelos espritos na glndula: uns representam alma os objetos que movem

    os sentidos, ou as impresses que seencontram no crebro e no efetuamqualquer esforo sobre a vontade; outros efetuam algum esforo sobre ela, asaber, os que causam as paixes ou osmovimentos dos corpos que as acompanham; e, quanto aos primeiros, embora impeam amide as aes da

    alma, ou sejam impedidos por ela,todavia, por no serem diretamentecontrrios, no se verifica neles nenhum combate. S os observamosentre os ltimos e as vontades que lhesrepugnam: por exemplo, entre o esforo com que os espritos impelem aglndula a causar na alma o desejo dealguma coisa e aquele com que a alma

    a repele, pela vontade que tem de fugirda mesma coisa; e o que faz principalmente surgir esse combate que, notendo a vontade o poder de excitardiretamente as paixes, como j foidito, obrigada a usar de engenho eaplicar-se a considerar sucessivamentediversas coisas, das quais, se acontece

    que uma tenha a fora de modificarpor um momento o curso dos espritos,pode acontecer que a seguinte no atenha e que os espritos retomem ocurso logo depois, porque a disposioprecedente nos nervos, no corao e nosangue no mudou, o que leva a alma a

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    246 DESCARTES

    sentir-se impelida quase ao mesmotempo a desejar e a no desejar umamesma coisa; e da que se teve ocasio de imaginar nela duas potnciasque se combatem. Todavia, ainda se

    pode conceber algum combate, pelofato de muitas vezes a mesma causaque excita na alma alguma paixoexcitar tambm certos movimentos nocorpo, para os quais a alma em nadacontribui, e os quais detm ou procuradeter to logo os apercebe, como sentimos quando aquilo que excita o medofaz tambm com que os espritos en

    trem nos msculos que servem paramexer as pernas na fuga, e com quesejam sustados pela vontade que temosde ser audazes.

    Art. 48. Em que se conhece a fora oua fraqueza das almas, e qual o maldas mais fracas5 8.

    Ora, pela sorte desses combatesque cada qual pode conhecer a foraou a fraqueza de sua alma; pois aqueles em quem a vontade pode, naturalmente, com maior facilidade, vencer aspaixes e sustar os movimentos docorpo que os acompanham tm, semdvida, as almas mais fortes; mas hos que no podem comprovar a pr

    pria fora porque nunca levam a combate a sua vontade juntamente comsuas armas prprias, mas apenas comas que lhes fornecem algumas paixespara resistir a algumas outras. O quedenomino as armas prprias so juzosfirmes e determinados sobre o conhecimento do bem e do mal, consoante osquais ela resolveu conduzir as aes de

    sua vida; e as almas mais fracas detodas so aquelas cuja vontade no sedecide assim a seguir certos juzos,

    5 8 Outra vantagem: a possibilidade de distinguir asatitudes com respeito s paixes. As almas fortesdominam suas paixes por meio da s vontadeesclarecida. As almas mais fracas abandonam suavontade como presa das paixes contrrias que asagitam.

    mas se deixa arrastar continuamentepelas paixes presentes, as quais,sendo muitas vezes contrrias umas soutras, a puxam, ora umas, ora outras,para seu partido e, empregando-a para

    combater contra si mesma, pem aalma no estado mais deplorvel possvel. Assim, quando o medo representaa morte como um extremo mal, que spode ser evitado pela fuga, se a ambio, de outro lado, representa a infmia dessa fuga como um mal pior quea morte, essas duas paixes agitamdiversamente a vontade, que, obede

    cendo ora a uma, ora a outra, se opecontinuamente a si prpria, e assimtorna a alma escrava e infeliz.

    Art. 49. Que a fora da alma nobasta sem o conhecimento da verdade.

    Na verdade, h pouqussimos ho

    mens to fracos e irresolutos que nadaqueiram seno o que suas paixes lhesditam. A maioria tem juzos determinados, segundo os quais regula partede suas aes; e, embora muitas vezestais juzos sejam falsos e fundadosmesmo em algumas paixes pelasquais a vontade se deixou anteriormente vencer ou seduzir, todavia,

    como ela continua seguindo-os quandoa paixo que os causou est ausente,podemos consider-los como suasarmas prprias, e pensar que as almasso mais fortes ou mais fracas em virtude de poderem seguir mais ou menosesses juzos e resistir s paixes presentes que lhes so contrrias59. Mash, entretanto, grande diferena entreas resolues que procedem de algumafalsa opinio e as que se apoiam to-

    5 9 Cf. terceira parte do Discurso: "Quando noest em nosso poder discernir as opinies maisverdadeiras, devemos seguir as mais provveis" (segunda mxima da moral "provisria"). Ora, ver-se- que, no art. 170, Descartes prefere os juzos "certos e determinados", embora errneos, irre soluo.

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    AS PAIXES DA ALMA 247

    somente no conhecimento da verdade;visto que, se seguirmos as ltimas,estamos certos de no ter jamais doque nos lamentar nem arrepender, aopasso que o teremos sempre, se seguir

    mos as primeiras, quando lhes descobrimos o erro6 0 .

    Art. 50. Que no existe alma to fracaque no possa, sendo bem conduzida,adquirir poder absoluto sobre as suaspaixes.

    E til aqui lembrar que, como jfoi dito mais acima, embora cadamovimento da glndula parea ter sidounido pela natureza a cada um de nossos pensamentos desde o comeo denossa vida, possvel todavia junt-losa outros por hbito, assim como aexperincia mostra nas palavras queexcitam movimentos na glndula, osquais, segundo a instituio da natureza, representam alma apenas os seussons, quando proferidas pela voz, ou afigura de suas letras, quando escritas, eque, no obstante, pelo hbito adquirido em pensar no que significamquando ouvimos o som delas, ouento, quando vemos suas letras, costumam fazer conceber mais essa significao do que a figura de suas letras,ou ento o som de suas slabas. tiltambm saber que, embora os movimentos, tanto da glndula como dosespritos e do crebro, que representam alma certos objetos sejam naturalmente unidos aos que provocam nelacertas paixes, podem todavia, por hbito, ser separados destes e unidos aoutros muito diferentes, e, mesmo, que

    esse hbito pode ser adquirido por umanica ao e no requer longa prtica.Assim, quando encontramos inopinadamente uma coisa muito suja num

    6 0 Unicamente a vontade de fazer o melhor possvel no basta, portanto, se ela no tende ao menos aser esclarecida pela razo. Ainda aqui verifica-sequo distanciado est Descartes do voluntarismocego.

    alimento que comemos com apetite, asurpresa do achado pode mudar de talforma a disposio do crebro que, emseguida, no possamos mais ver essealimento exceto com horror, ao passo

    que at ento o comamos com prazer. pode-se notar a mesma coisa nosanimais; pois, embora no possuam amenor razo, nem talvez61 nenhumpensamento, todos os movimentos dosespritos e da glndula que provocamem ns as paixes no deixam de existir neles tambm e servem-lhes paramanter e fortalecer, no como em ns,

    as paixes62

    , mas os movimentos dosnervos e dos msculos que costumamacompanh-las. Assim, quando umco v uma perdiz, naturalmente levado a correr em sua direo, e, quando ouve um tiro de um fuzil, tal rudo oincita naturalmente a fugir; mas, noobstante, adestram-se comumente detal maneira os ces perdigueiros que a

    vista de uma perdiz os leva a deter-se eo rudo que ouvem depois, quandoalgum atira perdiz, os leva a correrpara ela. Ora, essas coisas so teis desaber para encorajar cada um de ns aaprender a observar suas paixes; pois,dado que se pode, com um pouco deengenho, mudar os movimentos do crebro nos animais desprovidos derazo, evidente que se pode faz-lomelhor ainda nos homens, e quemesmo aqueles que possuem as almasmais fracas poderiam adquirir umimprio absoluto sobre todas as suaspaixes, se empregassem bastante engenho em dom-las e conduzi-las.

    61 Por que "talvez"? Sem dvida, como nota Mme

    Rodis-Lewis, porque a hiptese dos animais-m-quinas "beneficia-se somente do mximo de probabilidade".62 Os animais no tm paixes, visto que a paixo um fenmeno especificamente psicofsico: eles spossuem reflexos. Mas, como se podem condicionaros reflexos, a fortiori poder-se-, por meio da razo,modificar o efeito das paixes. Cumpre observarque no se trata aqui de uma teraputica das paixes: estas no so de modo algum fenmenos patolgicos. Cf. Lvio Teixeira, op. cit., pg. 219.

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    SEGUNDA PARTE

    DO NMERO E DA ORDEM DAS PAIXES

    E A EXPLICAO DAS SEIS PRIMITIVAS"

    63 PI ano desta parte:Arts. 51-52: pesquisa de um critrio para a enumerao das paixes;

    53-69: enumerao das paixes;70-137: estudo das paixes primitivas;138-148: concluses morais.

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    Art. 51. Quais as primeiras causas daspaixes.

    J se sabe, pelo que se disse maisacima6 4, que a ltima e mais prximacausa das paixes da alma no outraseno a agitao com que os espritosmovem a pequena glndula situada nomeio do crebro. Mas isso no bastapara podermos distingui-las umas dasoutras; mister procurar suas fontes eexaminar suas primeiras causas; ora,

    ainda que possam algumas vezes sercausadas pela ao da alma, que sedetermina a conceber estes ou aquelesobjetos, e tambm pelo exclusivo temperamento do corpo ou pelas impresses que se encontram fortuitamenteno crebro, como acontece quando nossentimos tristes ou alegres sem quepossamos dizer o motivo6 5, parece, noentanto, pelo que foi dito, que todaselas podem tambm ser excitadas pelosobjetos que afetam os sentidos e quetais objetos so suas causas mais comuns e principais; da se segue que,para encontrar todas, basta considerartodos os efeitos desses objetos 6 6.

    6 4 No art. 34.6 5 Distino das trs causas possveis da agitaodos espritos.6 6 No so as diferenas entre os objetos, masentre os efeitos que podem produzir em ns que serviro de base para a classificao. "Descartes dizque se devem considerar todos os efeitos dos objetosexteriores sobre ns, o que entendemos incluir tantoo estudo dos fenmenos fisiolgicos como dospsicolgicos, que realmente o que ele vai fazer."(Lvio Teixeira, op cit., pg. 162.)

    Art. 52. Qual o seu emprego e comopodemos enumer-las.

    Observo, alm disso, que os objetosque movem os nossos sentidos noprovocam em ns diversas paixes devido a todas as diversidades que existem neles, mas somente devido sdiversas formas pelas quais nos podemprejudicar ou beneficiar, ou ento, emgeral, ser importantes; e que o empregode todas as paixes consiste apenas no

    fato de disporem a alma a querer coisas que a natureza dita serem teis ans, e a persistir nessa vontade, assimcomo a mesma agitao dos espritosque costuma caus-las dispe o corpoaos movimentos que servem execuo dessas coisas; eis por que, a fim deenumer-las, cumpre apenas examinar,por ordem, de quantas maneiras dife

    rentes que nos importam 6 7 podem osnossos sentidos ser movidos por seusobjetos; e farei aqui a enumerao de

    6 ' " . . . dita serem teis a ns": sobre o alcancedesta doutrina, cf. Col. com Burman. " possvelque, se um mdico permitisse a seus doentes os alimentos e as bebidas que estes reclamam amide, asade deles se restabelecesse bem melhor do quecom essas drogas que do n usea . . . em tais casos,

    a natureza chega a restabelecer-se sozinha: ela temperfeita conscincia, interiormente, de seu estado, eo conhece bem melhor que um mdico, que s v oexterior." " . . . que nos importam": palavras essenciais; segundo Lvio Teixeira (op. cit., pg. 164) eGuroult (op. cit., II, pg. 253), atestam que no setratar de uma notao estritamente fisiolgica daspaixes ( o programa que Mesnard atribui aDescartes), mas que a ordem da enumerao obedecer ao critrio da prtica e da conveninciabiolgicas.

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    252 DESCARTES

    todas as principais paixes, segundo aordem pela qual podem ser encontradas.

    A ORDEM E A ENUMERAODAS PAIXES

    Art. 53. A admirao.

    Quando o primeiro contato comalgum objeto nos surpreende, e quandons o julgamos novo, ou muito dife

    rente do que at ento conhecamos oudo que supnhamos que deveria ser,isso nos leva a admir-lo e a nosespantarmos com ele; e, como issopode acontecer antes de sabermos dealgum modo se esse objeto nos conveniente ou no 68 , parece-me que aadmirao a primeira de todas aspaixes; e ela no tem contrrio, porquanto, se o objeto que se apresentanada tem em si que nos surpreenda,no somos de maneira nenhuma afeta-dos por ele e ns o consideramos sempaixo.

    Art. 54. A estima ou o desprezo, agenerosidade ou o orgulho, e a humil

    dade ou a baixeza.

    A admirao est unida a estima ouo desprezo, conforme seja a grandezade um objeto ou sua pequenez que

    68 Frase que proporciona a Mesnard o ensejo parauma resposta objeo anterior: como compreender esta frase, se a ordem da enumerao ada convenincia biolgica? Por que no situou Descartes em primeiro lugar as paixes em que o sangue desempenha papel considervel (como a "alegria", que ele denomina "a primeira das paixes" nacarta a Chanut, de 1." de fevereiro de 1647)? MmeRodis-Lewis replica: "Isso no significa que aadmirao no tenha nenhuma importncia vital".(Descartes, Ed. Minuit, pgs. 208-35.) O centro dodebate reside na concepo da "unio-da-alma-com-o-corpo": Guroult no a substantivou emexcesso? E no ter ele concedido demasiadaimportncia ao "biolgico" em Descartes?

    admiremos. E podemos assim nos estimar ou nos desprezar a ns prprios;da provm as paixes e, em seguida,os hbitos69 de magnanimidade ou deorgulho e de humildade ou de baixeza.

    Art. 55. A venerao e o desdm.

    Mas, quando estimamos ou desprezamos outros objetos que consideramos como causas livres, capazes defazer o bem ou o mal, da estima procede a venerao, e do simples desprezo,o desdm.

    Art. 56. O amor e o dio.

    Ora, todas as paixes precedentespodem ser excitadas em ns sem quepercebamos de modo algum se o objeto que os provoca bom ou mau 7 0 .Mas, quando uma coisa se nos apre

    senta como boa em relao a ns, isto, como nos sendo conveniente, issonos leva a ter amor por ela; e, quandose nos apresenta como m ou nociva,isso nos incita ao dio.

    Art. 57. O desejo.

    Da mesma considerao do bem edo mal nascem todas as outras paixes; mas, a fim de coloc-las por

    69 Cf. Carias, a Elisabeth, de 15 de setembro de1645: "Tem-se razo de dizer na Escola que as virtudes so hbitos". "Os antigos denominavam habitus qualidades de um gnero parte, que so essencialmente disposies estveis que aperfeioam nalinha de sua natureza o sujeito em que se acham. Asade, a beleza, so hbitos do corpo. . . outros hbitos tm como sujeito as faculdades da alma: taiscomo as virtudes intelectuais e morais. Adquirimosesta ltima espcie de hbito atravs do exerccio edo costume; mas nem por isso se deve confundir ohabitus com o hbito na acepo moderna dotermo, isto , com o vezo mecnico e a rotina."(Maritain, ArtetScolastique, pg. 18.)

    70 So, portanto, todas derivadas da admirao.Agora, as paixes que vo ser descritas sero todasbaseadas na representao do bem e do mal "comrespeito a ns".

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    AS PAIXES DA ALMA 253

    ordem, distingo os tempos71 e, considerando que elas nos levam a olhar ofuturo muito mais do que o presente,ou o passado, comeo pelo desejo.Pois, no somente quando se deseja

    adquirir um bem que ainda no se possui, ou evitar um mal que se julga passvel de sobrevir, mas tambm quandose deseja apenas a conservao de umbem ou a ausncia de um mal, que tudo aquilo a que essa paixo podeestender-se, evidente que ela encarasempre o futuro.

    Art. 58. A esperana, o temor, ocime, a segurana e o desespero.

    Basta pensar que a aquisio de umbem ou a fuga de um mal possvelpara sermos incitados a desej-la. Mas,quando consideramos, alm disso, seh muita ou pouca probabilidade de se

    obter o que se deseja, aquilo que nosrepresenta haver muita excita em ns aesperana, e aquilo que nos representahaver pouca excita o temor, de que ocime constitui uma espcie. Quando aesperana extrema, muda de naturezae chama-se segurana ou confiana,assim como, ao contrrio, o extremotemor torna-se desespero.

    Art. 59. A irresoluo, a coragem, aousadia, a emulao, a covardia e opavor.

    E podemos assim esperar e temer,ainda que a realizao do que aguardamos no dependa de modo algum de

    ns; mas, quando nos representadocomo dependente, pode haver dificuldade na escolha dos meios ou na execuo. Da primeira deriva a irresolu-

    71 Outro critrio: a "distino dos tempos". Nose trata de uma deduo a priori das paixes, comoem Spinoza, "mas de um esforo como que externo natureza profunda das paixes". (Lvio Teixeira,op. cit., pg. 166.)

    o, que nos dispe a deliberar e tomarconselho. ltima ope-se a coragemou a ousadia, de que a emulao constitui uma espcie. E a covardia contrria coragem, tal como o medo ou

    o pavor ousadia.

    Art. 60. O remorso.

    E, se estamos determinados a alguma ao, antes que seja suprimida airresoluo, isso engendra o remorsode conscincia, o qual no considera o

    tempo vindouro, como as paixesprecedentes, mas o presente ou opassado.

    Art. 61. A alegria e a tristeza.

    E a considerao do bem presenteexcita em ns a alegria, a do mal, atristeza, quando um bem ou um mal

    que nos representado como nosso.

    Art. 62. A zombaria, a inveja, a piedade.

    Mas, quando nos representadocomo pertencente a outros homens,podemos consider-los dignos ou indignos disso; e, quando os consideramos dignos, isso no provoca em nsoutra paixo alm da alegria, postoque para ns algum bem ver que ascoisas acontecem como devem. Hapenas a diferena de que a alegriaprocedente do bem sria, ao passoque a procedente do mal acompanhada de riso e zombaria. Mas, se ns

    os considerarmos indignos deles, obem excita a inveja, e o mal, a piedade,que so espcies de tristeza, E deve-senotar que as mesmas paixes relacionadas aos bens ou aos males presentespodem amide referir-se aos que estopor vir, enquanto a opinio que se temde que ho de advir os representacomo presentes.

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    Art. 63. A satisfao de si mesmo e oarrependimento.

    Podemos tambm considerar a

    causa do bem ou do mal, tanto presente como passado. E o bem que foifeito por ns mesmos nos d uma satisfao interior, que a mais doce detodas as paixes, ao passo que o malprovoca o arrependimento, que amais amarga.

    Art. 64. O favor e o reconhecimento.

    Mas o bem praticado por outros causa de que os tenhamos em favor,ainda que no seja feito a ns; e, quando o , ao favor juntamos o reconhecimento.

    Art. 65. A indignao e a clera.

    Do mesmo modo, o mal praticadopor outros, no se relacionando a ns,faz somente com que desperte a nossaindignao para com eles; e, quando serelaciona conosco, suscita tambm aclera.

    Art. 66. A glria e a vergonha.

    Alm disso, o bem que existe ouexistiu em ns, quando relacionadocom a opinio que os outros podem tera seu respeito, excita em ns a glria, eo mal, a vergonha.

    Art. 67. Ofastio, o pesar e a alegria.

    E s vezes a durao do bem provoca o tdio ou o fastio, ao passo que ado mal diminui a tristeza. Enfim, dobem passado resulta o pesar, que uma espcie de tristeza, e do mal passado resulta o jbilo, que uma espcie de alegria.

    Art. 68. Por que essa enumerao daspaixes diferente da comumenteaceita.

    Eis a ordem que me parece melhor

    para enumerar as paixes. Sei muitobem que nisso me afasto da opinio detodos os que at agora escreveramsobre elas, mas no o fao sem granderazo. Pois os outros tiram suasenumeraes do fato de distinguiremna parte sensitiva da alma dois apetites, que chamam um concupiscvel e ooutro irascvel72. E, como no conhe

    o na alma nenhuma distino de partes, o que j disse acima, isto no meparece significar outra coisa seno queela tem duas faculdades, uma de desejar e a outra de se irritar; e, posto queela tem da mesma forma as faculdadesde admirar, amar, esperar, temer e,assim, de receber em si cada uma dasoutras paixes:, ou de praticar as aes

    a que essas paixes a impelem, novejo por que quiseram relacionar todascom a concupiscncia ou a clera.Alm do que, tal enumerao nocompreende todas as principais paixes, como creio que esta o faz. Faloapenas das principais, porque se poderiam ainda distinguir muitas outrasmais particulares, pois seu nmero

    indefinido.

    Art. 69. Que h somente seis paixesprimitivas7 3.

    Mas o nmero das que so simples e72 As obras que tratam das paixes, numerosas nosculo XVI, respeitavam ainda quase todas a diviso escolstica dos apetites entre o concupiscvel e

    o irascvel (proveniente de Plato, cf. Repblica,436 a 441 c). No concupiscvel a alma sofre apenasa fora de atrao ou de repulso do bem e do mal;no irascvel, ela tende a enfrentar a dificuldade. Adistino entre a alma e o corpo torna caduca estadiviso que Descartes julga arbitrria.73 A enumerao de Descartes superior, pensaele, pelo fato de permitir distinguir as paixes primitivas. Mas Descartes no nos informa segundo qualcritrio se efetua esta distino.

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    AS PAIXES DA ALMA 255

    primitivas no muito grande. Pois,passando em revista todas as que enumerei, pode-se facilmente notar que hapenas seis que so tais, a saber: aadmirao, o amor, o dio, o desejo,

    alegria e a tristeza; e todas as outrascompem-se de algumas dessas seis,ou ento so suas espcies7 4 . Por isso,para que sua multido no embaracenossos leitores, tratarei aqui separadamente das seis primitivas; e, em seguida, mostrarei de que forma todas asoutras tiram da sua origem.

    Art. 70. Da admirao; sua definioe causa.

    A admirao uma sbita surpresada alma, que a leva a considerar comateno os objetos que lhe parecem

    raros e extraordinrios. Assim, causada primeiramente pela impressoque se tem no crebro, que representa oobjeto como raro e, por conseguinte,digno de ser muito considerado; emseguida, pelo movimento dos espritos,que so dispostos por essa impresso atender com grande fora ao lugar docrebro onde ela se encontra7 5, a fim

    de fortalec-la e conserv-la a; comotambm so dispostas por ela a passarda aos msculos destinados a reter osrgos dos sentidos na mesma situao em que se encontram, a fim de queseja ainda mantida por eles, se por elesfoi formada.

    7 4 O art. 149 indicar simplesmente que essas seispaixes "so como os gneros de que todas as outras constituem as espcies". Exemplo de recurso auma implicao dos gneros e das espcies que Descartes condenara no seu mtodo. (Lvio Teixeira,op. cit., pg. 166.)7 5 Cf. Cartas, a Elisabeth, de maio de 1646. "Asurpresa que ela contm causa os movimentos maisrpidos de todos."

    Art. 71. Que nesta paixo no ocorrequalquer mudana no corao nem nosangue.

    E esta paixo tem a particularidade

    de no notarmos de modo algum queseja acompanhada de qualquer mudana no corao e no sangue, como acontece com outras paixes. A razo que, no tendo nem o bem nem o malpor objeto, mas s o conhecimento dacoisa que se admira, ela no se relaciona ao corao e ao sangue, dosquais depende todo o bem do corpo,mas apenas ao crebro, onde ficam osrgos dos sentidos que servem a esseconhecimento.

    Art. 72. No que consiste a fora daadmirao.

    O que no a impede de ter muita

    fora por causa da surpresa, isto , dasbita e inopinada ocorrncia da impresso que modifica o movimento dosespritos, surpresa que prpria e articular a esta paixo; de sorte que,quando se encontra em outras, comocostuma encontrar-se em quase todas eaument-las, porque a admiraoest unida a elas. E a sua fora depende de duas coisas, a saber, da novidadee do fato de o movimento que a causapossuir, desde o comeo, toda a suafora. Pois certo que tal movimentoproduz mais efeito do que aqueles que,sendo de incio fracos e s crescendopouco a pouco, podem ser facilmentedesviados. certo tambm que os

    objetos dos sentidos que so novos afe-tam o crebro em certas partes que nocostumam ser afetadas; e, sendo estaspartes mais tenras ou menos firmesque as endurecidas por uma agitaofrequente, isso aumenta o efeito dosmovimentos que esses objetos a pro-

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    vocam. O que no se julgar incrvel,se se considerar que uma razo anloga faz com que, estando a planta denossos ps habituada a um contatobastante rude, devido ao peso do corpo

    que sustenta, sintamos muito poucoesse contato quando andamos; aopasso que outro muito menor e maissuave, como o das ccegas, nos quase insuportvel, por no nos sercomum.

    Art. 73. O que o espanto.

    E essa surpresa tem tanto poderpara levar os espritos localizados nascavidades do crebro ao lugar ondeest a impresso do objeto admiradoque, por vezes, impele todos para l eos deixa de tal modo ocupados emconservar essa impresso que nenhumdeles passa ao crebro, nem mesmo sedesvia de alguma forma das primeiraspegadas que seguiu no crebro: o quefaz que o corpo inteiro permaneaimvel como uma esttua e que s percebamos do objeto a primeira face quese apresentou, e por conseguinte nopossamos adquirir dele um conhecimento mais particular. isso o que se

    chama comumente estar espantado; eo espanto um excesso de admiraoque s pode ser mau.

    Art. 74. Para que servem todas as paixes e no que elas prejudicam.

    Ora, fcil saber, pelo que foi dito

    acima, que a utilidade de todas as paixes consiste apenas em fortalecer efazer durar na alma pensamentos, osquais bom que ela conserve, e quepoderiam facilmente, sem isso, serobliterados. Assim como todo o malque podem causar consiste em fortalecer e conservar esses pensamentosmais do que o necessrio, ou ento em

    fortalecer e conservar outros nos quaisno vale a pena deter-se.

    Art. 75. Para que serve particularmente a admirao.

    E pode-se dizer particularmente daadmirao que ela til porque nosleva a aprender e a reter em nossamemria coisas que dantes ignorvamos; pois s admiramos o que nos parece raro e extraordinrio; e coisa alguma pode parecer-nos assim seno

    porque ns a ignorvamos, ou tambmporque diferente das coisas queconhecamos; pois essa diferena quenos leva a cham-la extraordinria.Ora, ainda que uma coisa que nos eradesconhecida se apresente de novo aonosso entendimento ou aos nossos sentidos, no a retemos por isso em nossamemria, se a ideia que dela temos nofor fortalecida em nosso crebro poralguma paixo, ou pela aplicao denosso entendimento, que a nossa vontade determina a uma ateno e reflexo particulares. E as outras paixespodem servir-nos para notar as coisasque parecem boas ou ms, mas s dispomos da admirao para as que pare

    cem to-somente raras. Por isso,vemos que os que no possuem qualquer inclinao natural para essa paixo so ordinariamente muito ignorantes.

    Art. 76. No que ela pode prejudicar ecomo se pode suprir sua falta e corrigir

    seu excesso.

    Mas acontece muito mais admirarmos em demasia e nos espantarmos aoperceber coisas que merecem pouca ounenhuma considerao, do que admirarmos demasiado pouco. E isso podesubtrair inteiramente ou perverter ouso da razo. Da por que, embora seja

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    bom ter nascido com alguma inclinao para esta paixo, porque isso nosdispe para a aquisio das cincias,devemos todavia esforar-nos em seguida para nos libertar dela o mais

    possvel7 6

    . Pois fcil suprir a suafalta por uma reflexo e ateno particulares, a que a nossa vontade semprepode obrigar nosso entendimentoquando julgamos que a coisa que seapresenta vale a pena; mas no houtro remdio para impedir o admirarexcessivo seno adquirir o conhecimento de muitas coisas e exercitar-nos

    na considerao de todas as que possam parecer mais raras e mais estranhas.

    Art. 77. Que no so nem os maisestpidos nem os mais hbeis os maispropensos admirao.

    De resto, embora s os embrutecidos e estpidos no sejam levadosnaturalmente admirao, isto nosignifica dizer que os mais dotados deesprito sejam os mais inclinados a ela;mas so principalmente os que, embora possuam um senso comum assazbom, no tm, todavia, em grandeconta sua prpria suficincia.

    Art. 78. Que o seu excesso podeconverter-se em hbito quando sedeixa de corrigi-lo.

    E, conquanto essa paixo pareadiminuir com o uso, pois, quanto mais

    7 6 A admirao pode estar na origem da cincia,mas, enquanto paixo, ela nos distancia do exerccio da cincia. Encontram-se na correspondncia deDescartes muitos ataques contra os amantes demaravilhas. Por exemplo, a propsito da histria deuma jovem que apresenta todos os dias sobre ocorpo as chagas dos mrtires cujas festas so celebradas, escreve: "O bom padre Mersenne tocurioso e fica to alegre em ouvir alguma maravilhaque escuta favoravelmente todos os que lhe contamuma". (A Huyghens, 12 de maro de 1640.)

    encontramos coisas raras que admiramos, mais nos acostumamos a cessarde admir-las e a pensar que todas asque podem apresentar-se depois sovulgares, todavia, quando excessiva e

    nos leva somente a deter a ateno naprimeira imagem dos objetos que seapresentarem, sem adquirir deles outroconhecimento, deixa atrs de si um hbito que dispe a alma a deter-se domesmo modo em todos os outros objetos que se apresentem, desde que lhepaream, por pouc