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René Rémond O Século XIX 1815/1914 Tradução de Frederico Pessoa de Barros Digitalização: Argo www.portaldocriador.org

Rene Remond o Seculo Xix

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  • Ren Rmond

    O Sculo XIX 1815/1914

    Traduo de Frederico Pessoa de Barros

    Digitalizao: Argo www.portaldocriador.org

  • SUMRIO

    Introduo. Os Componentes Sucessivos Um sculo de revolues Quatro grandes vagas, 14

    1. A Europa Em 1815

    1. Uma restaurao Trata-se, antes de mais nada, de uma restaurao dinstica Trata-se de uma restaurao do princpio monrquico Trata-se de uma contra-revoluo?

    2. A Restaurao no integral Modificaes territoriais Modificaes institucionais Manuteno do aparelho administrativo As transformaes sociais

    3. Um equilbrio precrio Os ultras Os liberais

    2. A Idade do Liberalismo

    1. A ideologia liberal

    A filosofia liberal As conseqncias jurdicas e polticas

    2. A sociologia do liberalismo O liberalismo, expresso dos interesses da burguesia O liberalismo no se reduz expresso de uma classe As duas faces do liberalismo

    3. As etapas da marcha do liberalismo Primeiro episdio em 1820 Segundo abalo em 1830 As tentativas dos liberais

    4. Os resultados Os regimes polticos liberais - A ordem social liberal

    3. A Era da Democracia

    1. A idia democrtica

    A igualdade Soberania popular As liberdades As condies de exerccio das liberdades A igualdade social

    2. Democracia e foras sociais Os fatores de mudana e os novos tipos sociais As diversas sociedades justapostas

    3. As etapas da marcha das sociedades rumo democracia pol-tica e social: as instituies e a vida poltica Os regimes polticos s consultas eleitorais A representao parlamentar

  • A democracia autoritria Aparecimento dos partidos modernos Os prolongamentos da idia democrtica

    4. A Evoluo do Papel do Estado

    1. A situao em 1815 2. A idade de ouro do liberalismo 3. O crescimento do papel do Estado

    Os sinais As causas

    5. Movimento Operrio, Sindicalismo e Socialismo

    1. A revoluo industrial e a condio operria

    Seus componentes Suas conseqncias 2. O movimento operrio

    A conquista dos direitos 3. O socialismo

    As fontes do socialismo A difuso do marxismo O socialismo como fora poltica

    6. As Sociedades Rurais

    A importncia do mundo da terra 1. A condio do campons e os problemas agrrios 2. Os homens do campo e a poltica

    7. O Crescimento das Cidades e a Urbanizao

    1. O desenvolvimento das cidades

    O crescimento das cidades Uma mudana das funes e do modo de vida

    2. As causas do crescimento urbano 3. As conseqncias

    A extenso no espao As comunicaes internas, 144. O abastecimento A ordem e a segurana

    4. As conseqncias sociais e polticas do crescimento urbano

    8. O Movimento das Nacionalidades

    1. Caracteres do movimento das nacionalidades 2. As duas fontes do movimento

    A Revoluo Francesa O tradicionalismo

    3. A evoluo do movimento entre 1815 e 1914

  • 9. Religio e Sociedade 1. A importncia do fato religioso 2. Cinco grandes fatos histricos

    A Reforma O movimento das idias A Revoluo e suas conseqncias A descristianizao A persistncia do fato religioso

    10. As Relaes Entre a Europa e o Mundo

    1. A iniciativa europia e suas causas 2. A colonizao

    A desigualdade, base do domnio colonial A desigualdade econmica A desigualdade cultural

    3. As etapas da conquista do mundo A situao em 1815 As iniciativas Os motivos O imperialismo do fim do sculo

    4. A penetrao econmica 5. A emigrao 6. A europeizao do mundo

    Os efeitos Conseqncias econmicas Conseqncias culturais As reaes e os sinais precursores da descolonizao

  • O S C U L O X I X 1815 - 1914

    INTRODUO: OS COMPONENTES SUCESSIVOS

    O sculo XIX, tal como os historiadores o delimitam, ou

    seja, o perodo compreendido entre o fim das guerras napole-nicas e o incio do primeiro conflito mundial uma centena de anos que se situam entre o Congresso de Viena e a crise do ve-ro de 1914 um dos sculos mais complexos, mais cheios que existem. Cuidaremos para no atribuir-lhe, retrospectivamente uma racionalidade que lhe seria estranha, mas um exame rpido permitir a descoberta de algumas linhas mestras. Um Sculo de Revolues

    Sem esquecer que as relaes que a Europa mantm com o

    resto do mundo, entre 1814 e 1914, so dominadas por sua ex-panso e suas tentativas de domnio do globo, o trao mais e-vidente a freqncia de choques revolucionrios. Esse scu-lo, por direito, pode ser chamado o sculo das revolues, porque nenhum at agora foi to frtil em levantes, insur-reies, guerras civis, ora vitoriosas, ora esmagadas. Essas revolues tm como pontos comuns o fato de quase todas serem dirigidas contra a ordem estabelecida (regime poltico, ordem social, s vezes, domnio estrangeiro), quase todas feitas em favor da liberdade, da democracia poltica ou social, da inde-pendncia ou unidade nacionais. esse o sentido profundo da efervescncia que se manifesta continuamente na superfcie da Europa, a que no ficou imune nenhuma parte do continente: tanto a Irlanda como a pennsula ibrica, os Blcs como a Frana, a Europa Central e a Rssia, foram afetadas por essa agitao, uma ou mais vezes.

    Essa agitao revolucionria, a princpio, apresenta-se como um contragolpe revoluo de 1789; basta examinar as pa-lavras de ordem, perscrutar-lhes os princpios para captar-lhes a analogia. Contudo, todos esses movimentos revolucion-rios no se reduzem talvez nenhum se reduza de modo total a seqelas da Revoluo de 1789. medida que o sculo se a-proxima do fim, outras caractersticas se afirmam, passando pouco a pouco frente da herana da Revoluo Francesa.

    Novos fenmenos, estranhos histria da Frana revolu-cionria, tomam um lugar crescente, colocam problemas novos, suscitam movimentos inditos. o caso da revoluo indus-trial, geradora do movimento operrio, do impulso sindical, das escolas socialistas. Surge um novo tipo de revoluo, na segunda metade do sculo XIX, que no se pode reduzir repe-

  • tio pura e simples dos movimentos revolucionrios originados da posteridade de 1789. Quatro Grandes Vagas

    Pode-se introduzir alguma claridade no elevado nmero des-

    ses acontecimentos distinguindo diversas vagas sucessivas, que se sucedem.

    1. Uma primeira vaga composta dos movimentos liberais que se produzem em nome da liberdade, contra as sobrevivncias ou os retornos ofensivos do Antigo Regime. o caso da vaga insurrecional de 1830, na Europa Ocidental principalmente.

    2. Uma segunda vaga constituda pelas revolues propri-amente democrticas.

    Voltarei a falar sem pressa sobre a diferena de natureza entre as revolues liberais e as revolues democrticas; a distino fundamental e sua compreenso exige um esforo de imaginao, porque, nos meados do sculo XX, as palavras libe-ral e democrtico no esto longe de se tornarem sinnimas (falamos correntemente das democracias liberais). Quando Jean-Jacques Chevalier analisa o demoliberalismo, ele insiste sobre tudo o que h de indiviso entre a filosofia liberal e a filo-sofia democrtica, mas esse ponto de vista mais do sculo XX que do sculo XIX. Os contemporneos eram mais sensveis ao que diferencia, e mesmo ope, o liberalismo democracia e, por volta de 1830 ou 1850, as duas ideologias so at inimigas irreconciliveis: a democracia o sufrgio universal, o go-verno do povo, enquanto que o liberalismo o governo de uma elite.

    3. Uma terceira vaga de movimentos reivindica uma inspira-o diferente: estes so os movimentos sociais que proporcio-nam s escolas socialistas seu programa e sua justificao. Antes de 1914, esses movimentos ainda so minoritrios, e to-maremos o cuidado de no antecip-los, no exagerando assim a importncia que porventura tenham.

    4. Enfim, o movimento das nacionalidades, que no se segue cronologicamente aos trs precedentes, mas corre por todo o sculo XIX, constitui o ltimo tipo de movimento. Ele procede da herana da Revoluo, como vimos ao enumerar as conseqn-cias da Revoluo sobre a idia de nacionalidade; ele tambm contemporneo tanto dos movimentos liberais como das revolu-es democrticas, e mesmo das revolues sociais, e mantm com essas trs correntes relaes complexas, cambiantes, amb-guas, sendo ora aliado, ora adversrio dos movimentos libe-rais, ou das revolues democrticas e socialistas.

    Eis, reduzida sua anatomia, a histria do sculo XIX, dominada por essas quatro foras distintas, essas quatro cor-rentes que ora se sucedem e ora se combatem, embora todas en-trem em conflito com a ordem estabelecida, com os princpios oficiais, as instituies legais, as idias no poder, as clas-ses dirigentes, o domnio estrangeiro.

  • o conflito entre essas foras de renovao e os poderes estabelecidos que compe a histria do sculo XIX, que explica a violncia e a freqncia dos choques. Esse confronto entre as foras de conservao, poltica, intelectual, social, e as foras de contestao fornece a chave da maior parte dos acon-tecimentos da histria, tanto nacional quanto europia que, quase sempre, chegam s vias de fato, por que excepcional que esse confronto se desenrole pacificamente pela aplicao de disposies previstas pela constituio: isso no se aplica Gr-Bretanha e Europa do Norte ou do Oeste, aos pases es-candinavos ou neerlandeses. Em todos os outros lugares o con-flito resolvido pelo recurso s solues mais radicais, pelo uso da violncia.

    Os termos do confronto variam de acordo com o momento e de acordo com o pas. Convm, portanto, passar do quadro geral para o exame das situaes particulares.

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    A EUROPA EM 1815 Depois de Waterloo, por ocasio da segunda abdicao de

    Napoleo e da assinatura das atas do Congresso de Viena, a si-tuao caracteriza-se pela restaurao. 1. UMA RESTAURAO

    Restaurao o nome do regime estabelecido na Frana du-

    rante quinze anos, de 1815 a 1830, mas essa denominao convm a toda a Europa. Ela mltipla e se aplica a todos os aspec-tos da vida social e poltica. Trata-se, Antes de Mais Nada, de Uma Restaurao Dinstica

    Os soberanos do Antigo Regime venceram Napoleo, em quem

    eles viam o herdeiro da Revoluo, e a escolha de Viena para a realizao do Congresso, para sede dos representantes de todos os Estados europeus, simblica, pois Viena era uma das ni-cas cidades que no haviam sido sacudidas pela Revoluo e a dinastia dos Habsburgos era o smbolo da ordem tradicional, da Contra-Reforma, do Antigo Regime.

    Na Frana, pela aplicao da ordem de sucesso ao trono, Lus XVIII sucede a Lus XVI. O mesmo acontece em outros pa-ses onde os soberanos destronados uns pela Revoluo, os ou-tros por Napoleo tornam a subir em seus tronos: os Bourbons em Npoles e na Espanha; os Braganas voltaro para Portugal, depois de alguns anos de exlio; a dinastia de Orange nos Pa-ses-Baixos. Trata-se de Uma Restaurao do Princpio Monrquico

    A essa restaurao das pessoas e das famlias junta-se a

    restaurao do esprito monrquico. Na nova Europa, no se fa-la mais em Repblica; o princpio da legitimidade monrquica triunfa soberano. Essa legitimidade que propalada pelos doutrinadores da Restaurao, os filsofos da contra-revoluo, os Burke, os Maistre, os Bonald, os Haller. i-gualmente nessa noo de legitimidade que, presume-se, inspi-ram-se os diplomatas que, em Viena, redistribuem os territ-rios.

    No se comea a falar de legitimidade seno quando ela contestada; antes de 1789, tudo ia bem, no havia necessidade alguma de justificar a monarquia, mas em 1815, aps a experi-ncia revolucionria, os regimes e seus doutrinadores sentem a

  • necessidade de teorizar a respeito. A legitimidade reside no valor reconhecido da perenidade.

    legtimo o regime que dura, que representa a tradio, que tem atrs de si uma longa histria. A legitimidade essenci-almente histrica e tradicionalista. Essa identificao com o tempo justifica-se, de modo positivo e pragmtico: se um regi-me permanece porque correspondia s necessidades, porque encontrou adeso nos espritos, porque foi eficaz, porque foi capaz de burlar as provas do tempo. Alis, o tempo sacra-liza, confere prestgio s instituies venerveis herdadas de um tempo passado.

    Durante todo o transcorrer do sculo XIX, o princpio de legitimidade ir subentender o pensamento contra-revolucion-rio, a poltica dos regimes conservadores e os esforos de certas escolas polticas para restaurar, em oposio ao movi-mento da histria, as instituies herdadas do Antigo Regime. Esta uma noo capital para o pensamento e as relaes pol-ticas.

    Essa filosofia da legitimidade ope-se filosofia revolu-cionria, segundo a qual o passado deve ser reexaminado, pois existe o perigo de o antigo tornar-se obsoleto ou ultrapassa-do. O povo tem o direito de desfazer, a qualquer instante, a ordem tradicional, sendo sua vontade soberana a nica com po-deres de conferir legitimidade. Ele pode substituir a herana do passado por uma nova ordem, mais racional e de acordo com sua vontade.

    H, portanto, o confronto entre dois sistemas de valores, de duas filosofias, uma ditada pela idia da tradio e o res-peito da histria, e outra que insiste na vontade soberana da nao. Trata-se de Uma Contra-Revoluo?

    A Restaurao, assim concebida, no seria capaz de limi-

    tar-se pessoa do soberano ou ao ramo dinstico; ela deve es-tender-se a todos os aspectos, a todos os setores da vida co-letiva, s formas polticas, s instituies jurdicas, or-dem social. Ela implica na volta total ao Antigo Regime. Con-siderada a Revoluo como uma espcie de acidente, bom que se feche o parntese e que se apaguem as conseqncias do aci-dente. De acordo com a frmula to significativa do prembulo da Carta Constitucional de 1814, reata-se a corrente dos tem-pos. Nenhuma frmula mais expressiva do que a filosofia po-ltica da contra-revoluo.

    A Restaurao, assim definida, bem uma contra-revoluo. Trata-se de tomar o sentido oposto ao dos princpios de 1789 e de apagar todos os vestgios desse extravio do esprito huma-no. A contra-revoluo era efetivamente, em 1815, uma virtua-lidade do triunfo dos reis.

  • 2. A RESTAURAO NO INTEGRAL

    Mas a Restaurao no consegue restabelecer por completo a

    situao de 1789. Modificaes Territoriais

    Nem todos os monarcas foram restabelecidos em seus tronos.

    Subsistem ainda grandes modificaes territoriais; basta com-parar o mapa poltico da Europa s vsperas de 1789 e o mapa poltico da Europa tal como foi desenhado depois do Congresso de Viena para constat-lo. Os contrastes saltam aos olhos, i-lustrando o que a Revoluo imps aos negociadores do Congres-so de Viena.

    O Santo Imprio Romano-Germnico, dissolvido por Napoleo depois de Austerlitz, no foi restabelecido. A Confederao Germnica, que toma seu lugar, no se lhe assemelha seno de longe. As cinqenta e tantas cidades livres do Santo Imprio foram absorvidas pelos reinos ou pelos gro-ducados, os prin-cipados eclesisticos foram secularizados, anexados aos Esta-dos. As Repblicas tambm desapareceram, como na Itlia, Gno-va e Veneza.

    Nas Provncias Unidas, o princpio monrquico prevaleceu definitivamente sobre a forma republicana. um Estado unit-rio que toma o lugar da velha repblica federativa do Antigo Regime.

    O mapa est muito simplificado; o nmero dos Estados est visivelmente reduzido. S no tocante Alemanha eles passaram de 360 para 39. Sob esse ponto de vista, 1815 marca uma etapa considervel no que se poderia chamar de racionalizao ou simplificao do mapa poltico da Europa. O nmero de scios diminuiu; os Estados esto reagrupados de um modo mais coeren-te. Mas, sobretudo os vitoriosos na guerra saem ganhando ter-ritorialmente. Se a Gr-Bretanha estendeu-se para fora da Eu-ropa, as trs potncias continentais cresceram na prpria Eu-ropa.

    A Rssia corta para si um grande pedao da Polnia. A no-roeste, em 1809, tirou a Sucia da Finlndia. A sudoeste, em 1812, tomou do Imprio Otomano a Bessarbia. Desse modo, ela avana sobre todo o fronte, na direo oeste, e sua populao tanto por causa do crescimento natural como por causa das anexaes territoriais passou de trinta para cinqenta mi-lhes de habitantes, entre 1789 e 1815. A Rssia aparece como grande potncia e potncia instalada quase no corao da Euro-pa, com o deslocamento para oeste que materializa a anexao dos trs quartos da Polnia.

    A Prssia fez outro tanto. Insinuando-se para oeste, para a margem esquerda do Reno, anexando um pedao importante do Saxe, ela sai das guerras mais compacta, mais slida, aumenta-da de mais da metade: sua superfcie passa de 190 000 km2 para

  • 280 000 km2, em 1815. A ustria perdeu o que, antes da Revoluo, era chamado de

    Pases Baixos, isto , a Blgica, mas ela tomou p na Itlia, com o Lombardo Veneziano. Instalada no corao da Europa Cen-tral, senhora da Itlia, que controla diretamente ou por meio de soberanos interpostos, estendendo sua tutela sobre a Alema-nha, ela reagrupou melhor suas posies.

    Geograficamente, portanto, o mapa foi modificado de ma-neira profunda. Estamos longe de uma restaurao dos Estados e dos soberanos no status quo anterior a 1789. Modificaes Institucionais

    No que diz respeito s instituies, as mudanas no so

    menores. Com efeito, de acordo com nossa classificao dos re-gimes polticos do Antigo Regime em cinco tipos, constata-se que os dois mais antigos, o feudalismo e as repblicas, foram as vtimas da Revoluo. Quanto aos demais, preciso que vol-temos monarquia absoluta, tal como a formulavam os legistas e os telogos do direito divino antes da Revoluo.

    O caso da Frana de onde partiu a Revoluo , na es-pcie, particularmente exemplar, j que Lus XVIII no viu possibilidades de voltar ao Antigo Regime e outorga a seus s-ditos uma Carta Constitucional, fazendo concesses importantes experincia e s aspiraes dos franceses. A existncia de uma Carta j por si mesma uma concesso importante. O Antigo Regime caracterizava-se pela ausncia de constituio. Com a Carta Constitucional h, agora, um texto, uma regra, qual se pode fazer referncia, uma constituio disfarada. Com efei-to, apesar do prembulo, que insiste na concesso unilateral feita pelo rei, trata-se na verdade de uma constituio, uma espcie de contrato passado entre o soberano restaurado e a nao.

    A anlise do contedo da Carta dissipa, a esse respeito, todas as dvidas. Ela prev instituies representativas, uma Cmara eletiva (trata-se de uma homenagem ao princpio eleti-vo) associada ao exerccio do poder legislativo, que vota o oramento, em aplicao do princpio da necessidade do consen-timento dos representantes da nao ao imposto. Trata-se, de algum modo, vinte e cinco anos depois, da legitimao das pre-tenses dos Estados Gerais. Enfim, a Carta reconhece explici-tamente certo nmero de liberdades que a primeira Revoluo havia proclamado: liberdade de opinio, liberdade de culto, liberdade de imprensa, isto , quase toda a essncia do pro-grama liberal.

    Mas a Frana no a nica a se engajar nesse caminho. Em 1814-1815, h uma florada de textos constitucionais, quase to-dos outorgados pela complacncia do soberano. assim que, no reino dos Pases Baixos, formado pela reunio das Provncias Unidas e dos Pases Baixos belgas, a lei fundamental, que ser a constituio da Holanda moderna, divide o poder legislativo

  • entre o soberano e os Estados Gerais. Em 1814, igualmente, o reino da Noruega recebe uma constituio, a mais liberal de todas, na qual o rei s dispe de um veto suspensivo. O pr-prio tzar outorga uma constituio ao gro-ducado de Varsvia.

    Assim, sob a aparncia de uma volta ao Antigo Regime e sob o disfarce de uma restaurao, manifestam-se apreciveis con-cesses ao esprito do tempo e reivindicao liberal de um texto constitucional. Manuteno do Aparelho Administrativo

    A organizao administrativa, tal como a Revoluo a pre-

    parou, desembaraando o caminho, tal como Napoleo a reorgani-zou, subsiste, bem entendido, porque nenhum soberano, seja qual for a sua ligao com a filosofia contra-revolucionria, no iria arriscar-se a perder o benefcio da eficcia assegu-rada por uma administrao uniforme, racionalizada, hierarqui-zada. O quadro das circunscries conservado, o aparelho ad-ministrativo, mantido. As Transformaes Sociais

    A evidncia de que a restaurao est longe de ser inte-

    gral impe-se com mais fora ainda no que diz respeito s transformaes sociais. Por toda parte onde a Revoluo pas-sou, ela abalou as estruturas sociais e por toda parte conser-var o essencial de suas concepes e de suas transformaes: na Frana, onde a Carta reconhece as liberdades civis, nos Pa-ses Baixos, na Alemanha Ocidental, no Norte da Itlia e at na , Polnia, onde cdigos inspirados nos cdigos napolenicos ficam em vigor por um tempo indeterminado. A servido aboli-da, os privilgios suprimidos, a mo-morta eclesistica desa-pareceu. A igualdade civil de todos diante da lei, diante da justia, diante dos impostos, para o acesso aos cargos pbli-cos e administrativos, agora a regra para uma boa metade da Europa. Tradicionais em certos Estados, as interdies de ad-quirir terras, feitas burguesia, no esto mais em vigor.

    Todas essas reformas favorecem principalmente a burguesia e, de fato, passou-se de uma sociedade aristocrtica para uma sociedade burguesa.

    Essas transformaes e sua conservao aproximam entre si os pases nos quais elas ocorrem. Acima das diferenas do pas-sado, essas reformas lanam um trao de unio e contribuem pa-ra unificar a Europa Ocidental; entre a Frana e a Alemanha Ocidental, entre os Pases Baixos e a Itlia, existem agora instituies comuns, uma sociedade com certo parentesco. Mas, ao mesmo tempo, acentuam-se a diferena, a defasagem entre es-sa Europa e a outra Europa, a que no foi tocada pelas trans-formaes revolucionrias.

  • 3. UM EQUILBRIO PRECRIO Assim, sob a aparncia de Restaurao, prevaleceu uma so-

    luo de compromisso. A Restaurao dissimula uma aceitao, no confessada, de uma parte da obra da Revoluo.

    Como toda soluo transacional, ela instvel e precria, porque exposta a investidas no sentido contrrio, aos ataques de duas faces extremas. Os Ultras

    De um lado, os que querem voltar atrs, os que sonham com

    uma restaurao integral e que no podem resignar-se a sim-plesmente ratificar os movimentos revolucionrios, os que se recusam a transigir, aqueles para quem a Revoluo satnica. Como seria possvel pactuar com o Mal? Convm extirpar tudo o que sobrevive da Revoluo. Essa a posio intelectual dos ultras, na Frana; esse o programa da Cmara introuvable, eleita no vero de 1815.

    Mas os ultras existem em todos os pases, porque na Europa de 1815 subsiste ainda uma sociedade do Antigo Regime, com uma aristocracia proprietria, uma classe de camponeses servil e dcil, uma sociedade que no concebe outra ordem vlida a no ser a antiga, que visa a restabelecer em sua integridade a Eu-ropa de outrora. Esse tambm o programa da Santa Aliana.

    A presena desses ultras, sua agitao, suas eternas exi-gncias, suas intrigas, fazem pesar sobre a soluo de transa-o uma ameaa constante, que inquieta, com justos motivos, aqueles que esto ligados herana da Revoluo. Os Liberais

    Por outro lado, h ainda aqueles que no tomam o partido

    da derrota da Revoluo e que pretendem ir at o fim de suas conseqncias, todos os que no aceitam os tratados de 1815. Para esses, as idias da Revoluo no esto mortas; a dupla herana de transformao das instituies e de emancipao na-cional continua viva. O nome de Liberdade ainda sua palavra de ordem: liberdade poltica no interior, liberdade nacional; eles contrapem Santa Aliana dos reis a Santa Aliana dos povos. Uma solidariedade internacional comea a se esboar, acima das fronteiras, entre jacobinos ou liberais de todos os pases, contra a solidariedade das potncias estabelecidas e dos soberanos restaurados.

    Assim, em 1815, a situao caracteriza-se, no plano das instituies, pelo compromisso e, no plano das foras, pelo antagonismo de dois campos, ambos insatisfeitos com a ordem das coisas, uns querendo voltar ao Antigo Regime e os outros querendo levar at as ltimas conseqncias os princpios da Revoluo. O confronto desses dois campos ser o fio diretor, o princpio explicativo da agitao que ir sacudir a Europa,

  • esgotada por vinte anos de guerras, civis e estrangeiras, e que anseia por um repouso. Mas as paixes polticas no tarda-ro a despertar; elas iro cristalizar-se, umas em torno da idia de liberdade, as demais em torno da noo de legitimida-de. A. oposio desses dois campos, dessas duas Santas-Alianas, d histria poltica da Europa, entre 1815 e 1848, sua plena significao.

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    A IDADE DO LIBERALISMO O movimento liberal a primeira onda de movimentos que se

    desencadeia sobre o que subsiste do Antigo Regime, ou sobre o que acaba de ser restaurado em 1815. O qualificativo "liberal" o que melhor lhe convm, porque caracteriza a idia-mestra, a chave da abbada da arquitetura intelectual de todos esses movimentos.

    O liberalismo um dos grandes fatos do sculo XIX, sculo que ele domina por inteiro e no apenas no perodo onde todos os movimentos alardeiam explicitamente a filosofia liberal. Muito depois de 1848 ainda encontraremos grande nmero de po-lticos, de filsofos, cujo pensamento marcado pelo libera-lismo. Um Gladstone tipicamente liberal, como boa parte do pessoal poltico da Inglaterra. Em outros pases, tambm, di-versas famlias espirituais esto impregnadas dele, porque o liberalismo, mesmo sendo em suas linhas gerais anticlerical, comporta contudo uma variante religiosa; assim que existe um catolicismo liberal, personificado por Lacordaire ou Montalem-bert. Trata-se, portanto, de um fenmeno histrico de grande importncia, que d ao sculo XIX parte de sua cor e que muito contribuiu para sua grandeza, porque o sculo XIX um grande sculo, a despeito das lendas e do julgamento que se costuma fazer de suas ideologias.

    Em todos os pases existe, entre todas as formas de libe-ralismo, um parentesco certo, que se traduz, at nas relaes concretas, numa espcie de internacional liberal, de que fazem parte os movimentos, os homens que combatem em favor do libe-ralismo. Essa internacional liberal diferente das interna-cionais operrias e socialistas da segunda metade do sculo, pelo fato de no comportar instituies. Se no existe um or-ganismo internacional, nem por isso deixa de haver intercmbio e relaes; assim, os soldados, que tornam a ser disponveis pelo retorno da paz em 1815, vo combater, sob bandeiras libe-rais, contra o Antigo Regime. Quando o exrcito francs ultra-passa os Pirineus, em 1823, para levar ajuda ao rei Fernando VII contra seus sditos revoltados, ele se choca, na frontei-ra, com um punhado de compatriotas liberais, que desfraldam a bandeira tricolor. Essa internacional dos liberais manifestou-se em favor das revolues da Amrica Latina e do movimento filoheleno na Grcia, contra os turcos. Em 1830-1831, Lus Na-poleo o futuro imperador combate ao lado dos carbonrios nas Romnias, onde seu irmo morto.

    Esse internacionalismo liberal o precursor do interna-cionalismo socialista, mas tambm o herdeiro do cosmopoli-tismo intelectual do sculo XVIII. A diferena est em que no sculo XVIII o cosmopolitismo encontra-se entre os prncipes,

  • os sales, a aristocracia, enquanto no sculo XIX ele conquis-ta as camadas sociais mais populares, e encontra-se entre os soldados, os revoltosos.

    Para estudar o movimento liberal, bom destacar duas a-bordagens distintas: uma ideolgica, ligada s idias, e outra sociolgica, que considera as camadas sociais, propondo duas interpretaes bastante diferentes do mesmo fenmeno, mas, sem dvida, mais complementares do que contraditrias. 1. A IDEOLOGIA LIBERAL

    Tomemos primeiro o caminho mais intelectual, o que pri-

    vilegia as idias, examina os princpios, estuda os programas. Esta a interpretao do liberalismo geralmente proposta pe-los prprios liberais; tambm a mais lisonjeira. este o aspecto que se impe sob a pena dos contemporneos, a ideolo-gia do liberalismo tal qual expressa nas obras de filosofia poltica de Benjamin Constant, na tribuna das assemblias par-lamentares, na imprensa, nos panfletos. A Filosofia Liberal

    O liberalismo , primeiramente, uma filosofia global. In-

    sisto nesse ponto porque muitas vezes, hoje, ele costuma ser reduzido a seu aspecto econmico, que deve ser recolocado numa perspectiva mais ampla e que nada mais do que um ponto de aplicao de um sistema completo que engloba todos os aspectos da vida na sociedade, e que julga ter resposta para todos os problemas colocados pela existncia coletiva.

    O liberalismo tambm uma filosofia poltica inteiramente orientada para a idia de liberdade, de acordo com a qual a sociedade poltica deve basear-se na liberdade e encontrar sua justificativa na consagrao da mesma. No existe sociedade vivel e, com muito mais razo, legtima seno a que ins-creve no frontispcio de suas instituies o reconhecimento de sua liberdade. No plano dos regimes e do funcionamento das instituies, essa primazia comporta conseqncias cuja exten-so iremos estudar.

    Trata-se tambm de uma filosofia social individualista, na medida em que coloca o indivduo frente da razo de Estado, dos interesses de grupo, das exigncias da coletividade; o li-beralismo no conhece nem sequer os grupos sociais, e basta lembrar a hostilidade da Revoluo no que dizia respeito s organizaes, s ordens, a desconfiana que lhe inspirava o fenmeno da associao, sua repugnncia para reconhecer a li-berdade de associao, de medo que o indivduo fosse absorvi-do, escravizado pelos grupos.

    Trata-se ainda de uma filosofia da histria, de acordo com a qual a histria feita, no pelas foras coletivas, mas pe-los indivduos.

    Trata-se, enfim e nisso que o liberalismo mais merece

  • o nome de filosofia de certa filosofia do conhecimento e da verdade. Em reao contra o mtodo da autoridade, o liberalis-mo acredita na descoberta progressiva da verdade pela razo individual. Fundamentalmente racionalista, ele se ope ao jugo da autoridade, ao respeito cego pelo passado, ao imprio, do preconceito, assim como aos impulsos do instinto. O esprito dever procurar por si mesmo a verdade, sem constrangimento, e do confronto dos pontos de vista que deve surgir, pouco a pouco, uma verdade comum. A esse respeito, o parlamentarismo no passa de uma traduo, no plano poltico, dessa confiana na fora do dilogo. As assemblias representativas fornecem um quadro a essa busca comum de uma verdade mdia, aceitvel por todos. Pode-se entrever as conseqncias que essa filoso-fia do conhecimento implica: a rejeio dos dogmas impostos pelas igrejas, a afirmao do relativismo da verdade, a tolerncia.

    Assim definido, o liberalismo surge como uma filosofia global, ao lado do pensamento contra-revolucionrio ou do mar-xismo, como uma resposta a todos os problemas que se podem co-locar, na sociedade, a respeito da liberdade, das relaes com os outros, de sua relao com a verdade. Trata-se de um grave erro ver o liberalismo apenas em suas aplicaes na produo, no trabalho, nas relaes entre produtor e consumidor. As Conseqncias Jurdicas e Polticas

    Semelhante filosofia provoca um leque de conseqncias

    prticas. de seus postulados fundamentais que se origina a luta dos liberais, no sculo XIX, contra a ordem estabelecida, contra toda autoridade, a comear pela do Estado, pois o libe-ralismo uma filosofia poltica.

    O liberalismo desconfia profundamente do Estado e do po-der, e todo liberal subscreve a afirmao de que o poder mau em si, de que seu uso pernicioso e de que, se for preciso acomodar-se a ele, tambm ser preciso reduzi-lo tanto quanto possvel. O liberalismo, portanto, rejeita sem reserva todo poder absoluto e, no incio do sculo XIX, quando a monarquia absoluta era a forma ordinria do poder, contra essa monar-quia que ele combate. No sculo XX, o combate liberal passar facilmente da luta contra o Antigo Regime para a luta contra os regimes totalitrios, contra as ditaduras, mas tambm con-tra a autoridade popular. O liberal recusa-se a escolher entre Lus XIV e Napoleo.

    Para evitar a volta ao absolutismo, a uma autoridade sem limites, o liberalismo prope toda uma gama de frmulas insti-tucionais. O poder deve ser limitado, e como limit-lo melhor do que fracionando-o, isto , aplicando o princpio da separa-o dos poderes, que surge, nessa perspectiva, como uma regra fundamental? A tal ponto que a Declarao dos Direitos do Ho-mem e do Cidado diz, explicitamente, que uma sociedade que no repousa sobre o princpio da separao dos poderes no

  • uma sociedade ordenada. A separao dos poderes no uma sim-ples frmula tcnica e pragmtica; para o liberalismo ela sur-ge como um princpio primordial, pois uma garantia do indi-vduo face ao absolutismo.

    O poder deve ser dividido igualmente em rgos de foras iguais, porque o equilbrio dos poderes no menos importante que sua separao. Se desiguais, haveria grande risco de ver o mais poderoso absorver os outros, enquanto que, iguais, eles se neutralizam.

    Declarado ou oculto, o ideal do liberalismo sempre o po-der mais fraco possvel, e alguns no dissimulam que o melhor governo, de acordo com eles, o governo invisvel, aquele cu-ja ao no se faz sentir.

    A descentralizao outro meio de limitar o poder. Cui-dar-se- de transferir do centro para a periferia, e do ponto mais alto para escales intermedirios, boa parte das atribui-es que o poder central tende a reservar para si.

    Outro modo ainda de restringir o poder limitar seu campo de atividade e, assim, fica explicada a doutrina da no-interveno em matria econmica e social. O Estado deve dei-xar que a iniciativa privada, individual ou coletiva, e a con-corrncia trabalhem livremente. Esta a chamada concepo do Estado-policial (a imagem, atualmente, pode ser equvoca, pela confuso que se pode fazer com polcia), uma polcia que no intervm seno em caso de flagrante delito, digamos de um Es-tado-guarda-campestre.

    ltima precauo talvez a mais importante o agencia-mento do poder deve ser definido por regras de direito consig-nadas nos textos escritos e cujo respeito ser controlado por jurisdies, sendo as infraes deferidas a tribunais e san-cionadas. Este um dos papis do parlamentarismo: exercer controle sobre o funcionamento regular do poder. A Gr-Bretanha o pas que melhor soube traduzir essa filosofia e esses ideais em suas instituies e na prtica.

    Desconfiana em relao ao Estado, desconfiana do poder, desconfiana no menor em relao s corporaes e grupos, a tudo o que ameaa sufocar a iniciativa individual. O libera-lismo leva naturalmente emancipao de todos os membros da famlia, e o feminismo, que libertar a mulher da tutela do marido, um prolongamento do liberalismo, acarretando habitu-almente a vitria das maiorias liberais a adoo do divrcio. Para evitar que a profisso no reconstitua uma tutela, corpo-raes e sindicatos sero proibidos. O liberalismo tambm contra as autoridades tanto intelectuais quanto espirituais, Igrejas, religies de Estado, dogmas impostos e, mesmo exis-tindo um liberalismo catlico, o liberalismo anticlerieal.

    Fazendo-se um balano de suas conseqncias e de suas a-plicaes, o liberalismo surge, no sculo XIX, como uma dou-trina subversiva. E, de fato, trata-se de uma fora propria-mente revolucionria, cuja vida implica na rejeio das auto-ridades, na condenao de todas as instituies que sobrevive-

  • ram tormenta revolucionria ou que foram restabelecidas pela Restaurao, e que traz em si a destruio da antiga ordem. Trata-se de um sucedneo da f, de uma forma de religio para todos os que desertaram das religies tradicionais, de um ide-al que tem seus profetas, seus apstolos, seus mrtires. Reli-gio da liberdade, o liberalismo pode ter sido, por muito tem-po, pelo menos na primeira metade do sculo, uma causa que me-recia, eventualmente, o sacrifcio da prpria vida. O libera-lismo inspira ento as revolues, levanta barricadas, enquan-to milhares de homens se deixam matar pela idia liberal.

    Idia subversiva, fermento revolucionrio, causa digna de todos os devotamentos e de todas as generosidades, tal a in-terpretao que nos prope um estudo ao nvel das idias. A abordagem ideolgica leva concluso de que o liberalismo suscitou, exaltou, entre os europeus, os sentimentos mais no-bres, as virtudes mais elevadas. Essa abordagem prope uma vi-so idealista do liberalismo. 2. A SOCIOLOGIA DO LIBERALISMO

    Completamente diversa a viso que se obtm com uma abor-

    dagem sociolgica, que, em lugar de examinar os princpios, considera os atores e as foras sociais. O Liberalismo, Expresso dos Interesses da Burguesia

    A viso sociolgica relativamente recente, nitidamente

    posterior aos acontecimentos, e ope-se ao idealismo da inter-pretao anterior. Dando nfase aos condicionamentos scio--econmicos, s decises ditadas pelos interesses, essa aborda-gem corrige nossa interpretao histrica e sugere que o libe-ralismo , pelo menos enquanto filosofia, a expresso de um grupo social, a doutrina que melhor serve aos interesses de uma classe.

    Se, com o apoio dessa afirmao, fizermos intervir a geo-grafia e a sociologia do liberalismo, constataremos que os pa-ses em que o liberalismo aparece, em que as teorias liberais encontraram maior simpatia, onde se desenvolveram os movi-mentos liberais, so aqueles onde j existe uma burguesia im-portante.

    Prolongando a anlise geogrfica por um exame sociolgico, constata-se igualmente que a categoria social e o vocabul-rio revelador a esse respeito na qual o liberalismo recru-ta essencialmente seus doutrinadores, seus advogados, seus a-deptos, o das profisses liberais e o da burguesia comerci-ante.

    A concluso fcil de se adivinhar: o liberalismo a ex-presso, isto , o libi, a mscara dos interesses de uma classe. muito ntima a concordncia entre as aplicaes da doutrina liberal e os interesses vitais da burguesia.

    Quem, ento, tira maior partido, na Frana ou na Gr--

  • Bretanha, do livre jogo da iniciativa poltica ou econmica, seno a classe social mais instruda e mais rica? A burguesia fez a Revoluo e a Revoluo entregou-lhe o poder; ela pre-tende conserv-lo, contra a volta de uma aristocracia e contra a ascenso das camadas populares. A burguesia reserva para si o poder poltico pelo censo eleitoral. Ela controla o acesso a todos os cargos pblicos e administrativos. Desse modo, a a-plicao do liberalismo tende a manter a desigualdade social.

    A viso idealista insistia no aspecto subversivo, revolu-cionrio, na importncia explosiva dos princpios, mas, na prtica, esses princpios sempre foram aplicados dentro de li-mites restritos. A interdio, por exemplo, dos agrupamentos tem efeitos desiguais, quando aplicada aos patres ou a seus empregados. A interdio de estabelecer as corporaes no chega a prejudicar os patres, nem os impede de se concertarem oficiosamente. -lhes mais fcil contornar as disposies da lei do que o para os empregados. De resto, mesmo se os pa-tres respeitassem a interdio, isso no chegaria a afetar seus interesses, enquanto que os assalariados, por no poderem se agrupar, so obrigados a aceitar sem discusses o que lhes imposto pelos empregadores. Assim, sob uma enganosa aparn-cia de igualdade, a proibio das associaes faz o jogo dos patres. Do mesmo modo, no campo, entre o proprietrio que tem bens suficientes para subsistir e o que nada tem, e no pode viver seno do trabalho de seus braos, a lei desigual. A liberdade de cercar os campos no vale seno para os que tm algo a proteger; para os demais, ela significa a privao da possibilidade de criar alguns animais aproveitando-se dos pas-tos abertos. Alm do mais, a desigualdade nem sempre camu-flada e, na lei e nos cdigos, encontramos discriminaes ca-racterizadas, como o artigo do Cdigo Penal que prev que, em caso de litgio entre empregador e empregado, o primeiro seria acreditado pelo que afirmasse, enquanto que o segundo deveria apresentar provas do que dissesse.

    O liberalismo , portanto, o disfarce do domnio de uma classe, do aambarcamento do poder pela burguesia capitalista: a doutrina de uma sociedade burguesa, que impe seus inte-resses, seus valores, suas crenas.

    Essa assimilao do liberalismo com a burguesia no con-testvel e a abordagem sociolgica tem o grande mrito de lem-brar, ao lado de uma viso idealizada, a existncia de aspec-tos importantes da realidade, que mostra o avesso do libera-lismo e revela que ele tambm uma doutrina de conservao poltica e social.

    Fora subversiva da oposio ao Antigo Regime, ao absolu-tismo, autoridade, ele tem tambm uma tendncia con-servadora. O liberalismo tomar todo o cuidado para no entre-gar ao povo o poder de que o povo privou o monarca. Ele reser-va esse poder para uma elite, porque a soberania nacional, de que os liberais fazem alarde, no a soberania popular, e o liberalismo no a democracia; tornamos a encontrar, numa

  • perspectiva que agora a esclarece de modo decisivo, essa dis-tino capital, esse confronto entre liberalismo e democracia, que dominou toda uma metade do sculo XIX.

    Enquanto o liberalismo se encontra na oposio, enquanto ele tem de lutar contra as foras do Antigo Regime, contra a monarquia, os ultras, os contra-revolucionrios, as Igrejas, enfatiza-se seu aspecto subversivo e combativo. Mas basta que os liberais subam ao poder para que seu aspecto conservador tome a dianteira. Isso pode ser percebido na histria interna da Frana, mais do que em qualquer outro lugar. O liberalismo, portanto, uma doutrina ambgua, que combate alternativamente dois adversrios, o passado e o futuro, o Antigo Regime e a futura democracia. O Liberalismo No se Reduz Expresso de Uma Classe

    Se a abordagem sociolgica, judiciosamente, pe em des-

    taque o aspecto ambguo do liberalismo, isto querer dizer que ela apaga por completo a verso idealizada? No. E mesmo a a-bordagem sociolgica exige certas precises e certas reservas.

    O liberalismo no se confunde com uma classe e h algum exagero em querer reduzi-lo expresso dos interesses da bur-guesia endinheirada: se a burguesia, em geral, liberal, um exagero concluir que ela s tenha adotado o liberalismo em funo de seus interesses; ela tambm pode t-lo feito por convico e, em parte, por generosidade. As ideologias no so uma simples camuflagem das posies sociais. raro que as op-es sejam to ntidas, porque, na prtica, os homens so ao mesmo tempo menos conscientes de seus reais interesses e menos cnicos. Se de fato o liberalismo se reduzia defesa de inte-resses materiais, como explicar que tantas pessoas tenham con-cordado em perder a vida por ele? Seu interesse primordial no era conservar a vida? A interpretao sociolgica no presta conta desses mrtires da liberdade.

    um falso dilema contrapor princpios e interesses. Eles podem caminhar no mesmo sentido sem que, por isso, os interes-ses sufoquem os princpios. Na primeira metade do sculo XIX, a contradio na qual, depois, muitas filosofias insistiram entre os princpios e os interesses no to manifesta, nem to chocante.

    O termo de comparao que se impe aos contemporneos no a democracia do sculo XX, mas o Antigo Regime. Eles, por-tanto, so mais sensveis ao progresso conseguido do que s restries do liberalismo; eles do menos importncia s limi-taes na aplicao dos princpios do que enorme revoluo feita. A sociedade relativamente aberta, dando destaque ao talento, cultura, inteligncia; trata-se antes de uma bur-guesia de funo, administrativa, de uma burguesia de cultura, universitria, do que de uma burguesia do dinheiro. O termo "capacidades" surge com freqncia no vocabulrio da poca. Assim, sob a Monarquia de Julho, a oposio far campanha pela

  • extenso do direito de voto aos "capacitados". Entende-se por isso os intelectuais, os quadros administrativos, os que, no preenchendo as condies de fortuna exigidas para pertencer ao pas legal os 200 F do censo eleitoral preenchem as condi-es de ordem intelectual.

    O liberalismo, em seu incio, at a revoluo industrial, ainda no havia desenvolvido as conseqncias sociais que os crticos socialistas sublinharam depois. Numa economia ainda tradicional, na qual o grande capitalismo se reduz a pouca coisa, numa sociedade baseada na propriedade da terra, o libe-ralismo no permite nem a concentrao dos bens nem a explora-o do homem pelo homem. A revoluo, num primeiro tempo, mais libertou do que oprimiu. As Duas Faces do Liberalismo

    Se, portanto, queremos compreender e apreciar o libera-

    lismo, no temos que escolher entre as duas interpretaes, no temos que optar entre o aspecto ideolgico e a abordagem sociolgica. Ambos concorrem para definir a originalidade do liberalismo e para revelar o que constitui um de seus traos essenciais, essa ambigidade que faz com que o liberalismo te-nha podido ser, alternativamente, revolucionrio e conserva-dor, subversivo e conformista. Os mesmos homens passaro da oposio para o poder; os mesmos partidos passaro do combate ao regime defesa das instituies. Agindo assim, eles nada mais faro do que revelar sucessivamente dois aspectos comple-mentares dessa mesma doutrina, ambgua por si mesma, que re-jeita o Antigo Regime e que no quer a democracia integral, que se situa a meio-caminho entre esses dois extremos e cuja melhor definio , sem dvida, o apelido dado Monarquia de Julho: "o justo meio". porque o liberalismo um justo meio que, visto da direita, parece revolucionrio e, visto da es-querda, parece conservador. Ele travou, sucessivamente, dois combates, em duas frentes diferentes: primeiro, contra a con-servao, o absolutismo; depois contra o impulso das foras sociais, de doutrinas polticas mais avanadas que ele pr-prio: o radicalismo, a democracia integral, o socialismo.

    a conjuno do ideal e da realidade, a convergncia de aspiraes intelectuais e sentimentais, mas tambm de interes-ses bem palpveis, que constituram a fora do movimento libe-ral, entre 1815 e 1840. Reduzido a uma filosofia poltica, ele sem dvida no teria mobilizado grandes batalhes; confundido com a defesa pura e simples de interesses, ele no teria sus-citado adeses desinteressadas, que foram at o sacrifcio su-premo. 3. AS ETAPAS DA MARCHA DO LIBERALISMO

    O liberalismo transformou a Europa tal qual era em 1815

  • ora graas s reformas fazendo uso da evoluo progressiva, sem violncia , ora lanando mo da evoluo por meio da mu-dana revolucionria. Entre esses dois mtodos, o liberalismo, em sua doutrina, no encontra razo para preferir um ao outro. Se ele pode evitar a revoluo, alegra-se com isso. Na verdade isso aconteceu muito raramente.

    Talvez somente na Inglaterra, nos Pases Baixos e nos pa-ses escandinavos que o liberalismo transformou pouco a pouco o regime e a sociedade por meio de reformas. Em todos os ou-tros lugares, acossado pela resistncia obstinada dos defenso-res da ordem estabelecida, que recusava qualquer concesso, o liberalismo recorreu ao mtodo revolucionrio. a atitude de Carlos X, em 1830, e a promulgao de ordenanas que violavam o pacto de 1814, que levam os liberais a fazer a revoluo pa-ra derrubar a dinastia. assim tambm que a poltica obstina-da de Metternich levar a ustria, era 1848, revoluo.

    O esprito do sculo, o clima, a sensibilidade romntica, o exemplo da Revoluo Francesa e a mitologia dela decorrente tambm orientam para solues do tipo revolucionrio. Esta uma das conseqncias do romantismo: a preferncia sentimental pela violncia; toda uma mitologia da barricada, da insurrei-o triunfante, do povo em armas, imps as solues revolucio-nrias, e um grande romance pico, como Os Miserveis , a es-se respeito, um bom testemunho do esprito do tempo. O "sol de Julho", em 1830, a "primavera dos povos", em 1846, so outras tantas expresses que atestam o messianismo revolucionrio, essa espcie de culto revoluo, o que, um sculo depois, Malraux, a propsito da guerra da Espanha, chamar de "iluso lrica".

    Na primeira metade do sculo, o movimento liberal decom-pe-se em vagas sucessivas. Rememorando rapidamente sua crono-logia, veremos desenhar-se o mapa do liberalismo em ao e em armas. Primeiro Episdio Em 1820

    O liberalismo toma a forma de conspiraes militares O e-

    xercito, na poca, o lar do liberalismo, mas tambm seu ins-trumento, por no ter perdido a lembrana das guerras napole-nicas, de que sentia saudades. Na Frana, uma srie de compls o mais comum dos quais aquele que acaba no cadafalso, pela execuo dos quatro sargentos de La Rochelle ; em Portugal, na Espanha, os antecessores dos pronunciamientos; em Npoles, no Piemonte, as insurreies liberais tomam a forma de sedio armada. At na Rssia, com o movimento decabrista, em 1825. Oficiais ou suboficiais so a alma dessas conspiraes, todas malogradas, ou frustradas pela polcia, ou esmagadas por uma interveno armada, muitas vezes do exterior; como aconteceu na Itlia, onde os soldados austracos restabelecem o Antigo Regime.

  • Segundo Abalo em 1830 Essa onda ssmica de maior amplitude em vrios pases pro-

    voca rachaduras no edifcio poltico e o lana abaixo. Fazen-do-se um paralelo com os movimentos de 1820, pode-se falar verdadeiramente de revoluo, porque as foras populares en-tram em ao.

    O destino desses movimentos muito diverso, de acordo com as regies. A oeste, as revolues triunfam. Na Frana, o ramo mais velho destronado, o ramo mais novo sucede-o, a Carta revisada e um regime liberal segue-se Restaurao. Os libe-rais, da por diante, governam a igual distncia da contra-revoluo e da democracia.

    Na Blgica, a revoluo no se limita a uma rplica da Re-voluo Francesa, porque, alm do aspecto liberal, anlogo ao da Frana, ela apresenta um carter nacional, dirigido contra a unidade dentro do reino dos Pases-Baixos. A Blgica emanci-pada uma realizao exemplar do liberalismo. Sua independn-cia o fruto da aliana entre liberais e catlicos; ela ou-torga a si mesma instituies liberais a Constituio de 1831 , e a economia do novo Estado ir conhecer um impulso rpido, que ilustra a superioridade das mximas liberais em relao ao mercantilismo do Antigo Regime. Mas as revolues malogram quase que em toda parte; sem dvida, eram prematuras.

    Em 1848, o liberalismo se ligar, de modo muitas vezes in-dissocivel, democracia, e as revolues de 1848 presencia-ro o sucesso precrio e, depois, o esmagamento simultneo do liberalismo e da democracia. As Tentativas dos Liberais

    sob a gide do liberalismo que a unidade italiana ser

    conseguida. Cavour um liberal. Em fevereiro de 1848, a mo-narquia piemontesa se liberaliza quando Carlos-Alberto concede um estatuto constitucional, que o decalque da Carta revisada em 1830. Pode-se dizer que em fevereiro de 1848 o Piemonte a-certa o passo com a revoluo de julho de 1830 na Frana, com uma diferena um tanto comparvel que existe entre os Esta-dos Unidos e a Europa. A vida poltica piemontesa foi domina-da, a partir de 1852, pelo que o vocabulrio poltico italiano chama de connubio, a unio de diferentes fraes liberais. De 1852 a 1859, o governo pratica uma poltica tipicamente libe-ral, no s no domnio das finanas como tambm no domnio da religio, com a secularizao dos bens das congregaes.

    O liberalismo triunfa ainda nos Estados escandinavos, nos Pases Baixos, na Sua, mas ainda no se aclimata na pennsu-la ibrica, onde a conjuntura no lhe favorvel.

    Na Alemanha, o liberalismo tem uma histria singularmente acidentada. Tendo comeado por triunfar em diversos Estados, podemos acreditar que depois de 1815 a Alemanha ser um pas no qual o liberalismo h de se expandir. Em 1820, a agitao

  • universitria e estudantil tipicamente liberal, e diversos soberanos outorgam constituies liberais. Em 1830, a Alemanha de novo sacudida por uma vaga liberal, vinda de Paris. Mas esse liberalismo contido; a ustria est vigilante. Em 1848, ele torna a se afirmar no Parlamento de Frankfurt, que a primeira expresso poltica da Alemanha unida. As idias que a tm curso so liberais, mas esse liberalismo no sobrevive-r experincia de Frankfurt. que o liberalismo, na Alema-nha, encontra-se num dilema. Com efeito, quando o rei da Prs-sia, em 1862, confia a Bismarck a chancelaria, ele quer proce-der unificao, mas no pretende faz-lo pelos meios libe-rais, enquanto que at ento unidade e liberalismo estavam li-gados. Bismarck, ento, obriga os liberais a escolher entre unidade e liberalismo. Os liberais dividem-se por isso numa minoria que permanece fiel filosofia liberal, e prefere re-nunciar unidade, e numa maioria que d prioridade unifica-o e se resigna a renunciar s liberdades parlamentares. Essa ciso enfraqueceu o liberalismo alemo por muito tempo e ser preciso esperar pela repblica de Weimar para que o liberalis-mo renasa como uma fora poltica, na Alemanha moderna.

    Na ustria, os prdromos do movimento liberal delineiam--se mais tarde ainda, na segunda metade do sculo. Depois de 1867 e depois da aceitao do dualismo, o imperador outorga ustria uma constituio que favorece o desenvolvimento de um regime liberal.

    Na Rssia, a experincia dos decabristas est um sculo frente, ou quase. Contudo, um liberalismo moderado inspira al-gumas das iniciativas do tzar reformador, Alexandre II. Em 1870, por exemplo, os zemstvos, uma espcie de conselheiros gerais, so encarregados de certas responsabilidades locais relacionadas com a inspeo dos caminhos e canais, a assistn-cia social, os hospitais, a instruo. A, uma elite culta fa-r a experincia do liberalismo, mas somente a partir da re-voluo de 1905 que o liberalismo triunfa na Rssia, com o partido constitucional democrata, que representa na vida pol-tica russa as idias liberais que haviam triunfado setenta e cinco anos antes, na Frana da Monarquia de Julho.

    Desse modo, a cronologia traa as etapas da expanso libe-ral. A geografia no menos instrutiva. O liberalismo desen-volve-se primeiro num domnio relativamente restrito a Euro-pa Ocidental depois estende-se, progressivamente, pelo resto da Europa. Seu estudo, alis, deveria estender-se para fora da Europa, e encontraramos em diversos pases colonizados os herdeiros do liberalismo europeu. Apenas um exemplo: o partido do Congresso, fundado na ndia em 1885, por instigao das au-toridades britnicas, de inspirao liberal e se prope for-mar uma elite poltica anglo-indiana, cujo programa ser o self-government, a extenso ndia das instituies parlamen-tares que, h um sculo, se haviam desenvolvido na Inglaterra. Desse modo, quase sempre, o movimento de emancipao colonial foi preparado por uma gerao formada na escola do liberalismo

  • ocidental. O domnio do liberalismo no se restringe, portanto, a al-

    guns pases, que constituem seu terreno de eleio, mas, pelo canal das idias europias, engloba o mundo inteiro. 4. OS RESULTADOS

    Qual foi o balano desses movimentos liberais? Deixaram

    eles sua marca nas instituies polticas e na ordem social? A mesma pergunta pode ser feita trocando-se os termos: quais os sinais pelos quais se pode reconhecer que um regime poltico liberal? Quais os critrios que permitem que se afirme, desta ou daquela sociedade, que sua organizao est conforme os princpios do liberalismo?

    Examinaremos sucessivamente as caractersticas da ordem poltica inspirada no liberalismo e os caracteres constituti-vos das sociedades impregnadas por essa filosofia. Os Regimes Polticos Liberais

    Em virtude de sua identidade de inspirao, os regimes li-

    berais mostram traos comuns entre si. Na maioria dos pases, o progresso do liberalismo medido pela adoo de institui-es cuja reunio define o regime liberal tpico.

    Em primeiro lugar, o liberalismo de um regime reconhe-cido, primeiramente, pela existncia de uma constituio. Em relao inexistncia de textos no Antigo Regime, trata-se de uma novidade radical da Revoluo que, pela primeira vez na Europa depois do exemplo dos Estados Unidos tem a idia de definir por escrito a organizao dos poderes e o sistema de suas relaes mtuas. No sculo XIX, os regimes liberais reto-mam, cada um por sua conta, o precedente revolucionrio.

    Essas constituies so estabelecidas em condies vari-veis: s vezes o soberano quem a outorga e a apresenta como um gesto gracioso, enquanto que em outras circunstncias a constituio votada pelos representantes da nao.

    Para no dar seno um exemplo, a Frana associa os dois casos. A Carta, em seu texto inicial, promulgada por Lus XVIII, a 4 de junho de 1814. Trata-se de um texto outorgado o prembulo insiste propositadamente nesse ponto, a fim de dissimular as concesses implcitas na Carta. Dezesseis anos depois, aps a queda de Carlos X, a Carta revisada pela C-mara dos Deputados e depois de ter feito juramento nova Carta revisada que Lus Filipe chamado a subir ao trono. As-sim, o mesmo texto (apenas emendado) foi, primeiro, outorgado e, depois, elaborado pelos representantes da nao.

    A existncia de um texto constitucional um dos critrios pelos quais se pode reconhecer o liberalismo de uma sociedade poltica: significa, com efeito, a ruptura com a ordem tradi-cional, a substituio de um regime herdado do passado, pro-duto do costume, por um regime que j se tornou a expresso de

  • uma ordem jurdica. Essa a novidade radical. Pouco importa, num sentido, a extenso das concesses ou a importncia das garantias liberdade individual ou coletiva; o essencial que exista uma regra, um contrato que fixe e precise as rela-es entre os poderes. Como a maior parte das filosofias da primeira metade do sculo XIX, e sem ter conscincia do que ela tem de formalista, o pensamento liberal , portanto, es-sencialmente jurdico. S mais tarde que a evoluo mostrar a tendncia de substituir os conceitos jurdicos por rea-lidades sociais e econmicas.

    Em segundo lugar, essas constituies tendem, todas, a li-mitar o poder. Trata-se mesmo de sua razo de ser. Todas tm em comum o fato de traarem as fronteiras, de determinarem os limites de sua ao. O liberalismo define-se por sua oposio noo de absolutismo. Tome-se no importa que constituio, todas enquadram o exerccio do poder real dentro de uma esfera j ento delimitada, quer se trate da Carta francesa de 1814, ou da constituio do reino dos Pases Baixos, da constituio da Noruega ou dos textos outorgados pelo soberano da Alemanha mdia ou meridional (Baviera, Wurtemberg, Bade, Saxe-Weimar) entre 1818 e 1820, ou, bem mais tarde ainda, do estatuto cons-titucional do Piemonte, em 1848. Seria conveniente acrescentar a esta enumerao a constituio espanhola de 1812, que no foi aplicada por muito tempo mas serviu bastante como refern-cia. O texto havia sido elaborado pela junta insurrecional de Sevilha. Suspenso depois da volta de Fernando VII, para re-coloc-lo em vigor que eclode a insurreio de 1820.

    O poder, portanto, limitado, mas isso no impede que ele seja monrquico. O liberalismo, alis, no hostil nem for-ma monrquica nem ao princpio dinstico, mas apenas ao abso-lutismo da monarquia. Monarquia e liberalismo entendem-se at muito bem, porque a presena de uma monarquia hereditria uma garantia contra as investidas demaggicas e as violncias populares.

    Limitada pela existncia de uma representao da nao sob nomes muito diferentes, aqui, Cmara, ali, Dieta, acol, ainda, Estados Gerais , a deciso poltica agora partilhada pela coroa e a representao nacional. Essa representao de ordinrio dupla: o liberalismo gosta do bicameralismo. Quanto mais poderes existirem, menor ser o perigo de que um deles arrogue-se a totalidade do poder. Duas Cmaras, essa a fr-mula ideal que permite dividir, equilibrar, compensar. A uma Cmara baixa faz contrapeso uma Cmara alta, composta de des-cendentes da aristocracia ou de membros escolhidos pelo poder. Assim possvel conter melhor as mudanas de humor ou a tur-bulncia das paixes populares: a presena de uma segunda C-mara em regime democrtico , em geral, um vestgio do libera-lismo.

    O carter transacional do liberalismo marcado pela com-posio do corpo eleitoral: em nenhum lugar o liberalismo ado-ta o sufrgio universal e, quando este introduzido, sinal

  • de que o liberalismo cedeu lugar democracia. Distinguem-se tradicionalmente duas concepes de elei-

    torado: aquela segundo a qual o direito de voto um direito natural, inerente cidadania, que a concepo mais demo-crtica, e a do eleitorado como funo, de acordo com a qual o direito de voto no passa de uma funo, uma espcie de servi-o pblico, do qual a nao decide investir esta ou aquela ca-tegoria de cidados, introduzindo desse modo uma distino en-tre o pas legal e o pas real, sendo este ltimo conceito na-turalmente o mais conforme ao ideal liberal. Numa sociedade liberal, o fato de apenas uma minoria dispor do direito de vo-to, da plenitude dos direitos polticos, o fato de haver nela duas categorias de cidados, no nada vergonhoso e parece at normal e legtimo. Se essa discriminao ao mesmo tempo seletiva e exclusiva, nem por isso ela definitiva e absolu-ta: ela no exclui para sempre este ou aquele indivduo. Basta preencher as condies impostas atingir os 300 francos do censo para algum se tornar ipso facto eleitor. O princpio inteiramente diverso do do Antigo Regime, que atribua esse privilgio ao nascimento.

    Assim e as duas caractersticas so complementares , as sociedades liberais sem dvida so restritivas o que as diferencia das sociedades democrticas mas a excluso do su-frgio no definitiva. Desse modo explica-se o dito hoje escandaloso de Guizot: "Enriquecei-vos!" Aos que lhe objeta-vam que apenas uma minoria de franceses participava da vida poltica e reclamavam imediatamente a universalidade do sufr-gio, Guizot respondia que existia um meio para que todos se tornassem eleitores: preencher as condies de fortuna, enri-quecer-se. No se trata de uma recusa, mas de um adiamento. Imaginava-se ento que era bastante trabalhar regularmente e economizar para se enriquecer e ter acesso ao voto. Parecia, portanto, legtimo reservar o exerccio do voto queles que haviam trabalhado e economizado, ao invs de conced-lo a quem quer que fosse. A poltica liberal inscreve-se desse modo na perspectiva de uma moral burguesa pr-capitalista, ignorante da concentrao e da dificuldade que um indivduo tem para sa-ir de sua classe e realizar sua promoo social.

    Constituio escrita, monarquia limitada, representao nacional, bicameralismo, discriminao, pas legal, pais real, sufrgio censitrio. Acrescentemos, para acabar de carac-terizar o sistema poltico, a descentralizao, que associa gesto dos negcios locais representantes eleitos pela popu-lao.

    O interesse dos liberais por esse sistema responde a uma dupla preocupao que ilustra a ambigidade do liberalismo. Confiar a administrao local a representantes eleitos mani-festar a prpria desconfiana a respeito do poder central e de seus agentes executivos, cujo campo de atividades reduzido, mas tambm uma precauo contra as investidas populares, pois que se entrega o poder local aos notveis. A reivindica-

  • o da descentralizao tem portanto o sentido de uma reao social o liberalismo aristocrtico ao mesmo tempo contra a centralizao do Estado e contra a democracia prtica.

    Encontraramos numerosos exemplos dessa organizao dos poderes: na monarquia constitucional francesa; no regime bri-tnico; no Piemonte, a partir de 1848; nos Pases Baixos; na Blgica e nos reinos escandinavos, a partir de 1860; na Itlia unificada, cujas instituies inspiram-se no liberalismo e on-de ser necessrio esperar por 1912 para que uma lei mencione pela primeira vez o princpio do sufrgio universal.

    Ao lado dessa organizao dos poderes, o liberalismo rei-vindica e instaura as principais liberdades pblicas, garanti-doras do indivduo em relao autoridade.

    Trata-se, primeiro, do reconhecimento da liberdade de opi-nio, isto , da faculdade de cada um fazer uma opinio e no de a receber j feita , mas tambm da liberdade de ex-presso, da liberdade de reunio, da liberdade de discusso, que decorrem logicamente do reconhecimento das opinies indi-viduais.

    Tambm so tomadas disposies em favor da liberdade da discusso parlamentar, da publicidade dos debates parlamenta-res, da liberdade da imprensa. A esse respeito, significati-vo que durante a Restaurao e a Monarquia de Julho boa parte das controvrsias polticas, das polmicas e dos debates, en-tre a maioria e a minoria, entre o governo e as Cmaras se es-tabelea em torno do estatuto da imprensa, assim como do regi-me eleitoral.

    A preocupao com a liberdade estende-se ao ensino. Com efeito, os liberais no consideram nada mais urgente do que subtrair o ensino influncia da Igreja, sua principal adver-sria. De fato, o liberalismo mais anticlerical do que anti-religioso e, se ele pode ser espiritualista, se pode aceitar, o reconhecimento do cristianismo, ele necessariamente anti-clerical, porque relativista e, portanto, contra qualquer dogma imposto. O catolicismo restaurado, contra-revolucion-rio, do sculo XIX, aparece como o smbolo da autoridade, da hierarquia dogmtica e preciso subtrair sua influncia o ensino sobretudo o ensino secundrio, de particular interes-se para os liberais, pois esse ensino que forma os futuros eleitores. H coincidncia, com poucas excees, entre os que cursaram humanidades e conseguiram o bacharelado e os que so proprietrios e fazem parte do pas legal. Para os liberais, desejosos de fundar a liberdade de um modo duradouro, o ensino secundrio portanto uma pea-mestra da sociedade. Todas as querelas que, entre 1815 e 1850 (a lei Falloux), se travam em torno do monoplio ou da liberdade da Universidade, tm como abono o controle do ensino secundrio. Os liberais portanto, cuidaro de no conceder a liberdade de ensino plena e comple-ta a quem iria us-la de modo que contrariasse os princpios de uma educao liberal.

    Mais geralmente, o liberalismo tende a reduzir, a retirar

  • das Igrejas seus privilgios e a instaurar a igualdade dos di-reitos entre a religio tradicional e as outras confisses. Nos pases catlicos, os protestantes sero admitidos aos car-gos civis, a Igreja ser privada da administrao do estado civil e se conferir ao casamento civil um valor legal, que ele no possua numa sociedade na qual s os sacramentos ti-nham valor jurdico. Nos pases de confisso protestante, o liberalismo impor progressivamente a emancipao dos catli-cos: em 1829, na Inglaterra, o ato de emancipao tira os ca-tlicos (sobretudo os irlandeses) de sua sujeio e faz deles cidados quase iguais, porque subsiste ainda, para o exerccio de alguns cargos pblicos, um privilgio em favor dos fieis da Igreja Anglicana. A Ordem Social Liberal

    Decifrando a marca que o liberalismo deixa na sociedade,

    reconhecemos numerosos traos j evocados a propsito da obra da Revoluo, pois que, nesse terreno, mais ainda do que no precedente, o liberalismo o herdeiro de seu esprito. Igualdade de Direito, Desigualdade de Fato

    A sociedade repousa sobre a igualdade de direito: todos

    dispem dos mesmos direitos civis. Contudo, em parte sem que o saiba, em parte deliberadamente, o liberalismo mantm uma de-sigualdade de fato e vai dar ocasio para a crtica dos demo-cratas e dos socialistas.

    O reconhecimento da igualdade de todos diante da lei, di-ante da justia, diante do imposto no exclui a diferena das condies sociais, a disparidade das fortunas, uma distribui-o muito desigual da cultura. Acontece mesmo que a sociedade liberal consagra em seus cdigos algumas desigualdades; como, por exemplo, entre o homem e a mulher, entre o empregador e o empregado. O Dinheiro

    Alm da desigualdade de princpio e da desigualdade de fa-

    to, a sociedade liberal repousa essencialmente no dinheiro e na instruo, que so os dois pilares da ordem liberal, os dois pivs da sociedade.

    Esses dois princpios, fortuna e cultura, produzem simul-taneamente conseqncias que podem ser contrrias; isso que importa compreender bem se quisermos conhecer e apreciar eqi-tativamente a sociedade liberal. Isso ainda verdade para as sociedades ocidentais. O dinheiro, como a instruo, produzem efeitos, alguns dos quais so propriamente liberais, enquanto outros tendem a manter ou a reforar a opresso. No h aqui lugar para surpresas: a realidade histrica sempre muito complexa para que se possa, assim, no mesmo instante, apurar

  • efeitos contrrios. O dinheiro um princpio libertador. A substituio da

    posse do solo ou do nascimento pelo dinheiro como princpio de diferenciao social incontestavelmente um elemento de eman-cipao. A terra escraviza o indivduo, fixa-o ao solo. A mo-bilidade do dinheiro permite que se escape s imposies do nascimento, da tradio, que se fuja ao conformismo dessas pe-quenas comunidades voltadas sobre si mesmas e estritamente fe-chadas. Basta ter dinheiro para que haja a possibilidade de mudar de lugar, de trocar de profisso, de residncia, de re-gio. A sociedade liberal, fundada sobre o dinheiro, abre pos-sibilidades de mobilidade: mobilidade dos bens que trocam de mos, mobilidade das pessoas no espao, na escala social.

    No sculo XIX, as sociedades liberais francesa, inglesa e belga oferecem muitos exemplos de indivduos que rapidamente subiram nos escales da hierarquia social, fazendo fortunas impressionantes, devidas unicamente sua inteligncia e ao dinheiro. O caso de um Laffite, que, de banqueiro de condio modestssima, torna-se um dos homens mais ricos da Frana, a ponto de fazer parte do primeiro governo da Monarquia de Ju-lho, no nico. O dinheiro , portanto, um fator de liberta-o, o princpio e a condio de emancipao social dos indi-vduos.

    Mas o contrrio evidente, porque as possibilidades no esto ao alcance de todos, e o dinheiro um princpio de o-presso. Para comear, preciso ter um mnimo de dinheiro, ou muita sorte. Para os que no o possuem, o domnio exclusivo do dinheiro provoca, pelo contrrio, o agravamento da situao. talvez no quadro da unidade do campo que se pode medir melhor os efeitos dessa revoluo: na economia rural do Antigo Regi-me, todo um sistema de servides coletivas permitia que quem no possusse terras sobrevivesse, pois havia a possibilidade de usar os terrenos comunais, de mandar o gado a pastar em terras que no lhe pertenciam, mas que a proibio de cercar conservava acessveis. Havia assim coexistncia entre ricos e pobres.

    O deslocamento dessa comunidade, a ab-rogao dessas impo-sies, a proclamao da liberdade de cultivar, de cercar as terras, favorecem aqueles que possuem bens, com possibilidade, portanto, de conseguir rendas maiores. Eles passam a fazer parte de uma economia de trocas, de lucro; ampliam seus dom-nios, se enriquecem, lanam as bases de uma fortuna, enquanto que os outros, privados do recurso que lhes era proporcionado pelo uso dos terrenos comunais, privados igualmente da possi-bilidade de subsistir, so obrigados a deixar a aldeia, a bus-car trabalho na cidade. V-se com esse exemplo como a mesma revoluo provocou simultaneamente efeitos contrrios, de a-cordo com aqueles sobre os quais recaem esses efeitos: sobre os ricos ou sobre os pobres, sobre os que tm um pouco ou so-bre os que nada possuem.

    Toda uma populao indigente, de sbito, perdeu a proteo

  • que lhe era assegurada pela rede das relaes pessoais, e vive agora numa sociedade annima, na qual as relaes so jurdi-cas, impessoais e materializadas pelo dinheiro. Compra, venda, remunerao, salrio: fora da no h salvao.

    Desse modo, uma parte da opinio pblica conservar a nos-talgia da sociedade antiga, hierarquizada, verdade, mas fei-ta de laos pessoais, uma sociedade na qual os inferiores en-contravam largas compensaes a seu dispor. Os legitimistas, o catolicismo social, parte mesmo do socialismo tm saudade da antiga ordem de coisas e querem que seja restaurada essa soci-edade paternalista, na qual a proteo do superior garantia ao inferior que ele no morresse de fome, enquanto que na socie-dade liberal no h mais ajuda nem recurso contra a misria e a desclassificao.

    verdade, essa nova sociedade no o produto exclusivo da revoluo poltica: ela tambm a conseqncia de uma mu-dana da economia e da sociedade e esse novo sistema de rela-es corresponde a uma sociedade urbanizada e industrial, na qual o comrcio e a manufatura tornam-se as atividades privi-legiadas. O Ensino

    Do ensino, outro fundamento da sociedade liberal, pode-se

    dizer igualmente que um fator de libertao, mas tambm que sua privao lana parte das pessoas num estado de perptua dependncia.

    Na escala dos valores liberais, a instruo e a intelign-cia ocupam um lugar de importncia to grande quanto o dinhei-ro ao qual alguns historiadores da idade liberal atribuem uma importncia demasiado exclusiva , e no so raros os e-xemplos de indivduos que tiveram um brilhante xito social, que chegaram at a tomar parte no poder sem que tivessem, no incio, um tosto, mas que deram prova de habilidade e de in-teligncia. Ao lado de Laffite, poder-se-ia evocar a carreira de Thiers, tambm de condio muito modesta, que deve seu su-cesso inteligncia e ao trabalho. Jornalista, ele chega a ser presidente do Conselho, tornando-se na segunda metade do sculo o smbolo da burguesia liberal. A instruo abre cami-nho para todas as carreiras: o ensino, o jornalismo, a polti-ca.

    Os estudos clssicos so sancionados por diplomas, o mais famoso dos quais, o bacharelado, uma instituio essencial da sociedade liberal. Criado em 1807, contemporneo portanto da Universidade napolenica, solidrio com a organizao das grandes escolas, o bacharelado pertence a todo o sistema sado da Revoluo, repensado por Napoleo, de um ensino canalizado, disciplinado, organizado, sancionado por diplomas, abrindo o acesso a escolas para as quais se entra mediante concurso. No sculo XIX, e hoje ainda, o prestgio do bacharelado, como o das grandes escolas, o smbolo de um estado de esprito e de

  • uma atitude caractersticas das sociedades liberais. Qualquer um pode estudar, apresentar-se ao bacharelado, tentar sua chance nos concursos de ingresso na Politcnica ou na Escola Normal. Mas fcil adivinhar os inconvenientes desse prest-gio da cultura: essa sociedade abre possibilidades de promo-o, mas apenas a um pequeno grupo, e aos que no ostentam os sacramentos universitrios so reservadas as funes subalter-nas da sociedade. Como o dinheiro, a instruo ao mesmo tem-po emancipadora e exclusiva. o que, num pequeno tratado mui-to substancial, o socilogo Goblot exprimiu sob o ttulo de A Barreira e o Nvel. O ensino, o bacharelado, os diplomas cons-tituem ao mesmo tempo uma barreira e um nvel.

    Por meio do dinheiro e da instruo, vemos quais so os traos constitutivos e especficos das sociedades liberais. Trata-se de sociedades em movimento, e esta sua grande dife-rena em relao ao Antigo Regime, j envelhecido, que tende a se esclerosar, e cujas ordens se fixavam em castas.

    A passagem do Antigo Regime para o liberalismo um dege-lo, uma abertura repentina, uma fluidez maior proporcionada sociedade, uma mobilidade maior proposta aos indivduos. Mas essa sociedade aberta tambm uma sociedade desigual. da justaposio desses dois caracteres que se depreende a nature-za intrnseca da sociedade liberal, que a democracia ir pre-cisamente colocar em causa. Esta procurar alargar a brecha, abrir todas as possibilidades e chances que as sociedades li-berais nada mais fizeram do que entreabrir para uma minoria.

  • 3

    A ERA DA DEMOCRACIA O movimento democrtico, por sua vez, ir transformar as

    instituies polticas e a ordem social das sociedades li-berais.

    Como para o liberalismo, definiremos primeiro a idia, de-pois a sociedade democrtica; relembraremos as peripcias, do movimento democrtico e, para finalizar, analisaremos os re-sultados e as caractersticas das sociedades sadas desse mo-vimento, que se define, em sua origem, como uma fora de transformao revolucionria. 1. A IDIA DEMOCRTICA

    No se trata de definir a democracia em si mesma, como uma

    essncia intemporal, independente dos lugares e dos tempos, mas de defini-la no contexto da primeira metade do sculo XIX, quando ela se define como oposio ao Antigo Regime, e mais ainda como negao ou como um movimento que vai alm do libe-ralismo. Essa definio histrica poder valer para outros tempos, porque constitui um ncleo comum em torno do qual evo-lui uma faixa imprecisa, revelando a experincia, progressiva-mente, aspectos insuspeitos, prolongamentos inesperados da i-dia democrtica.

    Para definir a democracia no sculo XIX conveniente con-jugar as duas abordagens usadas para o liberalismo: a aborda-gem ideolgica e a abordagem sociolgica ou, se se preferir, os princpios e as bases sociais, as foras sobre as quais se apia a idia democrtica.

    A idia democrtica mantm com o liberalismo relaes com-plexas. assim que ela retoma toda a herana das liberdades pblicas, que o liberalismo havia sido o primeiro a inscrever nos textos. Longe de voltar atrs no que respeita s suas a-quisies, ela as afirma, e ir dar-lhes at maior amplitude. desse modo que a democracia constitui um prolongamento da idia liberal. Essa o motivo pelo qual, hoje, somos muitas vezes tentados a no ver na democracia mais do que o desenvol-vimento da idia liberal, enquanto no sculo XIX ela se mostra sobretudo desligada da ordem e da sociedade do liberalismo: com efeito, em 1840 ou em 1860, os democratas contestam e at combatem essa ordem. A Igualdade

    O que caracteriza, em primeiro lugar, a democracia em re-

    lao ao liberalismo a universalidade ou, se se preferir, a igualdade. Com efeito, a idia democrtica rejeita as distin-

  • es, as discriminaes, todas as restries, mesmo tempor-rias. Enquanto os liberais usam a linguagem do possvel, in-vocando a experincia, as realidades, a impossibilidade de pr em prtica imediatamente os princpios, os democratas opem-lhes os princpios e militam por sua aplicao. Assim a demo-cracia reivindica a abolio do censo, o direito do voto para todos, de imediato, sem protelaes nem etapas, porque ela a-cha que todo mundo apto a exercer o direito de votar.

    Em 1848, os democratas ainda no pressentem todos os de-senvolvimentos da idia democrtica, mas um ponto lhes parece indiscutvel: no existe democracia sem sufrgio universal. Num sentido, pode-se considerar que o critrio menos incontes-tvel da democratizao, no sculo XIX, das sociedades polti-cas, a cronologia das datas nas quais os diversos pases a-dotaram o sufrgio universal. Soberania Popular

    Universalidade ou igualdade, mas tambm soberania popular;

    as trs noes esto ligadas. Soberania popular e no mais so-berania nacional, distino, alis, capital. Com efeito, quan-do os liberais falam em soberania nacional, entendem que a na-o, como entidade coletiva, de fato soberana, sendo essa soberania, na prtica, exercida apenas por uma minoria de ci-dados. A soberania popular implica no fato de o povo ser so-berano, isto , a totalidade dos indivduos, compreendendo a as massas populares. A palavra povo uma das mais ambguas que existem, porque pode referir-se ao mesmo tempo a um con-ceito jurdico e tomar uma acepo sociolgica; na democracia, esses dois sentidos esto bem prximos um do outro. O povo, tal como a ele se referem Lamennais ou Michelet, tal como o invocam os revolucionrios de 1848, o conjunto dos cidados e no apenas uma abstrao jurdica. Os dois conceitos dife-rentes de soberania criam dois conceitos diferentes de eleito-rado: com a democracia, o conceito do eleitorado como um di-reito que prevalece.

    V-se como a democracia se inscreve, de certo modo, no prolongamento do liberalismo e como se ope a ele, derrubando as barreiras que o liberalismo havia levantado. As Liberdades

    A democracia , tambm, mas com restries importantes, as

    liberdades. Os democratas retomam por sua prpria conta a herana in-

    telectual e institucional que lhes legada pelos liberais, mas com uma perspectiva diferente e num contexto que modifica profundamente o seu sentido. Com os liberais, o exerccio das liberdades era reconhecido para aqueles que j possuam as ca-pacidades intelectuais ou econmicas; este o motivo pelo qual os liberais no viam contradio entre o princpio da li-

  • berdade de imprensa e a fiana que se exigia dos jornais, fi-cando assim na prpria lgica do sistema, que queria que as liberdades fossem concedidas queles que estavam altura de us-las de um modo racional. Os democratas acabam com essas restries e reivindicam a liberdade para todos. por isso que, para eles, a liberdade de imprensa exclui, por exemplo, qualquer interveno preventiva ou repressiva do poder, mas tambm qualquer compromisso financeiro. A grande lei de 1881 que, ainda hoje, na Frana, rege o funcionamento da imprensa, procede da concepo democrtica.

    Os democratas sabem muito bem que as desigualdades sociais opem obstculos srios ao funcionamento real da democracia. Tanto que, para eles, o meio mais seguro de preparar o advento da democracia, e de fazer com que ela passe a integrar os cos-tumes, reduzir as desigualdades, equilibrar as disparidades, estender o benefcio da liberdade a todos, sem nenhuma espcie de exceo. As Condies de Exerccio das Liberdades

    A liberdade para todos, mas tambm os meios de exercer es-

    sa liberdade: com isso que se preocupam os democratas, aler-tados pela experincia, pois sabem muito bem que no basta que um princpio seja inscrito na lei, mas que ainda necessrio cuidar de sua aplicao; enquanto que os liberais, sensveis sobretudo ao aspecto jurdico, compraziam-se em pensar que ha-viam resolvido os problemas quando haviam estabelecido uma re-gra de direito.

    sobre esse ponto que o pensamento democrtico ir se comprometer com desenvolvimentos imprevistos, que podero le-v-lo a verdadeiras reviravoltas. Com efeito, se preciso as-segurar aos indivduos condies para o exerccio das liber-dades, a lgica pode levar o poder pblico a intervir nas re-laes interindividuais, a fim de corrigir as desigualdades, tirando de quem tem demais para dar a quem no tem o bastante, assegurando desse modo o gozo efetivo dos direitos; poder, portanto, acontecer que os democratas sejam s vezes levados a optar entre duas concepes da democracia, uma que continua ligada sobretudo aos princpios da liberdade, e a outra que d maior nfase s condies prticas do que aos princpios. Essa a origem da divergncia entre as duas concepes da democra-cia, que hoje disputam entre si o domnio do mundo. A Igualdade Social

    Seguindo uma evoluo perfeitamente conforme s suas idi-

    as, a democracia no se interessa apenas pela igualdade jur-dica e civil, mas tambm pela igualdade social, cujas aplica-es e conseqncias s se revelaro aos poucos.

    nesse terreno, nessa direo, que se delineiam os pro-longamentos mais atuais da idia democrtica. Atestam-no nosso

  • vocabulrio poltico e essas expresses recentemente introdu-zidas em nossa linguagem poltica, tais como democratizao do ensino, planificao democrtica, poltica democrtica dos lu-cros.

    Desenvolvendo-se simultaneamente em vrias direes, a i-dia democrtica complexa. Que entre essas direes sejam possveis as divergncias e mesmo os antagonismos, essa pre-cisamente a histria da idia democrtica. 2. DEMOCRACIA E FORAS SOCIAIS

    Se a ntima ligao existente entre ideologia e sociedade

    liberal tornava necessria uma abordagem sociolgica, essa a-bordagem justifica-se mais ainda quando se trata da demo-cracia, pois, por definio, esta no poderia limitar-se ape-nas s reformas polticas, e tambm porque, se a idia demo-crtica obteve xito, se consegue adeptos, ela o deve s transformaes da sociedade. Os Fatores de Mudana e os Novos Tipos Sociais

    Novas camadas sociais aparecem, fenmeno resultante de

    trs tipos de mudana. Revoluo Tcnica

    As transformaes mais visveis, talvez tambm as mais de-

    cisivas, que afetam o sculo XIX, suas estruturas e seus rit-mos decorrem da economia e esto ligadas revoluo industri-al, florao de invenes que, de repente, aumentam o poder do homem sobre a matria, s maquinarias e sua aplicao na produo. Essa revoluo tcnica suscita novas formas de ati-vidade profissional, modifica as condies de trabalho, d o-rigem, por um encadeamento de causas e de conseqncias, a no-vos tipos sociais.

    Surge um patronato diferente do negociante-empresrio ou do manufaturista do sculo XVIII; mais intimamente ligando ao crdito e ao banco, ele um dos componentes da nova sociedade capitalista, que se desenvolve valendo-se das facilidades que o liberalismo triunfante lhe oferece. Mas, se esse patronato importante, pelo poder econmico que tem em mos, pelas res-ponsabilidades que exerce, ele quase no conta no plano das foras polticas, sobretudo depois da instaurao do sufrgio universal.

    Muito mais importante, numericamente, a categoria dos operrios da indstria, que constituem uma classe realmente nova, diferente da dos operrios do Antigo Regime. Sob o Anti-go Regime, o que chamamos de operrio estava mais prximo do arteso: o oficial mecnico, que trabalhava com o patro, era um empregado e no um proletrio, enquanto que a revoluo in-dustrial, a coligao de empresas, o uso das mquinas suscitam

  • a formao de uma classe que j anuncia o proletariado contem-porneo. Essa classe compe-se essencialmente de pessoas vin-das do campo, onde no encontravam trabalho, e que se fixam nas cidades. Seu advento um dos fatores do crescimento das aglomeraes urbanas nos sculos XIX e XX. Voltaremos, mais adiante, a falar sobre esse fenmeno da cidade nas sociedades modernas e sobre suas conseqncias tanto sociais quanto polticas.

    A oposio entre cidade e campo acentua-se com a sociedade industrial. Na economia do Antigo Regime, continuam ntimos os laos entre cidade e campo, que viviam em osmose. As cidades eram pequenas, o campo rodeava-as e suas relaes eram mlti-plas. medida que a cidade cresce, que aumenta a coincidncia entre as atividades de tipo industrial e a aglomerao urbana, as duas passam a se diferenciar. A evoluo faz com que seus destinos divirjam, assim como seus interesses e, no plano das foras polticas, suas opes, suas simpatias.

    A sociedade rural permanece tradicionalista, respeita a ordem estabelecida: nela, a submisso aos costumes, s auto-ridades cultivada como uma virtude. Pelo menos temporaria-mente, ela conservadora, e no ser uma das maiores surpre-sas do sufrgio universal constatar que, num primeiro tempo, refora-se a autoridade dos notveis, dando o sufrgio univer-sal, de repente, o direito de voto a uma massa rural que ainda a maioria numrica e que vota em favor das autoridades, so-ciais ou espirituais. Essa a lio das eleies francesas de 1848 e 1849, renovada vinte anos depois, em 1871: o pas d assento na Assemblia Nacional a uma forte maioria de notveis conservadores, legitimistas ou orleanistas. Os camponeses, que so a maioria, ainda no esto completamente emancipados do conformismo, do respeito pelos valores tradicionais e pela hi-erarquia social. No ser portanto entre a gente do campo que a idia democrtica ir recrutar seus defensores.

    No o ser tampouco, pelo menos na primeira gerao, entre a classe operria. Com efeito, essa classe operria, que se forma, na Inglaterra, desde o fim do sculo XVIII, na Frana, a partir de 1830, e mais tarde na Itlia do norte, no Ruhr, na Catalunha permanece passiva durante muito tempo. Passiva ou revoltada, e no integrada na sociedade. Passiva, o mais das vezes, porque herdeira de uma longa tradio camponesa de resignao, ou revoltada e rejeitando ao mesmo tempo o regime poltico, a ordem social e suas crenas. As elites dessa nova classe aderiro a doutrinas revolucionrias que no acreditam na democracia poltica. para o anarquismo, para o anarco-sindicalismo que se inclinaro a princpio a simpatia e a con-fiana dos militantes operrios; na Frana, o sindicalismo fi-car por muito tempo impregnado da ideologia anarco-sindicalista, pelo menos at a Primeira Guerra Mundial.

    Nessas condies, quais poderiam ser as bases sociolgicas da democracia? O equivalente do que arrolamos em relao ao liberalismo, com a burguesia do dinheiro e do talento, en-

  • contrado pela democracia em outros grupos, igualmente oriundos da revoluo econmica. Com efeito, as transformaes sociais resultantes das mudanas tcnicas ou econmicas no sculo XIX no se reduzem formao de um patronato capitalista e de uma classe operria. Existe entre eles toda espcie de elementos sociais, que a anlise social freqentemente esquece, mas que no so menos importantes quer pelo nmero quer pelo papel po-ltico. o que no sculo XIX se chamou de "classe mdia" (no sculo XX, passou-se a preferir o plural e a se dizer classes mdias). A expresso caracteriza bem sua situao intermedi-ria entre as classes tradicionalmente dirigentes a nobreza e a burguesia e, na outra extremidade da escala social, as massas populares, rurais ou urbanas.

    A formao dessas classes mdias resulta de certo nmero de fatos, tcnicos ou econmicos. Ao lado da concentrao pro-priamente industrial de uma mo-de-obra em torno dos locais de trabalho (minas ou fbricas), a revoluo econmica reveste-se de outras formas. O mesmo ocorre com a revoluo dos transpor-tes, com o aparecimento das estradas de ferro, que estabelecem em todos os pases da Europa redes diversificadas cobrindo a totalidade do territrio, e criando um novo tipo social, o