Repa, Luiz - Hegel, Habermas e a Modernidade

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  • Hegel, Habermas e a modernidade

    Luiz [email protected] Federal do Paran, Curitiba, Paran, Brasil

    resumo O artigo procura mostrar os principais motivos que levam Habermas a atribuir a

    Hegel o posto de inaugurador do discurso filosfico da modernidade. Retomando duas crti-

    cas distintas a essa tese, reivindicando tal posto para Kant, busca-se em seguida susten-

    tar que, para Habermas, um conceito adequado de modernidade tem de ser ao mesmo

    tempo uma crtica da modernidade.

    palavras-chave Habermas; Hegel; modernidade; reconhecimento intersubjetivo

    Entre todos os representantes da chamada grande filosofia, Hegel semdvida aquele a que Habermas mais dedicou ensaios e captulos em suasreconstrues tericas. Como editor do escritos polticos de Hegel, em1966, buscou relacionar a atividade do publicista e redator de jornal com aatividade do pensador sistemtico (HABERMAS, 1971b). Poucos anosantes, ele j havia retomado a crtica hegeliana Revoluo Francesa, emoposio tese de J. Ritter de que Hegel seria o filsofo da revoluo porexcelncia (HABERMAS, 1971a). Poucos anos depois, abre uma novalinha de interpretao do jovem Hegel, mais exatamente do perodo deJena, que serviria de base para sua prpria reformulao da teoria crtica,apoiando-se na distino entre trabalho e interao (HABERMAS, 1968).Na mesma poca, por volta de 1968, principia seu livro Conhecimento einteresse com uma anlise da Fenomenologia do esprito (HABERMAS,1973).Em 1974,discute a atualidade da tese hegeliana de que a sociedade moder-na forma sua identidade a partir do Estado constitucional (HABERMAS,

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    Recebido em 12 de maro de 2010.Aceito em 10 de abril de 2010.

  • 1976). Mas s em 1985 que Habermas publica sua leitura mais ampla deHegel, considerando-o o filsofo que inaugura o discurso filosfico damodernidade (HABERMAS, 1988). Em seguida, no mbito das discussessobre a tica do discurso, alinhava e enfrenta as objees hegelianas contraa moral kantiana (HABERMAS, 1991). A esses sete encontros comHegel, poderamos somar um tantos outros, s que bem mais ligeiros.

    Uma tal recorrncia, porm, no traduz a inteno de renovar opensamento hegeliano. Longe disso, mal encontramos uma avaliao maisdetida sobre a dialtica, para dar um exemplo bvio. No se trata dereconstruir nem de atualizar a teoria hegeliana a fim de que seus obje-tivos pudessem ser alcanado com premissas modificadas. Com exceodas passagens dedicadas ao jovem Hegel, ao perodo intersubjetivista,por assim dizer, todas as demais abordagens so marcadamente crticas,mesmo quando se busca qualific-lo como o primeiro filsofo aconceitualizar a modernidade.

    Por outro lado, preciso observar que nessas abordagens se atribui filosofia hegeliana quase sempre a posio de questionamentos incon-tornveis para o pensamento contemporneo. Pode-se dizer que so essesquestionamentos e no as suas solues o que, para Habermas, poderiaainda permanecer como herana genuna da filosofia hegeliana, salvo,mais uma vez, os primeiros esboos sobre o conceito de reconhecimen-to recproco1. Pois as solues ou as tentativas de solucionar os problemascolocados pela primeira vez por Hegel vo se inspirar muito mais emKant, isto , em um conceito de razo complexo e procedimental, calca-do, porm, no em uma teoria das faculdades cognitivas, mas sim na aocomunicativa e na teoria do discurso. Uma espcie de aliana entre Kante o jovem Hegel forneceria assim os meios para uma alternativa soluoproposta pelo Hegel maduro.

    Embora todos esses questionamentos postos por Hegel tenhamespecificidades prprias, eles remetem uns aos outros e desembocam emgeral em uma teoria da modernidade. Eu pretendo aqui relembrarprimeiramente os principais motivos que levam ento Habermas aatribuir a Hegel o posto de inaugurador do discurso filosfico damodernidade. Em seguida tentarei mostrar que duas crticas a essa tese,reivindicando tal posto para Kant, passam por cima do que essencial aHabermas, isto , que um conceito adequado de modernidade tem de ser

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  • ao mesmo tempo uma crtica da modernidade. Por fim, pretendo aomenos indicar como Habermas encaminha uma soluo para essa crtica,sem ter de enfrentar os dilemas do prprio Hegel.

    Segundo Habermas, Hegel teria sido o primeiro filsofo a estabelecer aconstelao conceitual entre modernidade, conscincia histrica e razo.Primeiramente, a modernidade e todas as expresses correlatas no sedesignam apenas uma poca, mas acima de tudo trazem consigo aexpresso da conscincia de ser poca, de ser um tempo presente que sediferencia do passado por rupturas, e que desse modo posto sob pressodo futuro. Os tempos modernos trazem consigo sempre o novo, medidopor sua referncia negativa no s s tradies mais arraigadas, mastambm ao passado mais recente. Por isso os novos tempos designam paraHegel, antes de tudo, a Revoluo francesa e o Iluminismo.

    A ruptura com o passado e o olhar para as conseqncias futurasformam uma tal conscincia de tempo que agora todas as instncias dosaber e da ao precisam ser fundamentadas sem o recurso a tradiesexemplares. Hegel liga ento a conscincia histrica radicalmente novaque emerge na modernidade e como modernidade questo crucial dea contemporaneidade sempre ter de fundamentar-se a partir de si mesma,de buscar sempre em si mesma os seus critrios de orientao normativa.Essa necessidade de autocertificao ou autofundamentao damodernidade, Hegel a teria entendido como tarefa de sua filosofia.Abar-car em pensamentos a poca presente compreender por que e como amodernidade pode resolver a questo de orientar-se normativamente apartir do seu prprio solo.

    A conscincia histrica de poca e a necessidade de autocertificaoformam os dois primeiros motivos que, para Habermas, impelem afilosofia hegeliana a articular em conceitos seu prprio tempo, e, comisso, articular pela primeira vez, no mbito do discurso filosfico, umconceito de modernidade. Mas essa articulao s se inteira medida queo assunto prprio da filosofia, a razo, religado necessidade histricade autocertificao. Porque o processo de esclarecimento no sc. XVIIIdesvalorizou a tal ponto as autoridades baseadas na tradio, amodernidade s pode encontrar legitimidade a partir de discursosracionais, a partir da crtica da razo.

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  • Por isso a crtica kantiana da razo tem uma posio chave para acompreenso hegeliana da modernidade. Isto , Hegel, em uma visoretrospectiva, compreende que a filosofia kantiana constitui, como pontode fuga do processo de esclarecimento do sc. XVIII, a autocompreen-so decisiva da modernidade (HABERMAS, 1988, p. 30; cf. tambmHABERMAS, 1998). Os traos essenciais da poca se reproduzem nastrs crticas como em um espelho. A crtica da razo explicaria ascondies de possibilidade da cincia da natureza; a crtica da razo prti-ca explicaria como as pessoas adquirem autonomia sob leis geradas porelas prprias, e a crtica do juzo explicaria, por fim, as condies subjeti-vas de uma experincia esttica desembaraada do contexto religioso.Afilosofia kantiana expressa assim o contedo normativo da modernidade,centrado nas idias de crtica e reflexo, de autonomia e auto-realizao.

    A diferenciao de cincia, moral e arte, que mais tarde Weberdefiniria como marca da modernidade cultural, como resultado doprocesso de racionalizao, teria sido visto por Hegel como fundamenta-da pela filosofia kantiana, ao tomar a razo como nica fonte de critriospara a resposta s questes sobre a verdade, a justia e o gosto. O que Kantno teria percebido que a diferenciao da razo imposta pela prpriarazo no era apenas apreendida de maneira reflexiva pelo sujeito doconhecimento e da ao, mas j constitui uma realidade institucional comconseqncias para a reproduo da cultura e da sociedade como umtodo.A viso retrospectiva de Hegel sobre Kant definida pelo discerni-mento de que a modernidade j se encontra em racionalizao, de que arazo j criou formas institucionais na vida cultural e social, e que agorapodemos compreender essas formas retrospectivamente, reconstruindo arazo na histria. Dessa maneira, Hegel teria estabelecido o lao entremodernidade, conscincia de poca e razo.

    por essa perspectiva que se deve entender tambm o fato de aconceitualizao da modernidade coincidir com uma crtica damodernidade, vale dizer, com uma crtica da filosofia da reflexo e, espe-cialmente, da filosofia kantiana. Pois o contedo normativo damodernidade instaurado a partir e por meio do princpio da subjetivi-dade. O sujeito do conhecimento e da ao, no qual se centra o conceitode razo, fornece por si prprio as condies de fundamentao de quenecessita uma modernidade desprovida de orientaes tradicionais.

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  • Mas esse mesmo princpio, que deve ser salvaguardado, tambmunilateral, incapaz de perceber que as diferenciaes da razo devemaparecer como cises uma vez transpostas para o contexto das relaesticas imediatas. O ganho que a crtica da razo representou contrapos-to, assim, perda da fora unificadora da qual se nutria outrora a religio.O princpio da subjetividade se mostra incapaz de regenerar, por meio darazo, a fora de unificao, sem o que as novas instituies modernas,que corporificam o contedo normativo da modernidade, passam imedia-tamente a ter efeitos desagregadores.

    Segundo Habermas, tais efeitos de desagregao so compreendidostambm, e da maneira mais evidente, nas instituies do direito formalburgus, da economia de mercado, na mquina burocrtica do Estado.Sob o impacto da leitura da economia poltica, Hegel transps para afilosofia a tematizao dos efeitos desagregadores da autonomizao daesfera de produo e troca em relao ao contexto das relaes ticas.Adiferenciao entre sociedade civil, regulada pela economia de mercado,e o Estado, tambm aponta para os estudos posteriores de Weber sobre amodernizao social.

    Em resumo, Hegel teria inaugurado o discurso filosfico da moder-nidade ao levar a srio a conscincia de tempo, inscrevendo-a na necessidadede autocertificao, que deve partir do contedo normativo liberado peloprincpio da subjetividade, mas ao mesmo tempo refletindo sobre as conse-qncias desagregadoras que esse mesmo princpio acarreta ao se corpori-ficar institucionalmente na cultura e na sociedade.A necessidade da filosofiasurge justamente como necessidade imposta pelas cises modernas. Amodernidade estaria desde o incio presa a uma dialtica do esclarecimentoque ao mesmo tempo emancipa e cria novas formas de represso.

    A razo reprime porque se fundamenta na estrutura da auto-refern-cia de um sujeito cognoscente que faz de si mesmo e de tudo ao redorobjeto de conhecimento e ao. O interesse de Habermas pelo Hegelfilsofo da modernidade reside tambm ou sobretudo a. O conceito dostempos modernos remetido desde o incio crtica da filosofia dosujeito, de tal modo que o contedo normativo alicerado primeira-mente por essa filosofia poderia ser desenvolvido no mais a partir dasubjetividade enquanto tal, mas das estruturas intersubjetivas em que seforma o sujeito individual.

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  • Se essa caracterizao est correta, apesar da forte simplificao, pode-se abordar a seguinte passagem do Discurso filosfico da modernidade, senti-da como no mnimo questionvel por muitos... kantianos. Kantexpressa o mundo moderno em um edifcio de pensamentos. De fato,isto significa apenas que na filosofia de Kant se refletem os traos essen-ciais da poca como em um espelho, sem que Kant tivesse conceituadoa modernidade enquanto tal. S por uma viso retrospectiva Hegel podeentender a filosofia de Kant como auto-interpretao decisiva damodernidade; Hegel visa conhecer tambm o que restou de impensadonessa expresso mais refletida da poca: Kant no sente como cises asdiferenciaes no interior da razo, nem as divises formais no interiorda cultura, nem em geral a dissociao dessas esferas. (...) Agora a questo saber se da subjetividade e da conscincia de si podem obter-secritrios prprios ao mundo moderno e que sirvam ao mesmo tempopara orientar-se nele; mas isso significa tambm que possam ser aptospara a crtica de uma modernidade em conflito consigo mesma.(HABERMAS, 1988, pp. 30-31)

    Ora, por essa passagem se torna evidente que antes de tudo a pro-blematizao das cises modernas que explicaria a perspectiva de porque o tema da autocertificao moderna no culmina, no essencial, como prprio Kant, uma vez que ele representaria a auto-interpretaodecisiva da modernidade. Certamente essa expresso ambgua, j queuma auto-interpretao decisiva da modernidade deveria significarconceitualizar a modernidade enquanto tal. Alm disso, dificilmente sepoderia negar a Kant duas determinaes que so atribudas ao conceitohegeliano de modernidade. Primeiramente, Kant compreende sua pocacomo radicalmente nova, a saber, como a poca da crtica a que tudotem de se submeter, ou seja, uma poca que se compreende a si mesmacomo ruptura com as tradies.Alm disso, no se poderia ignorar que afilosofia kantiana desconhece as necessidades que surgem com suasprprias diferenciaes. Ela reporia a unidade da razo em um alto nvelde reflexo, estabelecendo passagens entre os domnios diferenciados.

    Com esses argumentos, mas no interior de estratgias bem diferentes,Herbert Schndelbach e Ricardo Terra reivindicam, contra Habermas, acaracterizao de Kant como filsofo da modernidade.Ambos apontamtambm para o carter problemtico das cises como critrio para a

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  • compreenso correta da modernidade. Schndelbach escreve o seguinteem seu ensaio Kant, o filsofo da modernidade: Uma coisa certa:Kant no entendeu aquilo a ser distinguido na razo e na realidade comoresultado de cises e no ps a necessidade provocada por isso emrelao a uma poca histrica. Se se coloca isto como critrio, Kant defato no conceitualizou a modernidade como tal. Mas se trata docritrio correto? (...) Ao conceitualizar a modernidade como resultadode ciso e alienao, Hegel, os jovens hegelianos e Habermas colocam-nana perspectiva de sua superao real, e esta no outra coisa que umasuperao (Aufhebung) da alienao na reconciliao (SCHNDEL-BACH, 2000, pp. 30-32).

    Em uma perspectiva bem diferente, Ricardo Terra parte dos resultadosda teoria habermasiana da racionalidade comunicativa, para mostrar justa-mente filiao desta com o kantismo, a qual o texto do Discurso parecequerer ocultar. Escreve Ricardo Terra:Ora, se nos concentrarmos porum momento na questo da ampliao da razo, veremos que Habermas,com o paradigma da comunicao, radicaliza a perspectiva kantiana,renunciando a uma racionalidade substancial e confiando numa raciona-lidade procedimental. Com a diferena esta sim decisiva de que, nolugar de uma teoria das faculdades de uma filosofia da conscincia,Habermas prope uma teoria da argumentao, com a diferenciao emdiscurso terico, discurso prtico tico-jurdico e crtica esttica. (...) certo que Kant no tematizou as cises, no sofreu o impacto da econo-mia poltica, no previu as tenses sociais, mas tambm no tentou supe-rar os dilemas da modernidade numa totalidade mstica ou numarevoluo salvadora.Apesar da ciso efetiva das esferas, a razo, para Kantno perde por isso sua unidade. Ao contrrio, o conceito mesmo deunidade da razo que se altera (TERRA, 2003, p. 22).

    Embora bem mais precisa em relao a Habermas, essa interpretaoexplicita a insuficincia do tema das cises, e sugere, como Schndelbach,seu carter problemtico quando pensado em seu vnculo com a recon-ciliao da modernidade em uma totalidade mstica.

    Ao contrrio, para Habermas, o tema das cises o que torna aexigncia de autocertificao moderna ainda mais reflexiva. Com ele, amodernidade, caracterizada por Kant como a poca da crtica, tem de setornar para si mesma tambm poca de crise. Ou seja, estaria dada a

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  • perspectiva para um diagnstico de poca que se volta para fenmenospatolgicos suscitados com a prpria modernidade. A questo imediataque se pe se, ao contrrio do que pensa Schndelbach, por ciso deve-se entender unicamente a quebra da unidade originria que requer porfora prpria uma auto-reconciliao. Certamente Habermas concordaexplicitamente que essa idia pressionou o Hegel maduro e justamentepor isso ele foi lanado para fora da constelao entre conscincia depoca, modernidade e racionalidade, constelao que ele mesmo esta-belecera. Mas por ciso deve-se entender tambm a primeira expressode uma patologia moderna que se refere quebra e por fim reificaodas relaes de reconhecimento recproco: Desde o fim do sculoXVIII, o discurso da modernidade teve um nico tema, ainda que sobttulos sempre renovados: o enfraquecimento das foras de coeso social,a privatizao e a ciso, em suma: aquelas deformaes de uma prxiscotidiana racionalizada de modo unilateral, que provocam a necessidadede um equivalente ao poder de unificao da religio (HABERMAS,1988, p. 166). justamente por isso que, na passagem citada anterior-mente, Habermas pe a questo de se o princpio da subjetividade aptopara fornecer critrios tambm para uma crtica da modernidade.Evidentemente, para ele prprio, a resposta a essa questo hegeliana spoderia ser negativa.

    Segundo Habermas, Hegel poderia ter dado um certo rumo dialti-ca do esclarecimento, explicitando como o princpio de subjetividade tributrio de relaes de reconhecimento recproco que desde sempreserve de base para as relaes cognitivas, ticas e estticas do sujeito indi-vidual. Para Habermas, ele tinha os mecanismos para esboar uma seme-lhante linha terica, j que no seu perodo de juventude pensara o poderde unificao das relaes de reconhecimento dadas na eticidade naturaldas comunidades polticas como a contrapartida das cises modernas.

    Mas esse rumo estava interditado para Hegel, pois ele entendeu, j noperodo de Jena, que uma tal base intersubjetiva se encontrava entrelaa-da concretamente com a realidade j superada historicamente da polisgrega ou das comunidades do cristianismo primitivo.A necessidade auto-certificao imanente da modernidade lhe proibia o recurso a passadosexemplares que de todo modo eram desmentidos pela economia e peloestado burocrtico modernos.

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  • Dessa maneira, Hegel tomou um caminho que, como sublinhei,termina por lan-lo para fora da constelao que ele mesmo articulouentre conscincia histrica, racionalidade e modernidade. Essa soluo caracterizada por Habermas como uma crtica subjetividade modernaque se realiza no interior do paradigma da filosofia do sujeito. Hegel passaa compreender as cises operadas pela subjetividade como momentosnecessrios do desenvolvimento do sujeito universal que recebe o nomede esprito absoluto. O macro-sujeito esprito se eleva acima das reali-zaes individuais, como atividade infinita de pr a si mesmo e retornara si de suas objetivaes, e, reconstruindo a si mesmo no saber acumula-do pela arte, pela religio e pela filosofia, compreende-se como sujeito eobjeto idntico, ou seja, como sujeito absoluto.

    Concomitantemente, a questo crucial da modernidade deixa de seras cises enquanto tais, pois elas at mesmo podem reivindicar um direi-to relativo na exata medida que provam o poder de unificao do abso-luto. O problema incide unicamente sobre a conscincia subjetiva que,atendo-se unicamente a si, teima em no se reconciliar com o curso dostempos, com a razo j concretizada na histria.

    A conseqncia da filosofia do absoluto para a modernidade torna-seento patente: a atualidade perde o seu interesse, e a crtica fica embota-da. Hegel teria resolvido to bem a questo da autocertificao modernaque acaba por destitu-la de significado. Se tudo de essencial j est deci-dido, restando apenas reconciliar-se com as instituies modernas, entoo tempo presente perde justamente o impulso que havia movido suadialtica do esclarecimento.

    Como enunciado de incio, o interesse da leitura de Habermas sobre afilosofia hegeliana no consiste propriamente na soluo encaminhadapara o problema da autocertificao da modernidade, mas no modocomo ela colocada. Isso se evidencia pelo fato de a dialtica do esclare-cimento montada por Hegel servir de parmetro para a reconstruo dodiscurso filosfico da modernidade. Ou seja, trata-se de seguir a linhadaqueles que pretendem dar continuidade a esse discurso pela via inau-gurada por Hegel, isto , buscando criticar a modernidade a partir delamesma, ou que pretendem saltar para fora dela, por meio de uma crticaradical da razo.A primeira linha, representada pelos jovens hegelianos e

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  • que incorpora a tradio de pensamento da teoria crtica, ser aquela aque se filia o prprio Habermas, em contraposio segunda, chamadade ps-moderna, e principiada por Nietzsche.

    No vou me deter na anlise dessas duas linhas do discurso. Interessa-me sobretudo verificar, ainda que sumariamente, de que modo Habermaspretende ainda buscar uma alternativa no interior do registro do ques-tionamento hegeliano. Evidentemente, no se trata de forma alguma deresolver o problema das cises modernas em uma totalidade, seja em queinstncia for, como sugere Schndelbach. Em vez disso, trata-se, comodestaca Ricardo Terra, de radicalizar o conceito kantiano de razo, isto ,procedimental e diferenciado em trs dimenses, com base em umateoria do discurso. Porm, preciso enfatizar, para poder fornecer oscritrios normativos para uma crtica da modernidade afetada por fen-menos patolgicos. Com isso, as diferenciaes no interior damodernidade cultural deixam de ser o problema fundamental; pro-blemtico e patolgico se torna, antes, o desequilbrio, no interior dasprticas comunicativas cotidianas, entre os momentos da razo. Pois coma modernizao capitalista, ocorre uma presso seletiva, unilateral, parauma aproveitamento cognitivo-instrumental dos potenciais de racionali-dade inscritos na cultura, enfraquecendo, no mbito da prtica cotidiana,as dimenses prtico-morais e esttico-expressiva (cf. REPA, 2008,KNEER, 1990). Consequentemente, a dinmica das relaes de entendi-mento e reconhecimento recproco passam a sofrer, de maneira bastantesutil, uma presso reificante, impondo a tendncia para objetivar tanto oparceiro de interao quanto a si mesmo.

    Habermas no parece ter dvida de que Hegel foi o primeiro a detec-tar patologias sociais na modernidade. Porm, depois que o prprioHegel encaminhou a dialtica do esclarecimento para a filosofia dosujeito absoluto, depois que o conceito hegeliano de totalidade passou asuscitar aporias na vertente de esquerda do discurso moderno, ele notem dvida tambm de que a teoria social deve desenvolver um modelocrtico bem prximo do que Kant. Certamente se poderia perguntar porque afinal cises no contexto das relaes intersubjetivas, por que reifi-cao e alienao, por que fenmenos patolgicos so to importantespara um conceito adequado de modernidade.A resposta habermasiana a seguinte: eis algo que deve poder interessar necessariamente a todos.

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  • 1 Sobre a apropriao habermasiana da teoria do reconhecimento do jovem Hegel, cf.CRAU, 1991. Cf. tambm o desenvolvimento dessa abordagem em Honneth, 2003.

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