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Manoel Ba rr os da Motta FORENSE UNIVERS I TÁRIA N ascido na França em 1926 , Michel Foucault foi diretor do Instituto Francês em Hamburgo e do Instituto de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Clermont - Ferrand. Lecionou no College de France , sobre a História dos Sistemas de Pensamento. A obra de Michel Foucault interroga as formas do poder eo estatuto do saber moderno a partir dos problemas da loucura, da sexualidade e da penalidade. Essas temáticas se articulam a uma ampla discussão sobre a criação estética contemporânea, sobre o desenvolvimento das ci ê ncias da vida, da linguagem e da produção, e se desdobram, finalmente, em análises sobre os destinos da sociedad contemporânea - Europa Ocidental, Estados Unido s, a antiga URSS e a China. Além disso , Mich e l Foucault apresenta nas sua s teses sobre a estética da existência uma perspectiva renovada da ética para a nossa época. O que tornou o Autor uma c élebre personalidade na comunidade int e lectual foi exatamente sua falta de convencionalismo e o fato de ter levado para a prática aquilo que desenvolvia na teoria .

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Manoel

Barros da

Motta

Nascido na França em 1926,

Michel Foucault foi diretor

do Instituto Francês em Hamburgo

e do Instituto de Filosofia na

Faculdade de Letras da Universidade

de Clermont-Ferrand. Lecionou no

College de France, sobre a História

dos Sistemas de Pensamento.

A obra de Michel Foucault

interroga as formas do poder e o

estatuto do saber moderno a

partir dos problemas da loucura,da sexualidade e da penalidade.

Essas temáticas se articulam a uma

ampla discussão sobre a criação

estética contemporânea, sobre o

desenvolvimento das ciências da

vida, da linguagem e da produção,

e se desdobram, finalmente, emanálises sobre os destinos da

sociedade contemporânea - Europa

Ocidental, Estados Unidos, a antiga

URSS e a China. Além disso,

Michel Foucault apresenta nas suas

teses sobre a estética da existência

uma perspectiva renovada da ética

para a nossa época.

O que tornou o Autor uma célebre

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] Foucault

uRepensar a Política

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coleção Di tos E s c r itos VI· · · .· · · · · ·.·. .·. .1 . .· · . · · · .·. .· · · ·.

; e U Foucault

-8 Repensar a Política

.~~

Organização e seleção de textos:

Manoel Barros da Motta

Tradução:

Ana Lúcia Paranhos Pessoa

D its e t é cr its

Edição francesa preparada sob a direção de Daniel Defert e

François Ewald com a colaboração de Jacques Lagrange

~,ORENSE

UNIVERSITÁRIA

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I' edição - 20 IO

SumáriocÉditions Gallimard, 1994

© Belfond, Paris, 1977, Éditions Gallimard, Paris, 1994, para o texto OOlho do Poder

Traduzido de:

Dits et écrits

09-6338. CDD 194CDU 1 (44)

Apresentação à Edição Brasileira, . , . . . . . . . . . . . . . . . . .VII1968- Resposta a uma Questão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11971- OArtigo 15. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25

1971- Relatórios da Comissão de Informação sobreo Caso Jaubert . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

1971- Eu Capto o Intolerável. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 311972- Sobre a Justiça Popular. Debate com os Maoístas .341972- Encontro Verdade-Justiça. 1.500Grenoblenses

Acusam " . .. .. . .661972- UmEsguicho de Sangue ou um Incêndio .691972- Os Dois Mortos de Pompidou . . . . . . . . . 701973- Prefácio (De la prison à la révolte) . . . . . 741973- Por uma Crônica da Memória Operária . 80

1973- AForça de Fugir. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 821973- O Intelectual Serve para Reunir as Ideias, Mas SeuSaber ÉParcial emRelação ao Saber Operário. .87 e

1974- Sobre "A Segunda Revolução Chinesa" . 901974- "A Segunda Revolução Chinesa" . 941975- AMorte do Pai . . . . . . 971977-:Prefácio (Anti-Édipo). . . . . . . . . . 1031977- OOlho do Poder. . . . . . . . . . . . . 1071977- Confinamento, Psiquiatria, Prisão. 1261977- OPoder, uma Besta Magnífica. . . 155 e

1977- Michel Foucault: a Segurança e o Estado 1701977- Carta a Alguns Líderes da Esquerda. . . . 176 A

1977- "Nós nos Sentimos como uma Espécie Suja" 1791978- Alain Peyrefitte se Explica ... e Michel Foucault

lhe Responde .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .1978- AGrade Política Tradicional .1978- Metodologia para o Conhecimento do Mundo:

como se Desembaraçar do Marxismo .1978- OExército, Quando a Terra Treme.1978- OXá Tem CemAnos de Atraso. '..1978- Teerã: a Fé contra o Xá .

1978- Como que Sonham os Iranianos?1978- OLimão e o Leite .

183185

Cet ouvrage, publié dans Ie cadre du programme d'aide à Ia publt ca tt on, b énéficie du soutien du Ministére

Français des Affaires Etrangéres, de l 'Ambassade de France au Brésil et de Ia Maison de France de R io de

Janeiro.Este livro, publicado no âmbito do programa de participação à publicação, contoucom o apoio do MinistérioFrancês das Relações Exteriores, da Embaixada da França no Brasil e da Maison de France do Rio de Janeiro.

Ouvrage publié avec l'a ide duMin istére Français Chargé de Ia eu/fure - Centre National du Livre.

Obra publicada com a ajuda do Ministério Francês da Cultura - Centro Nacional do Livro.

Foto da capa: JacquesRobert

CIP-Brasil.Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

F86r Foucault, Michel, 1926-1984Repensar a política / Michel Foucault; tradução Ana Lúcia Paranhos Pessoa;

[organização e seleção de textos Manoel Barro sdaMotta]. - Rio de Janeiro:Forens e Universitária, 2010.

(Ditos e escritos; VI)IncluiíndicesTradução de: Dits et écritsISBN 978-85-218-0451-2

1 . Filosofia francesa - Século XX . Motta, Manoel Barrosda. 11.Titulo. 11.Série.

Proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma

ou por qualquer meio eletrônico ou mecânico, sem permissão

expressa do Editor (Lei n" 9.610, de 19.2.1998).

Reservados os direitos de propriedade desta edição pelaEDITORA FORENSE UNIVERSITÁRIARio de Janeiro: Rua do Rosário, 100 - Centro - CEP 20041-002

Tels.lFax: 2509-3148 12509-7395São Paulo: Senador Paulo Egídio, 72 - slj. 6 - Centro - CEP 01006-010

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186..211.219.224

.230.237Impresso no BrasilPrinted ín Bmzil

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VI Michel Foucault - Ditos e Escritos

1978 - Uma Revolta a Mãos Nuas 2411978 - ARevolta Iraniana se Propaga em Fitas Cassetes . 2451978 - O ChefeMítico da Revolta do Irã 2511978 - Carta de Foucault à "Unítà" -:-.:._.- ., ~. 2551979 - O Espírito de um Mundo sem Espírito'.\":~~:~''.-~~".258

1979 - Um Paiol de Pólvora Chamado Islã 2711979 - Michel Foucault e o Irã 2741979 - Carta Aberta a Mehdi Bazargan 2751979 - Para uma Moral do Desconforto 2791979 - "Oproblema dos refugiados é um presságio

da grande migração do século XXI". . . . . . . . . . . . 2851980 - Conversa com Michel Foucault . . . . . . . . . . . . . .. 2891981 - Da Amizade como Modo de Vida 3481981 - É Importante Pensar? 3541981 - Contra as Penas de Substituição. . . . . . . . . . 3591981 - Punir É a Coisa Mais Difícil que Há . . . . . . . . . . . 3621983 - A Propósito Daqueles que Fazem a História . . . . . 365

1984 - Os Direitos do Homem em Face dos Governos .. 3691984 - O Intelectual e os Poderes 371Índice de Obras 377

Índice Onomástico 378

Índice de Lugares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 381

Índice de Períodos Históricos . . . . . . . . . '. . . . . . . . . . 383

Organização da Obra Ditos e Escritos 385

Apresentação à Edição Brasileira

Aedição deRepensar a política, agora sexto volume da cole-ção dos Ditos e escritos de Michel Foucault, vai permitir aos lei-tores de língua portuguesa e aos pesquisadores que se orientampelas pistas que ele abriu para o pensamento e a ação ter umaperspectiva nova do sentido e do alcance geral do conjunto desua obra. Comesta nova série de quatro volumes que reúne en-saios, leituras, prefácios e resenhas - muitos virtualmente ina-cessíveis antes da edição francesa -, mais de 3mil páginas do fi-lósofo vão nos permitir sítuá-lo nas transformações e lutas queagitaram a vida intelectual, política, científica, literária, artística

do século XX. Commuitos textos publicados originalmente emportuguês, japonês, italiano, alemão, inglês e francês permi-te-nos repensar seu papel e o alcance e o efeito de sua obra.Os conceitos e categorias da filosofia, da política, quer em

sua dimensão epístemológíca ou ética, foram subvertidos,transformados, modificados pela intervenção teórico-práticade Michel Foucault. Saber, poder, verdade, razão, loucura, jus-tiça têm para nós outros sentidos, despertam outros ecos,abrem novos registros que as tradições dominantes do saberocidental muitas vezes esqueceram ou recusaram. Nossa rela-ção com a racionalidade científica, ou com a razão humana,tout court, seja nas práticas da psiquiatria e da psicologia, sejanas práticas judiciárias, modificou-se com a reflexão de Fou-cault sobre a loucura em termos históricos e sobre o poder psi-quiátrico. Com efeito, a medicina, a psiquiatria, o direito, nocorpo mesmo de sua matriz teórica, foram alterados pelo efeitoda obra de Foucault. Podemos dizer que alguns aspectos da hi-permodernidade em que vivemos seriam incompreensíveissem a sua reflexão.As Edições Gallimard recolheram estes textos em uma pri-

meira edição em quatro volumes, com exceção dos livros. Aes-

tes seguiu-se uma outra edição em dois volumes, que conservaa totalidade dos textos da primeira. A edição francesa preten-deu a exaustividade, organizando a totalidade dos textos publi-

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VIII MíchelFoucault - Ditos e Escritos

cados quando Michel Foucault vivia, embora seja provável quealguma pequena lacuna exista neste trabalho. O testamento deFoucault, por outro lado, excluía as publicações póstumas. Da-niel Defert e François Ewald realizaram, assim, um monumen-tal trabalho de edição e estabelecimento dos textos, situando demaneira nova as condições de sua publicação, controlaram ascircunstâncias das traduções, verificaram as citações e erros detipografia. Jacques Lagrange ocupou-se da bibliografia. Defertelaborou uma cronologia, na verdade uma biografia de Fou-cault para o primeiro volume, que mantivemos na edição brasi-leira, em que muitos elementos novos sobre a obra e a ação deMichel Foucault aparecem. Este trabalho, eles o fizeram comuma visada ética que, de maneira muito justa, pareceu-me, cha-maram de intervenção mínima. Para isso, a edição francesa deDefert e Ewald apresentou os textos segundo uma ordem pura-mente cronológica. Esse cuidado não impediu os autores de re-conhecer que a reunião dos textos produziu algo inédito. Apu-

blicação do conjunto desses textos constitui um evento tão im-portante quanto o das obras já publicadas, pelo que comple-menta, retifica ou esclarece. As numerosas entrevistas - quasetodas nunca publicadas em português - permitem atualizar osditos de Foucault com relação a seus contemporâneos e mediro efeito das intervenções que permanecem atuais, no ponto vivodas questões da contemporaneidade, sejam elas filosóficas, li-terárias ou históricas. A omissão de textos produz, por outrolado, efeitos de interpretação, inevitáveis, tratando-se de umaseleção.Optamos na edição brasileira por uma distribuição temática

em alguns campos que foram objeto de trabalho de Foucault.Neste sexto volume editamos uma série de textos em que

Foucault antecipou as questões essenciais que constituem osolo de nossa atualidade: a questão íslâmíca a partir da Revolu-ção Iraniana, a emergência e a importância da China a partirdos problemas e impasses da revolução cultural, a própriaquestão da revolução e do direito à insurreição, a divisão da Eu-ropa pós-Yalta, a crise do "socialismo real" na Europa Oriental,a emergência de um direito dos governados - que constitui umanova Declaração dos Direitos do Homem -, a importância cres-cente da questão das migrações e dos direitos dos refugiados apartir do problema dos boat-people do Vietnã. Nestes textossurgem também a questão do biopoder e do racismo, a impor-

Apresentação à Edição Brasileira IX

tância crescente do império das normas, a investigação sobreas diferentes modalidades históricas da subjetividade em facedas técnicas contemporâneas de esvaziamento do sujeito, a crí-tica das figuras identitárias fixas.Editamos ainda uma série de textos que tratam da questão da

justiça e da penalidade a partir do caso Jaubert, o debate com osmaoístas franceses sobre o problema do tribunal e da justiçaburguesa, a resposta a Domenach sobre os problemas ligados àintrodução do conceito de descontinuidade na história, a ques-tão da governabilidade e o direito dos governados e ainda a gran-de entrevista com Duccio Trombadori, que é uma de autobiogra-fia intelectual de Foucault, como notou Daniel Defert.

Foucault e a história da justiça no debate com osmaoístas: a questão do tribunal

Aquestão da justiça atravessa a obra de Foucault. Éprecisonão esquecer que a história da loucura gira em parte em tornoda questão do-grande internamento, em que uma série de ex-cluídos são sequestrados no Hospital Geral. E também do si-lêncio imposto aos loucos na era da nascente psiquiatria. Porisso, diz Foucault, talvez se quisesse esquecer quão difícil é pu-nir, ou, como diz precisamente, "punir é a coisa mais difícil quehá" (ver p. 363 neste volume).Com Vigiar e punir ele traz uma interrogação ética sobre a

punição moderna centrada na maquinaria penal utilizada e nasua racionalidade. Na década de 1970, no contexto da grande

agitação que se segue ao Maio francês, Foucault vai multiplicarsuas intervenções políticas. Em 1972, vai discutir comos maoís-tas formas de construir uma justiça não burguesa, um poderjurídico do proletariado. O debate se dá com membros da "es-querda proletária", grupo político então na ilegalidade. Algunsde seus membros serão figuras significativas da cena intelec-tual francesa, como André Glucksmann, que usa o codinomeGilles, e Benny Lévy, que estava à frente desse importante gru-"po do maoísmo francês, que se chama Victor. Benny Lévy setornará secretário de Sartre. Depois se converterá aojudaísmo,à leitura da Bíblia e do Talmude.Foucault contesta a forma do tribunal como meio de organi-

zar essa nova justiça. Diz ele que "é preciso se perguntar se es-

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X Michel Foucault - Ditos e Escritos

ses atos de justiça popular podem ou não se ordenar na formade um tribunal" (ver p. 34 neste volume).Atese de Foucault é de que o tribunal não constitui a "forma

natural dajustiça popular", mas que historicamente sua funçãofoide "alcançá-Ia, controlá-Ia e abafá-Ia". Sua função é reinscre-ver a justiça no interior das instituições do aparelho de Estadoconstruído pela burguesia. Foucault refere-se à experiência da

Revolução Francesa. Éum momento de extrema radicalizaçãorevolucionária, que ele evoca em 1792, momento da convenção,figurando mesmo uma resposta imaginária dos operários àconvocação para a guerra: "Pedimos aos operários de Parispara partirem, para se matarem", eles respondem: "Nós nãopartiremos antes de termos feito justiça a nossos inimigos dointerior. Enquanto nos expomos, as prisões onde estão encar-cerados os protegem. Eles só aguardam a nossa partida, parade lá saírem e restabelecerem a antiga ordem das coisas" (verp. 34 neste volume). Trata-se de utilizar a dupla pressão dosinimigos que invadem do exterior e ameaçam o poder popular

no interior. Primeiro, então, desembaraçar-se do inimigo inter-no e pôr fim ao externo. Assim se explicam as execuções de se-tembro, tríplice "ato de guerra contra os inimigos interiores,um ato político contra as manobras dos homens no poder e umato de vingança contra as classes opressoras" (ver p. 35 nestevolume). Foucault toma esse exemplo do 92 francês para inter-rogar: "(...)não seria isso um ato de justiça popular, em primei-ra aproximação, aomenos: uma réplica à opressão, estrategica-mente útil e politicamente necessária?" (ver p. 35 neste volu-me). Foucault recorda que as execuções não começaram antespor causa dos homens que, "saídos da Comuna de Paris, ou

próximos dela, intervieram e organizaram a cena do tribunal:juízes atrás de uma mesa, representando uma instância tercei-ra entre o povo que 'grita vingança' e os acusados que são 'cul-pados' ou inocentes". A que se acrescentam os interrogatóriospara obter confissões e alcançar a verdade, além de delibera-ções para estabelecer o que é "justo". Trata-se de uma instânciaimposta por viaautoritária a todos. Aquestão de Foucault é quese configura aí, o embrião, ainda que frágil, de um aparelho deEstado ou mesmo de uma "opressão de classe" (ver p. 35 nestevolume). O estabelecimento de uma instância neutra entre opovo e seus inimigos, com as oposições simbólicas entre justo einjusto, verdadeiro e falso, inocente e culpado, seria uma forma

Apresentação à Edição Brasileira XI

de se opor à justiça popular. Essa é a questão que levanta Fou-cault. Aforma do tribunal seria uma forma de desarmar ajusti-ça popular, ignorando o caráter real e concreto da luta em pro-veito de "uma arbitragem ideal". Seria não uma modalidade dajustiça popular, mas a "primeira forma de deformação dela"(ver p. 35 neste volume).Benny Lévy, aliás, Víctor, toma o exemplo da Revolução Chi-

nesa, revolução proletária e não burguesa. "Ele 'contrapõe umaetapa inicial' da revolucionarização ideológica das massas, emque as cidades se sublevam, os atos justos das massas campo-nesas contra seus inimigos; execuções de déspotas." Victor acei-ta a tese de que se trata de atos da justiça popular. Mas ele afir-ma existir um momento posterior, momento da "formação doExército Vermelho", em que "não há mais simplesmente pre-sentes as .massas que se sublevam e seus inimigos" (ver p. 35neste volume). Agora não hámais apenas as massas sublevadascontrapostas a seus inimigos, e sim três elementos: as massassublevadas e seus inimigos e "um instrumento de unificação

das massas, que é o Exército Vermelho" (ver p. 35 neste volu-me). Victor chega a dizer que "todos os atos de justiça popularestão sustentados e disciplinados" (ver p. 35 neste volume). Oobjetivo é que "os diferentes atos possíveis de vingança sejamconformes ao direito". Direito do povo, diz Víctor, que "nadamais tem a ver com as velhas jurisdições feudais". Victor ques-tiona Foucault; nesse caso, essa instância terceira seria apenasuma forma dejustiça popular, e não sua deformação. Foucault,no entanto, questiona a ideia de que haja aí uma instância ter-ceira entre as massas e seus opressores. Para ele, são as pró-prias massas que "vieram como intermediárias entre alguém

que teria se separado das massas, por sua própria vontade,para saciar uma vingança individual, e alguém que teria sido oinimigo do povo" (ver p. 36 neste volume).Ele insiste no caso do tribunal revolucionário na França. Éa

determinação social dessa instância que a define: "elarepresen-tava uma camada entre a burguesia no poder e a plebe partsíen-se, uma pequena burguesia" (ver p. 36 neste volume). Colo-cam-se como intermediárias e fazem funcionar uma ídeología,a ideologia da classe dominante, até certo ponto, diz Foucault.Condenaram não apenas padres rebeldes, mas mataram con-denados a galés, pessoas que o Antigo Regime condenava, ma-

tando também prostitutas. Retomaram, diz Foucault, o papel

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XII Michel Foucault - Ditos e Escritos

da instância judiciária da forma que esta funcionara no AntigoRegime.Foucault insiste em recordar a história do aparelho judiciá-

rio. Passa-se na Idade Média de um tribunal arbitral dotado derecursos de consenso e que não constituía um organismo per-manente de poder a um conjunto de novas instituições, "está-veis, específicas, intervindo demaneira autoritária e dependen-

te do poder político" (ver p. 37 neste volume). Dois processosapoiam essa mutação.O primeiro é a fiscalização da justiça: através de multas, pe-

nhoras, confiscos. Fazer justiça gerava proveitos. Depois que oEstado carolíngío se desintegrou, os senhores feudais fazem dajustiça não só um instrumento de apropriação, um meio de co-erção, mas também ummeio de produzir renda, que "fazia par-te da renda feudal" (ver p. 37 neste volume). A pluralidade dajustiça constituía recursos, eram propriedades. Produziambens que "circulavam, vendiam ou herdavam, com os feudos ou

às vezes ao lado deles" (ver p. 37 neste volume). Para aquelesque detinham as justiças, constituíam um direito ao lado dossensos, da mão morta, do dízimo do imposto, cujo nome eratonlieu, Do lado dos que sofriam a justiça, eram como que umarenda não regular, mas que era necessária. Se antes os justíçá-veis podiam pedir justiça, seu mecanismo vai passar por umainversão. Do lado dos árbitros havia a obrigação de empregarseja a autoridade, seja o próprio prestígio, seu poder fosse polí-tico ou religioso. Essa mecânica arcaica vai mudar, tornan-do-se um direito lucrativo para os que detêm o poder e custosapara os que a eleestão subordinados. Há, então, o segundo pro-

cesso de que falava Foucault, que é "o vínculo crescente entre ajustiça e a força armada" (ver p. 38 neste volume). A substitui-ção das guerras privadas por uma justiça obrigatória e marca-da pelo lucro, a imposição de uma justiça, "onde se é ao mesmotempo juiz, parte e fisco, no lugar das transações e composi-ções C . . ) implica que se disponha de uma força de coação" (verp. 38 neste volume). A imposição exige a coerção armada: "láonde o suserano é, militarmente, bastante forte para impor sua'paz'" (ver p. 38 neste volume). Como fontes de renda, as justi-ças vão seguir o movimento de divisão da propriedade privada.Mas, por outro lado, ao se apoiarem na força armada, seguem o

movimento de progressiva concentração dela. Foucault observaque no século XIV,quando o feudalismo fez face às grandes re-

Apresentação à Edição Brasileira XIII

voltas camponesas e urbanas, procurou apoio em "um poder,um exército, uma fiscalização centralizados" (ver p. 38 nestevolume). Aparecem com o Parlamento os procuradores do rei,"as diligências de ofício, a legislação contra os mendigos, vaga-bundos, ociosos, e, logo, os primeiros rudimentos de polícia,uma justiça centralizada: o embrião de um aparelho de Estadojudiciário". Esse aparelho vai cobrir, dobrar, e controlar as jus-

tiças feudais com sua centralização. Vai surgir então uma "or-dem judiciária" que é a expressão do Poder Público. Ela vai serum árbitro ao mesmo tempo neutro e autoritário. Vai se encar-regar de resolver como justiça os litígios e ao mesmo tempo as-segurar autoritariamente a ordem pública. Essa estrutura jurí-dica vai surgir sobre esse fundo de "guerra social, de levanta-mento fiscal e de concentração das forças armadas". É sobreesse fundo que se estabelece o aparelho judiciário.Explica-se, assim, pensa Foucault, por que na França e mes-

mo na Europa Ocidental o ato de justiça popular "é profunda-mente antíjudícíárío e oposto à forma mesma do tribunal" (ver

p. 38 neste volume). Foucault evoca as grandes sedições do sé-culo XIV,emque os agentes dajustíça eram regularmente íncrt-minados, assim como os agentes da fiscalização, assim comode forma geral os agentes do poder. Os atos de revolta levam a"abrir as prisões, caçar osjuízes e fechar o tribunal" (ver p. 38neste volume). Como ajustiça popular vêa instância judiciária?Ela é, diz Foucault, um "um aparelho de Estado representantedo poder público, e instrumento do poder de classe" (ver p. 38neste volume). Ele adianta ainda uma hipótese da qual não temcerteza: hábitos da "guerra privada, um certo número develhos

ritos pertencentes à justiça 'pré-judícíárta' conservaram-se naspráticas de justiça popular". O rito germânico de plantar emuma estaca a cabeça de um inimigo morto, a destruição da casaou o incêndio do madeiramento e o saque do mobiliário eramrituais antigos que acompanhavam a postura do fora da lei. Nassedições populares esses gestos retornam. Foucault cita a to-mada da Bastilha, em que se passeou com a cabeça do diretorDelaunay emtorno do "símbolo do aparelho repressivo" (ver p.39 neste volume). Ajustiça popular tem práticas que não po-dem ser reconhecidas, de maneira nenhuma, nas instâncias ju-diciárias. Foucault afirma que a história da justiça, pensada

como aparelho de Estado, permite que se entenda por que naFrança "os atos da justiça realmente populares tendem a esca-

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XIV Michel Foucault - Ditos e Escritos

par do tribunal". E, por outro lado, quando a burguesia quis"impor a sedição do povo à coação de um aparelho de Estado,instauraram-se um tribunal, uma mesa, um presidente, asses-sores, de frente, os dois adversários". É dessa forma que eleconcebe a história. Victor vênesse exemplo da história francesaapenas um exemplo de como uma classe, a pequeno-burguesa,dominada pelas ideias burguesas, "aniquilou as ideias tiradas

da plebe sob a forma dos tribunais da época" (ver p. 39 nestevolume). Ele insiste em contrapor esse exemplo ao que dera ci-tando o Exército Vermelho na China. Victor apresenta a ideiaque seria o sonho de Foucault de passar diretamente das for-mas atuais de opressão para o comunismo diretamente, semuma fase de transição.Foucault não responde a essa questão e retorna ao que con-

sidera fundamental, sistematicamente afirmando não saber oque se passa na China. Ele se propõe examinar o que significa a"forma do tribunal". Examinar, diz ele, "um pouco meticulosa-mente" essa forma histórica, sua estrutura espacial, a disposi-ção das pessoas que estão no interior ou à frente de um tribu-nal. Ela implica, pelo menos, uma ideologia. Eis como Foucaultdescreve a "forma do tribunal", se podemos dizer assim: "Oqueé essa disposição? Uma mesa; atrás dessa mesa, que os colocaa distância dos dois advogados, terceiros, que são osjuízes; suaposição indica, primeiramente, que são neutros em relação aum e a outro; segundo, isso implica que seu julgamento não édeterminado por antecipação, que vai se estabelecer após in-quirição, por audição, das duas partes, em função de uma certanorma de verdade e de um certo número de ideias sobre ojusto

e o injusto, e, terceiro, que sua decisão terá força de autorida-de" (ver p. 40 neste volume). Foucault considera que a ideia depessoas que podem ter uma posição de neutralidade diante daspartes, que podem julgá-Ias em função da ideia de justiça cujovalor é absoluto e cujas decisões têm de ser executadas, isso lheparece absolutamente estranho à ideia de uma justiça popular.Najustiça popular não há três elementos: há apenas as massase seus inimigos. Asmassas não se referem a "uma ideia univer-sal abstrata de justiça, reportam-se somente à sua própria ex-periência, aquela dos danos que sofreram, da maneira em queforam lesadas, oprimidas" (ver p. 41 neste volume). Asmassas

não se apoiam em um aparelho de Estado a fím de fazer valersuas decisões. Foucault conclui dizendo que "a organização,

Apresentação à Edição Brasileira XV

em todo caso ocidental, do tribunal deve ser estranha ao que é aprática dajustiça popular" (verp. 41 neste volume). Foucault fí-gurou, assim, três elementos: 1) um elemento terceiro; 2) umaregra ou uma forma universal de justiça; e, por fím, 3) uma de-cisão com poder de ser executada. Amesa manifesta isso, dizFoucault, de maneira patente, em nossa civilização. Ao queBenny Lévy vai contrapor citando o Exército Vermelho como

um elemento terceiro, peça do aparelho de Estado revolucioná-rio no início da revolução na China. Adescrição de Benny Lévynão parece corresponder à forma do tribunal para Foucault.Ele pergunta qual é o papel representado pelo aparelho deEstado revolucionário representado pelo exército chinês. Ele sepergunta se ele está "entre as massas que representam umacerta vontade, ou um certo interesse, e um indivíduo que repre-senta um outro interesse, ou uma outra vontade, de escolherentre os dois de um lado de preferência ao outro" (verp. 44 nes-te volume). Foucault afirma ser evidente que a resposta é nega-tiva, por tratar-se de um aparelho de Estado que saiu das mas-sas, cujo fim é "assegurar a educação, a formação política, oalargamento do horizonte e da experiência política das massas"(ver p. 45 neste volume). Trata-se de um funcionamento diver-so do tribunal tal como ele existe na França, em que a instância

judiciária não educa.Em face da ideia de que é preciso um aparelho de Estado re-

volucionário para resolver as contradições no seio do povo, atese de Foucault é de que primeiro, na China, o aparelho judi-ciário, talvez, como nos Estados feudais, fosse um dispositivoextremamente flexível, pouco centralizado. Mas em sociedades

como as da Europa Ocidental, o aparelho judiciário foi um apa-relho extremamente importante, cuja história, diz Foucault,"foi sempre mascarada". Foucault elabora, então, um verdadei-ro programa de pesquisa a ser feito, esboça um quadro da im-portância capital do estudo do aparelho judiciário. Oestudo so-bre a prisão que ele vai elaborar será mais refinado, centradoemuma ideia mais precisa dos mecanismos de poder, especial-mente do poder disciplinar, das modalidades de poder sobre ocorpo; no entanto, a importância dessa formulação para suaprópria pesquisa e para o campo dos estudos históricos, emge-ral, é inegável. Diz ele: "Faz-se a hístóría do direito, da econo-

mia, mas a história da justiça, da prática judiciária, do que foiefetivamente um sistema penal, do que foram os sistemas de re-

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XVI Michel Foucault - Ditos e Escritos

pressão. disso raramente se fala" (ver p. 45 neste volume). E eleconclui insistindo que. para ele. "a justiça como aparelho deEstado teve uma importância absolutamente capital na histó-ria" (ver p. 45 neste volume). Afunção do sistema penal foi a deintroduzir um certo número de contradições no seio das mas-sas. Alémde opor. uns contra os outros. os plebeus proletariza-dos e os não proletarizados. Enquanto na Idade Média o siste-

ma penal estava dominado por sua função fiscal. depois de umcerto momento histórico ele passa a ocupar-se da luta antisse-diciosa. Reprimir as sedições era até então função militar. Elavai ser assegurada agora por um sistema complexo que articulapolícia-prisão. Seu papel é tríplice: dominado por um aspectoou outro conforme a conjuntura.Tem. emprimeiro lugar. uma função de "proletarízação", isto

é. fazer com que o povo aceite sua condição de proletário e as for-mas de exploração do proletariado. Foucault considera que issoé perfeitamente claro desde o fim da Idade Média até o séculoXVIII.Entram na panóplia punitiva as leis contra os mendigos.os ociosos. e passam a exercer uma função de caçá-los e a aceitaras duras condições que lhes eram impostas. Se mendigavam. senada faziam. eram aprisionados e com frequência submetidos atrabalhos forçados. Quanto aos elementos que eram os maismóveis. ou mais agitados. os que eram considerados violentos.os que se dispunham a passar à ação ou à rebelião armada. essesistema prendia. Foucault traça o panorama dos tipos que eramvisados pelo novo aparelho penal: "ofazendeiro endividado e coa-gido a deixar sua terra. o camponês que fugia do fisco. o operáriobanido por roubo. o vagabundo ou o mendigo que recusava a

limpar as fossas da Cidade. aqueles que viviam de pilhagem noscampos. os pequenos ladrões e os salteadores de estrada. aque-les que. comgrupos armados. provocavam o fisco ou. de manei-ra geral. os agentes do Estado. e aqueles que. enfim. nos dias demotim nas cidades enos campos. traziam as armas e o fogo" (verp. 46 neste volume). Entre todos esses elementos Foucault res-salta existir todo um "concertamento, toda uma rede de comuni-cações" (ver p. 46 neste volume). Tratava-se de pessoas "perigo-sas" que era preciso isolar na prisão. no hospital geral. nos tra-balhos forçados ou nas colônias. para não servirem de alavancada resistência do povo. Havia um grande medo no século XVIII

que ainda era bastante grande depois da Revolução ou das gran-des explosões do século XVIII.podemos dizer em 1830. 1848 ou

Apresentação à Edição Brasileira XVII

na Comuna, em 1870. O terceiro papel do sistema penal é o defazer aparecer aos olhos do proletariado a plebe não proletariza-da como "marginal. perigosa. imoral. ameaçadora para toda asociedade. a ralé do povo. o refugo. a 'ladroagem'" (verp. 46 nes-te volume).Aburguesia devia impor seu poder através de uma multipli-

cidade de meios. e não só da prisão e da legislação penal. atra-

vés dos jornais. da "literatura". da moral "dita universal". quevão servir de barreira ideológica entre o proletariado e a plebenão proletarizada. Aburguesia poderá. ainda. utilizar um certonúmero de elementos plebeus contra o proletariado. seja comosoldados. como policiais ou traficantes. voltados para a vigilân-cia ou a repressão. Foucault diz então: "não há nada como osfascismos para dar exemplos disso" (ver p. 47 neste volume).Trata-se. assim. de introduzir contradições bem ancoradas.

Por isso. conclui ele. na medida em que o sistema penal funcio-na como sistema antíssedícíoso, sua tese é de que a Revoluçãonão poderia passar senão pela eliminação radical do aparelhodejustiça e tudo o que se pode chamar sistema penal. Por isso otribunal. "forma perfeitamente exemplar desta justiça". nãopode ser reintroduzido na justiça popular.No curso do debate. Benny Lévy não se convence e volta ao

seu exemplo; os atos da justiça popular. que vêm de todos oscamponeses objetos de exações e danos materiais por parte dosinimigos de classe. "somente se tornam um amplo movimento".diz ele. "favorecendo a revolução nos espíritos e na prática. sesão normalizados" (ver p. 56 neste volume). Foucault concordaquanto à ideia de que é sob o controle do proletariado que a ple-

be não proletarizada entrará no combate revolucionário. masquestiona o estatuto do que Benny Lévyconsidera ser a ideolo-gia do proletariado. isto é. o pensamento de MaoTsé-Tung. Eleretruca que o pensamento do proletariado francês não é exata-mente o pensamento de Mao, e que esse pensamento não é"uma ideologia revolucionária para normalizar essa unidadenova pelo proletariado e pela plebe marginalizada" (ver p. 56neste volume).Quanto ao problema da normalização das massas. Foucault

diz que se trata de formas a inventar. recusando a forma do tri-bunal. Ele ressalta que as massas "lutaram desde o âmago da

Idade Média contra essa justiça" (ver p. 57 neste volume) e quea Revolução Francesa "era uma revolta antíjudícíárta", tendo

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XV 1 1 1 Michel Foucault - Ditos e Escritos

emprímeíro lugar feito desaparecer o aparelho judiciário. Antí-judiciária também era a função da Comuna. Foucault se opõe,assim, ao tribunal como forma solene, simbólica, sintética, des-tinada a retomar todas as formas da luta antíjudícíáría. Paraele, o tribunal popular não deve ser uma instância de normali-zação, mas de elucidação política, a partir do qual as ações dajustiça popular "podem integrar-se ao conjunto da linha políti-ca do proletariado" (ver p. 58 neste volume). Essa elucidaçãosignifica o controle pelas próprias massas, que recebem, trans-formadas pelas instâncias de esclarecimento, elucidadas, sua

própria orientação de volta.

Ética, punição e direito: punir, emendar, tratar

Se há, em alguns textos de Michel Foucault da década de1960, uma rejeição do poder punitivo, nos anos 1980 ele vai di-

zer que "odireito penal faz parte do jogo social em uma socieda-de como a nossa (...). Isso quer dizer que os indivíduos que fa-zem parte dessa sociedade têm de se reconhecer como sujeitosde direito e que, como tais, são suscetíveis de ser punidos e cas-tigados, se infringirem tal ou tal regra. Nãohá nisso, creio, nadade escandaloso" (ver nQ 34?, p. 645, vol. IVda edição francesa

desta obra).Essa formulação não leva a uma aceitação pura e simples do

sistema penal. Ela leva Foucault a um questionamento do que éser punido. Ou, ainda, a um questionamento das formas de pu-nir: o reconhecimento no sistema de direito imposto aos sujei-tos é necessário para que os indivíduos se vejam como sujeitos

de direito.Foucault investiga o que diz respeito ao direito e, ao mesmo

tempo, o que toca aos elementos extrajurídicos que penetram

no direito.Trata-se de punir para sancionar um ato. Por um lado, pre-

tende-se emendar o indivíduo ou reíntegrá-lo. Foucault obser-

va, desde Vigiar e punir, nesses artigos, que se temos, de umlado, um sistema legal que aparenta punir, há, por outro, umajustiça que, ao pretender tratar, na verdade, parece inocen-

tar-se de punir. Diz ele: "Aqueleque pune não tem que se acre-ditar investido da tarefa suplementar de corrigir ou de curar"(ver nQ 353, p. 695, vol, IVda edição francesa desta obra).

Apresentação à Edição Brasileira XIX

Apsícologízação e a medicalização da justiça são visadas porFoucault devido à substituição do crime (suscetível de punição)pelo criminoso. Elas afetam o veredicto, que toma a forma deum tipo de decisão transnacional entre um código antiquado eum saber que não podemos justificar.Assim, o ato jurídico deve ser situado em sua dimensão pró-

pria para Michel Foucault. E não é talvez por acaso que Fou-

cault tenha encontrado amplo apoio no meio jurídico, quandoorganizou o GIP, mais do que no meio médico. Mesmo o minis-tro da Justiça de Mitterrand, Robert Badinter, depois das inter-venções de Foucault, chegou a organizar estudos sobre a práti-ca da punição e sua história.É preciso ver com detalhe a posição de Foucault, que não éa

de apenas tornar o sujeito responsável de forma total, elimi-nando as circunstâncias sociais e psicológicas do ato. Não setrata apenas de vingar e reprimir. O debate que Foucault reali-zou sobre as mudanças históricas acerca do limite do intolerá-

vel ilustra bem isso.Em Foucault, há a ideia de que punir e emendar, punir e cor-rigir são funções distintas, diferentes, que não podem ou de-vem ser assumidas por uma mesma instituição.Há dois caminhos, então, a interrogar: fazer com que a pena

tome a vertente da "correção" ou da modificação das "condiçõeseconômicas, sociais e psicológicas que puderam produzir o de-lito" (vernQ 353, p. 694, vol. IVda edição francesa desta obra).Em outros casos, há a dissociação do ato de punir da emen-

da. Privilegiam-se, então, as penas sem pretensão terapêutica,como a multa.Há, por outro lado, a necessidade de "guardar" alguns gran-

des criminosos, indispensável para um número pequeno de in-divíduos. Essa exigência é utilizada para justificar o aprisiona-mento generalizado. Adimensão jurídica e a dimensão terapêu-tica devem ser definidas de forma bem precisa, marcada suaespecificidade, e isso em todos os casos, não para realizar umaseparação absoluta de fatos, mas com o objetivo de defmir omais claramente possível o que queremos fazer, de ajustar osefeitos da pena aos fins visados. Instâncias distintas devem en-trar em ação e não ter a pretensão de que a prisão por si "recu-

pere". .A tese de que todo criminoso seja um doente é, assim, crttí-

cada por Foucault. Talvez todo sujeito seja síntomátíco. E a de-

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XX Mlchel Foucault - Ditos e Escritos

manda de tratamento, ou de análise, ainda que exista oferta,deve vir do próprio sujeito. Mas não é tanto a pretensão de cor-rigir os indivíduos que Foucault contesta. O que ele põe emquestão - no artigo contra as penas de substituição - é a incorri-gibilidade, a periculosidade como um estado de natureza, ouque alguns sujeitos humanos "não podem e não poderão jamaissê-lo por natureza, por caráter, por uma fatalidade biopsicoló-

gíca, ou porque são, em suma, intrinsecamente perigosos" (verp. 360 neste volume). É como que o fantasma do incorrigívelque aí aparece. E uma política de uma sociedade de segurança,de controle e vigilância.Foi em um curso do College de France que Foucault abordou

a ideia de indivíduo perigoso, construída pela crímínología doséculo XIXe integrada ao direito (ver p. 1-25, vol. V da ediçãobrasileira desta obra). Foucault questiona seriamente a possi-bilidade de medidas de coerção poderem ser separadas total-mente de qualquer ato delituoso, de qualquer infração pratica-da de fato. Alguém que nada tivesse "feito" contra a lei poderia

ser "punido". Poder-se-iam designar delinquentes potenciais,ou ainda decidir internar, mesmo para toda a vida, ou até elimi-nar concretamente, fisicamente, indivíduos considerados in-corrigíveis. Foucault formula, então, o que ele considera a ver-dadeira linha de separação entre os sistemas penais. Ele o dizquando dos debates sobre a abolição da pena de morte na Fran-ça. Apartilha passa "entre aqueles que admitem as penas defi-nitivas e aqueles que as excluem" (ver p. 360 neste volume).

Dos modos de viver aos jogos da norma e aos

direitos dos governados

Se o século XIXviu a emergência dos direitos de associaçãoligados a intensas lutas sociais - como a luta dos sindicatos-,no século XX são outros movimentos que emergem, como osmovimentos feministas ou o movimento gay. Se no século XIXsão o direito à representação, à organização e à reunião que sãoos alvos, essas novas lutas não têm apenas caráter antídíscrí-minatório e também não se localizam exclusivamente no qua-dro dos direitos de associação.Se há direito de escolher sua sexualidade, para Foucault esse

direito é importante. Mas ele critica a ideia de direito natural,na medida em que esta remeteria a uma ideia de essência hu-

Apresentação à Edição Brasileira XXI

mana. Haveria um obstáculo a pensar a questão claramente, namedida em que a definição de uma natureza para o homem su-põe limites, assim como a ideia de necessidades fundamentais

pré-constituídas.Há, então, emFoucault, a ideia de criar um novo direito rela-

cional. Trata-se de criar valores novos, quepossam ir além dosindivíduos concernidos por eles. Não se trataria então, por

exemplo, de "reintroduzir a homossexualidade na normalidadegeral das relações sociais", mas transformar as próprias rela-ções chamadas "normais" (ver nQ 313, p. 311, vol. IVda edição

francesa desta obra).O que é então esse direito das relações para Foucault? Tra-

ta-se, diz ele,da "possibilidade de fazer reconhecer, em umcampo institucional, relações de indivíduo a indivíduo, que nãopassam forçosamente pela emergência de um grupo reconheci-do" (ver nQ 313, p. 314, vol. IVda edição francesa desta obra).Trata-se de algo diverso dos direitos associativos (quer seja

de expressão ou de reunião de um grupo).A estratégia de Foucault é dupla: de um lado, fazer com que

os indivíduos "discriminados" se beneficiem das normas (aces-so a relações maritais ou de parentesco "clássicas" ou "tradicio-nais") e, de outro, produzir a mudança das próprias normas.Essa relação, que se torna reconhecida, transforma a repre-

sentação, a "substância", a "forma" real do que uma sociedadeconsidera relação "normal". Essa figura nova do direito acarre-ta algo mais do que uma mera reivindicação de igualdade.Foucault vai apropriar-se dos elementos de luta que o direito

fornece para propor a tese de um "direito dos governados"

(1977). Trata-se do "direito de viver, de ser livre, de partir, denão ser perseguido - em suma, a legítima defesa em face dosgovernos" (ver nQ 210, p. 364, vol. III da edição francesa destaobra). Essa proposição foi feita como uma forma de valorizaros direitos da defesa, principalmente no caso do advogado

Klaus Croissant.As dissidências, diante do nazismo e do stalinismo e seus su-

cessores, as formas novas que toma a direita na Europa Oci-dental estão presentes nessa valorização inédita por Foucaultdos direitos dos indivíduos. Assim, a ídeía da construção deum futuro radioso, "os amanhãs que cantam", é de forma muito

contundente criticada por Foucault: "Deixamos de suportar oque nos diziam - oumelhor, o cochicho que, emnós, dizia: Pou-

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XX II Michel Foucault - Ditos e Escritos

co importa, um fato não será jamais nada em si mesmo; escute,leia, espere; isso se explicará mais adiante, mais tarde, maisalto" (ver n!!204, p. 277, vol. III da edição francesa desta obra).

Uma nova declaração dos Direitos do Homem

Sobre todas as justificativas dos terrores e opressões doEstado, Foucault formula a perspectiva e vê formar-se comoque um direito, cujo âmbito é supranacional e transestatal.Este se organiza especialmente por meio de algumas organiza-ções internacionais (Anistia Internacional, Terra dos Homens,ONGs). Surge "um novo direito", que opõe aos excessos dos go-vernos e a todo abuso do poder uma solidariedade dos governa-dos. Ele penetra no domínio reservado das relações internacio-nais. Diz Foucault em 1981: "Avontade dos indivíduos deveinscrever-se emuma realidade de que os governos quiseram re-

servar-se o monopólio, esse monopólio que é preciso arrancarpouco a pouco e a cada dia" (ver p. 370 neste volume). Foucaultescreve seu pequeno manifesto para ser lido junto a BernardKouchner e YvesMontand quando da criação do Comitê Inter-nacional contra a Pirataria. Os direitos não se limitam, paraFoucault, à esfera da soberania nacional que procura enqua-drá-los, Odireito do soberano, que constrói o edifício dos Esta-dos modernos, fez-se sob a forma da extração. O soberano ti-nha o direito de demandar a vida ao sujeito em troca de suaproteção. O novo direito, repensado, leva em conta a tendência

ao declínio histórico dessa forma de soberania.O debate sobre a pena de morte - na França, foi o lugar emque Foucault se manifestou também sobre essa questão: o "direi-to de morte" do soberano e seu direito de pedir aos sujeitos con-cebidos como força física nacional estão abalados e vacilam.Assim, afírmar o "princípio de que nenhuma potência pública (etambém não, aliás, qualquer indivíduo) tem o direito de tirar a

vida de alguém" implica pôr em questão o direito de morte sobtodas as suas formas: questionamento da guerra, da organiza-ção armada, é aquilo que se desenha no horizonte. Foucault pre-via seu questionamento como uma exigência do futuro. Reto-

ma-se, assim, o problema do direito dematar, tal como é exerci-do pelo Estado em todas as formas. Para ele, "épreciso retomar,com todas as implicações políticas e éticas, a questão de saber

Apresentação à Edição Brasileira XXIII

como defínír, da maneira mais justa, as relações da liberdadedos indivíduos e de sua morte" (ver p. 360 neste volume).Essa questão levanta outra: a de toda pena, seja ela qual for.

Por isso, Foucault propõe que haja um engajamento para nãodeixar cair "na imobilidade e na esclerose todas as instituiçõespenitenciárias" (ver p. 361 neste volume). Assim, deve-se fazer

da penalidade "um lugar de reflexão incessante, de pesquisa ede experiência, de transformação. Uma penalidade que preten-de ter efeito sobre os indivíduos e sua vida não pode evitar detransformar-se perpetuamente" (ver p. 361 neste volume).E Foucault conclui ser bom, "por razões éticas e políticas,

que o poder que exerce o direito de punir inquiete-se, sempre,com esse estranho poderio e não se sinta jamais tão seguro desi próprio" (ver p. 361 neste volume). Ele ressalta de forma mui-to clara esse ponto em sua carta aberta a Bazargan, quando co-meçaram as execuções no Irã no início de 1979.A questão ética tem aqui um lugar importante quando Fou-

cault formula sua "moral". Essa moral, ele a define como "antí-estratégica", na medida em que não se subordinam "tal morte,tal grito, tal insurreição àgrande necessidade do conjunto". Ati-tude diferente, inversa, do comandante de tropa, do estrategis-ta ou mesmo do líder revolucionário que avança seus peões.Estratégico não é aqui pensado como forma de resistência aopoder. Trata-se de não aceitar a legítímação dos meios pelosfins. Se antes há em Foucault o tema das lutas, resistências lo-cais e estratégicas, ele por fim apresenta o suplemento dessanova moral que tem como imperativo "espiar, um pouco abaixo

da história, o que a rompe e a agita". E também, particularmen-te, "velar um pouco, na retaguarda da política, o que deve in-condicionalmente limitá-Ia" (ver p. 81, vol. IVda edição brasi-leira desta obra). Há, assim, uma exigência ética irredutível,que se recusa a considerar "a infelicidade dos homens" comoum "resto mudo da política" (ver p. 370 neste volume). Se a mo-ral, em um determinado momento, podia ser o efeito das for-mas de vigilância e das normas de ação, sob esse novo prisma aética surge como um cuidado com a singularidade e a liberda-de. Se, de fato, pode-se dizer que Foucault pensa contra si, re-

formulando sua problemática, ele também levou em conta oque, na história da cultura ocidental, foi pensado sob o signo damoralidade entre a imposição das normas e a vontade de ummodo, regra ou estilo de vida.

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XXIV Michel Foucault - Ditos e Escritos

Aemergência do Islã político - a questão iraniana

No primeiro semestre de 1978 o editor de História da loucu-ra em italiano, Rizzoli, acionista do Corriere delta Sera, convi-dou Foucault a intervir na atualidade com seus pontos de vista.Ainda que Foucault tenha antecipado de forma muito clara a

importância que teria o Islã na mudança em curso no Irã e seupapel nojogo internacional das relações de poder, é importantenotar, para avaliar a posição de Foucault, que ele dizia não fa-zer a história do futuro, mas procurar pensar o que está se pas-sando. Muitos mal-entendidos e interpretações truncadas desua posição poderiam ser evitados a partir dessa perspectiva.Foucault lucidamente pode dizer que "o problema do Islã

como uma força política é um problema essencial de nossa épo-ca e para os próximos anos". Alerta em uma carta a uma leitoraque o problema do Islã "não pode ser abordado sem um míni-mo de inteligência, se começamos a abordá-lo a partir de uma

posição de ódio".Depois do incêndio do cinema Rex emAbadan, a atenção in-

ternacional concentrava-se no Irã. Foucault lê Corbin e encon-tra um assessor do líder do Front nacional Karin Sandjab. Elevai ao Irã, acompanhado pelo jornalista Thierry Voeltzel, poucodepois da sexta-feira negra, em que as tropas do xá atiraram namultidão e fizeram 4 mil mortos. Ele intervém mesmo in locodurante duas semanas, a primeira de 16 a 24 de setembro de1978 e a segunda de 19 a 25 de novembro de 1978. Chega a serrecebido na cidade sagrada do xiismo, Quom, por Chariat Ma-dari, aiatolá liberal que se opõe ao exercício do poder políticopelos religiosos. Seu intérprete será Mehdi Bazargan, fundadordo comitê de defesa dos direitos do homem. Desde 1971Foucaultapoiava um comitê organizado em Paris para a defesa dos direi-tos humanos no Irã. Ele vai assinar, por exemplo, em fevereirode 1976, um texto publicado no jornal Le Monde, junto a ou-tras personalidades francesas, entre as quais F. Mitterrand, M.Roccard, Sartre e Deleuze, L. Jospin e Yves Montand, protes-tando contra "o silêncio das autoridades francesas em face dasviolações flagrantes dos direitos do homem no Irã".Foucault já realizara investigações que eram intervenções po-

líticas na época do Grupo de Informação sobre as Prisões (vervol.Na edição brasileira desta obra). Ele terminava o texto emque explicava o sentido de suas reportagens, dizendo: "Não são

Apresentação à Edição Brasileira XXV

as ideias que dirigem omundo. Mas é porque omundo tem ideias(eporque ele as produz continuamente) que ele não é levado pas-sivamente pelos que o dirigem ou os que gostariam de ensi-nar-lhe o que é preciso pensar uma vez por todas. Tal é o sentidoque queríamos dar a essas 'reportagens', em que a análise doque se pensará estará ligada à do que se passa. Os intelectuaistrabalharão no ponto de cruzamento das ideias e dos aconteci-mentos" (Corriere de tla Sera, 12 de novembro de 1978).No Irã, Foucault irá interrogar todo mundo, visitando todos

os lugares significativos, dos cemitérios às universidades, dosestudantes aos religiosos, de populares dispostos a sacrifi-car-se, soldados, gente da administração, operários deAbadanaté funcionários da Iran Air. Desse trabalho incessante de in-vestigação vão surgir suas reportagens. Ele redigirá as primei-ras quatro quando de seu retorno a Paris.

Leitura estratégica da revolta islâmica

Foucault começa a série de reportagens com textos de extra-ordinária riqueza e complexidade, de uma escrita cinzelada.Ele começa o artigo "O exército, quando a terra treme" descre-vendo um pequeno acontecimento de dimensão simbólica e quena sua extensão vai se revelar como algo que ultrapassará emmuito a fronteira do Irã. A leitura de Foucault opera em váriosplanos: estratégico-político, na dimensão subjetiva dos atos co-letivos, no sentido da espiritualidade política e na análise dopoder soberano. Opera também uma leitura sociológica, anali-sando as classes e suas alianças. Ele recorre a outras experiên-cias históricas para explicar a ação do xíísmo, a importânciados movimentos religiosos durante a Renascença, com a refor-ma na Europa, e a experiência da Revolução Francesa. Ele criti-ca, a partir de uma leitura muito precisa, o fracasso do que seconvencionou chamar a "modernização" iraniana.O acontecimento geológico é principalmente o símbolo cós-

mico de uma mudança brusca com que Foucault inicia sua nar-rativa: os efeitos de um terremoto. Pois bem, é o efeito planetá-rio do terremoto iraniano que ele começa a descrever a partir

do que ocorreu em Tabass e 10 anos antes em Ferdows. Acida-de de Ferdows fora destruída há 10 anos na mesma região. DizFoucault: "sobre esta terra destruída duas cidades rivais nas-

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XXVI Míchel Foucault - Ditos e Escritos

ciam, como se no Irã do xá a mesma infelicidade não pudesseacontecer a um só emesmo renascimento". Há, assim, duas ci-dades reconstruídas. Uma pela administração do xá e a outra"contra todos os planos oficiais", reconstruída pelos artesãos, acidade deles, "sob a direção de um religioso". Os agricultores eos artesãos "recolheram fundos, reconstruíram e escavaramcom suas próprias mãos, organizaram canais e poços, construí-ram uma mesquita". Foucault nota: "Eles haviam, no primeirodia, estendido uma bandeira verde. A nova cidade chama-seIslamieh. Em face do governo e contra ele, o Islã: 10 anos já"(ver p. 213 neste volume).Otremor de terra lembra a metáfora emAspalavras e as coi-

sas, que marca a mutação das epistemes, como o tremor sobnossos pés do solo em que se ancorava nosso saber . Ele é aquiao mesmo tempo o Irã, lugar de terremotos naturais, mas, prin-cipalmente, o lugar da mutação violenta provocada pelo terre-moto político em que a terra em Teerã treme sob a ação dos tan-

ques. É a figura de um mundo em mutação real, é o horizontenovo de uma transformação em curso que se abre.Foucault está, porém, extremamente atento aos detalhes e sin-

gularidades da conjuntura iraniana: "Quem vai reconstruir Ta-bass?" Não se trata de Tabass apenas, mas do Irã. "Quemvai re-construir o Irã, desde que, nesta sexta-feira, 8 de setembro, o solode Teerã treme sob a esteira dos tanques?" "EFoucault conclui:"ofrágil edifíciopolítico está fissurado de alto a baixo, irreparavel-mente". Ele descobre em Tabass a mesma oposição que em Fer-dows: "sob as palmeiras os últimos sobreviventes de Tabass se

encarniçam sobre os escombros", sem falar dos mortos que le-vantam os braços para deter osmuros que se esboroaram. Deumlado, a ação do governo do xá com as escavadeiras chegando e amá recepção da imperatriz, e, de outro, "os mulás acorrem detoda a região; e os jovens discretos, em Teerã, correm às casasamigas, para coletar fundos antes da partida para Tabass" (ver p.213 neste volume). E entra em cena a fala de Khomeyni, do exíliono Iraque: "Ajudemseus irmãos, mas nada por intermédio do go-verno, nada para ele" (verp. 213 neste volume). Foucault conclui!"Aterra que treme e destrói as casas pode bem reunir os homens;ela divide os políticos e marca mais nitidamente do que nunca osadversários" (ver p. 213 neste volume).Se o poder pensa na possibilidade de desviar a imensa cóle-

ra das massas iranianas provocada pelo massacre da praça

Apresentação à Edição Brasileira XXVII

Djaleh para a ação cega da natureza, "ele não conseguirá" (ver

p. 213 neste volume).Foucault descreve as relações da multidão com o exército.

No dia 4, ela lança gladíolos para os soldados, confraterni-zando-se e chorando. No dia 7, imensa manifestação explo-dindo nas ruas de Teerã na presença dos fuzis-metralha-doras, a alguns centímetros deles. Fuzis apontados, mas si-lenciosos. O confronto se dá no dia 8 de setembro: "metralha-doras e bazucas, talvez, atiraram todo o dia; a tropa teve, àsvezes, a frieza metódica de um pelotão de execução" (ver p.

214 neste volume).Foucault situa esse acontecimento na perspectiva jurídi-

co-religiosa e política. O assassinato de Ali tem a força de um"escândalo religioso", ao mesmo tempo jurídico e político. Mui-tos acreditam que os tiros vieram de inimigos do povo infiltra-dos no exército, por conselheiros de Israel ou americanos. Masos próprios opositores do xá, a quem Foucault interrogou, di-

zem que "nada permite dizer que nossos mortos de Teerã fo-ram executados por estrangeiros" (ver p. 214 neste volume).Aquestão que levanta Foucault é se a realidade do poder en-

contrava-se então nas mãos do exército. Este retém momenta-neamente a revolta popular, porque o xá foi por todos abando-nado. Ele pode decidir a situação. tal como pensam observado-res do Ocidente? Não é o que parece, argumenta Foucault. Paraisso é preciso saber o que constitui o exército iraniano, seuscomponentes, suas funções na história do Irã. Ele descreve oexército iraniano: quinto exército do mundo que recebe um ter-

ço das rendas do petróleo. No entanto, resta saber se, paraalém do dispositivo tecnológíco, com caças e overcrajts, se naverdade há de fato um exército. E Foucault chega a dizer:"Acontece, mesmo, que um armamento impede de fazer um

exército" (ver p. 214 neste volume).Mas o que é o dispositivo militar iraniano? Não há um exérci-

to, mas quatro; o exército tradicional encarregado do controle eda vigilância do território, a guarda pretoriana do xá; um exér-cito de combate com armas por vezes de uma sofisticação quenão as tem o exército americano. E, finalmente, cerca de 30 ou40 mil conselheiros dos Estados Unidos. Há ainda um Esta-do-Maior geral em que cada uma das unidades liga-se ao xá porum vínculo direto, controlando o soberano os deslocamentos

de todos os oficiais superiores.

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XXVIII Míchel Foucault - Ditos e Escritos

Ainda que o papel do exército seja muito importante do pon-to de vista econômico, na medida em que um sexto da popula-ção depende dele, isso não basta, diz Foucault, "para lhe daruma base social coerente, nem para fazê-lo participar do desen-volvimento econômico" (ver p. 215 neste volume). Comprandotodo o armamento no estrangeiro, não há no Irã uma estruturaeconômico-militar que se possa dizer sólida.

E também falta ao exército iraniano uma ideologia do exérci-to com função nacional. Não dispõe, lembra Foucault, de umprojeto político ou de um enquadramento nacional como se en-contra nos exércitos da América do Sul, desde o século XIX,porseu papel nas guerras da Independência. Foucault observa que"o exército iraniano jamais libertou quem quer que seja" (ver p.215 neste volume) marcado de forma sucessiva pelo selo russo,inglês, americano. Agiu para proteger o soberano e montouguarda ao lado de sentinelas estrangeiras dos territórios e con-cessões. Nunca, portanto, identificou-se com o Irã. E "nem quis

se encarregar do destino do país" (ver p. 215 neste volume). Oxá, é verdade, era um general que se tornou rei, mas era da le-gião cossaca e fora impulsionado pelos ingleses. Ainda que umgeneral de pulso pudesse ser imposto ao xá como primei-ro-ministro, pelo embaixador dos Estados Unidos, seria, dizFoucault, uma solução provisória. Não haveria ditadura militarcomandada por uma casta de oficiais solidários. Não há fórmu-la Videla ou Pinochet possível.

O exército tem uma posição antímarxísta apoiada em duasbases. De um lado, a União Soviética, depois que Mossadegh foi

derrubado, apoia ao menos tacitamente o xá. Éum antímarxís-mo que sustenta o nacionalismo. E a outra fonte é a propagan-da do governo, que diz que não se deviam nunca matar mulhe-res ou crianças, "salvo, certamente, se fossem comunistas" (verp. 216 neste volume).

Ampliando-se a agitação, o exército se arriscaria a intervirativamente na vida do país, e essa agitação é apresentada pelogoverno do xá como manipulada e estimulada pelo comunismointernacional. Com a expansão do movimento de revolta, o go-verno apelaforçosamente para as tropas, mas que não têm nemapoio nem preparo. E os membros dos exércitos descobrem,no contato com a multidão revoltada, que eles não deparamcom o comunismo internacional, "mas com a rua, com os co-merciantes do bazar, com os empregados, com os desemprega-

Apresentação à Edição Brasileira XXIX

dos como seus irmãos ou como estariam se não fossem solda-dos" (verp. 216 neste volume). Os oficiais podem fazer com queos soldados atirem uma vez, não duas, uma guarnição inteirateve de ser trocada emTabriz e os regimentos de Teerã tiveramde vir das províncias mais distantes.O exército descobre uma nova realidade com a expansão da

agitação que se faz sob o signo do Islã. E ao Islã todo o exércitoestá ligado. Os oficiais e soldados descobrem que é com mes-tres com que deparam, e não com inimigos.Não é em termos de necessidades nacionais que a amplidão

do exército iraniano sejustifica. Seria arrasado em pouco tempopor uma intervenção soviética. Sua força sejustifica para mantera ordem interna ou na esfera regional, na escala do Sudeste Asiá-tico. Dividido, não tem forças para impor a ordem americana aoIrã. Éum exército equipado "à americana, mas não um exército'americanizado" (ver p. 217 neste volume). Não tem, no entanto,a possibilidade de impor uma solução própria, pode permitir ouimpedir uma solução. E a solução que se apresenta, observaFoucault, "não é a americana, do xá, mas aquela islâmica, domovimento popular" (ver p. 218 neste volume).

Uma modernização que é um arcaísmo

Antes de partir de Paris, explicaram para Foucault a criseiraniana em termos que ele resume desta forma: "OIrã atraves-sa uma crise de modernização. Umsoberano arrogante, desaje-

itado, autoritário tenta rivalizar com as nações industriais, etem os olhos voltados no ano 2000; mas, quanto à sociedadetradicional não pode nem quer seguí-lo, Ferida, ela se imobili-za, volta-se para seu passado e, emnome de crenças milenares,pede abrigo a um clero retrógrado" (ver p. 219 neste volume).Foucault ouviu muitas vezes vários analistas - ele mantinhacontatos ativos com a oposição iraniana em Paris - perguntan-do-se que forma ou estrutura política poderá reconciliar "o Irãprofundo, com sua necessidade de modernização". Em Teerã,ele encontrou respostas divergentes a essa questão. Foi esclare-

cido por um opositor do regime, talvez o próprio Bazargan, quelhe diz pretender que o movimento de oposição ao xá visa a der-rubar o despotismo e a corrupção. Não se tratava de uma hie-rarquia de males, mas de uma combinação de ambos: "o despo-

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XXX Michel Foucault - Ditos e Escritos

tismo mantém a corrupção e a corrupção sustenta o despotis-mo" (verp. 220 neste volume). Háa ídeía de que, para moderni-zar o Irã, país muito atrasado, é preciso um poder forte, e que"a modernização não pode deixar de conduzir a corrupção emum país ainda subadrnínístrado" (ver p. 220 neste volume). Éexatamente esse conjunto corrupção-modernização que é rejei-

tado pelo movimento de forças em vias de derrubar o regime.Foucault deparou com um pequeno detalhe, que para ele teve oefeito de esclarecimento e que o surpreendeu no dia anterior,quando fora visitar o bazar, que fora reaberto há pouco depoisde mais de uma semana de greve: "alinhavam-se, às dezenasmáquinas de costura altas e contornadas, como se podem vernos reclames dos jornais do século XIX; estavam repletas dedesenhos em forma de hera, de trepadeiras e flores em botão,imitando, de forma grosseira, as velhas miniaturas persas.Essas ocidentalidades fora de uso, marcadas por um signo doOriente obsoleto, traziam todas a inscrição 'Made in South Ko-rea'" (ver p. 220 neste volume). Foucault compreende, então,que os acontecimentos recentes do Irã não significavam "o re-cuo dos grupos os mais retardatários diante de uma moderni-zação brutal" (ver p. 220 neste volume). Tratava-se de algo di-verso e muito mais sério: "a rejeição, por toda uma cultura etodo um povo, de uma modernização que, ela própria, é um ar-caísmo" (ver p. 220 neste volume).

O xá tem a infelicidade de incorporar esse arcaísmo, man-tendo pela corrupção e pelo despotismo esse pedaço do passa-do que não émais desejado. Atese de Foucault é, então, de que

a modernização como projeto político e como princípio detransformação social pertencia ao passado.

Um conjunto de conflitos em fusão

Todos os grandes projetos do poder iraniano são rejeitados:não só os grandes proprietários ou os pequenos camponesesestão descontentes com a reforma agrária, endividados e força-dos a migrar para as cidades; estão descontentes os artesãos e

pequenos industriais, já que o mercado interno que se criou fa-voreceu os exportadores estrangeiros. Os comerciantes dos ba-zares também não estão satisfeitos, pois as modalidades atuaisda industrialização os sufocam. Descontentes com os ricos,

Apresentação à Edição Brasileira XXXI

que não investem no país, porque, ao invés de desenvolverem aindústria nacional, imitam os governantes que põem seus capi-tais embancos da Califórnia ou mesmo emParis. Forma-se, as-sim, uma condensação de conflitos, resumida por "essa sériede fracassos pungentes", que representam a modernização que"não se quer" (ver p. 221 neste volume).

Dos três objetivos de Reza Khan, emprestados de KemalAta-turk - nacionalismo, laicidade, modernização -, os dois primeirosjamais puderam ser alcançados, observa Foucault. Quanto ao na-cionalismo, não souberam nem puderam libertar-se dos cons-trangimentos da geopolíticae da posse do ouro negro. RezaKhanse colocou sob a dominação inglesa para escapar à dominaçãorussa. O filho substituiu a presença dos ingleses e a "penetraçãosoviética pelo controle político, econômico e militar dos america-nos. Quanto à laicidade, era um objetivo extremamente difícil,porque o xiismo constituía, no Irã, "o verdadeiro princípio daconsciência nacional". Oxá inventou uma arianidade, fundada nomito da pureza ariana, mas que era, na verdade, uma forma deprocurar no antigo passado persa uma base para a monarquia.Ficou então apenas um "osso duro de roer": a moderniza-

ção, profundamente rejeitada. E Foucault conclui: "Com aagonia atual do regime iraniano, assiste-se aos últimos mo-mentos de um episódio que aconteceu há 60 anos: uma tenta-tiva de modernizar à europeia os países íslâmícos" (ver p. 221neste volume). Para Foucault, é a modernização que naquelemomento constitui um peso morto. Depois de descrever demaneira minuciosa as formas de corrupção associadas à eco-

nomia do regime, Foucault diz que não se devem lamentar naEuropa as "horas e infelicidades de um soberano moderno de-mais para um país bastante velho. O que é velho no Irã é o xá:50, 100 anos de atraso". O arcaísmo, no momento em que asociedade iraniana toda se mobiliza, é "seu projeto de moder-nização, suas armas de déspota, seu sistema de corrupção"(ver p. 223 neste volume). Em suma, o arcaísmo é o regime.

Interpretar o sonho dos iranianos

Noartigo "Como que sonham os iranianos", o único publica-do na França no Nouvel observateur, a questão era saber se osnorte-americanos iriam "levar o xáa uma nova prova de força, e

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XXXII Michel Foucault - Ditos e Escritos

a uma segunda 'sexta-feira negra" (ver p. 230 neste volume).Foucault lembra que estava todo mundo mais ou menos de boavontade nas últimas semanas, em que conselheiros do xá, polí-ticos do Front nacional ou de setores mais à esquerda, de ten-dência socializante, peritos americanos propõem uma "líberalí-zação acelerada local", ou ainda deixar que ela aconteça. Evo-

ca-se de forma mais insistente o modelo espanhol de transição.Seria ele passível de ser transposto para o Irã? Contando com oxá ou sem ele? Foucault recorda existirem entre o Irã e a Espa-nha grandes diferenças. Não se criou pela forma peculiar damodernização iraniana "a base social de um regime liberal, mo-derno, ocídentalízado" (ver p. 231 neste volume). E como ele jádesenvolvera no artigo sobre "Odelírio do Irã", "formou-se, emcompensação, um imenso impulso popular, que explodiu esteano: ele atropelou os partidos políticos em via de reconstitui-ção; acabou por jogar dois milhões de homens nas ruas de Tee-rã contra as metralhadoras e os tanques" (ver p. 231 neste volu-me). E as palavras de ordem não diziam apenas morte para o xámas Islã, Islã, Khomeyní, nós te seguiremos.Defíníndo no plano interno uma bipolaridade, Foucault diz

que a situação iraniana parecia estar suspensa por "uma grandeluta entre dois personagens com brasões tradicionais: o rei e osanto" (ver p. 231 neste volume). De um lado, o soberano comarmas e, do outro, "oexilado desarmado". De um lado, o déspotaque "tem diante de si o homem que se ergue de mãos nuas, acla-mado por um povo" (verp. 231 neste volume). Trata-se, diz Fou-cault, de uma imagem dotada de "sua própria força de arrebata-

mento, mas recobre uma realidade na qual milhões de mortosacabam de dar sua assinatura" (ver p. 231 neste volume).Para que a liberalização pudesse ter curso, seria necessário

ou integrar esse movimento de massas ou interromper o seucurso. Foucault lembra, então, a intervenção de Khomeyni emParis, que "quebrou o barraco" (ver p. 231 neste volume). Seuapelo era dirigido aos estudantes e também aos muçulmanos eao exército: "que se opusessem, emnome do Corão e do naciona-lismo, a esses projetos de compromisso, em que estão em ques-tão as eleições, a constituição etc." (ver p. 231 neste volume).

A expectativa dos políticos é de que o movimento islâmico,"essa bruma", na metáfora que Foucault inventa para fígurarsua imagem para os que pensam em termos de partidos e polí-tica liberal, vai se dissipar, e "a verdadeira política retomará os

Apresentação à Edição Brasileira XXXIII

comandos e faremos, rapidamente, com que esqueçam o velhopregador" (ver p. 232 neste volume). No entanto, lembra Fou-cault que toda a agitação emNeuphale-le-Château, onde está oaiatolá, toda as "idas e vindas de iranianos 'importantes', tudodesmentia esse otimismo um pouco apressado" (verp. 232 nes-te volume). Acreditava-se assim, diz Foucault, de forma quase

lírica, "na força da corrente misteriosa que passa entre um ve-lho homem exilado há 15 anos e seu povo que o invoca" (ver p.232 neste volume).Aquestão que move Foucault em sua viagem ao Irã é a do so-

nho dos iranianos, isto é, a do que desejam, do que querem.Foi, diz ele, "com essa única questão - o que querem - que fui aTeerã e a Quom nos dias que se seguiram aos motins". Foucaultnão vai interrogar os profíssíonaís da política. Discutirá comestudantes, às vezes com religiosos, com intelectuais que se in-teressavam pela problemática do Irã, ou até com guerrilheirosque tinham deixado a luta armada e se envolveram com a socie-dade tradicional. Quanto ao que querem os iranianos, ele nãoouviu nem uma vez a palavra "revolução". Aresposta era "o go-verno íslâmíco", o que para ele não era uma surpresa pois foraonde ficara Khomeyni.E ele interroga, então, no contexto de um país como o Irã, o

que isso quer dizer, qual o sentido dessa fórmula, em um paísde maioria muçulmana, mas que não é árabe e também não su-níta, onde a mensagem do pan-arabismo era menos sensível,diz ele, e também a do pan-islamismo.Foucault declina então as características singulares do que

daria a "vontade de umgoverno íslâmíco" no Irã, um governo is-lãmíco com sua "coloração particular".

Asingularidade do Irã xiita

No que tange à organização: "Ausência de hierarquia no cle-ro, independência dos religiosos uns com os outros, mas de-pendência (mesmo fmanceira) com respeito àqueles que os es-cutam" (ver p. 232 neste volume). E, ainda, "importância da au-

toridade puramente espiritual, papel ao mesmo tempo de eco ede guia que deve representar o clero para sustentar sua influên-cia" (ver p. 232 neste volume). Importantes são os traços do IslãXiitano que tange à doutrina, especialmente "o príncípío de que

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XXXIV Michel Foucault - Ditos e Escritos

a verdade não foi acabada pelo selo do último profeta" (ver p.232-233 neste volume). Foucault lembra que depois de Maomécomeça um outro ciclo da revelação, inacabado ainda, que"através de suas palavras, seu exemplo e seu martírio também,

carregam uma luz, sempre a mesma e sempre mutável; é elaque permite iluminar, do interior, a lei, a qual não foi feita so-mente para ser conservada, mas para libertar, ao longo do tem-po, o sentido espiritual que ela recepta" (ver p. 233 neste volu-me). Há a promessa do retorno do décimo segundo ímã, que,ainda que invisível, não está "radical e faltamente ausente", esão os "homens que o fazem voltar, àmedida que mais os ilumi-na a verdade com a qual despertam" (ver p. 233 neste volume).Descrevendo a doutrina xiita, Foucault lembra a opinião de

que todo poder é mau quando não é o poder do imã. Aquestãoparece ser mais complexa. Foucault refere-se à opinião do aiato-lá Chariat Madari, que lhe disse: "Nós esperamos a volta do imã,o que não quer dizer que renunciamos à possibilidade de um

bom governo" (ver p. 233 neste volume). Madari refere-se, então,também à atitude cristã que espera o dia do juízo frnal. Foucaultrecorda esse encontro em que o aiatolá o recebeu cercado de vá-rios membros do comitê para os direitos humanos no Irã. É pre-ciso lembrar que Madari terminou seus dias emresidência vigia-da. No seu círculo não se acreditava que o regime islâmico signi-ficava um regime político no qual o clero iria representar um pa-pel de direção ou enquadramento. Seria, em primeiro lugar,uma utopia: algo como "voltar ao que foio Islã no tempo do Pro-feta; mas também avançar em direção a um ponto luminoso e

distante, onde seria possível reatar comuma fidelidade, antes doque manter uma obediência" (ver p. 233 neste volume). Nessabusca, Foucault ressalta a "desconfiança com relação ao legalís-mo", assim como a crença na capacidade criativa do Islã. Quantoao xiismo, por outro lado, ele se pergunta "se essa religião, quechama sucessivamente à guerra e à comemoração, não é, no fun-do, fascinada pela morte - mais preocupada, talvez, com o mar-tírio do que com a vitória" (ver p. 227 neste volume). Mas ele dizsaber qual seria a resposta a essa questão que não fez aos irania-

nos: "Nós nos preocupamos com mortos, pois eles nos ligam à

vida; e nós lhes estendemos a mão, para que nos atem ao deverpermanente da justiça" (ver p. 227 neste volume).Foucault lembra que 90% dos iranianos são xiitas. Noentan-

to, a espera do imã não aceita de forma indefinida as "grandes

Apresentação à Edição Brasileira XXXV

infelicidades do mundo" (ver p. 227 neste volume). Ajustiça di-tada ao profeta pode-se, "também, decifrá-Ia na vida, nos pro-pósitos, na sabedoria e nos sacrifícios exemplares dos imãs,nascidos, desde Ali, na casa do Profeta e perseguidos pelo go-verno corrompido dos califas" (ver p. 227-228 neste volume).Foucault diz que o clero deve denunciar a injustiça, criticar aadministração, levantar-se contra as medidas inaceitáveis, cen-surar e prescrever (ver p. 228 neste volume). Foucault os com-para a "placas sensíveis onde se marcam as cóleras e as aspira-ções da comunidade" (ver p. 228 neste volume).Foucault diz que a fórmula ocidental mais criticada no Irã

era a tese de Marx sobre a religião como ópio do povo. E diz:"Até a atual dinastia, os mulás, nas mesquitas, pregavam comum fuzil a seu lado" (ver p. 227 neste volume). Ele compara aação das vozes dos mulás, multiplicadas pelos alto-falantes e ossermões divulgados em fitas cassetes, que incitam a revolta de-pois dos massacres e que ressoavam em toda cidade, "terrí-

veis", diz ele, "como foram, em Florença, a de Savonarol, as dosanabatistas em Münster ou as dos presbiterianos no tempo deCromwell" (ver p. 227 neste volume).

Introduzir uma dimensão espiritual na política?O clero não é uma força revolucionária

Por outro lado, Foucault afirma que as defrnições do governoislâmico são imprecisas e que lhe parecem pouco tranquílíza-

doras, pois muito familiares. Seriam as "fórmulas de base dademocracia burguesa ou revolucionária". Ele disse aos irania-nos: "não cessamos de repeti-Ias desde o século XVIII, e vocêsabe a que levaram".Foucault vê na proposta do governo islâmico "o movimento

que tende a dar às estruturas tradicionais da sociedade íslâmí-

ca um papel permanente na vida política. É ele que permitemanter vivas as lareiras políticas que são acesas nas mesquitase nas comunidades e que resistiram ao governo do xá". Há. noentanto. outro movimento, inverso, diz Foucault, e a recíproca

do primeiro. Éo movimento que vai introduzir na política "umadimensão espiritual". Fazer da política não seu obstáculo, masreceptáculo, ocasião para que ela fermente. Foucault refere-se àfigura de Ali Chariati, que estudou na Europa com Gurvitch e

XXXVI Míchel Foucault - Ditos e Escritos Apresentação à Edição Brasileira XXXVII

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ao mesmo tempo lera Fanon eMassígnon, No Irã, ensinou forada universidade, em uma sala abrígada por uma mesquita.Teve o fim dos mártires com os livros proibidos, perseguido eforçado ao exílio, onde morreu, de uma forma que poucos con-sideram natural no Irã. Foucault diz-se embaraçado em falar degoverno íslâmíco, mas impressionou-se com a vontade políticado movimento.

Como dissemos, Foucault fora convencido em suas conver-sações com Chariat Madari, em Quom - como nos lembra Da-niel Defert -, em setembro de 1978, filósofo esclarecido e líderreligioso, de que o xiismo não podia reivindicar a exclusividadedo poder temporal. Ele iria entrar em conflito com Khomeynino início de 1979, propondo a criação de um Partido Republi-cano Popular.Falando do xiismo, Foucault não pretende embelezar as coi-

sas. Diz ele: "o clero xiita não é uma força revolucionária".Assim, ele enquadra, a partir do século XVII, a religião oficial.

Sejam as mesquitas, sejam os túmulos dos santos, "receberamricas doações" (ver p. 228 neste volume), bens de considerávelvalor que se acumularam nas mãos do clero. Houve, assim,"muitos conflitos e cumplicidades com as pessoas do poder".Houve também oscilações, embora Foucault ressalte que osmulás, principalmente os mais humildes, estiveram na maiorparte das vezes do lado dos revoltosos. Tornavam-se popularesapoiando a revolta, como o aiatolá Kachani, que apoiou Mossa-degh e depois foi esquecido quando "mudou de lado".Ainda que não sejam revolucionários no sentido popular da

palavra, Foucault lembra que àmodernização e ao governo eles

só têm a opor a inércia. Ela não força, no entanto, forças revolu-cionárias a tomarem sua forma. Constitui, contudo, algo que émais do que uma "palavra simples". Algo de real a atravessa.Constitui, na verdade, diz Foucault, hoje, isto é, no momentoem que a grande mudança perpassa o Irã, na atualidade, "o quefoi muitas vezes no passado; a forma que toma a luta política,desde quando mobiliza as camadas populares. Faz demilharesde descontentamentos, de ódios, de misérias, de desesperos,umaforça" (ver p. 229 neste volume) Pode fazer disso uma for-ça porque se trata, no caso do xiismo, de "uma forma de expres-

são, um modo de relações sociais, uma organização elementarflexível, e largamente aceita" (ver p. 229 neste volume). E Fou-cault define essa forma no nível do modo de vida, da fala, da es-

cuta e da linguagem, algo que funciona na dimensão do desejo eda vontade: é "uma maneira de estar junto, um modo de falar eescutar, alguma coisa que permite se fazer escutar os outros equerer com eles, ao mesmo tempo que eles" (ver p. 229 nestevolume).

o Irã deliranteEm novembro de 1978, Foucault volta a Teerã e faz sua se-

gunda intervenção na situação iraniana. Ele agora pode avaliarem um aprês-coup o resultado das mudanças em curso e al-guns de seus aspectos mais paradoxais e singulares. O textoque ele escreve chama-se originalmente Lafolie de I'Iran, quese lê como a loucura do Irã, mas no registro homofônico, comoa loucura delirante (de l'Iran: délirant). Oque dá bem amedidada dimensão subjetiva do caráter radical, que quebra os limitesde uma certa racionalidade, da experiência em curso no Irã.

Esse artigo foi, no entanto, publicado no Corriere della Seracom uma referência menos subversiva, sob o título O chefe mi-tico da revolta no Irã, em que a figura do mito é que comanda acena histórica. O primeiro ponto examinado é o da cena políti-ca, que, na figura da agulha, mal se mexeu. Mudança apenas deum governo semiliberal por um governo militar. Mas o quadrotodo passa por uma poderosa mudança: "De fato, todo o paísestá afetado: cidades, campo, centros religiosos e regiões petro-líferas, bazares, universidades, funcionários, intelectuais" (verp. 251 neste volume). Toda a história do Irã no século XX foi

questionada, diz Foucault; esse questionamento vai do desen-volvimento econômico à dominação estrangeira, da dinastia re-inante à modernização, e engloba tanto a vida cotidiana comoos costumes. Desse passado e sua estrutura há uma "rejeiçãoglobal" (ver p. 251 neste volume).Foucault não faz uma leitura do futuro nem se atém a prever

a partir do passado. Mas procura, como na AuJkld.rung, darconta do "que está se passando", pois, como ele diz, "nada aca-bou e os dados estão, ainda, sendo lançados" (ver p. 251 nestevolume).Em primeiro lugar, a história do Irã em face do avanço das

grandes potências e a extensão do poder colonial. Aparticulari-dade do Irã é que ele, diferente da Índia, por exemplo, ''jamais foi

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XXXVIII Mlchel Foucault - Ditos e Escritos

colonizado" (verp. 251 neste volume). Zona de influência inglesae russa no século XIX,mas sob o modo pré-coloníal. Com o ad-vento do petróleo, a Primeira e a Segunda Guerra Mundiais, "oconflito do Oriente Médio, os grandes confrontos da Ásia" (verp.251 neste volume), a situação iraniana muda radicalmente, pas-sando para uma "situação neocolonial na órbita dos EstadosUnidos" (ver p. 251 neste volume). Trata-se, assim, de uma for-ma de dependência que durou muito, mas que não alterou radi-calmente as estruturas sociais internas. Foucault observa tam-bém que a renda do petróleo que afluiu não subverteu essas es-truturas, ainda que tenha enriquecido os privilegiados, favoreci-do a especulação e permitido o superequipamento do exército"(verp. 251 neste volume). Forças sociais novas não apareceram,mas as estruturas antigas foram abaladas - "a burguesia dos ba-zares foienfraquecida" e a reforma agrária atingiu as comunida-des de aldeia. Passaram a sofrer a "dependência e as mudançasque ela trouxe" (ver p. 252 neste volume), mas puderam resistir

também ao regime do xá que as implantou.No entanto, na esfera política, o efeito tomou forma inversa

junto aos movimentos políticos. Quer o partido comunista,quer o Front nacional subsistiram, mas na penumbra em queviveram não dispunham de força real. O Partido Comunistacomprometeu-se com a política soviética, com a ocupação porStalin do Azerbaijão, além de manter-se "ambíguo em sua sus-tentação do 'nacionalismo burguês' de Mossadegh" (ver p. 252neste volume). O Front nacional, depois de Mossadegh e suaherdeira, esperou por 13 anos uma liberalização que deveria

contar com o apoio norte-americano, sem o qual não a julgavapossível. Elementos do Partido Comunista tentaram ainda tor-nar-se tecnocratas do regime, sonhando, como diz Foucault,com um governo autoritário para conduzir uma política nacio-nalista (ver p. 252 neste volume). Assim, os partidos políticostornaram-se vítimas da "ditadura da dependência", como Fou-cault nomeia o regime do xá. Alguns representavam, em nomedo realismo, a independência, e outros a liberdade (ver p. 252neste volume). Mas essa postura nada mais fazia do que man-tê-los imóveis nos quadros da situação vigente.Se não existia colonizador ocupante, havia, por outro lado,

"um exército nacional e uma polícia considerável". Por causadisso, em outros Estados, como a Índia ou a China, as "organi-zações político-militares, que (...) estimularam as lutas pela

Apresentação à Edição Brasileira XXXIX

descolonização e que, vindo o momento, acharam-se em condi-ções de negociar a independência e de impor a partida da po-tência colonial" não tiveram condições de se formar no Irã.Assim, observa Foucault, "a rejeição do regime é, no Irã, um

fenômeno maciço da sociedade". Não se trata, observa ele, deummovimento "confuso, afetivo, pouco consciente de si" (ver p.

252 neste volume). Sua propagação é singularmente eficaz,"das greves às manifestações, dos bazares às universidades,dos panfletos às prédicas pela mobilização dos comerciantes,operários, religiosos, professores e estudantes" (ver p. 252 nes-te volume). No entanto, esse amplo movimento não é represen-tado por qualquer partido, por nenhum homem, por nenhumaideologia política. Ninguém pode no momento "vangloriar-se derepresentar esse movimento" (ver p. 252 neste volume). Nempretender comandá-lo. Referindo-se à ordem política, Foucaultdiz que diante do movimento popular não há nenhum corres-pondente nem expressão alguma.

Umparadoxo, contudo, é que elepossui uma "vontade coleti-va perfeitamente unificada" (ver p. 252 neste volume). Descre-vendo o Irã em sua particularidade, seja geográfica, seja históri-co-política, observa Foucault: "É surpreendente ver esse paísimenso, com uma população dispersa ao redor de dois grandesplanaltos desertos, esse país que pôde oferecer a si mesmo asúltimas sofisticações da técnica ao lado de formas de vida imó-vel há um milênio, esse país reprimido pela censura e pela au-sência de liberdades públicas e que, apesar de tudo, dá mostrade uma tão formidável unidade" (verp. 252-253 neste volume).

Essa vontade comum aparece em um médico de Teerã, ummulá de província, um operário do petróleo, uma estudante sobo xador ou emum funcionário dos correios. Trata-se de algo, deum elemento que, diz Foucault, quer dizer tudo, condensa osentido de todas as mudanças nas relações existentes: "o fimdadependência, o desaparecimento da polícia, a redístríbuíçâo darenda do petróleo, a caça à corrupção, a reativação do Islã, umoutro modo de vida, novas relações com o Ocidente, com os paí-ses árabes, com aÁsia etc." (ver p. 253 neste volume). Foucaultcompara um pouco o movimento de liberação iraniano com osestudantes dos anos 1960: também como estes os iranianos

querem "tudo". Mas não se trata agora de "liberação dos dese-jos", mas de liberação de uma outra ordem: os iranianos dese-jam uma liberação "com respeito a tudo o que marca, em seu

X L Míchel Foucault - Ditos e Escritos Apresentação à Edição Brasileira X L I

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país e em sua vida cotidiana, a presença das hegemonías plane-tárias" (ver p. 253 neste volume). E a radicalidade desse desejode mudança considera que os partidos políticos, liberais ou so-cialistas, quer sua tendência seja pró-americana ou marxista,ou seja, "a própria cena política parecem-lhes ser ainda, e sem-pre, os agentes dessa hegemonía" (ver p. 253 neste volume).Foucault analisa o que seria o papel de Khomeyni, o sentido

de seu não, que ele situa em uma esfera quase mítica. Figuraque possui, no momento da revolução, apelo tão pessoal e tãointenso para as massas iranianas que nenhum chefe de Estadoteria igual. Essa ligação Foucault pretende explicá-Ia a partir detrês coisas: em primeiro lugar, "Khomeyni não está lá". Vive há15 anos no exílio e só pretende voltar depois da partida do xá.Sua palavra é apenas um não, nada diz além de não "ao xá, aoregime, à dependência". Última coisa: Khomeyni não é um polí-tico. Nesse momento Foucault pensa que ele condensa a vonta-de coletiva. Ele não encarnaria um governo, nem um partido

político. Foucault pergunta-se o que se esconde por trás dessateimosia que não é distraída por nada. Ele formula de forma in-terrogativa duas respostas. Fim de uma dependência, em quepor trás dos Estados Unidos e dos norte-americanos "se reco-nhecem o consenso internacional e um certo estado do mun-do". Ou ainda o fim de uma dependência "de que a ditadura erao instrumento direto", mas de que "os jogos da política poderi-am os instrumentos indiretos" (ver p. 253 neste volume). Duplaface em continuidade da libertação, de um lado, da dependên-cia externa e, do outro, da política no interior. Oxiismo anima-ria esse movimento "que fala menos no além do que na transfi-

guração deste mundo" (ver p. 254 neste volume).À pergunta feita na França se, no caso do Irã, trata-se de uma

revolução, Foucault, escrevendo, dá o sentido mais extremo de

uma mudança: "insurreição de homens que, com mãos nuas,querem levantar o peso que recai sobre cada um de nós, mas,mais particularmente, sobre eles, esses trabalhadores do pe-tróleo, esses camponeses das fronteiras dos impérios: o pesoda ordem do mundo inteiro" (ver p. 254 neste volume).E Foucault diz tratar-se, talvez, da "primeira grande insur-

reição contra os sistemas planetários, a forma mais moderna

da revolta e a mais louca" (ver p. 254 neste volume). Loucura emodernidade fundem-se nesse ato movido pelo desejo de ou-tra coisa.

NaRevolução Iraniana, "o espírito de um mundosem espírito"

Depois do que se poderia chamar o triunfo da Revolução Ira-niana, em uma conversa com Pierre Blanchet e Claude Bríêre,autores do livro A revolução em nome de Deus, Foucault anali-sa a atitude "um pouco enervante" (ver p. 258 neste volume) das

pessoas quanto ao que se passou no Irã. O caso iraniano nãocontou nem com a simpatia despida de problemas com que foirecebida a Revolução dos Cravos em Portugal nem com a vitó-ria sandinista na Nicarágua. Com o Irã, diz Foucault, houveuma "reação epidérmica que não era da ordem da simpatiaimediata" (ver p. 258 neste volume). Foucault escolhe um sígní-ficante, o adjetivo fanático, acrescentado "cruamente" ao textoque falava da revolta islâmica de uma conhecida jornalista quevai acompanhar o julgamento sobre o Irã e a questão islâmicapor muito tempo. Ele considera essa reação bastante típica do

"enervamento" provocado pelo movimento do Irã. Foucault res-ponde a duas questões que Blanchet extrai do jornal Libéra-

tion: a religião é o véu, é uma forma arcaica, trata-se de uma re-gressão no que concerne às mulheres. A segunda questão: nãohaveria uma nova ditadura se, chegando ao poder, os religiososaplicassem seu programa?

Foucault situa o espanto ou o mal-estar provocado peloacontecimento da revolução iraniana, para a nossa mentalida-de política. Ele considera nossa postura muito curiosa.Revolução no Irã, sim, diz Foucault, pois se trata do "levante

de uma nação inteira contra o poder que a oprime" (ver p. 259

neste volume). Qual o parâmetro com que no Ocidente reconhe-cemos um fenômeno revolucionário? Quando podemos "assi-nalar duas dinâmicas", diz Foucault. Aprimeira é a das contra-

dições nessa sociedade, a da luta de classes e "dos grandesafrontamentos sociais" (ver p. 259 neste volume). O segundoponto concerne à dinâmica política com a presença de "umavanguarda", seja classe, ideologia política ou ainda um partido,

ou seja, diz ele, "uma ponta de lança que carrega consigo toda anação" (ver p. 259 neste volume). No caso iraniano, não se podereconhecer qualquer dessas dinâmicas que representam para

nós as marcas ou os signos distintivos explícitos do que consti-tui uma revolução para nós. O que seria para nós do Ocidenteuma revolução que não se ancora nem na luta de classe ou nas

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contradições internas da sociedade, ou ainda sem ancoragememuma vanguarda? Foucault amplia o quadro histórico dessaanálise com uma referência à Revolução Francesa. Quanto aoreconhecimento pela esquerda marxista iraniana de que houveuma revolução, mas sem vanguarda, Foucault remete ao livrode François Furet, que permite elucidar, lançar luzes sobre

esse mal-estar. É a Revolução Francesa, na análise particularde Furet, que vai permitir esclarecer a revolta revolucionáriairaniana. A leitura de Furet opera com uma distinção entre, deum lado, "o conjunto de processos de transformação econômi-ca e social que começaram bem antes da revolução de 1789para terminar bem após", e, do outro, a "especificidade doacontecimento revolucionário" (ver p. 260 neste volume). Essaparticularidade Foucault a situa no nível em que os sujeitos vi-vem a revolução - "a especificidade do que as pessoas experi-mentam no fundo delas mesmas" -, mas também no cenárioem que criam para atuar - ou, como diz ele, "nessa espécie de

teatro que fabricam dia a dia e que constitui a revolução" (ver p.261 neste volume).A questão de Foucault é a possibilidade de aplicar essa dis-

tinção ao caso iraniano. Ele afirma a existência de contradiçõesno caso iraniano - mas o que se trata de analisar são essas di-mensões singulares da revolução que se manifesta simultanea-mente como "experiência interior, espécie de líturgía recomeça-da sem cessar, experiência comunitária". Essa forma articu-la-se à luta de classes mas sem manifestar-se de forma transpa-rente ou imediata, sem colocá-Ia em cena. E aqui se trata de si-

tuar o papel da religião com a imensa influência que secular-mente exerce sobre as pessoas, com a importante posição quesempre ocupou em face do poder político, e ainda seu "conteú-do, que a fez uma religião de combate e de sacrifício" (verp. 261neste volume). Não é uma ideologia, no sentido de que esta per-mite mascarar as contradições assegurando uma "união sagra-da entre toda uma série de interesses divergentes" (ver p. 261neste volume). Foucault define a função do xiismo, da religião,como "ovocabulário, o cerimonial, o drama intemporal no inte-rior do qual" se pode "alojar o drama histórico de um povo que

põe em jogo sua existência com a de seu soberano" (ver p. 261neste volume).Outra particularidade da revolta iraniana é o fato de que ela

fez existir algo raro na história (ainda que por um tempo limita-

do): uma "vontade absolutamente coletiva". Avontade coletiva,lembra Foucault, pertence à esfera da mitologia política. Fazparte do arsenal teórico com que fílósofos cO,moRousseau oujuristas analisam ou justificam instituições. E algo que nuncase viu. Algo que jamais se encontra, diz ele de forma irônica,como a alma ou o grande Outro religioso. Foucault encontrou

emTeerã e "em todo o Irã a vontade coletiva de um povo" (ver p.262 neste volume), fenômeno que não se encontra cotidiana-mente. Essa vontade tem um objetivo, um alvo preciso, claro edeterminado: a partida do xá. Na teoria política, ela aparececomo vontade geral; aqui ela é específica, singular, particularís-síma: que o xá abandone o Irã. Éassim que ela "irrompe na his-tória". De um lado, nessa visada singular, há o peso do senti-mento nacional iraniano: "recusa de submissão ao estrangeiro,desgosto diante da pilhagem dos recursos nacionais, a recusade uma política dependente" do estrangeiro e mesmo a oposi-ção à ingerência norte-americana, por demais visível. Tudo o

que fazia ver, na figura de Reza Pahlevi, "um agente do Ociden-te" (ver p. 262 neste volume). Foucault considera que esse as-pecto nacional foi apenas um elemento de uma recusa aindamais radical, não a recusa do estrangeiro, mas de tudo o quesecularmente constitui seu destino político. sobre a afirmaçãode Pierre Blanchet, de que existe algo de comum entre a formacom que os militantes íslâmícos falam e aquela dos guardas

vermelhos da revolução cultural, Foucault argumenta que nocaso chinês "revolução cultural se apresentou como luta entrealguns elementos da população e alguns outros, entre alguns

elementos do Partido e alguns outros, ou entre a população e oPartido" (ver p. 262-263 neste volume). Oque mais surpreendeFoucault é que no Irã não há luta entre os diferentes elementos.O que constitui a gravidade e a beleza de tudo isso é que "só háum confronto: entre todo o povo e o poder que o ameaça comsuas armas e sua polícia" (ver p. 263 neste volume). Foucaultsitua a repetição histórica do mesmo confronto: "não há umaascensão aos extremos, cada um se situa imediatamente de umlado, toda a vontade de umpovo, do outro, as metralhadoras. Opovo semanifesta, os carros de combate chegam. Asmanifesta-ções se repetem e as metralhadoras atiram de novo" (ver p. 263neste volume). E isso, ressalta Foucault, "de-maneira idêntica",intensificando-se a cada vez, é verdade, mas "sem que mude deforma ou de natureza. É a repetição da manifestação" (ver p.

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XLIV Michel Foucault - Ditos e Escritos

263 neste volume). Foucault vê na repetição um "sentido políti-co intenso" (ver p. 263 neste volume). Ele toma o significante, apalavra manifestação, no seu sentido estrito: "um povo, incan-savelmente, torna manifesta a sua vontade" (ver p. 263 nestevolume). Arecusa do xá era indefinidamente manifesta. Articu-lam-se, assim, três elementos: "ações coletivas, ritual religioso

e ato de direito público" (ver p. 263 neste volume). Foucaultaproxima esses atos da tragédia grega, em que a cerimônia co-letiva e a ritualização dos princípios do direito se igualavam.Foi o drama que se celebrou nas ruas de Teerã, algo da dimen-são do ato, duplamente político e religioso, "coletivamente cum-prido dentro dos ritos religiosos". Era o ato de destituição dosoberano. Poderíamos remeter também à destituição de Rícar-do lI, no drama de Shakespeare, a destituição do corpo políticoe físico do rei, analisada por Kantorowicz.

De um lado, há a afirmação dos estudantes que insistiam naunidade do movimento iraniano na sua dimensão corânica; por

outro, sabia-se que havia diferenças entre os intelectuais, as ca-madas médias e os bazaaris. Foucault, por outro lado, lembra oaparelhamento do Estado iraniano: defrontava-se "com um go-verno que era, certamente, omelhor dotado emtermos de armase de exército, o melhor servido por uma tropa numerosa e sur-preendentemente fiel" (ver p. 263 neste volume). E havia ainda apolícia, cuja eficácia era discutível, mas "cuja violência e cruelda-de substituíam a sutileza" (ver p. 264 neste volume). Sem contarque o regime contava com o apoio direto dos Estados Unidos etambém com o aval do mundo e dos países importantes vizi-nhos. Havia um governo que contava, além disso, com as rendas

do petróleo. Em face de toda essa situação, "o povo se levanta"(ver p. 264 neste volume). Foucault não ignora que há um con-texto de crise, com dificuldades na economia. No entanto, essasdificuldades de ordem econômica não eram muito sérias paraque "pessoas, centenas de milhares, e milhões, descessem à ruae fossem se defrontar a peito nu, com as metralhadoras". Énes-se ponto que Foucault insiste que se fale. A questão que ele le-vanta e que interpreta como uma exigência de mutação de umsujeito coletivo é a da razão pela qual as pessoas se levantam, serebelam. O que constitui para ele o que chama "a alma do levan-

te" (verp. 264 neste volume). Dizele, figurando o que diz o sujei-to coletivo: "precisamos mudar, certamente, de regime e li-vrar-nos desse homem, precisamos mudar esse pessoal corrom-

Apresentação à Edição Brasileira XLV

pido, precisamos mudar tudo no país, a organização política, osistema econômico, a política estrangeira" (ver p. 264 neste volu-me). Mas essa mudança, no entanto, exige outra mais radical,em que desempenha papel fundamental o xiismo: "Precisamosmudar a nós mesmos." E Foucault completa: "É preciso quenossa maneira de ser e nossa relação com os outros, as coisas, a

eternidade, Deus etc. sejam completamente mudadas, e só have-rá revolução real na condição dessa mudança radical em nossaexperiência" (ver p. 264 neste volume). Énesse ponto que o Islãxííta vai representar um papel. A particularidade do Islã xiita éque sua forma de vida traz "a promessa e a garantia de acharcomo mudar, radicalmente, sua subjetividade" (ver p. 264 nestevolume). Trata-se de uma forma do Islã que possui um conteúdoesotérico, no qual se estabelece uma distinção precisa entre oque é a simples obedíêncía ao código, a forma externa da lei, e oque é "a vida espiritual profunda". De um lado, há a prática íslâ-mica tradicional, que fornece a identidade. Mas no que permitiu

viver a religião como força revolucionária, havia algo que não eraa vontade apenas de obedecer estritamente à lei. Tratava-se davontade "de renovar toda sua existência, reatando com uma ex-periência espiritual que pensam achar no coração mesmo doIslã xiita" (ver p. 264-265 neste volume). Foucault lembra a fór-mula de Marx a respeito da religião como o ópio do povo. Elelembra, no entanto, a frase anterior do texto marxista, nuncalembrada, que diz ser a religião "o espírito de um mundo sem es-pírito". Nesse sentido o Islã, diz ele, "não foi o ópio do povo, jus-tamente porque foio espírito de ummundo sem espírito" (ver p.265 neste volume).

Foucault lembra que a experiência revolucionária que provo-cou tanto fascínio iria se apagar. Ao falar da "luz que iluminouliteralmente a todos", diz que, de fato, se apagou.Surgem, então, as diferentes forças políticas. Foucault insis-

te que o fenômeno a que se assistiu não foi um compromissoentre diferentes forças políticas ou entre duas classes sociais,com concessões mútuas. Diz ele: passou-se a outra coisa. Umfenômeno atravessou o povo inteiro e um dia vai parar. Nesseponto só vão restar os diferentes cálculos políticos.Foucault conhecera vários iranianos em Paris e o que cha-

mava neles a sua atenção era o medo, quer o de frequentar pes-soas de esquerda, medo de que a Savak soubesse que liam issoou aquilo etc. Em face dos massacres de setembro, ao chegar

XLV I Michel Foucault - Ditos e EscritosApresentação à Edição Brasileira XLVII

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ao Irã, Foucault pensara encontrar uma cidade aterrorizada.Ele não encontrou pessoas felizes, mas "havia ausência demedo e uma intensidade de coragem, ou antes, a intensidadeque podem ter as pessoas quando o perigo, sem ter passado, jáfoi ultrapassado" (verp. 266 neste volume). Haviam ultrapassa-do, com a revolução que era deles, o perigo das metralhadoras,que antes estava sempre diante deles.

Aos que afirmavam que essas análises não eram verdadeiraspor existirem comunistas em toda parte no Irã, Foucault nãonega ter havido muita gente que pertenceu a organizações co-munistas ou leninistas. No entanto, o que agradava a ele é queas análises não procuravam decompor o fenômeno revolucio-nário em seus elementos constituintes. O que agradava a Fou-cault era que tentavam deíxá-lo como uma luz, que, como dizele, sabemos que "éfeita de vários brilhos" (verp. 267 neste vo-lume). Na perspectiva analítica, no entanto, um dia, para os his-toriadores, será a "reunião das classes superiores a uma es-

querda popular" (ver p. 267 neste volume). Foucault se referetambém a outro aspecto, em que o caráter novo, singular, da si-tuação iraniana apareceu: foi quanto ao uso da arma do petró-~eo.Se havia um ponto de extrema sensibilidade era o petróleo,causa do mal e arma absoluta" (ver p. 268 neste volume). Agreve e as táticas dos operários do petróleo "não foram calcula-das de antemão. Foi em um dado momento que, sem que hou-vesse uma palavra de ordem central, os operários se puseramem greve, coordenando-se entre eles, de cidade em cidade, demaneira absolutamente livre" (ver p. 268 neste volume). Fou-cault não considera que fosse uma greve no sentido de uma pa-

rada de trabalho bloqueando a produção. Era uma manifesta-ção "de que o petróleo pertencia ao povo iraniano e não ao xá,nem a seus clientes, nem a seus comanditários. Era uma grevede reapropriação nacional" (ver p. 268 neste volume). Aunida-de no fenômeno revolucionário não é nem um pouco desprovi-da de problemas. Foucault enumera alguns deles: "manifesta-ções, verbais ao menos, de antissemitismo virulento", e, tam-bém, "manifestações de xenofobia e não somente a propósitodos americanos, mas também em relação aos operários estran-geiros que vinham trabalhar no Irã" (verp. 269 neste volume).

Foucault ressalta que os iranianos, principalmente a partirda versã~ xiita, têm um regime de verdade extremamente parti-cular e díverso do ocidental, assim como era outro o regime dos

gregos e também o dos árabes do Magreb. O regime de verdadeno Irã é modelado no xiismo por uma religião de forma exotérí-ca e conteúdo esotérico. Assim, "tudo o que é dito sob a formaexplícita da lei remete, ao mesmo tempo, a um outro sentidoque fala. Então, dizer uma coisa que quer dizer outra não so-mente não é uma ambíguídade condenável, mas é, ao contrário,uma sobrecarga necessária e valorizada" (ver p. 269 neste volu-

me). E Foucault conclui: "mesmo que se diga alguma coisa que,no nível dos fatos, não éverdadeira, mas que remete a um outrosentido profundo, inassimilável em termos de exatidão e de ob-servação" (ver p. 269 neste volume).Remetendo agora à leitura da intensidade do movimento ira-

niano em termos propriamente da explicação de sua lógica e desua racionalidade, Foucault observa que ele se inscreve em umduplo registro. De uma parte, "uma vontade coletiva politica-mente muito afirmada e, de outro lado, a vontade de uma mu-dança radical na existência" (ver p. 270 neste volume). No en-

tanto, essa dupla afirmação, essa dupla ancoragem "sópode seapoiar sobre tradições, instituições que carregam uma parte dechauvinismo, de nacionalismo, de exclusão, e que têm uma for-ça de arrebatamento muito grande para os indivíduos" (ver p.270 neste volume). Comefeito, para se defrontar com o imensoe terrível poder armado do regime do xá, não é preciso se sentirsó, nem partir do nada.Foucault interroga com curiosidade esse momento e se per-

gunta sobre sua capacidade de superação dos elementos emque se apoiou. Comefeito, a questão era saber se, "justamente,esse movimento unitário que levantou um povo, durante umano, diante das metralhadoras, vai ter força de transpor suaspróprias fronteiras e de ultrapassar as coisas sobre as quaís seapoiou durante certo tempo" (ver p. 270 neste volume). Vai ha-verum reforço ou um apagamento desses suportes? Não se tra-ta apenas, como esperavam muitos no Ocidente e no Irã, do re-torno da velha laicidade e em que "se encontrará a boa, a verda-deira, a eterna revolução" (ver p. 270 neste volume). Aquestãode Foucault é saber, no caminho singular do Irã, "onde procu-ram, contra a teimosia de seu destino, contra tudo que foramdurante séculos, 'uma coisa totalmente diferente" (ver p. 270

neste volume).Por outro lado, examinando o efeito geral da revolução, ob-

serva Foucault, sua importância histórica não se deve ao fato

XLVIII Michel Foucault - Ditos e Escritos Apresentação à Edição Brasileira XLIX

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da singularidade de seu trajeto, que tem também sua importân-cia, sua "não conformidade" a um modelo de revolução, mas "àpossibilidade que terá de subverter os dados políticos do Ori-ente Médio, logo o equilíbrio estratégico mundial" (ver p. 273neste volume). Sua força vem de sua singularidade e esta, dizFoucault, "arrisca-se de fazer, em seguida, seu poder de expan-são" (ver p. 273 neste volume). Com efeito, a partir da Revolu-ção Iraniana, o Islã surge como uma força política, cultural, ide-ológico-religiosa na cena do mundo. Observava Foucault: "É

bem, com efeito, como movimento 'íslâmíco', que pode incendi-ar toda a região, reverter os regimes mais instáveis e inquietaros mais sólidos" (ver p. 273 neste volume). Opercurso do movi-mento íslâmíco na Ásia - no Paquistão e no Afeganistão, princi-

palmente -, na África, no Oriente Médio vai seguir um traçadocuja figura era imprevisível na sua forma exata, nesse momen-to. Mas, sem dúvida, a conclusão de Foucault era, nesse ponto,mais do que exata: "OIslã - que não é simplesmente uma reli-

gião, mas um modo de vida, uma dependência a uma história ea uma civilização - arrisca-se de se constituir emum gigantescopaiol de pólvora, à escala de centenas de milhões de homens"(ver p. 273 neste volume). Foucault vira no quadro iranianomuitos elementos pouco tranquilizadores, porém tratava-se denão ceder à islamofobia. .

Em face da questão palestina, Foucault lembra que a revolu-ção "dos justos direitos do povo palestino" não teve o efeito desublevar os povos e o mundo árabe. Efetivamente, essa causavai ser transformada pelo dinamismo do movimento islâmico.O que não conseguiram, como observa Foucault, "uma referên-cia marxísta-lenínísta ou maoísta" (ver p. 273 neste volume). A

pergunta que ficara suspensa e que as análises de Foucault ain-da ajudam a elucidar é se, na "vontade de um 'governo islâmico'é preciso ver uma reconciliação, uma contradição ou o limiarde uma novidade" (ver p. 236 neste volume). Talvez todas asrespostas simultaneamente.

Os direitos dos governados: crítica da justiçarepressiva no Irã após a revolução

Depois que o regime islâmico foi proclamado tendo MehdiBazargan formado o governo a pedido de Khomeyni, começa-

ram as execuções dos opositores realizadas por comandos quecontavam com a proteção do aiatolá. Bazargan, que estiverapreso por 10 anos, era o mediador entre as correntes que de-fendiam os direitos humanos e os religiosos. Quando a embai-xada dos Estados Unidos foi tomada e os americanos feitos re-

féns, ele se opôs a esse ato e pediu demissão.Foucault dirigiu-se a ele em uma carta aberta publicada no

Nouvel Observateur em abril de 1979. Ele começa por lembrara entrevista que Bazargan lhe concedera pouco depois que emsetembro "milhares de homens e mulheres acabavam de sermetralhados nas ruas de Teerã" (ver p. 275 neste volume). Aen-trevista se dera na casa de Chariat Madari, onde os que milita-vam pelos direitos humanos encontravam refúgio. Foucaultevoca a coragem física necessária, por Bazargan já ter conheci-do a prisão, além da coragem política, por ter o presidente ame-ricano, "recentemente, recrutado o xá entre os defensores dosdireitos do homem" (ver p. 275 neste volume). Foucault reco-

nhece a legitimidade da irritação dos iranianos quando se,colo-ca no mesmo nível a condenação de um "jovem negro na Africado Sul racista" e, em "Teerã, de um carrasco da Savak" (ver p.275 neste volume). Ele recorda que Bazargan fizera suspenderalgumas semas antes "os processos sumários e as execuções

precoces" (ver p. 276 neste volume).Focault evoca então a questão crucial da justiça nas revolu-

ções: "Ajustiça e a injustiça são o ponto sensível de toda revolu-ção: é de lá que nascem e que se perdem e morrem frequente-

mente" (ver p. 276 neste volume).Ele recorda então a conversa que tiveram juntos: "Falávamos

de todos os regimes que oprimiram, invocando os direitos do

homem" (ver p. 276 neste volume).Lembra a esperança expressa por Bazargan, de que um gover-

no islâmico, na vontade expressa pelos iranianos, "poderia dar a

esses direitos uma garantia real" (ver p. 276 neste volume).Três motivos, três razões explicavam essa esperança. Em

primeiro lugar, a dimensão espiritual, que "atravessava a revol-ta de um povo em que, cada um, em favor de um mundo dife-rente, arriscava tudo". Foucault chega a lembrar que Bazarganafirmara que isso não significava um governo de mulás.

A segunda razão correspondia a uma expectativa de que oIslã, na sua dimensão histórica e com o dinamismo que o moviana atualidade, seria capaz, diante da questão dos direitos, com

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a "temível aposta [de] que o socialismo não havia feito melhor"(ver p. 276 neste volume) e também que o capitalismo, de dar

uma resposta positiva.Em face dos que dizem ser isso impossível, seja para o Islã

ou para qualquer religião, Foucault se declara bem mais mo-desto, afirmando não saber "emnome de que universalidade seimpediriam os muçulmanos de procurar seu futuro em um Islãcujo novo rosto irão, com as próprias mãos, formar" (ver p. 276neste volume). Não se trata, portanto, de uma realidade hístórt-cajá dada, mas de algo a ser produzido, a ser inventado no cur-so do movimento histórico. Adimensão que o xiismo atribuía àinterpretação da atualidade permitia essa esperança. Foucaultressalta que seria demais imediatamente lançar suspeita sobreo termo "íslâmíco". Basta o termo '''governo' (...) para despertara vigilância" (ver p. 276 neste volume). E ele insiste nesse aspec-to da suspeita necessária em face de toda modalidade de gover-no: "Nenhum adjetivo - democrático, socialista, liberal, popu-

lar -libera-o de suas obrigações" (ver p. 276 neste volume).Foucault lembra que um governo islâmico estaria ligado a

um "suplemento de deveres" que iriam além da simples sobera-nia civil, e que haveria respeito a esses deveres na medida emque o povo poderia voltar contra ele a religião que compartilha

com ele.Foucault expressa seu pessimismo quanto ao respeito que,

de forma espontânea, os governos têm para com as obrigações

que assumem.Ele insiste que os governos têm deveres para com os gover-

nados. E diante dos "deveres fundamentais nenhum governosaberia escapar" (ver p. 277 neste volume). Afirma então, quan-to a esse ponto de vista, o caráter inquietante dos processosque se desenrolavam no Irã. E insiste na legitimidade e na im-portância histórica e política da revolução (ver p. 77-81, vol, Vda edição brasileira desta obra). Diz ele: "Nada é mais impor-tante, na história de um povo, do que os raros momentos emque se ergue para derrubar um regime que não suporta mais"(ver p. 277 neste volume). Mas há o imperativo de justiça daação de governar: "Nada é mais importante, para sua vida coti-diana, do que os momentos, tão frequentes, em compensação,

em que o poder político se volta contra o indivíduo, proclama-oseu inimigo e decide derrubá-lo: jamais tem mais deveres a res-peitar, nem mais essenciais" (ver p. 277 neste volume).

Foucault ressalta o caráter de pedra de toque dos processospolíticos. Não porque os julgue não criminosos, mas porque éno exercício da justiça que o "poder público aí se manifesta semmáscara, e se oferece ao julgamento, julgando seus inimigos"(ver p. 277 neste volume).Se o Poder Público, no seu exercício, pretende na justiça po-

lítica fazer-se respeitar, é nesse momento que "ele deve ser ab-solutamente respeitoso". Há aqui, no uso do direito de defesado povo, a carga de deveres muito pesados.Foucault proclama de forma bem clara: "é preciso - e é impe-

rioso - dar àquele que se persegue o mais possível de meios dedefesa e de direitos" (ver p. 277 neste volume).Em face dos sujeitos julgados por crimes políticos, tomando

um desses casos, é ele "declaradamente culpado"?, pergunta.Toda a opinião pública está contra ele. É odiado pelo povo.Assevera Foucault: "Isso lhe confere, justamente, direitos tantoou mais intangíveis; é dever daquele que governa dar-lhe ação e

garanti-los" (ver p. 277 neste volume). Foucault conclui comessa afirmação essencial: "Para um governo, não haveria o 'últi-mo dos homens" (ver p. 277 neste volume).Foucault continua a formular o que são os deveres dos gover-

nantes diante, também, do caráter público da justiça para cadaum dos governados, para o "mais obscuro, teimoso, cego da-queles [para os quais cada governo] governa (...), como, emnome de que a autoridade pode reivindicar, para ela, o direitode punir em seu nome" (ver p. 277 neste volume). Um castigoque ele não esclarece pode ser justificado, "mas será sempre

uma injustiça" (ver p. 277 neste volume), e isso em relação a to-dos os que são objeto da justiça.Assim, o dever de estar sob o exame e a avaliação dos ho-

mens no mundo, o dever de se submeter ajulgamento, diz Fou-cault, os governos devem aceitá-lo. Éuma carta do direito dosgovernados que formula Foucault.Dirigindo-se a Bazargan, ele afirma acreditar que pensa tam-

bém que a soberania só deveria dar contas a si mesma: "Gover-nar não se autojustifica, não mais do que condenar, do que ma-tar" (ver p. 277 neste volume). Foucault o formula assim o direi-to universal de intervenção: "Seria bom que um homem, não

importa quem, estivesse ele do outro lado do mundo, pudessese levantar, porque não suporta que um outro seja supliciadoou condenado" (ver p. 277 neste volume). Não se trata de ínter-

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ferir nos negócios internos dos Estados. Os que protestavamcontra os iranianos supliciados pela Savak nas prisões do regi-me do xá "misturavam-se em um negócio o mais universal queseja" (ver p. 278 neste volume).O fato de que o governo do Irã seja apoiado, plebiscitado,

aceito e desejado não atenua seus deveres, e, diz Foucault, issoímpõe-lhes "deveres mais estritos" (ver p. 278 neste volume).

Ele conclui dizendo que o chefe do governo, que sabe ser gover-nar um dever de extrema dificuldade, tem de agir de forma que"esse povo jamais lamente a força sem concessão com que aca-ba de se liberar a si mesmo" (ver p. 278 neste volume).

Sobre a edição brasileira

Aedição brasileira, com esta nova série, terá nove volumes eé bem mais ampla do que a americana, publicada em três volu-

mes, e também do que a italiana. Sua díagramação segue prati-camente o modelo francês. Aúnica diferença significativa é quena edição francesa a cada ano abre-se uma página e os textosentram em sequêncía numerada (sem abrir página). Na ediçãobrasileira, todos os textos abrem página e o ano se repete. Abai-xo do título há uma indicação de sua natureza: artigo, apresen-tação, prefácio, conferência, entrevista, discussão, intervenção,resumo de curso. Essa indicação, organizada pelos editores, foimantida na edição brasileira, assim como a referência biblio-gráfica de cada texto, que figura sob seu título.

A edição francesa possui um duplo sistema de notas: as no-tas numeradas foram redigi das pelo autor e aquelas com aste-risco foram feitas pelos editores franceses. Na edição brasilei-ra, há também dois sistemas, com a diferença de que as notasnumeradas compreendem tanto as originais de Michel Foucaultquanto as dos editores franceses. Para diferenciá-Ias, as notasdo autor possuem um (N.A.)antes de iniciar-se o texto. Por suavez, as notas com asterisco, na edição brasileira, se referemàquelas feitas pelo tradutor, e vêm com um (N.T.) antes de ini-ciar-se o texto.

Esta edição permite o acesso a um conjunto de textos antesinacessíveis, fundamentais para pensar questões cruciais dacultura contemporânea, e, ao mesmo tempo, medir a extensãoe o alcance de um trabalho, de um work in progress dos mais

importantes na história do pensamento em todas as suas di-mensões, éticas, estéticas, literárias, políticas, históricas e filo-

sóficas.

Manoel Barros da Motta

1968

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Resposta a uma Questão

"Réponse à une question", Esprti, nQ 371, maio de 1968, p. 850-874.

Agradeço aos leitores de Esprit por terem querido me colo-car questões, e a J.-M. Domenach por ter me dado a possibili-dade de respondê-Ias. Essas questões eram tão numerosas - ecada uma tão interessante - que não me foi possível exami-ná-Ias todas. Escolhi a última! (não sem pesar de abandonar asoutras):1)porque, ao primeiro olhar, ela me surpreendeu, mas rapi-

damente me convenci de que dizia respeito ao coração mesmo

do meu trabalho;2) porque me permitia situar ao menos algumas das respos-

tas que teria querido dar às outras;3) porque formulava a interrogação da qual nenhum traba-

lho teórico, hoje, pode esquivar-se.

*

o que me proponho fazer, como não admitir que o caracteri-zaram com extrema justiça? E que, de uma sóvez, instituíram oponto da inevitável discórdia: "Introduzir a coerção do sistemae a descontinuidade na história do espírito"? Sim, reconheçoque é um propósito quase injustificável. Pertinência diabólica:vocês chegaram a dar ao meu trabalho uma definição a qualnão posso evitar de subscrever, mas que jamais alguém gosta-

1. Um pensamento que introduz a coerção do sistema e a descontinuidade nahistória do espírito não tira ele todo fundamento de uma intervenção políticaprogressista? Não termina ele no seguinte dilema:

- ou bem a aceitação do sistema,- ou bem o apelo ao acontecimento selvagem, à irrupção de uma violência exte-

rior, única capaz de desarranjar o sistema?

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ria de, razoavelmente, retomar por sua conta. De repente, sintotoda a minha bizarria. Minha estranheza tão pouco legítima. Eesse trabalho que foi um pouco solitário, sem dúvida, mas sem-

pre paciente, sem outra lei que não a própria, bastante aplica-do, pensei, para poder defender-se sozinho, noto, agora, quan-to ele se desviava em relação às normas mais bem estabeleci-

das, como era agudo. Noentanto, dois ou três detalhes, na defi-nição tão justa que propuseram, incomodam-me, impedin-do-me (evitando-me, talvez) de lhe dar minha total adesão.Primeiramente, vocês empregam a palavra sistema no singu-

lar. Ora, sou pluralista. Eis o que quero dizer. (Vocêsme permi-tirão, penso, não falar somente de meu último livro, mas tam-bém dos que o precederam; é que juntos formam um feixe depesquisas, cujos temas e referências cronológicos são bastantevizinhos; é, também, que cada um constitui uma experiência

descritiva que se opõe e se refere aos dois outros por um certonúmero de traços.) Sou pluralista: o problema que me coloquei éaquele da individualização dos discursos. Há, para individuali-zar os discursos, critérios que são conhecidos e seguros (ou qua-se): o sistema linguístico ao qual pertencem, a identidade do su-jeito que os articulou. Mas outros critérios, que não são menosfamiliares, são bem mais enigmáticos. Quando falamos da psi-quiatria, ou da medicina, da gramática, da biologia, ou da eco-nomia, de que falamos? Quais são essas curiosas unidades quecremos poder reconhecer à primeira vista, mas que ficaríamosbem embaraçados de definir os limites? Unidades que parecem,algumas, remontar ao fundo de nossa história (a medicina não

menos que a matemática). enquanto outras apareceram recente-mente (aeconomia, a psiquiatria). e ainda outras que, talvez, de-

sapareceram (a casuística). Unidades em que vêm se inscreverindefinidamente enunciados novos, e que se acham modifica-dos, sem cessar, por eles (estranha unidade da sociologia e dapsicologia que, desde o seu nascimento, não cessaram de reco-meçar). Unidades que se mantêm obstinadamente após tantoserros, tantos esquecimentos, tantas novidades, tantas metamor-

foses, mas que sofrem, às vezes, mudanças tão radicais que fica-ríamos com dificuldade de considerá-Ias como idênticas a elas

próprias (como afirmar que é a mesma economia que reconhe-cemos, ininterrompida, dos fisiocratas a Keynes?).Talvez haja discursos que possam a cada instante redefinir

sua própria individualidade (por exemplo, os matemáticos po-

. dem reinterpretar em cada ponto do tempo a totalidade de s~ahistória); mas, em cada um dos casos que citei, o discurso nao

pode restituir a totalidade de sua história na unida?~ de ~aarquitetura formal. Permanecem dois recursos tradICIOnaIS:Orecurso histórico-transcendental: tentar procurar, para alemde toda manifestação e de todo nascimento histórico, uma fun-

dação originária, a abertura de um horizon~e inesgotável, u~projeto que estaria em retro,:esso c?m, r~laçao a todo acontecí-mento, e que manteria atraves da hístóría o esboço sempre ~~-senredado de uma unidade que não se acaba. Orecurso empm-co ou psicológico: procurar cuidadosamente o fundador, inter-pretar o que quis dizer, detectar as significações implícitas que

dormem silenciosamente em seu discurso, seguir o fio ou o des-tino dessas significações, narrar as tradições e as influências,fixar o momento dos despertares, dos esquecimentos, das to-madas de consciência, das crises, das mudanças no espírito, nasensibilidade ou no interesse dos homens. Ora, parece-me queo primeiro desses recursos é tautológíco, o segundo, extrínsecoe não essencial. Éreferenciando e sistematizando seus caracte-res próprios que gostaria de tentar individualizar as gr~desunidades que escandem, na simultaneidade ou na sucessao, o

universo de nossos discursos.Retive três grupos de critérios:1) Os critérios de formação. O que permite individualizar

um discurso, como a economia política ou a gramática geral,não é a unidade de um objeto, não é uma estrutura formal; nãoé também uma arquitetura conceitual coerente; não é uma es-

colha filosófica fundamental; é, antes, a existência de regras deformação para todos os seus objetos (por mais dispersos q~esejam), para todas as suas operações (que frequentemente naopodem nem se sobrepor nem se encadear), para todos os seusconceitos (que podem muito bem ser incompatíveis), para to-das as suas opções teóricas (quemuitas vezes se excluem umasas outras). Há formação discursiva individualizada cada vez

que podemos definir um jogo parecido de regras.2) Os critérios de transformação ou de limiar. Diria que a

história natural ou a psicopatologia são unidades de discurso,

se posso definir as condições que devem ser reunidas em ummomento muito preciso do tempo, para que seus objetos, suasoperações, seus conceitos e suas opções teóricas tenham podi-do ser formados; se posso definir de quais modificações ínter-

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nas elas são suscetíveis; se posso definir, enfim, a partir de quelimiar de transformação regras novas foram postas em jogo.3) Os critérios de correlação. Diria que a medicina clínica é

uma formação discursiva autônoma, se posso definir o conjuntodas relações que a definem e a situam entre os outros tipos dediscurso (como a biologia, a química, a teoria política ou a análi-se da sociedade) e no contexto não díscursívo no qual funciona

(instituições, relações sociais, conjuntura econômica epolítica).Esses critérios permitem substituir, aos temas da história

totalizante (que se trate do "progresso da razão" ou do "espíritode um século"), análises diferenciadas. Eles permitem descre-ver, como episteme de uma época, não a soma de seus conheci-mentos, ou o estilo geral de suas pesquisas, mas o afastamento,as distâncias, as oposições, as diferenças, as relações de seusmúltiplos discursos científicos: a episteme não é uma espéciede grande teoria subjacente, é um espaço de dispersão, é umcampo aberto e, sem dúvida, indefinidamente descritível de

relações. Eles permitem, além disso, descrever não a grandehistória que carregam todas as ciências em um único e mesmoarrebatamento, mas os tipos de história - quer dizer, de rema-nência e transformação - que caracterizam os diferentes dis-cursos (a história da matemática não obedece ao mesmo mode-lo que a história da biologia, que não obedece àquele da psíco-patologia): a "episteme" não é umafatia da história comum atodas as ciências; é umjogo simultâneo de remanências espe-

cificas. Enfim, eles permitem situar em seu respectivo lugar osdiferentes limiares: pois nada prova de antemão (e nada de-

monstra após exame) que sua cronologia é a mesma para todosos tipos de discurso; o limiar que podemos descrever para aanálise da linguagem no começo do século XIX não tem, semdúvida, episódio simétrico na história da matemática; e, coisabem mais paradoxal, o limiar de formação da economia política(registrado por Ricardo) não coincide com a constituição - porMarx - de uma análise da sociedade e da hístóría.ê Aepisteme

2. (N.A.)~s~efato, já bem referido por Oscar Lange, explica, ao mesmo tempo,o lugar límítado, e perfeitamente circunscrito, que ocupam os conceitos de

Mm:xno campo epistemológico que vai de Petty à economia contemporânea, e o

carater fundador desses mesmos conceitos para uma teoria da história. Esperoter tempo de analisar os problemas do discurso histórico em uma próxíma

obra, que se intitulará mais ou menos: Opassado e opresente: uma outra ar-queologia das ciências humanas.

não é um estádio geral da razão; é uma relação complexa de

deslocamentos sucessivos.Nada, vocês veem, que me seja tão estranho do que a procura

de uma forma coercitiva, soberana e única, Não procuro detec-tar, a partir de signos diversos, o espírito unitário de uma época,a forma geral de sua consciência: qualquer coisa como uma Wel-tanschauung. Não descrevi a emergência e o eclipse de uma es-

trutura formal que reinaria, um tempo, sobre todas as manifes-tações do pensamento; não fiz a história de um transcendentalsincopado. Enfim, não descrevi mais tempo pensamentos, ousensibilidades seculares, nascendo, balbuciando, lutando, apa-gando-se, como grandes almas fantasmáticas representando seu

teatro de sombras nos bastidores da história. Estudei alternada-mente conjuntos de discursos; caracterizei-os; defini os jogos deregras, de transformações, de limiares, de remanências; eu oscompus entre eles, descrevi os feixes de relações. Por toda parteem que acreditei necessário, fiz proliferar os sistemas.

•Umpensamento, dizem vocês, que "sublinha a descontínuí-

dade". Noção, com efeito, cuja importância hoje - para os his-toriadores e para os línguístas - não seria subestimada. Mas ouso do singular não me parece conveniente de todo. Nisso, ain-da, sou pluralista. Meu problema: substituir à forma abstrata,geral e monótona da "mudança", na qual, de bom grado, pen-samos em sucessão, a análise de tipos diferentes de transfor-mação, O que implica duas coisas: colocar entre parênteses

todas as velhas formas de continuidade fraca pelas quais ate-nuamos, de ordinário, o fato selvagem da mudança (tradição,influência, hábitos de pensamento, grandes formas mentais,coerções do espírito humano), e fazer surgir ao contrário, comobstinação, toda a vivacidade da diferença: estabelecer, meti-culosamente, o afastamento. Em seguida, por entre parênte-ses todas as explicações psicológicas da mudança (gênio dasgrandes invenções, crises de consciência, aparecimento deuma nova forma de espírito); e definir, com o maior carinho,as transformações que, não digo: provocaram, mas constituí-

ram a mudança. Substituir, em suma, o tema do devir (formageral, elemento abstrato, causa primeira e efeito universal,mistura confusa do idêntico e do novo) pela análise das trans-formações em sua especificidade.

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1)No interior de uma formação discursiva determinada, de-tectar as mudanças que afetam os objetos, as operações, osconceitos, as opções teóricas. Podemos distinguir assim (limi-to-me ao exemplo da Gramática geral): as mudanças por de-dução ou implicação (a teoria do verbo-cópula implica a distin-ção entre uma raiz substantiva e uma flexão verbal); as mudan-ças por generalização (extensão ao verbo da teoria da pala-

vra-designação e desaparecimento, por consequência, da teoriado verbo-cópula); as mudanças por delimitação (o conceito deatributo é especificado pela noção de complemento); as mudan-ças por passagem ao complementar (do projeto de construiruma língua universal e transparente deriva a procura dos se-gredos escondidos na mais primitiva das línguas); as mudan-ças pela passagem a outro termo de uma alternativa (primadodas vogais ou das consoantes na construção das raízes); as mu-danças por permuta das dependências (podemos fundar a teo-ria do verbo sobre aquela do nome ou inversamente); as mu-

danças por exclusão ou inclusão (a análise das línguas comosistemas de signos representativos faz cair emdesuso a pesqui-sa de seu parentesco, que é reintroduzir por compensação pelaprocura de uma língua primitiva).Esses diferentes tipos de mudança constituem o conjunto

das derivações características de uma formação discursiva.2) Detectar as mudanças que afetam as formações discursi-

vas elas mesmas:- deslocamento das linhas que definem o campo dos objetos

possíveis (o objeto médico, no começo do século XIX, cessa deser tomado emuma superfície de classificação; ele é referido noespaço tridimensional do corpo);- nova posição e novo papel do sujeito falante no discurso (o

sujeito, no discurso dos naturalistas do século XVIII, torna-seexclusivamente sujeito que olha segundo uma grade, e observasegundo um código; ele deixa de ser quem escuta, interpreta edecífra):

- novo funcionamento da linguagem em relação aos objetos(a partir de Tournefort, o discurso dos naturalistas não tempor função penetrar nas coisas, apoderar-se da linguagem queelas envolvem secretamente e produzi-Ia; mas armar uma su-

perfície de transcrição em que a forma, o número, a grandeza ea disposição dos elementos poderão ser traduzidos de maneiraunívoca);

_ nova forma de localização e de circulação do discurso nasociedade (odiscurso clínico não se formula nos mesmos luga-res, não há osmesmos procedimentos de registro, não se difun-de, não se acumula, não se conserva nem se contesta da mesmamaneira que o discurso médico do século XVIII).Todas essas mudanças de um tipo superior aos precedentes

definem as transformações que afetam os espaços discursivos:

as mutações.3) Enfim, terceiro tipo de mudanças, aqueles que afetam si-

multaneamente várias formações discursivas:_ intervenção no diagrama hierárquico (a análise da lingua-

gem teve, durante a época cláss,ica, um papel regu~ador q~eperdeu, nos primeiros anos do seculo XIX, emproveito da bIO-

íogía):_ alteração na natureza da direção (a gramática clássica,

como teoria geral dos signos, garantia em outros domínios atransposição de um instrumento de análise; no século XIX, abiologia assegura a importação "metamorfóríca" de um certo

número de conceitos: organismos ~ organização; função ~

função social; vida ~ vida das palavras ou das línguas);_ deslocamentos funcionais: a teoria da continuidade dos se-

res que, no século XVIII, ressaltava do discurso filosófico, foiencarregada, no século XIX, pelo discurso científico.Todas essas transformações de um tipo superior aos dois

outros caracterizam as mudanças próprias à episteme. As te-

distribuições.Eis um pequeno lote (uma quinzena, talvez) de modificações

diversas que podemos consignar a propósito dos discursos.Vocês veem por que prefiro que digam que ressaltei não a des-continuidade, mas as descontinuidades (quer dizer, as diferen-tes transformações que se podem descrever a propósito de doisestados de discursos). Mas o importante para mim, agora, nãoé constituir uma típología exaustiva dessas transformações.1)O importante é dar por conteúdo ao conceito monótono e

vazio de "mudança" um jogo de modificações especificadas. Ahistória das "ídeías" ou das "ciências" não deve ser o resumodas inovações, mas a análise descritiva das diferentes transfor-

mações efetuadas."

3. (N.A.)No que sigo os exemplos de método dados várias vezes por Canguí-

lhem.

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2) O que me importa é não misturar uma tal análise com umdiagnóstico psicológico. Uma coisa (legítima) é de se perguntarse era genial ou quais eram as experiências de sua primeira in-fância, aquela cuja obra traz tal conjunto de modificações. Masoutra coisa é descrever o campo de possibilidades, a forma deoperações, os tipos de transformação que caracterizam suaprática discursiva.

3) O que me importa é mostrar que não há, por um lado, dis-cursos inertes, já mais da metade mortos, e depois, por outro, umsujeito todo-poderoso que os manipula, subverte, renova; masque os sujeitos falantes fazem parte do campo discursivo - elestêm aí o seu lugar (e suas possibilidades de deslocamento), suafunção (e suas possibilidades de mutação funcional). O discursonão é o lugar de irrupção da subjetividade pura; é um espaço deposições e funcionamentos diferenciados para os sujeitos.4) O que me importa sobretudo é definir, entre todas essas

transformações, o jogo das dependências:

_- dependências intradiscursivas (entre os objetos, as opera-çoes, os conceitos de uma mesma formação);

- dependências interdiscursivas (entre as formações díscur-sívas diferentes: tais como as correlações que estudei, em Aspalavras e as coisas, entre a história natural, a economia, agramática e a teoria da representação);

- dependências extradiscursivas (entre as transformaçõesdiscursivas e outras que só são produzidas no discurso: taiscomo as correlações estudadas, na História da loucura eNasci-mento da clínica, entre o discurso médico e todo um jogo demudanças econômicas, políticas, sociais).

. To~~ esse jogo de dependências, gostaria de substítuí-lo pelasímplícídade uniforme das determinações de causalidade; e, le-vantando o privilégio indefinidamente reconduzido da causafazer aparecer o feixe polimorfo das correlações. '

Vejam-no: absolutamente não é uma questão de substituiruma categoria, o "descontínuo", por aquela não menos abstratae geral do "contínuo". Esforço-me, ao contrário, para mostrarCI.uea descontinuidade não é, entre os acontecimentos, um va-ZIO monótono e impensável, que seria preciso se apressar parapreencher (duas soluções perfeitamente simétricas) pela plení-

tud~ mor~a da causa ou pelo ágil ludião do espírito; mas queela e um Jogo de transformações específicas, diferentes umasdas outras (cada uma com suas condições, regras, nível) e liga-

das entre elas segundo os esquemas de dependência. Ahistóriaé a análise descritiva e a teoria dessas transformações.

*

Um último ponto sobre o qual espero poder ser mais breve.Vocês empregam a expressão "história do espírito". Para falar a

verdade, pretendo, antes, fazer uma história do discurso. A di-ferença, vocês me dirão? "Os textos que tomaram por material,não os estudaram segundo sua estrutura gramatical; não des-creveram o campo semântico que percorreram; não é a línguaque é o objeto de vocês. Então? O que procuram senão desco-brir o pensamento que os anima e reconstituir as representa-ções que deram uma versão durável talvez, mas sem dúvida in-fiel? O que procuram senão encontrar atrás deles a intençãodos homens que os formularam, as significações que volunta-riamente, ou com o seu desconhecimento, eles lá depositaram,

esse imperceptível suplemento ao sistema línguístíco e que équalquer coisa como que a abertura da liberdade ou a históriado espírito?"Aí talvez esteja o ponto essencial. Vocês têm razão: o que

analiso no discurso não é o sistema de sua língua, nem, de umamaneira geral, as regras formais de sua construção; pois nãome preocupo em saber o que o torna legítimo, ou lhe dá sua ín-teligibilidade e lhe permite servir à comunicação. Aquestão quecoloco é aquela, não dos códigos, mas dos acontecimentos: a leida existência dos enunciados, o que os torna possíveis - eles ealgum outro em seu lugar; as condições de sua emergência sin-gular; sua correlação com outros acontecimentos anteriores ousimultâneos, discursivos ou não. A essa questão, entretanto,tento responder sem me referir à consciência, obscura ou explí-cita, dos sujeitos falantes; sem relacionar os fatos de discurso àvontade - talvez involuntária - de seus autores; sem invocaressa intenção de dizer que é sempre com excesso de riqueza emrelação ao que se diz; sem tentar captar a ligeireza inaudita deuma palavra que não teria texto.O que faço não é nem uma formalização nem uma exegese.

Mas uma arqueologia: quer dizer, como seu nome indica de

maneira bastante evidente, a descrição do arquivo. Por essa pa-lavra não entendo a massa de textos que puderam ser recolhi-dos em uma dada época, ou conservados dessa época através

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das transformações do esquecimento. Compreendo o conjuntodas regras que, em uma época dada e por uma sociedade deter-minada, definem:- os limites e as formas da dizibilidade: de que é possível fa-

lar? O que foi constituído como domínio de discurso? Que tipode discursividade foi destinado a tal e tal domínio (de que fize-mos o relato; de que quisemos fazer uma ciência descritiva;

com o que conciliamos uma formulação literária etc.)?- os limites e as formas da conservação: quais são os enun-

ciados destinados a passar sem vestígio? Quais os que são des-tinados, ao contrário, a entrar na memória dos homens (por re-citação ritual, a pedagogia e o ensino, a distração ou a festa, apublicidade)? Quais são anotados para poderem ser reutílíza-dos, e para que frns? Quais são colocados em circulação e emque grupos? Quais os que são reprimidos e censurados?- os limites e as formas da memória tal qual ela aparece nas

diferentes formações discursivas: quais são os enunciados que

cada uma reconhece válidos ou discutíveis, ou definitivamenteinvalidados? Quais aqueles que foram abandonados como des-prezíveis e aqueles excluídos como estranhos? Que tipos de re-lações são estabelecidos entre o sistema dos enunciados pre-sentes e o corpus dos enunciados passados?- os limites e as formas da reativação: entre os discursos

das épocas anteriores ou das culturas estrangeiras, quais sãoos que retemos, que valorizamos, que importamos, que tenta-mos reconstituir? O que fazemos deles, quais as transforma-ções que os fazemos sofrer (comentário, exegese, análise), qual

sistema de apreciação lhes aplicamos, qual o papel que lhes da-mos para desempenhar?- os limites e as formas da apropriação: quais indivíduos,

quais grupos, quais classes têm acesso a tal tipo de discurso?Como é institucionalizada a relação do discurso com aqueleque o detém, com aquele que o recebe? Como se assinala e sedefrne a relação do discurso com o seu autor? Como se desen-rola, entre classes, nações, coletividades linguísticas, culturaisou étnicas, a luta para o domínio dos discursos?Ésobre esse fundo que se destacam as análises que comecei;

é para ele que se dirigem. Não escrevo, então, uma história doespírito, segundo a sucessão de suas formas ou a espessura desuas significações sedimentadas. Não interrogo os discursossobre o que, silenciosamente, querem dizer, mas sobre o fato e

as condições de sua aparição manifesta; não sobre os conteú-dos que podem encobrir, mas sobre as transformações que efe-tuaram; não sobre o sentido que neles se mantêm como umaorigem perpétua, mas sobre o campo onde coexistem, perma-necem e apagam-se. Trata-se de uma análise dos discursos nadimensão de sua exterioridade. Daí três consequências:- tratar o discurso passado não como um tema para um co-

mentário, mas como um monumento" a descrever em sua dis-posição própria;- procurar no discurso não, como nos métodos estruturais,

suas leis de construção, mas suas condições de exístêncía:"- relacionar o discurso não ao pensamento, ao espírito ou ao

sujeito que possamos fazer surgir, mas ao campo prático noqual se desenrola.

*

Perdoem-me: fui bem longo, bem espezinhador. E tudo issopor pouca coisa: propor três ligeiras mudanças à definição devocês, e lhes pedir a concordância para que falemos de meu tra-balho como uma tentativa para introduzir "a diversidade dossistemas e o jogo das descontinuidades na história dos discur-sos". Não imaginem que queira usar truques; ou que procureevitar o ponto da questão de vocês, discutindo seus termos aoinfinito. Mas o acordo prévio era necessário. Eis-me encostado

à parede. Énecessário que responda.Não, certamente, à questão de saber se eu sou reacionário;

nem, tampouco, se meus textos o são (nelesmesmos, intrinseca-

mente, através de um certo número de signos bem codificados).Vocêsme colocamuma questão de outro modo séria, a única que,creio, pode ser legitimamente colocada. Vocês me interrogam so-bre as relações entre o que digo e uma certa prática política.Parece-me que, a essa questão, pode-se dar duas respostas.

Uma concerne às operações críticas que meu discurso efetuano domínio que é o seu (a história das ideias, das ciências, dopensamento, do saber. ..): o que ele põe fora de circuito seria in-dispensável a uma política progressista? A outra concerne ao

4. (N.A.)Tomei esta palavra emprestada de Canguilhem. Ele descreve, melhor

que fíz, o que quis fazer.5. (NA.) Énecessário ainda precisar que não sou oque chamam de "estruturalista"?

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campo de análise e ao domínio de objetos que meu discursotenta fazer aparecer: como podem articular-se sobre o exercícioefetivo de uma política progressista?As operações críticas que empreendi, eu as resumo assim:1) Estabelecer limites, lá onde a história do pensamento,

sob sua forma tradicional, dá-se um espaço indefinido. Empar-

ticular:

- recolocar em questão o grande postulado interpretativo, se-gundo o qual o reino do discurso não teria fronteiras assinalá-veis: as coisas mudas e o silêncio mesmo seriam povoados depalavras; e lá, onde nenhuma palavra se faz compreender, po-der-se-ia, ainda, escutar o murmúrio profundamente escondidode uma significação; dentro do que os homens não dizem, elescontinuariam a falar; um mundo de textos adormecidos nos es-peraria nas páginas brancas da nossa história. Aesse tema, gos-taria de opor que os discursos são domínios práticos limitados,que têm suas fronteiras, suas regras de formação, suas condi-

ções de existência: a base histórica do discurso não é um discur-so mais profundo - ao mesmo tempo idêntico e diferente;- recolocar em questão o tema de um sujeito soberano, que

viria do exterior animar a inércia dos códigos Iínguístícos, e quedepositaria no discurso o vestígio ínapagável de sua liberdade;recolocar em questão o tema de uma subjetividade que consti-tuiria as significações, depois as transcreveria no discurso. Aesses temas, gostaria de opor a localização dos papéis e opera-ções exercidos pelos diferentes sujeitos "que discursam";- recolocar em questão o tema da origem indefinidamente re-

cuada, e a ideia de que, no domínio do pensamento, o papel dahistória é o de despertar os esquecimentos, de apagar - ou bar-rar de novo - as barreiras. Aesse tema, gostaria de opor a análi-se de sistemas discursivos historicamente defmidos, aos quaispodemos fixar limiares, e designar as condições de nascimentoe desaparecimento.Em uma palavra, estabelecer esses limites, recolocar em

questão esses três temas da origem, do sujeito e da significaçãoimplícita é fazer - tarefa difícil, resistências extremas o compro-vam -liberar o campo discursivo da estrutura histórico-trans-

cendental que a filosófica do século XIXlhe impôs.2) Apagar as oposições pouco refletidas. Eis algumas, porordem crescente de importância: a oposição entre a vivacidadedas inovações e o peso da tradição, a inércia dos conhecimen-

tos adquiridos ou as velhas práticas do pensamento; a oposiçãoentre as formas médias do saber (que representariam a medio-cridade cotidiana) e suas formas desviantes (que manifesta-riam a singularidade ou a solidão próprias do gênio); a oposi-ção entre os períodos de estabilidade ou de convergência uni-versal e os momentos de ebulição, em que as consciências en-tram em crise, em que as sensibilidades se metamorfoseiam,

em que todas as noções são revisadas, perturbadas, revifica-das, ou, por um tempo indefinido, caem em desuso. Todas es-sas dicotomias, gostaria de substituir pela análise do campodas diferenças simultâneas (que defmem, emuma época dada,a dispersão possível do saber) e das diferenças sucessivas (quedefinem o conjunto das transformações, sua hierarquia, suadependência, seu nível). Lá onde contamos a história da tradi-ção e da invenção, do antigo e do novo, do morto e do vivo, dofechado e do aberto, do estático e do dinâmico, faço contar ahistória da perpétua diferença; mais precisamente, contar a his-

tória das ideias como o conjunto das formas especificadas edescritivas da não identidade. E gostaria de liberá-Ia, assim, datripla metáfora que a estorva desde mais de um século (a evolu-cionista, que lhe impõe a divisão entre o regressivo e o adaptati-vo; a biológico, que separa o inerte e o vivo; a dinâmica, queopõe o movimento e a imobilidade).

3) Levantar a denegação que teve por objeto o discurso emsua existência própria (e é, para mim, a mais importante dasoperações críticas que realizei). Essa denegação comporta vá-rios aspectos:

- somente tratar o discurso como elemento indiferente, esem consistência nem lei autóctone (pura superfície de tradu-ção para coisas mudas; simples lugar de expressão para ospensamentos, as imaginações, os conhecimentos, os temas in-conscientes) ;

- somente reconhecer no discurso os recortes de modelo psi-cológico e individualizante (a obra de um autor e - por que não,com efeito? - sua obra de juventude e de maturidade), os recor-tes de modelo linguístico ou retórico (um gênero, um estilo), osrecortes de modelo semântico (uma ideia, um tema);

- admitir que todas as operações são feitas antes do discursoe fora dele (na idealização do pensamento ou na seriedade daspráticas mudas); que,o discurso, por consequência, é somenteem leve aumento que acrescenta uma franja quase impalpável

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às coisas e ao espírito: um excedente que não é preciso dizer,visto que não faz outra coisa senão dizer o que é dito.Aessa denegação, gostaria de opor que o discurso não énada

ou quase isso. E o que é - o que define sua consistência própria,o que permite fazer dele uma análise histórica - não é o que"quisemos" dizer (essa obscura e pesada carga de intençõesque pesaria, na sombra, um peso bem maior do que as coisas

ditas); não é o que ficou mudo (essas coisas imponentes quenão falam, mas que deixam suas marcas, seu perfil negro sobrea superfície levedo que é dito). Odiscurso é constituído pela di-ferença entre o que poderíamos dizer corretamente em umaépoca (segundo as regras da gramática e aquelas da lógica) e oque é dito efetivamente. O campo discursivo é, emum momen-to determinado, a lei dessa diferença. Ele define, assim, um cer-to número de operações, que não são da ordem da construçãolinguística ou da dedução formal. Ele desdobra um domínio"neutro", em que a palavra e a escrita podem fazer variar o sis-

tema de sua oposição e a diferença de seu funcionamento. Eleaparece como um conjunto de práticas reguladas, que não con-sistem simplesmente em dar um corpo visível e exterior à ínte-rioridade ágil do pensamento, nem em oferecer à solidez dascoisas a superfície de aparição que vai desdobrá-Ias. No fundodessa denegação que pesou sobre o discurso (em proveito daoposição pensamento-linguagem, história-verdade, fala-escri-ta, palavras-coisas), havia a recusa de reconhecer que no discur-so qualquer coisa é formada (segundo regras bem definíveis);que essa qualquer coisa existe, subsiste, transforma-se, desa-

parece (conforme regras igualmente definíveis); enfim, que aolado de tudo o que uma sociedade pode produzir ("ao lado":quer dizer em uma relação determinável a tudo isso) há forma-ção e transformação de "coisas ditas". É a história dessas "coi-sas ditas" que empreendo. o

4) Enfim, última tarefa crítica (que resume e envolve todas asoutras): libertar de seu status incerto esse conjunto de discipli-nas que chamamos de história das ideias, história das ciências,história do pensamento, história dos conhecimentos, dos con-ceitos ou da consciência. Essa incerteza manifesta-se de váriasmaneiras:

- dificuldades de delimitar os domínios: onde termina a his-tória das ciências, onde começa aquela das opiniões e das cren-ças? Como se dividem a história dos conceitos e a história das

noções ou dos temas? Por onde passa o limite entre a históriado conhecimento e aquela da imaginação?- dificuldade de definir a natureza do objeto: fazemos a his-

tória do que foi conhecido, adquirido, esquecido, ou a históriadas formas mentais, ou a história de sua interferência? Faze-mos a história dos traços característicos que pertencem emco-mum aos homens de uma época ou de uma cultura? Descreve-

mos um espírito coletivo? Analisamos a história (teleológíca ougenética) da razão?- dificuldade de designar a relação entre esses fatos de pen-

samento ou de conhecimento e os outros domínios da análisehistórica: é preciso tratá-los como signos de outra coisa (deuma relação social, de uma situação política, de uma determi-nação econômica)? ou como seu resultado? ou como sua refra-ção através de uma consciência? ou como a expressão simbóli-ca de sua forma de conjunto?Tantas incertezas, gostaria de substituir pela análise do dis-

curso ele próprio em suas condições de formação, na série desuas modificações e no jogo de suas dependências e de suascorrelações. O discurso apareceria, assim, em uma relaçãodescritível com o conjunto de outras práticas. Aoinvés de lidar-mos com uma história econômica, social, política, englobandouma história do pensamento (que lhe seria a expressão e comoduplicação), em vez de lidarmos com uma história das ídeíasque se referiria (seja por umjogo de signos e de expressão, sejapor relações de causalidade) a condições extrínsecas, lidaría-mos com uma história das práticas discursivas nas relações es-pecíficas que as articulam com as outras práticas. Não se tratade compor uma história global- que reagruparia todos os seuselementos em torno de um princípio ou de uma forma única -,mas de desdobrar, antes, o campo de uma história geral, emque poderíamos descrever a singularidade das práticas, o jogode suas relações, a forma de suas dependências. E é no espaçodessa história geral que poderia circunscrever-se como disci-plina a análise histórica das práticas discursivas.Eis quais são, mais ou menos, as operações críticas que em-

preendi. Então, permitam-me tomá-los como testemunha daquestão que coloco aos que poderiam alarmar-se: "Está uma

política progressista ligada (em sua reflexão histórica) aos te-mas da significação, da origem, do sujeito constituinte, enfim, atoda a temática que garante à história a presença inesgotável do

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Logos, a soberania de um sujeito puro, e a profunda teleologíadeuma destínação originária? Uma política progressista está li-gada a uma tal forma de análise - ou à sua discussão? E uma talpolítica está ligada a todas as metáforas dinâmicas, biológicas,evolucionistas pelas quais mascaramos o difícil problema damudança histórica - ou, ao contrário, à sua destruição meticu-losa? E ainda: há qualquer parentesco necessário entre uma

política progressista e a recusa de reconhecer, no discurso, ou-tra coisa senão uma fina transparência que cintila um instanteno limite das coisas e dos pensamentos, depois desaparecelogo? Podemos acreditar que essa política tenha interesse emrepetir uma vez mais o tema - que teria acreditado que a exis-tência e a prática do discurso revolucionário na Europa, desdemais de 200 anos, teria podido libertar-nos - de que as pala-vras vêm do vento, um cochicho exterior, um barulho de asasque mal entendemos na seriedade da história e no silêncio dopensamento? Enfim, devemos pensar que uma política pro-

gressista esteja ligada à desvalorização das práticas díscursí-vas, a fim de que triunfe, em sua idealidade incerta, uma histó-ria do espírito, da consciência, da razão, do conhecimento, dasideias ou das opiniões?"Parece-me que percebo em compensação - e bastante clara-

mente - as perigosas facilidades que a política de que falam seconcilia, se ela se desse a garantia de um fundamento originárioou de uma teleología transcendental, se representasse umaconstante metaforízação do tempo pelas imagens da vida ou pe-los modelos do movimento, se renunciasse à difícil tarefa deuma análise geral das práticas, de suas relações, de suas trans-formações, para refugiar-se em uma história global das totali-dades, das relações expressivas, dos valores simbólicos e de to-das essas significações secretas investidas nos pensamentos enas coisas.

Vocêsestão no direito de me dizer: "Isso está bem ebonito: asoperações críticas que você faz não são tão condenáveis comopoderiam parecer ao primeiro olhar. Mas, enfim, como esse tra-

balho de cupim sobre o nascimento da fílología, da economia ouda anatomia patológica pode dizer respeito à política, e inscre-ver-se entre os problemas que são, hoje, os seus? Havia um tem-

po em que os fílósofos não se dedicavam, comgrande zelo, àpoei-ra dos arquivos ..."Ao que responderia mais ou menos: "Existeatualmente umproblema que não é sem importância para a prá-tica política: aquele do estatuto, das condições de exercício, dofuncionamento, da ínstítucíonalízaçâo dos discursos científicos.

Eis do que empreendi a análise histórica - escolhendo os discur-sos que têm não a estrutura epístemológíca a mais forte (mate-

mática e física), mas o campo de positividade o mais denso e omais complexo (medicina, economia, ciências humanas)."Seja um exemplo simples: a formação do discurso clínico que

caracterizou a medicina desde o começo do século XIXaté osnossos dias, ou quase. Eu o escolhi porque se trata de um fatohistoricamente muito determinado, e que não saberíamos reen-víá-lo a qualquer instauração mais que originária; porque seriade uma grande leviandade aí denunciar uma "pseudocíêncía": e,sobretudo, porque é fácil alcançar "intuitivamente" a relação en-tre essa mutação científica e um certo número de acontecimen-

tos políticos precisos: aqueles que agrupamos - mesmo na esca-la europeia - sob o título de Revolução Francesa. O problema édar a essa relação, ainda confusa, um conteúdo analítico.Primeira hipótese: é a consciência dos homens que se modi-

ficou (sob o efeito das mudanças econômicas, sociais, políti-cas); e sua percepção da doença se encontrou, pelo fato mesmo,alterada: eles reconheceram as consequências políticas disso(mal-estar, descontentamento, revoltas nas populações cujasaúde é deficiente); eles aperceberam-se das implicações eco-nômicas disso (desejo dos empregadores de dispor de uma

mão de obra sã; desejo, da burguesia no poder, de transferirpara o Estado os encargos da assistência); eles aítranspuseramsua concepção da sociedade (uma só medicina com valor uni-versal, mas com dois campos de aplicação distintos: o hospitalpara as classes pobres; a prática liberal e concorrente para osricos); eles aí transcreveram sua nova concepção do mundo(dessacralízaçâo do cadáver, o que permitiu as autópsias; im-portância maior concedida ao corpo vivo, como instrumento detrabalho; cuidado com a saúde substituindo a preocupaçãocom a salvação). Em tudo isso, muitas coisas não são falsas,mas, por um lado, elas não se inteiram da formação de um dis-

curso científico, e, por outro, não puderam se produzir, e comos efeitos que pudemos constatar, a não ser na medida em queo discurso médico recebeu um novo estatuto.

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Segunda hipótese: as noções fundamentais da medicina clí-

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nica derivariam, por transposição, de uma prática política ouao menos, das formas teóricas nas quaís ela se reflete. As ideia~d~ s~lidariedade orgânica, de coesão funcional, de comunica-çao tissular, ~ ~bandono do princípio classificatório emprovei-to ~~uma ~áhse da totalidade corporal correspondiam a umapr~tica pol!tica que descobria, sob as estratificações ainda feu-

daís, relaçoes sociais do tipo funcional e econômico. Ou ainda:a recusa de ver nas doenças uma grande família de espéciesqu~se bot_ânicase o esforço para achar no patológico seu pontode I~serçao, seu mecanismo de desenvolvimento, sua causa e,ao fmal de conta~, sua t~rapêutica não correspondem ao proje-to, na classe SOCIaldommante, de não mais controlar o mundopelo saber teórico somente, mas por um conjunto de conheci-mentos aplicáveis, à sua decisão de não mais aceitar como na-tureza o que se imporia a ela como limite e como mal? Tais aná-lises n~o me parecem pertinentes, porque iludem o problemaessencial: qual deveria ser, em meio aos outros discursos e de

uma maneira geral, às outras práticas, o modo de exístêncía ed~ funcion~e~to do discurso médico para que se produzamtaI~ transposIçoes e tais correspondências?

, E a,r.azão pel~ ~ual.desloc~ia o ponto de ataque em relaçãoas ,~áhses,~adIClOnaIs. Se ha, com efeito, uma ligação entre apratica I?~htica e o discurso médico, não é, parece-me, porqueessa pratica mudou, primeiramente, a consciência dos ho-mens, sua maneira de perceber as coisas ou de conceber o mun-do, d~POiS,afinal de contas, a forma de seu conhecimento e oconte.udo ~e s~u saber; não o é também, porque essa prática se

refletíu pruneiramenn-, de uma maneira mais ou menos clara esiste~áti.ca, nos conceitos, nas noções ou temas que foram, ems~guIda, Importados da medicina; é de uma maneira bem maisdireta: a prática política transformou não o sentido nem a for-

~a do discurso, mas suas condições de emergência, de inser-çao e de funcionamento; ela transformou o modo de existênciado discurso médico. E isso por um certo número de operaçõesdescritas em outros lugares, que resumo aqui: novos critériospara designar aqueles que recebem, estatutariamente, o direitode ~er~m discurso médico; novo recorte do objeto médico pela

~ph~aç~o de uma outra escala de observação, que se superpõea prI~eIra sem apagá-Ia (a doença observada estatisticamenteno nível de uma população); novo estatuto da assistência, que

cria um espaço hospitalar de observação e de intervenções mé-dicas (espaço que é organizado, aliás, segundo um princípioeconômico, visto que a doença, beneficiária dos cuidados, deveretribuí-Ios pela lição médica que dá: ela paga o direito de sersocorrida pela obrigação de ser olhada, e isso incluída a morteaté); novomodo de registro, de conservação, de acumulação, dedifusão e de ensino do discurso médico (que não devemais ma-

nifestar a experiência do médico, mas constituir, primeiramen-te, um documento sobre a doença); novo funcionamento do dis-curso médico no sistema de controle administrativo e políticoda população (a sociedade, como tal, é considerada e "tratada"segundo as categorias da saúde e do patológico).Ou - e é aqui que a análise toma sua complexidade - essas

transformações nas condições de existência e de funcionamen-to do discurso não "se refletem", nem "se traduzem", nem "seexprimem" nos conceitos, nos métodos ou nos enunciados damedicina: elas modificam as regras de formação deles. O que étransformado pela prática política não são os "objetos" médi-cos (a prática política não transforma, é bastante evidente, as"espécies mórbidas" em "focos de lesões"), mas o sistema queoferece ao discurso médico um objeto possível (que seja umapopulação supervisionada e repertoriada, que seja uma evolu-ção patológica total no indivíduo, do qual estabelecemos os an-tecedentes e observamos, cotidianamente, os problemas e suaremissão, que seja um espaço anatômico autopsiado); o que étransformado de prática política não são os métodos de análi-se, mas o sistema de sua formação (registro administrativo dasdoenças, dos falecimentos, das entradas e saídas do hospital,

constituição dos arquivos; relação do pessoal médico com osdoentes no campo hospitalar); o que foitransformado pela prá-tica política não são os conceitos, mas seu sistema de formação(a substituição do conceito de "tecido" pelo de "sólido" não é,evidentemente, o resultado de uma mudança política; mas oque a prática política modificou é o sistema de formação dosconceitos: à notação intermitente dos efeitos da doença e à de-signação hipotética de uma causa funcional, ela permitiu asubstituição de um quadriculado anatômico rigoroso, quasecontínuo, escorado em profundidade, e a indicação local das

anomalias, de seu campo de dispersão e de suas vias eventuaisde difusão). A pressa com a qual relatamos, de ordinário, osconteúdos de um discurso científico a uma prática política

20 Michel Foucault - Ditos e Escritos

mascara, ,

1968 - Resposta a uma Questão 21

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crita em termos precisos.Parece-me que, a partir de uma tal análise, podemos com-

preender:- como descrever, entre um discurso científico e uma prática

política, um conjunto de relações de que é possível seguir o de-talhe e compreender a subordinação. Relações muito diretas,

visto que não passam pela consciência dos sujeitos falantes,nem pela eficácia do pensamento. Relações indiretas, entretan-to, visto que os enunciados de um discurso científico não po-dem mais ser considerados como a expressão imediata de umarelação social ou de uma situação econômica;- como indicar o papel próprio da prática política em relação

a um discurso científico. Ela não tem um papel taumatúrgícode criação; não faz nascer, inteiro, ciências; ela transforma ascondições de existência e os sistemas de funcionamento do dis-curso. Essas transformações não são arbitrárias, nem "livres":elas operam em um domínio que tem a sua configuração e que,por consequência, não oferece possibilidades indefinidas demodificações. Aprática política não reduz a nada a consistênciado campo discursivo no qual opera. Ela também não tem umpapel de crítica universal. Não é em nome de uma prática políti-ca que podemos julgar a cientificidade de uma ciência (a menosque esta não pretenda, de uma maneira ou de outra, ser uma teo-ria da política). Mas, em nome de uma prática política, pode-mos pôr em questão o modo de existência e funcionamento deuma ciência;- como as relações entre uma prática política e um campo

discursivo podem se articular com as relações de uma outra or-dem. Assim, a medicina, no começo do século XIX, é, ao mesmotempo, reatada a uma prática política (a um modo que analiseiem Nascimento da clínica) e a todo um conjunto de modifica-ções "ínterdíscursívas", que são produzidas simultaneamenteem várias disciplinas (substituições, a uma análise da ordem edos caracteres taxinômicos, de uma análise das solidariedades,dos funcionamentos, das séries sucessivas que descrevi em As

palavras e as coisas);

- como os fenômenos que temos o hábito de colocar em pri-

meiro plano (ínfluêncía, comunicação dos modelos, transferên-cia emetaforização dos conceitos) encontram sua condição his-tórica de possibilidade nessas primeiras modificações: por

exemplo, a importação, na análise da sociedade, de conceitosbiológicos como os de organismo, de função, de evolução, mes-mo de doença, só teve, no século XIX, o papel que lhe reconhe-cemos (bastante mais importante, mais carregado ideologica-mente que as comparações "naturalistas" das épocas preceden-tes) em razão do estatuto dado ao discurso médico pela prática

política.

Esse exemplo, tão longo, para somente uma coisa, mas àqual me atenho: mostrar a vocês em que o que tento fazer apa-recer por minha análise - a positividade dos discursos, suascondições de existência, os sistemas que regem sua emergên-cia, seu funcionamento e suas transformações - pode concernirà prática política. Mostrar a vocês o que essa prática pode fazera respeito disso. Convencê-los de que, ao esboçar essa teoria dodiscurso científico, fazendo-o aparecer como um conjunto daspráticas reguladas, articulando-se de uma maneira analisávelcom outras práticas, não me divirto em tornar ojogo mais com-plicado para certas almas um pouco vivas; tento defmir em que,em que medida, em que nível os discursos, e singularmente osdiscursos científicos, podem ser objetos de uma prática políti-ca, e em que sistema de dependência podem se achar em rela-ção a ela.Permitam-me, ainda uma vez, fazer-lhes de testemunha da

questão que coloco: será que não é bem conhecida, essa políticaque responde em termos de pensamento ou de consciência, emtermos de idealismo puro ou de traços psicológicos, quando lhefalamos de uma prática, de suas condições, de suas regras, desuas transformações históricas? Será que não é bem conhecida

essa política que, desde o âmago do século XIX, obstina-se a so-mente ver, no imenso domínio da prática, a epifania de uma ra-zão triunfante, ou a só decifrar a destinação hístóríco-trans-

cendental do Ocidente? E, mais precisamente: será que a recu-sa de analisar, no que têm, ao mesmo tempo, de específico e dedependente, as condições de existência e as regras de formaçãodos discursos científicos não condena toda a política a uma es-colha perigosa: ou bem colocar, sobre um modo que podemosbem chamar, se quisermos, de "tecnocrático", a validade e a efí-cácía de um discurso científico, quaisquer que sejam as condi-

ções reais de seu exercícío e o conjunto das práticas com asquaís se articula (instaurando, assim, o discurso científicocomo regra universal de todas as outras práticas, sem dar con-

22 Míchel Foucault - Ditos e Escritos

1968 - Resposta a uma Questão 23

e quisesse voltar a dar-lhe formulação - sob o efeito da

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ta do fato de que ele próprio é uma prática regulada e condicio-nada); ou bem intervir diretamente no campo discursivo, comose não tivesse consistência própria, fazer dele o material brutode uma ínquísíçâo psicológica (julgando um pelo outro o que édito e aquilo que lhe diz), ou praticar a valorização simbólicadas noções (discernindo em uma ciência os conceitos que são"reacionários" e aqueles que são progressistas")?

*

Gostaria de concluir, submetendo-lhes algumas hipóteses:- uma política progressista é uma política que reconhece as

condições históricas e as regras específicas de uma prática, láonde outras políticas só reconhecem necessidades ideais, deter-minações unívocas, ou o livre jogo das iniciativas individuais;- uma política progressista é uma política que define, em

uma prática, as possibilidades de transformação e ojogo de de-pendências entre essas transformações, lá onde outras políti-cas confiam na abstração uniforme damudança ou na presençataumatúrgíca do gênio;

- uma política progressista não faz do homem, da consciên-cia ou do sujeito em geral o operador universal de todas astransformações: ela define os planos e as funções diferentesque os sujeitos podem ocupar em um domínio que tem suas re-gras de formação;- uma política progressista não considera que os discursos

são o resultado de processos mudos ou a expressão de umaconsciência silenciosa; mas que - ciência, ou literatura, ou

enunciados religiosos, ou discursos políticos - formam umaprática que se articula com outras práticas;- uma política progressista não se acha, com respeito ao dis-

curso científico, em uma posição de "demanda perpétua" ou de"crítica soberana", mas deve conhecer a maneira em que os di-versos discursos científicos, em sua positividade (quer dizerenquanto práticas ligadas a certas condições, submetidas a cer-tas regras, e suscetíveis de certas transformações), acham-setomados por um sistema de correlações com outras práticas.Eis o ponto em que tento, desde uma dezena de anos agora,

reunir a questão que vocês me colocaram. Eu deveria dizer: é láo ponto onde a questão de vocês - tanto é legítima e bem ajusta-da - atinge, emseu coração, a minha empreitada. Essa empreí-

dta a, s - d

t rrogação de vocês que, desde dois meses, nao cessa eín e d t dírí "D t .ressionar-me _, eis o que, aproxima amen e, Ir~a: e errm-p em suas diversas dimensões, o que deve ter sído na Euro-nar 'desde o século XVII, o modo de existência dos discursos, e,pa, tífí ( d çsingularmente, os discursos cíen ICO~s~as regras e torrna-- com suas condições, suas dependências. suas transforma-çao, , hot d

ções), para que se constitua o saber que e o nosso domíní euma maneira mais precisa, o saber que se deu, por ormmo, Jesse curioso objeto que é o homem." ".Sei, quase tanto quanto um outro, o que podem ter de lll~a- J

tas" _ no sentido estrito do termo - tais pesquisas. O que ha aotratar os discursos não a partir da doce, muda e íntima cons- .aciência que aí se exprime, mas de um obscuro conjunto de re- Jgras anônimas. O que há de desagra?~vel ~mfazer aparece~ o~limites e as necessidades de uma pratica, Ia onde temos o hábí-to de ver desdobrarem-se, em uma pura transparência, os jo-gos do gênio e da liberdade. O que há de provocante e~ tratar,

como um feixe de transformações, essa história dos díscursos.que foi animada até aqui pelas metamorfoses tranqui1~an~esda vida ou a continuidade intencional do vivido. O que ha de m-suportável, enfim, sendo dado o que cada um quer colocar,pensa emcolocar de "simesmo" no seu próprio discurso, q~an-do sepõe a falar, o que há de insuportável ao recortar, analisar.combinar, recompor todos esses textos agora sílencíosos. semque jamais lá se desenhe o rosto transfigurado do autor: quecoisa! tantas palavras amontoadas, tantas marcas depositad~sem tanto papel e oferecidas a inúmeros olhares, um zelo tao

grande para mantê-Ias além do gesto que as articula, uma pie-dade tão profunda fixada para conservá-Ias e inscrevê-Ias namemória dos homens, tudo isso para que não reste nada dessapobre mão que as traçou, dessa ínquíetude que procurava apa-ziguar-se nelas, e dessa vida acabada, que só tem elas, doravan-te, para sobreviver? O discurso, em sua determinação a maisprofunda, não seria "vestígio"? E seu murmúrio não seria o lu-gar das imortalidades sem substância? Seria preciso admitirque o tempo do discurso não é o tempo da consciência levadoàs dimensões da história, ou o tempo da história presente naforma da consciência? Seria preciso que supusesse que, nomeu discurso, lá não vai minha sobrevida? E que, falando, nãoconjure a minha morte, mas que a estabeleça; ou, antes, que

24 MichelFoucault - Ditos e Escritos

abolisse toda interioridade nesse exterior que é tão indiferente1971

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àminha vida, e tão neutro, que não faz absolutamente diferençaentre minha vida e minha morte?

Todos aqueles lá, eu compreendo o seu mal-estar. Eles sesentiram, sem dúvida, bastante mal de reconhecer que sua his-tória, sua economia, suas práticas sociais, a língua que falam, amitologia de seus ancestrais, as fábulas que lhes contavam emsua infância obedecem a regras que não são todas dadas à sua

consciência; e não desejam nem um pouco que os desempos-sem, além disso, desse discurso em que querem poder dizerimediatamente, sem distância, o que pensam, acreditam ouimaginam; preferirão negar que o discurso seja uma práticacomplexa e diferenciada, obedecendo a regras e a transforma-ções analisáveis, antes de serem privados dessa terna certeza,tão consoladora, de poder mudar, senão o mundo, a vida, aomenos seu "sentido", pela única frescura de uma palavra que vi-ria deles mesmos, e permaneceria bem perto da fonte, indefini-damente. Tantas coisas, em sua linguagem, já lhes escaparam:

eles não querem que lhes escape, além do mais, o que dizem,esse pequeno fragmento de discurso - fala ou escrita, pouco im-porta - cuja frágil e incerta existência deve levar sua vida maislonge e por mais tempo. Eles não podem suportar - e os com-preendemos um pouco - ouvirem dizer: o discurso não é a vida;seu tempo não é o seu; nele, não se reconciliarão com a morte; épossível que tenham matado Deus sob o peso de tudo o que dis-seram, um homem que viverá mais que ele. Em cada frase quepronunciarem - e precisamente nesta que estão a escrever nes-te instante, vocês que se obstinam a responder, depois de tan-

tas páginas, a uma questão pela qual se sentiram pessoalmenteinteressados, e que vão assinar o texto com o seu nome -, emcada frase reina a lei sem nome, a branca indiferença: "Que im-porta quem fala; alguém disse: que importa quem fala."

oArtigo 15 (Intervenção)

"L'article 15",La Cause du peuple - J'accuse, número especial: Fites. L'Alfaire

Jaubert, 3 de junho de 1971, p. 4-5.

Sábado, 29 demaio de 1971, à tarde, ojornalistaAlain J~ubert, pa.ssando pelarua de Clignancourt, vê, ao término de uma manifestaçao de an~lhanos, um

furgão da polícia embarcando um homem ferido na cabe.ça, Sol~ler: ~~ube~t

d como jornalista, para acompanhar o ferido ao hospítal Lartboísíere, si-pe e, 1" deí S llítuado a cinco minutos de lá. Trinta minutos mais tarde, a po icia eixa o ler

emLaríbotsíere, depois, 45 minutos mais tarde, Jaubert, ensanguentado, com

as roupas rasgadas. , 'A •

30 de maio à tarde, um comunicado da pref~itura de polICia.relata a Agen.cIa

France-Presse os fatos e anuncia que o Sr. AlamJaubert, depois de ter agredidoos agentes e tentado escapar do furgão emmovímento, foi posto sob m:rn~adode prisão preventiva por rebelião, golpes e ultraje a agentes da força públíca efoi conduzido à sala Cusco do Hôtel-Díeu para lá receber cuidados.Os fatos e o comunicado criam uma vivaemoção entre osjornalistas, que recla-

mam de uma informação contraditória. Em 21 dejunho de 1971, Michel Fou-

cault, Gilles Deleuze, Claude Maurtac, que teriam seu primeiro encontro ~omMichelFoucault, o Merttíssímo Denís Langlois, advogado da Liga dos Di~eItos

do Homem e autor deDossiers notrs de Iapolice, o Dr. Daníel Ttmsít, Denís Pe-

ríer-Davílle, více-presídente da Confederação das Sociedades de Jornali,s~s,André Lantin, emnome dos sindicatos dejornalistas CFDT, apresentam a Im-

prensa a sua reconstituição dos fatos ao fim deuma pesquisa no bairro. A~~-demobilização dos jornalistas em torno do "caso Jaubert" favoreceu a posiçao

de uma agência de imprensa alternativa, dirigida por Maurice Cla~~l.e J~~-Paul Sartre, a Agência de imprensa Libération, de onde nasceu o díárto Libé-

ration.

AComissão de inquérito compreendia notadamente: C.Angelí, o pastor Caza-lis, o Dr. Herzberg, D. Langloís, M. Manceaux, o Dr. Timsit, P. Vídal-Naquet.

o caso Jaubert nos fez decidir criar uma comissão de "con-

trainquérito", por várias razões: .. A

1)Foi atingido um novo patamar com a selvageria e a víolên-cía policiais.

2) Jaubert foi agredido não pelo que havia feito (e.lenão ~e-clararal, mas pelo que era: jornalista. Ao lado de antigos r~cIs-mos, ao lado do novo racismo "antíjovens", eis agora o racismo

26 MlchelFoucault - Ditos e Escritos

"profissional"; é que osjornalistas exercem uma profissão insu-1971

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portável para a polícia: eles veem e falam.3) Ao culpar Jaubert, ferido e insultado, o juiz de instrução

encobriu a fúria da polícia. Não podemos esperar que, em taismãos, a instrução possa ser feita corretamente. Faremos nósmesmos uma contrainstrução.

4) Esse caso está longe de ser isolado. Tais incidentes multi-plicam-se depois de meses: todos testemunhamos um sistema

onde magistrados e policiais se dão as mãos. Esse sistema nosameaça a todos, e contra esse sistema é preciso defender-nossem trégua.Épor isso que decidimos fazer valer nossos direitos consti-

tucionais: aqueles que foram formulados na Declaração dosDireitos do Homem, de 1789, e aos quaís se refere a Constitui-ção de 1958. Art. 15: "Asociedade tem o direito de pedir contasa todo agente público de sua administração."Pediremos contas a esses "agentes públicos", que são os poli-

ciais e os magistrados. Mas não sob a forma de um balanço de

fim de ano. Nós as pediremos no momento mesmo, ponto porponto, golpe por golpe. Quer dizer que os policiais, por cadauma de suas violências, e os magistrados, por cada uma desuas complacências, terão contas a prestar.Pediremos contas sobre o caso Jaubert. Faremos um inqué-

rito dos fatos: todos aqueles que possam dar informações so-bre a manifestação, a detenção de Jaubert, sobre os ferimentosque recebeu estão convidados a nos dirigi-Ias. Mas será neces-sário, também, pedir contas sobre todos os casos semelhantesque acontecerão. E lá não mais esperaremos. Desde que for-

mos alertados, empreenderemos um contraínquéríto.Épreciso que ajustiça e a polícia o saibam: estão sob o peso

do art. 15. Cada vez que for necessário, ele lhes será aplicado.

Relatórios da Comissão de Informaçãosobre o Caso Jaubert (Intervenção)

"Rapports de Ia commíssíon d'ínformatíon sur I'afffaíreJaubert". suplementode La Cause du peuple - J'accuse, 28 de junho de 1971, p. 1-3. Ver OArtigo

15, nesta obra.

Constituímos uma comissão de informação sobre o caso

Jaubert.O trabalho dessa comissão? Não conduzir um inquérito que

duplicaria aquele dos magistrados. Não queremos substituir ajustiça. Não queremos muito menos substituí-Ia em uma desuas tarefas, como se bruscamente, e sobre um ponto particu-lar, ela venha a enfraquecer e que seja preciso ajudá-Ia.

Não o desejamos por duas razões:_ primeiramente, pensamos que, se ajustiça se vê confiar ta-

refas a preencher, bem, que as preencha ela mesma. Não julga-remos o que ela julga. Não julgaremos o que é, e como funciona;- depois, não pensamos que a justiça está em falta com tal

ou tal ponto. Pensamos que uma crise está aberta. Uma crise

no centro da qual se acha a polícia. E nessa crise há o risco deserem comprometidas as relações da justiça com a informa-ção, a imprensa e a opinião, da mesma maneira que suas rela-ções com os que dela precisam - com toda a massa daquelesque se dirigem a ela e sobre os quaís ela pesa bem desigual-

mente.Não somos para a justiça nem auxiliares nem modelos. Que-

remos ajudar a medir a crise atual, a ver até onde ela se esten-de, a denunciar os perigos que traz e a nos defendermos deles.Dessa crise e dos perigos que a acompanham, o caso Jaubert

nos parece ser um caso típico. O caso, quer dizer ,não somenteo que ocorreu no sábado, dia 29 à tarde, mas o que se passouapós e o que ainda se passa.

28 Mlchel Foucault - Ditos e Escritos

Comefeito, o que se passou em 29 de maio nós já o conhece-

1971 - Relatórios da Comissão de Informação sobre o Caso Jaubert 29

tado a se queixarem contra os CRS, para o caso em que houves-

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mos: trata-se de um homem que subiu - de plena vontade - emum carro de polícia e que, certo tempo após, dele sai com asroupas rasgadas, o rosto ensanguentado, o corpo intumescido,quase desmaiado.É inquietante, isso dá mérito às questões que serão colo-

cadas.Mas há bem outras coisas que ocorreram após, que também

são inquietantes e que merecem outras tantas questões.Nos dias que imediatamente se seguiram, uma série de co-

municados da prefeitura de polícia foi dírtgída à AgênciaFrance-Presse, aos jornais e à opinião. Ora, esses comunica-dos estão em contradição uns com os outros e em díscordân-cia com os fatos. São lacunares sobre os pontos mais impor-tantes.O que se passou ainda é que, nos dias que se seguiram, pro-

curaram fazer crer que Sollier teria feito declarações acabru-

nhando Jaubert, o que é inexato.O que ocorreu ainda, e que merece uma questão, é a pressa

com a qual, antes de todo o inquérito, acharam um juiz de ins-trução para culpar Jaubert.O que se passou ainda é que ojuiz de instrução liberou uma

comissão rogatória para inquirir sobre o caso Jaubert; e ele aconfiou, bem entendido, à polícia. "O que querem", disse ele,"não tenho tempo eu mesmo de me deslocar".O que se passou, e que ainda se passa, é uma intoxicação da

opinião pela prefeitura de polícia, pela chancelaria, pelo Minis-

tério do Interior.Por volta do dia 10 de junho, e durante vários dias em segui-

da, a chancelaria prometeu aos jornalistas informações impor-tantes que jamais vieram. Finalmente, as revelações foram pro-metidas para esta semana.Enfim, o que ocorreu também, e quemerece questões, são as

pressões que foram feitas diretamente sobre a população dobairro e sobre as testemunhas possíveis.Houve visita de "Senhores" a Laríboísíêre.Os mesmos "Senhores" arrastaram-se pela rua Clignan-

court, pelos bístrôs e andares.Há aqueles que contaram aos moradores do bairro que Jau-

bert tinha participado da manifestação, tinha discursado paraos manifestantes e os havia - como é curioso justamente - íncí-

se o menor empurrão.Eis o que se passou. Oministro do Interior declarou no dia 9

de junho: "Ajustiça tendo tido acesso ao dossiê, é convenienteaguardar sua decisão, como é regra em todo regime democrático."Tudo o que acabamos de dizer-lhes prova que a polícia e o

poder não esperaram a decisão da justiça. Não há um caso en-

tre Jaubert e a polícia que a justiça teria de resolver com todaserenidade. Com efeito, a polícia já se tinha introduzido por

toda a parte.Ocaso Jaubert é o de alguém moído de pancadas, mas é tam-

bém um relatório doentio, perigoso da polícia para a imprensaea opinião: relatório feito dementiras, de pressões, de insinua-ções, de manobras. É todo um relatório, perigoso também, pa-ra a polícia e a justiça; interdependência, reciprocidades diver-sas, jogo de devoluções e passa-passa. Enfim, é todo um relató-rio doentio e perigoso para o aparato judiciário e policial: inti-

midações, pressões, temor.Quando uma população tem medo de sua polícia, quando

não ousa mais recorrer à sua justiça, porque ela a reconhecedependente demais da polícia, quando, enfim, a imprensa e aopinião, seu último recurso, têm risco, por sua vez, de estaremintoxicadas, manobradas pela polícia, então a situação égrave.A Constituição atual refere-se à Declaração dos Direitos do

Homem, de 1789. E o art. 15dessa Declaração diz: "Asocieda-de tem o direito de pedir contas a todo agente público de suaadministração. "

Noperigo de hoje, a sociedade tem direito, dever de pedir con-tas. Se a polícia comete abusos de poder, é preciso pedir-lhecontas. Se tal ministro, tal administração fazem circular falsasnotícias, é preciso pedír-lhes contas. É isso o que fizemos, quequisemos fazer em nossa comissão.Eis agora como procedemos.Umnúcleo muito restrito formou-se primeiramente, em tor-

no do qual vieram trabalhar um grande número de pessoas quese sentiram envolvidas por um tal caso. Fomos ajudados pelaFederação das Sociedades de Jornalistas, o sindicato CFDT

dos jornalistas, o Comitê deDefesa da Imprensa e dos Jornalis-tas, o Comitê do Manifesto "Temos queixa da polícia".O trabalho dessa comissão, é preciso sublinhar, foibastante

Simples de fazer. Consistiu em reencontrar as testemunhas, a

30 MichelFoucauIt - Ditos e Escritos

fím de estabelecer o emprego do tempo de Jaubert, o episódio

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da farmácia, o itinerário do carro, o episódio da queda, a chega-da a Larfbotsíere, consultando o registro do hospital, enfim, emestabelecer estritamente o horário dos acontecimentos.

Todas essas informações eram simples de recolher. Em doisdias, os inquiridores puderam reuni-Ias. Era inútil fazer umtrabalho de detetive. Tratava-se de verdades que estavam lá, de-

cifráveis por todos, ao alcance de todo mundo. Era preciso irprocurá-Ias.

Ora, toda a campanha de insinuações, todas as manobras,todos os silêncios, as informações liberadas com reticência, so-lenidade e compunção por tal funcionário de polícia, tudo issose desenvolveu como se as informações não estivessem ao al-cance de todos. Como se fosse necessário resolver um difícilenigma.

Há mais: no momento em que, em dois dias, pôde-se reuniro essencial dessas informações, Jaubert foi incriminado à tar-

de mesmo; sem que nenhuma verifIcação fosse feita fora do quea polícia havia afIrmado, que foi considerado como dinheiro àvista.

Encontramos muitas testemunhas oculares. Um certo núme-ro delas estava pronto a dar seu nome. Outras, ao contrário, nãoo estavam: tinham medo da polícia e de todas as pressões coti-dianas que ela pode, que sabe exercer em um bairro popular so-

?re ? S mo~adores, os comerciantes. Eles não acreditavam que aJustiça estivesse em situação de protegê-Ios contra a polícia.E nós mesmos não acreditamos que ajustiça é capaz de lhes

assegurar essa proteção. Então, decidimos não revelar nenhumnome, mesmo daqueles que o quiseram. Cada testemunha fezsua declaração à frente de dois ou três dentre nós. E fomos nósos fIadores do caráter autêntico dos propósitos que lhes serãorelatados.

E se viessem nos perguntar: "O que é uma inquirição cujastestemunhas são anônimas?", responderíamos: "O que é umapolícia que faz medo às testemunhas?"

E onde estamos na cidade, se as testemunhas não se sentemprotegidas por ninguém?

Eu Capto o Intolerável

"Je perçois I'íntolérable" (conversa com G. Armleder), Journal de Geneve: Sa-

medi littéraire ("cahier 135"), nº 170, 24-25 de julho de 1971.

- Michel Foucault, vocêmepediu que nãofizesse pergun-

tas tratando de literatura, de linguística ou de semiologia.Contudo, gostaria que efetuasse uma ligação rápida entre

suaspreocupações passadas e a ação na qual está engajado

atualmente.- Constatei que a maior parte dos teóricos que procuram

sair da metafísica, da literatura, do idealismo ou da sociedadeburguesa deles absolutamente não saem, e nada é mais metafí-sico, literário, idealista ou burguês do que a maneira com quetentam liberar-se das teorias.Eu mesmo, antigamente, debrucei-me sobre assuntos tam-

bém abstratos como, longe de nós, a história das ciência~. Hoje,gostaria de realmente sair deles. Em razão de circunstâncias ede acontecimentos particulares, meu interesse deslocou-se

para o problema das prisões, e essa nova preocupação ofere-ceu-se a mim como uma verdadeira saída, à vista da lassitudeque experimentava em face da coisa literária. Entretanto, reen-contro lá uma continuidade que teria gostado de romper. Comefeito, no passado, tentei analisar o sistema de internamentoem vigor, em nossa sociedade, nos séculos XVIIe XVIII.De um ponto de vista geral, podemos divertir-nos ao classífí-

carmos as sociedades em diferentes tipos. Há sociedades "exí-lantes'': quando um grupo ou um corpo social não suporta umindivíduo, ele o rejeita - éum pouco a solução grega; outrora, os

gregos preferiam o exílio a qualquer outra pena.Há, também, as sociedades "assassinantes", torturantes oupurillcantes, que submetem o acusado a uma espécie de ritualpunitivo ou purificador, e, enfim, as sociedades enclausuran-

32 Míchel Foucault - Ditos e Escritos1971 - Eu Capto o Intolerável 33

isão é um instrumento de repressão. Seu funcionamento foi

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tesotal como se tornou a nossa sociedade. desde os séculos XVIe XVII.Nessa época. as normas sociais e econômicas foram coloca-

das para a população. ao mesmo tempo pelo desenvolvimentodo aparelho de Estado e pelo da economia. A nossa sociedadecomeçou a praticar um sistema de exclusão e de inclusão - ín-

te:-namento ou enclausuramento - contra todo indivíduo quenao correspondesse a essas normas. Desde então. homens fo-ram excluídos do circuito da população e. ao mesmo tempo. in-cluídos nas prisões. esses lugares privilegiados que são. dequalquer sorte. as utopias reais de uma sociedade. O interna-mento tinha por finalidade não somente punir. mas tambémimpor pela coerção um certo modelo de comportamento. assimcomo aceitações: os valores e as aceitações da sociedade.

- Voc,ênão acha que o internamento provoca. igualmente,

umfen0TT"';enode "desculpabilização"?

- Sim. E verossímil que isso está ligado a uma certa forma dedescristianização ou de atenuação da consciência cristã. Afinalde contas, o mundo inteiro participa do pecado de um só. Mas.a partir _dOmomento em que existe o mundo da prisão, aquelesque estao no exterior deveriam ser justos ou reputados comotal; e aqueles que estão nas prisões. e somente esses deveriamser os culpados. Isso provoca. com efeito, uma espécie de corteentre uns e outros. e aqueles que estão no exterior têm a im-pressão de não serem responsáveis por aqueles que estão nointerior.

- Com Gilles Deleuze, Jean-Marie Domenach e Pierre Vi-dal-Naquet .v~cêestá'.hoje. àfrente do Grupo de Informaçãosobre as Pnsoes. Quazs os acontecimentos que o conduzirama isso?

- No último mês de dezembro. prisioneiros políticos. esquer-distas e maoístas fizeram greve de fome para lutar contra ascondições gerais da detenção. que seja política ou de direito co-mum. Esse movimento partiu das prisões e desenvolveu-se noexterior delas. É a partir desse momento que comecei a ocu-par-me disso.

- Qual é o objetivo visado pelo Grupo de Informação sobre

as Prisões?- Gostaríamos, literalmente, de dar voz aos detentos. Nosso

propósito não é fazer obra de sociólogo nem de reformista. Nãose trata de propor uma prisão ideal. Creio que. por defíníçâo, a

~~finido pelo Código Napoleônico. há quase 170anos. e evoluiu

relativamente pouco desde então._Quais são. então. os meios que vocês empregam?_RedigimOs. por exemplo, um questionário bastante preciso

sobre as condições da detenção. Nós o fizemos chegar aos deten-tos e lhes pedimOS que nos contassem sua vida de prisioneiros

corno maior detalhe possível. Assim. inúmeros contatos foramestabelecidos; por esse viés, recebemos autobiografias, diários

e fragmentos de relatos. Alguns são escritos por pessoa~ qu~rnal sabem pegar em um lápis. Há coisas assombrosas. Nao dí-ria que esses textos são de grande beleza. pois seria ínscre-vê-Ios no horror da instituição literária. De qualquer modo. ten-tarnoS, em seguida, publicar esse material em estado bruto._Qual será. em sua opinião. a atitude das autoridades em

face dessa ação política?_De duas uma: ou bem a administração penitenciária e o mi-

nistro da Justiça não dirão nada e reconhecerão que essa açãoé bem fundada. ou bem se voltarão contra nós; então, eis queJean-Marie Domenach. Gilles Deleuze. Pierre Vidal-Naquet e

Foucault estão na prisão!_ Quais são as suas opiniões pessoais sobre o problema

que cria a existência das prisões?_ Não tenho opinião a respeito. Estou lá para recolher docu-

mentos. difundi-Ios e. eventualmente. mcttá-íos. Simplesmen- .te, capto o intolerável. A insipidez da sopa ou o frio do invernosão relativamente suportáveis. Em compensação, aprisionar

um indivíduo porque tem um caso com ajustiça não é aceitável!

1972_ Sobre a Justiça Popular. Debate comos Maoístas 35

~ . moSnos bater contra os primeiros, sem termos nos de-

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1972

Sobre a Justiça Popular. Debate com osMaoístas

"Sur lajustíce populaire. Débat avec les maos" (conversa com Gilles e Victor; 5

de fevereiro de 1972). Les Temps Modernes, nQ 310 bis: Nouveau Fascisme.

Nouvelle Démocratie, junho de 1972, p. 355-366.

A esquerda proletária estando, então, ilegal, os interlocutores de M. Foucault

têm pseudônimos: Victor designa Benny Lévy,principal responsável pela orga-nização maoísta (ele tornou-se, em seguida, o "secretário" de Sartre), e Gilles,André Glucksmann.

Em Les Temps Modernes, esta conversa era precedida pelo seguinte aviso: "No

debate que se segue, Míchel Foucault e militantes maoístas procuram sistema-tizar uma discussão que estava empenhada, por ocasião do projeto, em junho

de 1971, em um Tribunal popular para julgar a polícia."

M.Foucault: Parece-me que não é preciso partir da forma dotribunal, depois se perguntar como e em que condição pode ha-ver um tribunal popular, mas partir da justiça popular, de atosde justiça popular, e se perguntar que lugar pode aí ocupar umtribunal. E preciso se perguntar se esses atos de justiça popu-lar podem ou não se ordenar na forma de um tribunal. Ora, mi-

nha hipótese é de que o tribunal não é como a expressão natu-ral da justiça popular, mas que tem, antes, por função históricade alcançá-Ia, controlá-Ia e abafá-Ia, reinscrevendo-a no inte-rior de instituições características do aparelho de Estado. Exem-plo: em 1792, quando a guerra é desencadeada nas fronteiras eque pedimos aos operários de Paris para partirem, para sema-tarem, eles respondem: "Nós não partiremos antes de termosfeito justiça a nossos inimigos do interior. Enquanto nos expo-mos, as prisões onde estão encarcerados os protegem. Eles sóaguardam a nossa partida, para de lá saírem e restabelecerem a

antiga ordem das coisas. De toda maneira, aqueles que nos go-vernam, hoje, querem utilizar contra nós, e para nos fazer en-trar de novo na ordem, a dupla pressão dos inimigos que nosinvadem do exterior e daqueles que nos ameaçam no interior.

:;:;açado, primeiramente, dos últimos." As execuções debro eram ao mesmo tempo um ato de guerra contra os

setem' /. ' d htIÚIllÍgosinteriores, um ato pohtico contra as manobras os 0-

no poder e um ato de vingança contra as classes opresso-mens I I· /. .

Será que, no curso de umperíodo de uta revo UClOnarIaVIO-raso I ..lenta. não seria isso um ato de )U~tiç~ popu ~' em pnm~lfa

...ri 1Ylação. ao menos: uma rephca a opressao, estrategíca-apro.luJ-U - - timente útil e politicamente necessária? Ora. as execuçoes nao -nham. antes. começado em setembro/por causa ~os ho.mensue, saídos da Comuna de Paris, ou proximos dela, tntervíeram

~organizaram a cena do tribunal: juízes atrás de uma ~e~a, :e-

presentando uma instância_te~.ceira entr,~o ~?VOque ~~I~vrn-gança" e os acusados que sao culpados ou rnocentes , rnter-

rogatórios para estabelecer a ";:.rdad:".ou ?bt~r a "c~~ssão";deliberações para saber o que e Justo ; ínstâncía que e Imposta

a todos por via autoritária. Será que não vemos reaparece~ l~?

embrião, mesmo frágil, de um aparelho de Estado? ApOSSIbili-dade de uma opressão de classe? Será que o estabeleCiment?de uma instância neutra entre o povo e seus inimigos, e susceti-velde estabelecer a divisão entre o verdadeiro e o falso, o culpa-do e o inocente, o justo e o injusto, não é uma maneira de seopor à justiça popular? Uma maneira de desarmá-Ia em sualuta real em proveito de uma arbitragem ideal? E por isso queme pergunto se o tribunal, em vez de ser uma forma da justiça

popular, não é a primeira deformação dela.Victor: Sim, mas tome exemplos tirados não da revolução

burguesa, mas de uma revolução proletária. Tome a China: aprimeira etapa é a "revolucionarização" ideológica das massas,as cidades que se sublevam, os atos justos das massas campo-nesas contra seus inimigos: execuções de déspotas, réplicas detoda espécie a todas as exações sofridas durante séculos etc. Asexecuções de inimigos do povo desenvolvem-se, e estare~os d~acordo ao dizer que são atos de justiça popular. Tudo ISSOebem: o olho do camponês vê justo e tudo vai muito bem noscampos. Mas, quando chega um estado ulterior, no momentoda formação do Exército Vermelho, não há mais simplesment~

presentes as massas que se sublevam e seus inimigos, mas haas massas, seus inimigos e um instrumento de unificação dasmassas, que é o Exército Vermelho. Nesse momento, todos o~atos de justiça popular estão sustentados e disciplinados. E e

36 Mlchel Foucault - Ditos e Escritos

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preciso j,:risdições para que os diferentes atos possíveis de Vin-gança se~am conformes ao direito, a um direito do povo quenada mais tem a ver com as velhas jurisdições feudais. Épreci-so es~ certo de que tal execução, tal ato de vingança não serãoum ajuste de contas, pura e simplesmente a desforra de u/ b m

egoísmo so ~etodos os aparelhos de opressão igualmente fun-dados no egoismo, Nesse exemplo, há bem o que você chama duma instância terceira entre as massas e seus opressores díre-tos. Ser~ q~e vocêmanteria que, nesse momento, o tribunal po-pular nao_e somente uma forma de justiça popular, mas umadeformaçao da justiça popular?M.Foucault: Vocêestá certo de que, nesse caso, uma terceira

instância está entre as massas e seus opressores? Não acho: aocontrário, diria que são as massas, elas mesmas, que vieramcomo intermediárias entre alguém que teria se separado das

~a~sas, por su~ própria vontade, para saciar uma vingança ín-d.IVI~ual,e alguém que teria sido o inimigo do povo, mas não se-na VIsado pelo outro senão como inimigo pessoal ...No caso que cito, o tribunal popular, tal como funcionou sob

a Revolução, tendia a ser uma instância terceira, aliás bem de-terminada socialmente; ela representava uma camada entre ab~r~esia no poder e a plebe parisiense, uma pequena burgue-sia fe_Itade pequenos proprietários, pequenos comerciantes,artesaos. Eles se colocaram como intermediários, fizeram fun-cionar um tribunal mediador, e se referiram, para fazê-lofuncio-

nar, a uma ideologia que era, até certo ponto, a ideologia daclas~e dominante, ao que era "bem" e "mal" para fazer e ser. Épor ISSOque, nesse tribunal popular, eles não somente conde-naram padres rebeldes ou pessoas compromissadas com ocaso de 10de agosto - em número bastante limitado -, mas ma-tar~ "galeriro:os", quer dizer, pessoas condenadas pelos tri-bunaís do Antigo Regime, mataram prostitutas etc., e vemos

b~~/, ~ntão, que retomaram o lugar "mediano" da instância ju-dícíáría, ~ ~o~o havia funcionado sob o Antigo Regime. Lá,onde ~a,:a réplíca das massas àqueles que eram seus inimigos,substituíram o funcionamento de um tribunal e uma boa partede sua ideologia.

Vi~tor: ~ por isso que é interessante comparar os exemplosd~ trlb~aIS durante a revolução burguesa com exemplos detrlb~naI~ durante a revolução proletária. O que você descre-

1be de então e depois seus inimigos, havia uma classe, a pe-p e na burguesia (uma terceira classe) que se interpõs, que to-qu e

uda plebe qualquer coisa, da classe que se tornou domí-

J]l0 - t Inantequalquer outra coisa; ela, entao, represen ou.seu p~pe

d classe mediana, fundiu esses dois elementos e ISSOveio ad : r esse tribunal popular, que é, com respeito ao movimentode justíça popular que se fazia pela plebe, um elemento de re-pressão interior, então uma deform~ção ~a justiça p~pular.Se, então, tem um elemento terceiro, ISSOnao vem do tribunal,vemda classe que dirigia esses tribunais, quer dizer, a peque-

na burguesia. / .M.Foucault: Gostaria de dar uma olhada, para tras, na hIS-

tória do aparelho de Estado judiciáriO. Na Idade Média, passa-mos de um tribunal arbitral (ao qual se tinha recurso de con-senso mútuo, para pôr fim a um litígio ou a uma guerra priva-da, e que não era, de forma alguma, um organismo permanente

de poder) a um conjunto de instituições estáveis, específic~~,intervindo de maneira autoritária e dependente do poder polítí-co (ou, em todo caso, controlado por ele). Essa transformaçãose fez com apoio em dois processos. O prímeíro foi a fiscaliza-ção da justiça: pelo jogo das multas, confiscos, penhoras, cus-tas judiciaiS, gratificações de toda sorte, fazer justiça era provei-toso; após o desmembramento do Estado carolíngio, a justiçatornou-se, nas mãos dos senhores, não somente um instru-mento de apropriação, um meio de coerção, mas muito direta-mente um recurso; ela produzia uma renda ao lado da renda feu-

dal, ou antes fazia parte da renda feudal. As justiças eram re-cursos, eram propriedades. Elas faziam bens que se permuta-vam, que circulavam, vendiam ou herdavam, com os feudos ouàs vezes ao lado deles. As justiças faziam parte da circulaçãodas riquezas e do levantamento feudal. Da parte daqueles queas possuíam, eram um direito (ao lado dos sensos, damão-morta, do dízímo, do imposto chamado tonlieu, das bana-lidades etc.); e do lado dosjustiçáveis, elas eram como que ren-da não regular, mas à qual, em certos casos, era necessário do-brar-se. O funcionamento arcaico da justiça inverte-se: parece

que mais antigamente a justiça era um direito da parte dos juS-tiçáveis (direito de pedir justiça, se estivessem de acordo comela), e um dever do lado dos árbitros (obrigação de empregarseu prestígio, sua autoridade, sua sabedoria, seu poder políti-co-relígíoso): daqui em diante, vai tornar-se direito (lucrativo)

38 Michel Foucault - Ditos e Escritos1972 _ Sobre a Justiça popular. Debate com os Maoístas 39

.'.mero de hábitos próprios da guerra privada, um certo

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da parte do poder, obrigação (custosa) do lado dos subordinados. Compreende-se lá o cruzamento com o segundo procesde que falava ainda agora: o vínculo crescente entre a justiça e

for~a ~~ada. Sub~tiw.rr as guerras privadas por uma justiçaobngatona e lucrativa, unpor uma justiça, onde se é ao mesmot:mp~ juiz, parte e fisco, no lugar das transações e composí,

çoes, unpor uma justiça que assegure, garanta e aumente, emproporções notáveis, a soma de recursos sobre o produto do

n:.ab~o, o que implica que se disponha de uma força de coa-çao. Nao se pode impor senão por uma coerção armada: lá

~nd~,o suserano é, militarmente, bastante forte para impor suapaz , pode haver uma soma fiscal e jurídica. Tornadas fontesde rendas, as justiças seguiram o movimento de divisão daspropriedades privadas. Mas, apoiadas sobre a força armadaseguiram a concentração progressiva delas. Duplo movimentoque conduziu ao resultado "clássico": quando, no século XIV, o

feudalismo teve de fazer face às grandes revoltas camponesas eurbanas, eleprocurou apoio sobre um poder, um exército, umafiscalização centralizados; e, imediatamente, apareceram, como Parlamento, os procuradores do rei, as diligências de ofício, a

le~isla~ão con~a os mendigos, vagabundos, ociosos, e, logo, osprunerros rudunentos de polícia, uma justiça centralizada: oembrião de um aparelho de Estado judiciário, que cobria, do-brava, controlava as justiças feudais com sua fiscalização, mas~e,~ permitia funcionar. Apareceu, assim, uma ordem "judícíá-

n.a , que se apresentou como a expressão do poder público: ár-

bítra ao mesmo tempo neutra e autoritária, encarregada, aome~~o te~p~, de res~lver "com justiça" ~s litígios e de assegu-rar autorttaríamente a ordem pública. E sobre esse fundo deguerra social, de levantamento fiscal e de concentração das for-ças armadas que se estabeleceu o aparelho judiciário.Compreendemos por que na França e, creio, na Europa Oci-

dental ~ ato dejustiça popular é profundamente antíjudícíárío e

opost~ a forma mesma do tribunal. Nas grandes sedições, des-~e ~ sec~lo XIV, íncrímínavam-se, regularmente, os agentes dajustiça, Igualmente os agentes da fiscalização e, de maneira ge-ral, os agentes do poder: vão-se abrir as prisões, caçar os juízese fechar o tribunal. Ajustiça popular reconhece, na instânciajudiciária, um aparelho de Estado representante do poder pú-blico, e instrumento do poder de classe. Gostaria de adiantaruma hipótese, mas da qual não estou certo: parece-me que um

certo n~... " ,. dí ., . ", ero de velhos ritos pertencentes à justiça pre-ju iciana

núlll aram-se nas práticas de justiça popular: era, por exem-conserv tvelho gesto germânico plantar sobre uma es aca, paraplO,ô': em público, a cabeça de um inimigo m~rto regularme~-eJCP".uridicamente"no curso de uma guerra privada; a destrUI-

t~'oJda casa, ou, pelo menos, o incêndio do ~ade~amento e o

ça do mobiliário é um rito antigo, correlativo a postura desaco . ' . - d . dí

. e. da lei' ora são esses atos anteriores a mstauraçao o ju 1-10ra ' , . - 1 Eciário que revivem regularmente nas sedíções popu ares. m

da Bastilha tomada, passeia-se com a cabeça de Delau-torno . .

. em torno do símbolo do aparelho repressivo gira, comnay, , . ul - eseus velhos ritos artcestrais, uma ~ra~ca ~o~ .~. que nao se r -conhece, de modo algum, nas ínstancias JUdlClarIas. par~ce-me

que a história da justiça, como aparelho de Estado, permite quese compreenda a razão pela qual, na França ao menos: os atos

dejustiça realmente populares tendem a esc~par ~o.trlbun~; e

por que, ao contrário, cada vez que a burgueSia qUI~Impor a se-dição do povo a coação de um aparelho de Estado, mstaurou-seum tribunal: uma mesa, um presidente, assessores; d~ frente,

os dois adversáriOS. Assim, o judiciária reaparece. EIS como

vejo as coisas. . 'Victor: Sim, você as vê até 1789, mas o que me mte~es~a e a

continuação. Você descreveu o nascimento ~e. uma tdeía declasse e como essa ídeía materializa-se nas praticas: nos apa-relhos. Compreendo perfeitamente que, na Revoluç,:o France-sa, o tribunal pôde ser um instrumento de deformaçao e de re-

pressão indireta dos atos de justiça po~~ar d~ plebe. Se com-preendo, é que havia várias classes SO:lalSem jogo, ~e um ladoa plebe e de outro os traidores da naçao e da revoluçao, e, entreos doís. uma classe que tentou representar ao máximo o papel

histórico que podia. Então, o que posso tirar de~se exemplonão são conclusões definitivas sobre a forma do tribunal popu-lar _ de toda maneira, para nós, não há formas por sobre o ~e-vir histórico -t - , mas, simplesmente, como a pequena burgueSia,como classe, tomou um pequeno fragmento ,de ídeía da ~le?e,depois, dominada que era, sobretudo nessa epoca, pelas tdeías

da burguesia, aniquilou as ídeías tiradas dapl~be sob a formados tribunais da época. Daí, nada posso conclUIr so?r~ a qu.e~-tão prática atual dos tribunais populares n~revoluçao ldeolog

1-

ca presente ou, ajortiori, na futura revoluçao popular armada.

40 Michel Foucault - Ditos e Escritos

Eisyor que gostaria que se comparasse esse exemplo da Revo-

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l~çao Francesa com o exemplo que dei, ainda agora, da revoln,çao popular armada na China.

Vocême dizia: nesse exemplo, só há dois termos, as massase seus inimigos. Mas as massas delegam, de certa maneirauma parte de seu poder a um elemento que lhes é profunda~mente ligado, mas que é, no entanto, distinto, o Exército Ver-~~~o Popular,:.Ora, essa constelação poder militar-poder judi-c~arlOque voce indicava você a reencontra no exército popular,

~~d~do as massas a organizarem julgamentos regulares dosmumgo~ de classe, o que, para mim, nada há de surpreendente,na ~edIda em que o exército popular é um aparelho de Estado.Entao, eu lhe farei uma pergunta: será que você não sonha coma possibilidade de passar da opressão atual ao comunismo semum período de transição - o que tradicionalmente chamamosde ditadura do proletariado - em que precisa de aparelhos deEstado de um tipo novo, dos quaís devemos resgatar o conteú-

do? Será que não é isso que há por trás de sua recusa sistemáti-ca da forma do tribunal popular?

M.Fouca~lt: Você ~em=t=de que se trata dessa simplesforma do trIbunal? Nao sei como isso se passa na China, mas

o~emos ~ pouc~ meticulosamente o.que significa a disposi-çao espaC~al do tnbunar, a dispOSição das pessoas que estãodentro ou a frente de um tribunal. Isso implica, ao menos umaideolOgia. '

O que é es~aAdis?OSiÇão?Uma mesa; atrás dessa mesa, que?S,coloca a cíístãncia dos dois advogados, terceiros, que são osJUlze~;sua posição indica, primeiramente, que são neutros em

rela~ao ~ um e a ?utro; segundo, isso implica que seujulgamen-to ?ao e determmado por antecipação, que vai se estabelecerapos inquirição, por audição, das duas partes, em função deuma certa norma de verdade e de um certo número de ideiassobre o j~sto e o ínjusto, e, terceiro, que sua decisão terá forçad~ aut~r~dade. EISo que quer dizer, finalmente, essa simplesdIspo~Içao espacial. Ora, essa ídeía de que pode haver pessoas

que sao ~eutras em relação às duas partes, que podem julgá-Iasem funç~o _deídetas de justiça que valem absolutamente, e quesua.s decIsoes devem ser executadas, creio que isso vai, afinal,

~UIto longe e parece muito estranho à ídeía mesmo de umajus-tiça popular. No caso de uma justiça popular, você não tem trêselementos, tem as massas e seus inimigos. Em seguida, as mas-

uando reconhecem em alguém um inimigo, quando decí-sas, q tígar esse inimigo - ou reeducá-lo - não se referem adern cas ,uma ídeía universal abstrata de justiça, reportam-se somente a

ópría experiência aquela dos danos que sofreram, dasua pr '. . . decímaneira em que foram lesadas, oprumdas; e, ~nfIm, sua _ eCI-- não é uma decisão de autoridade, quer dízer que nao se

sao tam em um aparelho de Estado que tem a capacidade de fa-apoI . taler as decisões, elas o executam pura e sunplesmen e.er v . _

Então, tenho inteiramente a impressão de que a organIzaç~o,emtodo caso ocidental, do tribunal deve ser estranha ao que e aprática da justiça popular.vtctor. Não estou de acordo. Tanto você é concreto para com

todas as revoluções, até a revolução proletária, tanto se torn~completamente abstrato para com as revoluções modernas, aícompreendidas as ocidentais. Eis por que mudo de lugar, ~vo~-to à França. Para a Liberação, você teve diferentes atos deJusti-

ça popular. Tomo, de propósito, um ato equi~ocado, um ato d.ejustiça popular real, mas equivocado, qu~r dízer um ato m~I-pulado, de fato, pelo inimigo de classe; tíraremos dele a líção

geral para precisar a crítica teórica que faço.Quero falar das moças das quais se raspavam os ca~elos:

porque haviam dormido com os boches. ~e certa mane~ra, eum ato de justiça popular: de fato, o comercio, no sentído omais carnal do termo "com o boche", é qualquer coisa que fer;a sensibilidade física do patriotismo; aí, você tem um dano fí-sico e moral em relação ao povo. No entanto, é um ato equivo-cado de justiça popular. Por quê? Porque, simplesmente, en-

quanto divertíamos o povo para tonsurar essas m~lheres: osverdadeiros colaboracionistas, os verdadeiros traidores fica-vam em liberdade. Deixamos então que esses atos de justiçapopular fossem manipulados pelo inimigo, nã? pelo velho ini-migo em desagregação militar, o ocupante ?azIsta~ mas o novoinimigo, quer dizer, a burguesia francesa a ex:eçao da ~eque-na minoria bastante desfigurada pela Ocupaçao e que nao po-dia mostrar-se. Que lição podemos tirar desse ato de justiçapopular? Não a tese de que o movimento de mas,sa ~eria insen-sato, visto que houve uma razão nesse ato de réplica _emrela-

ção às moças que tinham dormido com oficiais ale~aes,.~asque, se o movimento de massa não está sob .orie~taçao u~IfIca-da proletária, ele pode ser desagregado n~ mtenor, manIpul~-do pelo inimigo de classe. Enfim, tudo nao passa pelo movi-

42 Michel Foucault - Ditos e Escritos

mento de massa somente. Isso quer dizer que eXistem, namas~as, contradições. Essas contradições, no seio do povo er:.

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ante sete dias; todos os dias chegavam e diziam: "Vam~stá-lo''. depois partiam de novo; o rapaz estava sempre Ia,

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mOVIment~,podem perfeitamente fazer desviar o curso de seudesenvolVImento, na medida em que o inimigo apoia-se nelasVocê tem, então, necessidade de uma instância que normaliz~o curso da justiça popular, que lhe dê uma orientação. E issoas massas não podem fazê-Io diretamente, visto que, precisa_mente, é preciso que seja uma instância que tenha a capacida_

de de resolver as contradições internas das massas. No exem-plo da revolução chinesa, a instância que permitiu resolver es-sas contradições, e que representou um papel depois da toma-

da d~ p~der de Estado, no momento da Revolução cultural, foio ExercIto Vermelho; ora o Exército Vermelho é distinto dopo~o'.mesmo que esteja ligado a ele, que o povo o ame e que oe~erCIto ~e o povo. Todos os chineses não participaram enao partICIpam, hoje, do Exército Vermelho. O Exército Ver-melh<;> uma delegação de poder do povo, não o povo ele mes-mo. E porque, também, há sempre a possibilidade de uma

c?~t:adição entre o Exército e o povo, e terá, sempre, uma pos-síbtltdads de repressão desse aparelho de Estado sobre asmassas populares, o que abre a possibilidade e a necessidadede toda uma série de revoluções culturais precisamente paraabolir as contradições tornadas antagônicas entre esses apa-relhos de Estado, que são o exército, o partido ou o aparelhoadministrativo e as massas populares.

Então, eu seria contra os tribunais populares, eu os conside-raria inúteis se as massas fossem um todo homogêneo uma vezque se pusessem em movimento, então, claramente, se não

houvesse necessidade, para desenvolver a revolução, de instru-mentos de díscíplína, de centralização, de unificação das mas-sas. Enfim, eu seria contra os tribunais populares, se não pen-sasse que, para fazer a revolução, seria preciso um partido, e,para que a revolução prosseguisse, um aparelho de Estado re-volucionário.

Quanto à objeção que você formulou a partir da análise dasdisposições espaciais do tribunal, respondo da seguinte manei-ra: de uma parte, não somos coagidos por nenhuma forma _ nosentido formal de dispoSição espacial - de nenhum tribunal.

Um dos melhores tribunais da Liberação era aquele de Barlin:centenas de mineiros tinham decídtdo executar um "boche"quer dizer, um colaborador; eles o colocaram na grande praça

eu h' - . b t t~ executavam; nesse momento, a, nao sei o as an e, que00 . dí "At idade vacilante ainda eXistiana esquma, que isse: ca-

~m . - dbem comisso, rapazes, matem-no ou liberem-no, ISSOnao po edurar como está", e eles disseram: "Deacordo, v~os, camara-d vamos executá-lo", e apontaram para ele e atiraram, e o co-

':~rador, antes de morrer, gritou: "HeilHitler!", o que permi-tiu a todos dizerem que o julgamento era justo ... Nesse caso,não havia a disposição espacial que você descreveu. .Queformas deve tomar a justiça sob a ditadura do prolet~Ia-

do é uma questão que não está regulada, mesmo na Chma.Está-se, ainda, na fase de experimentação, e há uma lu~a declasse sobre a questão do judiciário. Isso lhe mostra que nao sevai retomar a mesa, os assessores etc. Mas, aí, fico no aspectosuperficial da questão. Seu exemplo foibem mais longe. Ele ti-nha por objeto a questão da "neutralidade": na justiça popular,

o que advém desse elemento terceiro, necessariamente neutro eque seria detentor de uma verdade diferente daquela das mas-sas populares, constituindo por isso mesmo uma tela?M.Foucault: Resgatei três elementos: 12) um elemento tercei-

ro; 22) a referência a uma ídeía, uma forma, uma regra univer-sal de justiça; 32) uma decisão com poder executório; são ostrês caracteres do tribunal que a mesa manifesta, de maneiraanedótica, em nossa civilização.Victor: Oelemento terceiro, no caso da justiça popular, é um

aparelho de Estado revolucionário - por exemplo, o ExércitoVermelho no começo da Revolução chinesa. E que sentido é umelemento terceiro, detentor de um direito e de uma verdade, eiso que é preciso explicitar.Há as massas, há esse aparelho de Estado revolucionário e

há o inimigo. As massas vão expressar seus agravos e abrir odossíê de todas as exações, de todos os danos causados peloinimigo; o aparelho de Estado revolucionário vai registrar essedossíê, o inimigo vai intervir para dizer: não estou de acordocom isso. Ora, a verdade pode ser estabelecida nos fatos. Se oinimigo vendeu três patriotas e toda a população da comunaestá lá, mobilizada para o julgamento, o fato deve poder ser es-

tabelecido. Se ele não o está, é que há um problema, se não con-seguimos demonstrar que ele cometeu tal ou tal exação, o me-nos que se pode dizer é que a vontade do executor não é um ato

44 Mlchel Foucault - Ditos e Escritos

de justiça popular, mas um regramento de contas opondo umapequena categoria das massas, com ideias egoístas, a esse ini-

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rro? Evidentemente não, pois se trata de um aparelho de Esta-do que, de toda maneira, é saído das massas, que é controlado

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migo, ou a esse pretendido inimigo.Uma vez que essa verdade é estabelecida, o papel do apare-

lho de Estado revolucionário não terminou. Já no estabeleci-mento da verdade nos fatos, ele tem um papel, visto que permi-te a toda a população mobilizada abrir o dossíê dos crimes do

inimigo, mas seu papel não para aí, ele pode ainda trazer qual-quer coisa na discriminação no nível das condenações; seja opatrão de um estabelecimento médio: podemos estabelecer averdade nos fatos, a saber, que ele explorou os trabalhadoresabominavelmente, que é responsável por bastantes acidentesde trabalho; vai-se executá-lo? Suponhamos que quiséssemosreunir, pelas necessidades da revolução, essa burguesia média,que disséssemos que só é preciso executar um punhado de ar-quicriminosos; estabelecendo, para isso, critérios objetivos,não o executaríamos, enquanto os operários cujos companhei-ros foram mortos têm um ódio enorme a seu patrão e gosta-riam, talvez, de executá-lo, Isso pode constituir uma política in-teiramente justa, como, por exemplo, durante a Revolução chi-nesa, a limitação consciente das contradições entre os operá-rios e a burguesia nacional. Não sei se aquilo se passará comoisso aqui, mas vou lhe dar um exemplo fictício: é verossímil quenão liquidaríamos todos os patrões, sobretudo em um paíscomo a França, onde há muitas pequenas e médias empresas,isso significaria muita gente... Tudo isso resulta emdizer que oaparelho de Estado revolucionário traz, em nome dos interes-ses coletivos que premiam aqueles de tal usina ou tal cidade,um critério objetivo para a sentença; volto sempre ao exemploda Revolução chinesa. Em um certo momento, era justo atacartodos os proprietários fundiários, em outros, havia proprietá-rios fundíáríos que eram patriotas, não era necessário tocá-los

e precisava-se educar os camponeses, ir contra as tendênciasnaturais com respeito a esses proprietários fundiários.M.Foucault: Oprocesso que você descreveu parece-me intei-

ramente estranho à forma mesma do tribunal. Qual é o papeldesse aparelho de Estado revolucionário, representado peloexército chinês? Será que o seu papel é, entre as massas que re-

presentam uma certa vontade, ou um certo interesse, e um in-divíduo que representa um outro interesse, ou uma outra von-tade, de escolher entre os dois de um lado de preferência ao ou-

pelas massas e continua a ser, que tem, efetivamente, um papelpositivo a representar, não para fazer a decisão entre as massase seus inimigos, mas para assegurar a educação, a formaçãopolítica, o alargamento do horizonte e da experiência políticadas massas. E aí, o trabalho desse aparelho de Estado será o de

impor uma sentença? Absolutamente, mas de educar as mas-sas e a vontade das massas, de maneira que sejam as massaselas mesmas que venham a dizer: "Com efeito, não podemosmatar este homem", ou: "Comefeito, devemos matá-lo".Você vê bem que não é absolutamente o funcionamento do

tribunal, tal como existe em nossa sociedade atual na França,que é de um tipo totalmente diferente, onde não é uma das par-tes que controla a instância judiciária e onde a instância judi-ciária, de toda maneira, não educa. Para voltar ao exemplo quevocê dá, se as pessoas se precipitaram sobre as mulheres pararaspar-lhes os cabelos é porque subutilizamos, nas massas, oscolaboradores que teriam sido os inimigos naturais e sobre osquais teríamos exercido a justiça popular, subutílízamo-Ios, di-zendo: "Ó, aqueles lá são bastante culpados, vamos levá-losdiante de um tribunal", os colocamos na prisão e diante de umtribunal que, bem entendido, os absolveu. Nesse caso, o tribu-nal representou o papel de álibi em relação aos atos da justiça

popular.Agora, vou ao fundo de minha tese. Você fala das contradi-

ções no seio das massas e diz que é preciso um aparelho deEstado revolucionário para ajudar as massas a resolvê-Ias. Cla-

ro, não sei o que se passou na China; talvez o aparelho judiciá-rio fosse como nos Estados feudais, um aparelho extremamen-te flexível, pouco centralizado etc. Em sociedades como a nos-sa, ao contrário, o aparelho de justiça foi um aparelho de Esta-do extremamente importante, cuja história foi sempre masca-rada. Faz-se a história do direito, da economia, mas a históriada justiça, da prática judiciária, do que foi efetivamente um sis-tema penal, do que foram os sistemas de repressão, disso rara-mente se fala. Ora, creio que a justiça como aparelho de Estadoteveuma importância absolutamente capital na história. O sis-

tema penal tevepor função introduzir um certo número de con-tradições no seio das massas e uma contradição maior do queesta; opor, uns aos outros, os plebeus proletarizados e os ple-

46 Michel Foucault - Ditos e Escritos

beus não proletarizados. Apartir de uma certa época, o sistema

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via da legislação penal, da prisão, mas também dos jornais, da

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penal, que tinha, essencialmente, uma função fiscal na IdadeMédia, entregou-se à luta antissediciosa. Arepressão das revol-tas populares tinha sido até então, sobretudo, uma tarefa mili-tar. Ela foi, em seguida, assegurada, ou antes prevenida, porum sistema complexo de justiça-polÍcia-prisão. É um sistemaque tem, no fundo, um triplo papel; e, segundo as épocas, se-

gundo o estado das lutas e a conjuntura, é tanto um aspecto ououtro que o leva. De uma parte, ele é um fator de "proletaríza,ção": tem por papel coagir o povo a aceitar seu status de prole-tário e as condições de exploração do proletariado. Está perfei-tamente claro desde o fim da Idade Média até o século XVIII;to-das as leis contra os mendigos, os vagabundos e os ociosos, to-dos os órgão~ de polícia destinados a caçá-los os constrangiam- e era bem Ia o seu papel- a aceitar, lá onde estavam, as condi-ções que se lhes davam e que eram extremamente más. Se elesas recusavam, iam embora, se mendigavam ou "não faziam

nada", era o aprisionamento e, frequentemente, o trabalho for-ç~do: De outra parte, esse sistema penal trazia, de maneira prí-

~~eglada, ,? S elementos os mais móveis, os mais agitados, osVIo~ent~s .da plebe; aqueles que eram os mais prontos a pas-sar a açao ímedíata e armada; entre o fazendeiro endividado ecoagido a deixar sua terra, o camponês que fugia do fisco, ooperário banido por roubo, o vagabundo ou o mendigo que re-cusava a limpar as fossas da cidade, aqueles que viviam de pi-lhagem nos campos, os pequenos ladrões e os salteadores deestrada, aqueles que, com grupos armados, provocavam o fisco~u, de maneira geral, os agentes do Estado, e aqueles que, en-

fím, nos dias de motim nas cidades e nos campos, traziam asarmas e o fogo, havia todo um concertamento, toda uma redede comunicações em que os indivíduos permutavam o seu pa-pel. E~a:n pessoas "perigosas", que era preciso colocar à parte(na prisao, no hospital geral, em trabalhos forçados, nas colô-n.ias), para que não pudessem servir de ponta de lança aos mo-vímentos de resistência popular. Esse medo era grande no sé-culo XVIII, e muito grande, ainda, após a Revolução e no mo-n : ento de todas as explosões do século XIX. Terceiro papel doslste~a penal: fazer aparecer, aos olhos do proletariado, a ple-

be nao proletarizada como marginal, perigosa, imoral, ameaça-dor~,para toda a sociedade, a ralé do povo, o refugo, a "ladroa-gem ; trata-se, para a burguesia, de impor ao proletariado, por

.•Uteratura", certas categorias da moral dita "universal", queervirão de barreira ideológica entre ele e a plebe não proletari-:ada; toda a figuração literária, jornalística, médica, sociológi-ca, antropológica do criminal (de que tivemos o exemplo na se-gunda metade do século XIXe no começo do século XX) repre-senta esse papel. Enfim, a separação que o sistema penal opera

emantém entre o proletariado e a plebe não proletarizada, todoojogo das pressões que exerce sobre esta permitem à burguesiaservir-se de alguns desses elementos plebeus contra o proleta-riado; ela apela a eles a título de soldados, de policiais, de trafi-cantes, de homens comandados e os utiliza para a vigilância erepressão do proletariado (não há nada como os fascismospara dar exemplos disso).

À primeira vista, estão lá, ao menos, alguns modos segundoos quais funciona o sistema penal, como sistema antissedicio-so: tantos meios para opor a plebe proletarizada e aquela que

não o é, e introduzir, assim, a contradição agora bem ancorada.Eis por que a revolução não pode passar senão pela eliminaçãoradical do aparelho de justiça, e tudo que se pode chamar deaparelho penal, tudo que se pode chamar de ideologia e permi-tir a essa ideologia insinuar-se sub-repticiamente nas práticaspopulares deve ser banido. Essa é a razão pela qual o tribunal,como forma perfeitamente exemplar dessa justiça, parece-meser uma ocasião para a ideologia do sistema penal reintrodu-zír-se na prática popular. Éa razão pela qual eu penso que nãoé preciso apoiar-se em um modelo como esse.Victor: Você, sub-repticiamente, esqueceu um século, o XX.

Faço-lhe, então, a pergunta: a contradição maior, no seio dasmassas, é entre os prisioneiros e os operários?M. Foucault: Não entre os prisioneiros e os operários; entre

a plebe não proletarizada e os proletários, essa é uma das con-tradições. Uma das contradições importantes, na qual a bur-guesia viu durante muito tempo, e, sobretudo, desde a Revolu-ção Francesa, um de seus meios de proteção; para ela, o perigomaior contra o qual deveria prevenir-se, o que lhe era preciso atodo preço evitar, era a sedição, o povo armado, os operários narua e a rua no assalto ao poder. E ela pensava reconhecer, na

plebe não proletarizada, nos plebeus que recusavam o statusde proletários ou aqueles que eram dele excluídos, a ponta delança do motim popular. Ela deu-se, então, um certo número

48 Míchel Foucault - Ditos e Escritos

de procedimentos, para separar a plebe proletarizada da plebenão proletarizada. E, hoje, esses meios lhe fazem falta - foram-

1972 - Sobre a Justiça Popular. Debate comos Maoístas 49

belecimento de um aparelho de combate contra a subversão:terior (aparelho reforçado a cada episódio, adaptado e aper-

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-lhe ou lhe são arrancados.

Esses três meios eram o exército, a colonização, a prisão.(Certamente, a separação plebe/proletariado e a prevenção an-tissediciosa não eram senão uma de suas funções.) O exército,com seu sistema de substituições, assegurava uma vantagem

notável, sobretudo com a população camponesa, que era exce-dente no campo e que não encontrava trabalho na cidade, e eraesse exército que se punha, quando a ocasião se apresentava,contra os operários. Entre o exército e o proletariado, a burgue-sia procurou manter uma oposição, que representava frequen-temente, ou não representava às vezes, quando os soldados re-cusavam-se a marchar ou atirar. A colonização constituiu umaoutra vantagem, as pessoas que para lá eram enviadas não re-cebiam o status de proletário; elas serviam de quadros, deagentes de administração, de instrumentos de vigilância e de

controle sobre os colonizados. E era sem dúvida para evitarque se desenvolvesse entre esses "pequenos Brancos" e os colo-nizados uma aliança que teria sido tão perigosa quanto a unida-de proletária na Europa, dotada de uma sólida ideologia racis-ta; atenção, vocês vão à casa dos antropófagos. Quanto ao tercei-ro ganho, ele era operado pela prisão e, ao redor dela e daque-les que lá entravam ou dela saíam, a burguesia construiu umabarreira ideológica (concernente ao crime, ao criminal, ao rou-bo, à ladroagem, aos degenerados, à sub-humanidade) que temparte com o racismo.

Mas eis que a colonização não é mais possível sob sua formadireta. Oexército não pode mais representar o mesmo papel deantigamente. Por consequência, reforço da polícia, "sobrecar-ga" do sistema penitenciário que lhe deve o preenchimento detodas essas funções. Oesquadrinhamento policial cotidiano, oscomissariados de polícia, os tribunais (e, singularmente, aque-les de flagrante delito), as prisões, a vigilância pós-penal, toda as~rie de controles que constituem a educação vigiada, a assis-tencia social, os "pátios" deve representar um dos papéis querepresentavam o exército e a colonização, deslocando os índíví-duos e os expatriando.

Nessa história, a Resistência, a guerra da Argélia, Maio de1968 foram episódios decisivos, era a reaparíçâo, nas lutas, daclandestinidade, das armas e da rua; era, por outro lado, o es-

feiçoado, mas certamente nunca depurado); aparelho q~e ~un-

i na "continuamente", há 30 anos. Digamos que as tecmcasc o d Iítíca ítilizadas até 1940 apoiavam-se, sobretu o, na po 1 ca impe-uialista (exército/colônia); aquelas que são utilizadas e que se~proximam mais, depois, do modelo fascista (polícia, vigilância

interior, aprisionamento).Victor: Você não respondeu, no entanto, à minha pergunta,

que era: será que é isso a cont:radição m~~r no=o povo?M.Foucault: Não digo que e a contradíçâo maior.Victor: Você não diz, mas a história que faz é eloquente: a se-

dição vemda fusão da plebe proletarizada e da plebe não prole-tarízada. Vocênos descreveu todos os mecanismos para inscre-veruma linha divisória entre a plebe proletarizada e a plebe nãoproletarizada. Está claro, uma vez que há essa linha divisória,que não há sedição, uma vez que há o restabelecimento da fu-

são, que há a sedição. Você bem disse que não é, para você, ~contradição maior, mas toda a história que faz demonstra que ea contradição maior. Não vou lhe responder sobre o século XX.Vou ficar no século XIX, trazendo um pequeno complementohistórico, um complemento um pouco contraditório, tirado deum texto de Engels sobre o advento da grande indústria. 1

Engels dizia que a primeira forma de revolta do proletariad?moderno contra a grande indústria é a criminalidade, quer di-zer, os operários que matavam os patrões. Ele não procuravaos pressupostos e todas as condições de funcionamento dessacriminalidade, não fazia a história da ídeía penal; falava doponto de vista das massas, e não dos aparelhos de Estado, e di-zia: a criminalidade é uma primeira forma de revolta; depois,muito rapidamente, mostrava que ela era muito embrionária enão muito eficaz: a segunda forma, que já é superior, é a quebradas máquinas. Mas nem isso vai muito longe, pois, uma vezquebradas as máquinas, há outras no lugar delas. Isso tocavaum aspecto da ordem social, porém não atacava as causas. Lá,onde a revolta toma forma consciente, é quando se constitui aassociação, o sindicalismo em seu sentido original. A associa-ção é a forma superior da revolta do proletariado moderno,

1. (N.A.) Engels (F.J, La situation de Ia classe laborieuse enAngleterre, capí-

tulo XI.

50 Michel Foucault - Ditos e Escritos

porque resolve a contradição maior nas massas, que é a oposi-ção das massas entre elas, devido ao sistema social e a seu co-

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Dentre todos os meios operados, houve alguns muito grandes(como a moral da escola primária, esse movimento que fazia

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ração - omodo de produção capitalista. É, diz-nos Engels, sim-plesmente a luta contra a concorrência entre operários, então, aassociação, na medida em que reúne os operários entre eles,que permite tornar a levar a concorrência ao nível da concor-rência entre os patrões. É aqui que se situam as primeiras des-

crições que ele faz das lutas sindicais pelo salário ou pela redu-ção da jornada de trabalho. Esse pequeno complemento histó-rico me leva a dizer que a contradição maior nas massas opõe oegoísmo ao coletivismo, a concorrência à associação, e é quan-do você tem a associação, quer dizer, a vitória do coletivismosobre a concorrência, que tem a massa trabalhadora, então aplebe proletarízada que entra em fusão, e que há ummovimen-to de massa. E nesse momento, somente, que a primeira condi-ção de possibilidade da subversão, da sedição é reunida; a se-gunda é que essa massa apodera-se de todas as questões de re-volta, de todo o sistema social, e não simplesmente da oficinaou da usina, para ocupar o terreno da sedição, e é lá que vocêencontrará, de fato, a junçâo com a plebe não proletarizada, en-contrará a fusão, também, com outras classes sociais, os jovensintelectuais ou a pequena burguesia laboriosa, os pequenos co-merciantes, nas primeiras revoluções do século XIX.

M. Foucault: Não disse, creio, que era a contradição funda-ment~. Quis dizer que a burguesia via na sedição o perigo prin-cipal. E assim que a burguesia vê as coisas; o que não quer di-zer que as coisas se passarão do modo que teme e que ajunçãodo proletariado e de uma plebe marginal iria provocar a revolu-

ção. O que você vem lembrar, a propósito de Engels, eu subs-creverei grande parte. Parece, com efeito, que, no fim do séculoXVIIIe no começo do século XIX, a criminalidade foi percebida,no proletariado, como uma forma de luta social. Quando chega-mos à associação como forma de luta, a criminalidade não tem,exatamente, esse papel; ou, antes, a transgressão das leis, essainversão provisória, individual, da ordem e do poder que cons-titui a criminalidade, não pode ter a mesma significação nem amesma função nas lutas. É preciso observar que a burguesia,obrigada a recuar diante dessas formas de associação do prole-

tariado, fez tudo o que podia para destacar essa força nova deuma fração do povo considerada como violenta, perigosa, des-respeitosa da legalidade, pronta, consequentemente, à sedição.

passar toda uma ética pela alfabetização, a lei sob a letra); hou-ve pequenos, minúsculos e horríveis maquiavelismos (até queos sindicatos não tiveram a personalidade jurídica, o poder ten-tava centralizá-l os com pessoas que, um belo dia, partiam como cofre; era impossível aos sindicatos lamentarem-se; donde,

reação de ódio contra os ladrões, desejo de ser protegido pelalei etc.).Victor: Sou obrigado a trazer um corretivo, para precisar e

dialetizar um pouco esse conceito de plebe não proletarizada. Aruptura principal, maior, que institui o sindicato, e que vai sera causa de suadegenerescência, não está entre a plebe proleta-rízada - no sentido de proletariado instalado, instituído - e oLumpenproletariat, quer dizer, no sentido estrito, o proletaria-do marginalizado, dejetado para fora do proletariado. A prin-cipal ruptura está entre uma minoria operária ea grande mas-

sa operária, quer dizer, a plebe que se proletariza: essa plebe éo operário que vemdo campo, não é o vagabundo, o salteador, odesordeiro.M. Foucault: Creio não ter jamais, no que acabo de dizer,

tentado mostrar que era uma contradição fundamental. Des-crevi um certo número de fatores e de efeitos, tentei mostrarcomo se encadeiam e como o proletariado pôde, até um certoponto, pactuar com a ideologia moral da burguesia.Victor: Você diz: é um fator dentre outros, não é a contradi-

çãomaior. Mas todos os seus exemplos, toda a história dos me-canismos que descreveu tendem a valorizar essa contradição.Para você, o primeiro pacto com o diabo do proletariado é teraceitado os valores "morais" pelos quaís a burguesia instauravaa separação entre a plebe não proletarizada e o proletariado,entre os vagabundos e os trabalhadores honestos. Eu respon-do: não. Oprimeiro pacto com o diabo das associações operá-rias é ter colocado, como condição de adesão, o fato de perten-cer a um ofício; é isso que permitiu aos primeiros sindicatos se-rem corporações que excluíam a massa de operários não espe-cializados.

M. Foucault: A condição que você lembra é, sem dúvida, a

mais fundamental. Mas veja o que ela implica como consequên-cía: se os operários não integrados em um ofício não estão pre-sentes nos sindicatos, a.fortiori são aqueles que não são prole-

52 MichelFoucault - Ditos e Escritos

tários. Então, uma vez ainda, se colocamos o problema: comofuncionou o aparelho judiciário e, de uma maneira geral, o sis-

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eais e dos processos reais. E, com efeito, por falar em campe-

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tema penal?, eu respondo: ele sempre funcionou de modo a in-troduzir contradições no seio do povo. Não quero dizer - seriaaberrante - que o sistema penal introduziu as contradições fun-damentais, mas oponho-me à ideia de que o sistema penal sejauma vaga superestrutura. Ele teveum papel constítutívo nas di-

visões da sociedade atual.Gilles: Pergunto-me se não há duas plebes nessa história.

Será que podemos verdadeiramente definir a plebe como aque-les que se recusam a ser operários, coma consequência, notada-mente, de que a plebe teria, antes, o monopólio da violência e osoperários, no sentido próprio, uma tendência à não violência?Será que isso não é o resultado de uma visão do mundo burguês,no que ele classifica os operários como um corpo organizado noEstado, da mesma forma os camponeses etc., quanto ao restoseria a plebe: o resto sedicioso emummundo pacificado, organi-

zado, que seria omundo burguês, cujajustíça tem por missão fa-zer respeitar as fronteiras? Mas a plebe poderia ser perfeitamen-te prisioneira dessa visão burguesa das coisas, quer dizer, cons-tituir-se como o outro mundo. Não estou certo de que, sendo pri-sioneira dessa visão, seu outro mundo não seja a reduplicaçãodo mundo burguês. Com certeza, não completamente, porquehá tradições, mas em parte. Ademais, há, ainda, um outro fenô-meno: esse mundo burguês, estável com separações, onde reinaa.j~stiça que conhecemos, não existe. Será que, por trás da opo-siçao do proletariado e de uma plebe tendo o monopólio da vio-

lência, não há o encontro entre o proletariado e o campesinato,não o campesinato "sábio", mas em revolta latente? Será que oque ameaça a burguesia não é, antes, o encontro dos operárioscom os camponeses?

M. Foucault: Estou inteiramente de acordo contigo, por di-zer que é preciso distinguir a plebe tal como a vê a burguesia e aplebe que existe realmente. Mas o que tentamos ver é como fun-ciona a justiça. Ajustiça penal não foi produzida nem pela ple-be, nem pelo campesinato, nem pelo proletariado, mas bem oumal pela burguesia, como um instrumento tático importante nojogo de divisões que queria introduzir. Que esse instrumentotático não tenha levado emconta as verdadeiras possibilidadesda revolução é um fato e um fato feliz. Isso é, aliás, natural, vis-to que, como burguesia, não podia ter consciência das relações

~tnato, podemos dizer que as relações operários-camponesesão foram absolutamente o objetivo do sistema penal ocidental

: 0 século XIX; tem-se a impressão de que a burguesia, no sécu-loXIX, teve relativa confiança nos camponeses.ailles: Se é isso, é possível que a solução real do problema

proletariado/plebe passe pela capacidade de resolver a questãoda unidade popular, quer dizer, a fusão dos métodos de luta do

proletariado e dos mét~dos da ~erra camponesa. _ _Victor: Com isso, voce ainda nao resolveu a questao da fusao.

Há, também, o problema dos métodos próprios daqueles quecirculam. Você não regula a questão senão com um exército.Gilles, Isso significa que a solução da oposição proletaria-

do/plebe não proletarizada ~plica o ataque ao Estado, a usur-pação do poder do Estado. E, também, por isso que temos ne-cessidade de tribunais populares.M.Foucault: Se o que se disse é verdadeirO, a luta contra o

aparelho judiciário é uma luta importante - não digo uma lutafundamental, mas tão importante quanto ajustiça feita na sepa-ração que a burguesia introduziu e manteve entre proletariadoeplebe. Esse aparelho judiciário teve efeitos ideológicos especí-ficos sobre cada uma das classes dominadas, e há, em particu-lar, uma ideologia do proletariado que se tornou permeável aum certo número de ideias burguesas concernentes ao justo eao injusto, ao roubo, à propriedade, ao crime, ao criminal. Issonão quer dizer que a plebe não proletarizada ficou pura e dura.Aocontrário, a essa plebe, durante um século emeio, essa bur-

guesia propôs as seguintes coisas: ou vai para a prisão, ou vaipara o exército; ou vai para a prisão, ou vai para as colônias; ouvai para a prisão, ou entra na polícia. Então, essa plebe nãoproletarizada foi racista, quando foi colonizadora; foi naciona-lista, chauvinista,2 quando foi armada; foi fascista, quando foipolicial. Esses efeitos ideológicos sobre a plebe foram certos eprofundos. Os efeitos sobre o proletariado são, também, cer-tos. Esse sistema, emum sentido, é muito sutil e se sustenta re-lativamente bem, mesmo se as relações fundamentais e o pro-cesso real não são vistos pela burguesia.

2. (N.R.T.)Chauvine. em francês. do soldado Chauvín, modelo do nacionalismoestreito.

54 MlchelFoucault - Ditos e Escritos

Victor: Da discussão estritamente histórica, retém-se que aluta contra o a~arelho penal forma uma unidade relativa e que

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ocê tem uma demolição do sistema de valores burgueses (os;adrões e as pessoas honestas), mas uma demolíçào de um tipo

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tudo o que voce descreveu como implantação de contradiçõeno Sei? ~o povo não representa uma contradição maior, ma:uma sene de contradições que tiveram grande importância dponto de vista Adaburguesia, na luta contra a revolução. M~~o~ o que voce acaba de dizer, estamos agora no coração da

justiça popular, que ultrapassa grande mente a luta contra oaparelho judiciário: caçar a cabeça de um pequeno chefe nãotem nad~ a ver com a luta contra ojuiz. Damesma forma para ocampones que executa um proprietário fundiário. Éisso ajusti-ç~,P?pular e excede grandemente a luta contra o aparelho judí-CIa:I.O.Se tomarmos o exemplo do ano passado, veremos que apratica da justiça popular nasceu antes das grandes lutas con-tra .0aparelho judiciário, que é ela que as preparou: são os pri-merros sequestros, as caçadas das cabeças de pequenos chefesque prepararam os espíritos para a grande luta contra a ínjustí-ç~ e co~tra o aparelho judiciário, Guíot," as prisões etc. Nopós-Maío de 1968, foibem isso que se passou., Você.diz, gr?sso modo: há uma ideologia no proletariado quee uma ídeología burguesa e retoma, à sua conta, o sistema de:~ores burgueses, a oposição entre moral e imoral, ojusto e o~jU~to, o ~onesto e o desonesto etc. Então, haveria degeneres-c~ncIa ?a Ideo!ogia no seio ~a plebe proletária, e degenerescên-cia da ídeología da plebe nao proletária por todos os mecanis-mos de integração a diversos instrumentos de repressão anti-popular. Ora, muito precisamente, a formação da ideia unifica-d?ra, do estandarte da justiça popular, é a luta contra a aliena-

çao ~as ideias no proletariado e em outros lugares, e tambémnos f~lhosdo proletariado "desviados". Procuremos a fórmulap~a ilustrar essa luta contra as alienações, essa fusão das ideiasVl~das de todas as partes do povo - fusão das ideias que per-~Ill~ereunificar as parte do povo separadas, porque não é comIde~asque fazemos avançar a história, mas com uma força ma-tenal, aquela do povo que se reunifica na rua. Podemos tomarco~o ~xemplo, a palavra de ordem que foi lançada pelo PC no~?nmerros anos ~a Ocupação, para justificar a pilhagem das lo-jas, rua de BUCI,notadamente: "Vendedoras, temos razão deroubar os ladrões." Aí, é perfeito. Você vê como opera a fusão:

3. Aluno de um liceu que foi preso quando de uma manifestação.

particular, porque, no caso, semp:e há la_drões.:: u~a ~o:a ?i-visão. Toda a plebe reunifica-se: sao os nao ladroes; e o ínímtgode classe que é o ladrão. Eis por que não hesito em dizer, por

exemplo: "Rives-Henry4na prisão."Se vemos as coisas no fundo, o processo revolucionário é,

sempre, a fusão da sedição das classes constituídas com aquela

das classes decompostas. Mas essa fusão faz-se em uma dire-ção muito precisa. Os "vagabundos", que eram milhões e mi-lhões na China semicolonial e semifeudal, foram a base da mas-sa do primeiro Exército Vermelho. Os problemas ideológicosque tinha esse exército decorriam, precisamente, da ideologiamercenária desses "vagabundos". EMao, da sua base vermelhaonde estava cercado, enviava apelos ao Comitê Central do Parti-do, que dizia quase isto: enviem, somente, quadros vindos deuma usina, para contrabalançar um pouco a ideologia de todosos meus "pés descalços". Adisciplina da guerra contra os inimi-

gos não é suficiente. Épreciso contrabalançar a ideologia mer-cenária com a ideologia que vem da usina.OExército Vermelho sob a direção do Partido, quer dizer, a

guerra camponesa sob a direção do proletariado, é o cadinhoque permitiu a fusão entre as classes camponesas em decom-posição e a classe proletária. Então, para que você tenha a sub-versão moderna, quer dizer, uma revolta que seja a primeiraetapa de um processo de revolução contínua, é preciso que te-nha a fusão dos elementos de sedição que vêm da plebe nãoproletarizada e da plebe proletarizada, sob direção do proleta-riado de usina, de sua ideologia. Você tem uma intensa luta de

classe entre as ideias que vêm da plebe não proletarizada e asque vêm do proletariado: as últimas devem tomar a direção. Osaqueador que se tornou membro do Exército Vermelho não pi-lha mais. No começo, era executado em praça pública, se rou-basse a menor agulha pertencente a um camponês. Em outrostermos, a fusão não se desenvolve a não ser pelo estabelecimen-to de uma norma, de uma ditadura. Volto a meu primeiroexemplo: os atos de justiça popular, vindos de todas as cama-das populares que sofreram danos materiais ou espirituais da

4. Rives-Henry estava Implicado em um negócio político-financeiro de renova-

ção de bairros populares de Paris, renovação sortida de expulsões.

56 Míchel Foucault - Ditos e Escritos

parte dos inimigos de classe, somente se tornam um amplo mo-vimento, favorecendo a revolução nos espíritos e na prática, se

1972 _ Sobre a Justiça popular. Debate com os Maoístas 57

~ 'a ue deveria, emtodo caso, reconhecer,pode por conse~~~~~~ 'e;tá a justiça. O tribunal implica, tam-na caUsa, de. q te ortas comuns às partes present:s (categ~-

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são normalizados; e é, então, um aparelho de Estado que se for-ma, aparelho saído das massas populares, mas que, de certamaneira, delas se destaca (isso não quer dizer que delas se cor-ta). E esse aparelho tem, de certo modo, um papel de árbitro,não entre as massas e o inimigo de classe, mas entre as ideias

opostas nas massas, em vista da solução das contradições noseio das massas, para que o combate geral contra o inimigo declasse seja o mais eficaz, o mais centrado possível.Então, chegamos sempre, à época das revoluções proletárias,

ao que um aparelho de Estado do tipo revolucionário se estabe-lece, entre as massas e o inimigo de classe, com a possibilidade,evidentemente, de que esse aparelho se torne repressivo em re-lação às massas. Também, você não teria jamais tribunais po-pulares sem controle popular, e então possibilidade, para asmassas, de recusá-los.M. Foucault: Gostaria de lhe responder sobre dois pontos.

Vocêdiz: é sob o controle do proletariado que a plebe não pro-letarizada entrará no combate revolucionário. Estou absoluta-mente de acordo. Mas, quando diz: é sob o controle da ideolo-gia do proletariado, pergunto-lhe o que você entende por ideo-logia do proletariado?Victor: Entendo isto: o pensamento de MaoTsé- Tung.M. Foucault: Bom. Mas você concordará comigo que o que

pensam os proletários franceses, emsua massa, não é o pensa-mento de MaoTsé-Tung e não é, forçosamente, uma ideologiarevolucionária para normalizar essa unidade nova pelo proleta-

riado e pela plebe marginalizada. De acordo, mas concordarácomigo, também, que as formas do aparelho de Estado que oaparelho burguês nos legou não podem, em nenhum caso, ser-vir de modelo para as novas formas de organização. O tribunal,trazendo consigo a ideologia dajustiça burguesa e as formas derelação entre juiz e julgado, juiz e parte, juiz e pleiteante, quesão aplicadas pela justiça burguesa, parece-me ter representa-do um papel muito importante na dominação da classe burgue-sa. Quem diz tribunal diz que a luta entre as forças presentesestá, bem oumal, suspensa; que, emtodo caso, a decisão toma-da não será o resultado desse combate, mas da intervenção de

um poder que lhes será, a umas e outras, estranho e superior;que esse poder está emposição de neutralidade entre elas e que

bém, que haja ca g roubo a escroqueria: categonas morais. naís como o' . b-nas pe to e o desonesto) e que as partes aceitem se sucomo o hones , t do isso que a burguesia quer fazer <:rerameterem. Ora, e .u d 'ustiça Todas essas ídeías sao ar-

, ít da justíça e sua J . E'PropOSIo ' . . em seu exercício do poder.

a burgueSIa se serviu

mas de que . d ídeía de um tribunal popular. 50-. que me IDcomo a ai,. dpor ISSO. ís devessem aí representar os papels ebretudo se os mtel:c.tual oís é, recisamente por intermédio do,sprocurador ou deJUlZ,P . lvu1gou e impôs os temas ideolo-intelectuais que a burgueSia 1

gicos de ~ue falo.. tiça deve ser o alvo da luta ideológica doTamb.em essa JUs não roletarizada; também as formas

proletariado e da plebe b? to da maior desconfiança para odessa justiça devem ser o o ~e1 íonár 1'0 Há duas formas às

lh de Estado revo UCl .nov~ apare o lh revolucionário não deverá obedecer em ne-quais esse apare o. arelho judícíárío: tanto como

nhum caso: a burocraCia e o ap . alo trfbunal é. - deve haver tríbun ,o 1não deve haver b,:ro~racI5a,nao ~burocratiza a justiça popular,a burocracia da Justiça. e voce

dá-lhe a forma de tribunal. alo ?Victor: Como você a norm ízar '0 sem dúví-

V lh sponder com um graceJ 'M.Foucault: ou e re letárias ou plebeias - sofre-

da: é para inventar. Asmassas - pro , ul para que seram bastante com essa justiçla

h,d"uranmate~~m~s~om um novo

. ainda sua ve a 10r ,lhes lfipusesse, ' d ~ ago da Idade Média contraconteúdo. Elas lutaram des e Ram1 ção Francesa era uma re-

essa justiça. Afinal de co~tas: a e~OaUqueez desaparecer foi odt .,. Aprlfierra COIS l'

volta antíju íciana. t bém era profundamente an-aparelho judiciáriO. AComuna am

tijudiciária. _ maneira de regular o problema deAs massas acharão uma fi individual ou coletiva-

seus inimigos, daquele~tq~~sad~zre::;~ta que irão do castigo àmente, so!rer danos, me o 1 forma do tribunal que - em nossareeducaçao, sem passar pe a Chí não sei _ é para se evitar.sociedade, em todo caso; na -ontr tribunal popular como

Épor essa r~ã? .queeu ~r:~~ r:t~niar todas as formas deforma solene, smtetica, destin . . estir uma forma que

. dí ." Isso me parecia remvluta antíju lClarla. . íd 1 dia imposta pela burguesia,drena, com ela, demais da 1 eo ogi

58 MíchelFoucault - Ditos e Escritos

com as divisõe~ que acarreta entre proletariado e plebe nãoproletarizada. E um instrumento perigoso atualmente, porque

1972 _ Sobre a Justiça popular. Debate comos Maoístas 59

povo no sentido marxista do ter.mo, você seria contra, porque

isSOremeteria a um modelo antigo?M. Foucault: Os estados gerais foram muito frequente~ente,

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vai funcionar como modelo, e perigoso mais tarde, em um apa-relho de Estado revolucionário, porque lá vão-se introduzir for-mas de justiça com o risco de restabelecer as divisões.Victor: Vou lhe responder de maneira provocadora: é veros-

símil que o socialismo inventará outra coisa que não a cadeia.

Então, quando dizemos: "Dreyfus" nos ferros?", inventamos,porque Dreyfus não está nos ferros, mas é uma invenção forte-mente marcada pelo passado (ferros). A lição é a velha ideia deMarx: o novo nasce a partir do antigo.Você diz: as massas inventarão. Mas temos de resolver uma

questão prática, agora. Estou de acordo com que todas asfor-mas da norma da justiça popular sejam renovadas, que nãohaja mais nem mesa, nem toga. Fica como uma instância denormalização. É o que chamo de tribunal popular.M. Foucault: Se você define o tribunal popular como instân-

cia de normalização - gostaria de melhor dizer: instância deelucidação política - a partir do qual as ações de justiça popularpodem integrar-se ao conjunto da linha política do proletaria-do, estou inteiramente de acordo. Mas experimento a dificulda-de de chamar uma tal instância de "tribunal".

Penso como você pensa que o ato de justiça pelo qual respon-d~mos ao inimigo de classe não pode ser confiado a uma espé-CIede espontaneidade instantânea, irrefletida, não integrada auma luta em conjunto. Essa necessidade de resposta que exis-te, c,omefeito, nas massas, é preciso achar as formas para ela-

bora-Ias, pela discussão, informação ... Em todo caso, o tribu-nal com sua tripartição entre as duas partes e a instância neu-

n:a, decidindo em função de uma justiça que existe em si e paraSI,parece-me um modelo particularmente nefasto para a eluci-dação, a elaboração política da justiça popular.Victor: Se amanhã convocássemos estados gerais em que es-

tariam representados todos os grupos de cidadãos que lutam:comitês de luta, comitês antirracistas, comitês de controle dasprisões etc., em suma, o povo em sua representação atual, o

5. Píerre Dreyfus, na época presidente-diretor geral da Administração Renault.6. (N.R.T.)A Ia chaine. em francês: os prisioneiros iam para as galés amarra-

dos por correntes de ferro. e submetidos aos Insultos da multidão.

ao menos, um instrumento, não, certamente, da revoluçao pro-

letária, mas da revolução burguesa, e, na esteira dessa re~ol~-~o burguesa, sabemos bem que houve processos revoluclOna-ça A 7 ' 1789ríos. Após os estados de 1357, voce teve o mottm: apos ,

teve 1793. Consequentemente, poderia ser um bom modelo.Em compensação, parece-me que a justiça burguesa semprefuncionou para multiplicar as oposições entre proletariado eplebe não proletarizada. Épor isso que é um mau instrumento,

não porque é velho. , .'Na forma mesma de tribunal, há, apesar de tudo, IStO:diz-se

às duas partes: sua causa não éjusta ou injusta para entrar em

jogo. Isso só acontecerá no dia em qu~ lhe teria dit<;>,por~ueconsultei as leis ou os registros da eqüidade eterna. E a essen-cía mesmo do tribunal, e, do ponto de vista da justiça popular,

é completamente contraditório.Gilles: O tribunal diz duas coisas: "Há problema." E depois:"Sobre esse problema, enquanto terceiro, eu decido etc." Opro-blema é o da captação do poder de fazer justiça pela antiunida-

de popular; donde a necessidade de representar essa unidade

popular que faz a justiça.M.Foucault: Você quer dizer que a unidade popular deve re-

presentar emanifestar que ela se apoderou - provisória ou defi-

nitivamente - do poder de julgar?Gilles: Quero dizer que a questão do tribunal de Lens" não se

regrava exclusivamente entre os mineiros e as minas de carvão.

Isso interessava ao conjunto das classes populares.

7. (N.R.T.) Lajacquerie. em francês: revoltas camponesas.8. No dia 12de dezembro de 1970. Instalou-se em Lens (Pas-de-Calais) um tri-

bunal popular. organiZado pela Assistência Vermelha. presidida por Eugénie

Camphin e cujo procurador era J.-P. Sartre.Após a catástrofe de Fouquieres-Ies-Lens (14 mortos). militantes maoístas lan-

çaram coquetéis Molotov contra a sede local das minas de carvão. Prisões acon-teceram. O Tribunal popular de Lens, que sedíara antes o processo judlciár~O.concluiu pela culpabilidade das minas de carvão e de seus mentores, na catás-

trofe de Fouquieres. A corte de segurança de Estado absolveu esses militantesmaoístas salvo um dentre eles. julgado por contumácia.Aacusação de J.-P. Sartre no tribunal popular de Lens está reproduzlda em Si-

tuations VIII.Gallirnard. 1972. p. 319 e segs.

60 Michel Foucault - Ditos e Escritos

M.Foucault: Anecessidade de afirmar a unidade não precsa da forma do tribunal. Diria mesmo - forçando um pouco

, reconstitu

1972 _ Sobre a Justiça popular. Debate com os Maoístas 61

M. Foucault: Suponhamos ,que, em uma usina qualque~,rn conflito entre um operario e um chefe e que esse opera-

~au S' ,roponha a seus camaradas uma ação de resposta. o sera

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trabalho. Há aq~eles que julgam - ou que parecem julgar~o~ toda seremdade, sem estar implicados. Isso reforçaId~Ia ~e que, para que uma justiça seja justa, é preciso quseja feita por qualquer um que esteja fora do contexto, por

i~telectual, u.mespecialista da idealidade. Quando, ainda poCIma, esse trtbunal popular é presidido ou organizado por tnt~lectuais que escutam o que dizem, de uma parte, os operá~nos, e, de outra, o patronato, e dizem: "Umé inocente, o ou-tro, culpado", você tem todo um idealismo que é drenado atra-vés de tudo isso. Quando queremos fazer um modelo geralpara mostrar o que é ajustiça popular, temo que não escolhe-mos o pior modelo.Victor: Gostaria que fizéssemos um balanço da discussão.

Primeira experiência: é ato de justiça popular uma ação feita

pelas massas - uma parte homogênea do povo - contra seu ini-migo direto, tido como tal...M. Foucault: ...em resposta a um prejuízo preciso.Victor: Oregistro atual dos atos de justiça popular são todos

os atos de subversão que conduzem, no momento atual, as dife-rentes camadas populares.Segunda experiência: a passagem da justiça popular para

uma forma superior supõe o estabelecimento de uma normaque visa a re~olver as contradições no seio do povo, distinguin-do-se o que e autenticamente justo do que é acerto de contas,manipulável pelo inimigo para manchar a justiça popular, in-troduzir uma fratura no seio das massas, e então contrariar omovimento revolucionário. Estamos de acordo?M.Foucault: Não inteiramente quanto ao termo norma. Pre-

fe.ririadizer que um ato de justiça popular só pode chegar àple-mtude de sua significação se é politicamente elucidado, contro-lado pelas próprias massas.Victor: As ações de justiça popular permitem ao povo come-

çar a apoderar-se do poder, quando se inscrevem em,um con-junto coerente, quer dizer, quando são dirigidas politicamente,sob condição, para essa direção, de que não seja exterior ao

movimento de ,massa, que as massas populares se unifiquemao redor dela. E o que chamo de estabelecimento de normas, deaparelhos de Estado novos.

~~adeiramente um ato dejustiça popular se seu a;~o,seus re-,ultados possíveiS estiverem integrados na luta política do con-

unto dos operários dessa usina... _J vtctor. Sim, mas, primeiramente, é preciso que essa açaojajusta. Isso supõe que todos os operários estejam de acordo

~ara dizerem que o chefe é um or~inário. ,. . _M.Foucault: Isso supõe discussao dos operários e decísão to-

mada em comum antes de passar à ação. Nãovejo lá o embriãode um aparelho de Estado, e, entretanto, transformaram umanecessidade singular de resposta em ato de justiça popular.Victor: É uma questão de estágio. Há, primeiramente, a re-

volta, em seguida a subversão, enfim a revolução. No primeiro

estágio, o que você diz é justo.M. Foucault: Pareceu-me que, para você, só a existência de

umaparelho de Estado poderia transformar um desejo de res-

posta em ato de justiça popular.Victor: Nosegundo estágio. Noprimeiro estágio da revolução

ideológica, sou pela pilhagem, pelos "excessos". E preciso tor-cer o bastão em outro sentido, e não se pode destruir o mundo

sem quebrar ovos...M.Foucault: Épreciso, sobretudo, quebrar o bastão ...Victor: Isso vem depois. No começo, você diz: "Dreyfus nos

ferros", depois quebra os ferros. Noprimeiro estágio, vocêpodeter um ato de resposta contra um chefe que seja um ato de justi-çapopular, mesmo se toda a oficina não está de acordo, porque

há espiões, até um punhado de operários traumatizados pelaideia de "é, apesar de tudo, um chefe". Mas se há excessos, se oenviamos para o hospital por três meses, quando só mereciadois, é um ato de justiça popular. Mas, quando todas essasações tomam a forma de um movimento de justiça popular emmarcha - o que, para mim, só tem sentido pela constituição deum exército popular -, você tem o estabelecimento de uma nor-ma, de um aparelho de Estado revolucionário.M. Foucault: Eu o compreendo no estágio da luta armada,

mas não estou certo de que seja absolutamente necessário,

para que o povo faça justiça, que exista um aparelho de Estadojudiciário. Operigo é que um aparelho de Estado se encarregue

dos atos da justiça popular.

62 Michel Foucault - Ditos e Escritos

Victor: Somente nos colocamos questões que temos de resol-ver agora. Não falamos de tribunais populares na França du-

1972 - Sobre a Justiça Popular. Debate com os Maoístas 63

to de justiça popular, é a justiça burguesa caçada. Segun-tJllla d d . tid podemos conduzir guerrilhas contra o po er e JUs ça e o

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rante a luta armada, mas da etapa na qual estamos, a da revolu-ção ideológica. Uma de suas características é que multiplica.mediante as revoltas, os atos de subversão e de justiça, de con,trapoderes reais. E são os contrapoderes em sentido estrito,quer dizer que isso põe o direito às avessas, com essa significa-ção profundamente subversiva de que somos nós o verdadeiropoder, de que somos nós que remetemos as coisas ao direito ede que é omundo, como está constituído, é que está às avessas.Digo que uma das operações de contrapoder, entre todas as

outras, é a de formar, contra os tribunais burgueses, tribunaispopulares. Em que contexto isso se justifica? Não para umaoperação de justiça no interior de uma oficina, onde você tem aoposição da massa e do inimigo de classe direto; só sob a condi-ção de que as massas sejam mobilizadas para lutar contra esseinimigo é que justiça pode exercer-se diretamente. Você tem o

julgamento do chefe, mas não um tribunal. Há os dois parcei-ros, e isso se regula entre eles, mas com uma norma ideológica:temos o bom direito e ele é um ordinário. Dizer: é um ordiná-rio, é estabelecer uma norma que, de certa maneira, retoma.mas para subverter, o siste~a de valores burguês: os vagabun-dos e as pessoas honestas. E assim que isso é percebido no ní-vel da massa.

No contexto da cidade, onde você tem as massas heterogê-neas e é preciso que uma ideia - por exemplo, julgar a polícia -as unifique, onde você deve, então, conquistar a verdade, a uni-

dade do povo, pode ser uma excelente operação de contrapoderestabelecer um tribunal popular contra o conluio constante en-tre a polícia e os tribunais que normalizam suas baixas tarefas.M. Foucault: Você diz: é uma vitória exercer um contrapoder

em face de, no lugar de um poder existente. Quandocos operáriosde Renault pegam um contramestre e o colocam sob uma viatu-ra, dizendo-lhe: "Cabe a você apertar os parafusos", perfeito.Eles exercem efetivamente um contrapoder. No caso do tribunal.é preciso que se coloquem duas questões: o que seria, exatamen-te, exercer um contrapoder sobre ajustiça? E qual é o poder real

que se exerce em um tribunal popular como o de Lens?Com respeito à justíça, a luta pode tomar várias formas. Pri-

meiramente, podemos pegá-Ia em seu próprio jogo. Podemos.por exemplo, dar queixa contra a polícia. Não é, evidentemente.

o, dír de se exercer. Por exemplo, escapar da polícia, achín-iJIlpe . . T do í é a gu .calhar um tribunal, pedir cont~s a,um JUIZ. u ? ISSOe a e.rn-lha antijudiciária, mas ainda nao e a.contraJu~tiç~. ~ contrajus-ttça seria poder exercer, com respeito a ~ Ju~tiç~V~~~ue, ha-bitualmente, escapa da justiça, um ato do tipo JudlclarlO, quer

diZer, apossar-se de sua pessoa, expô-lo diante de um tribunal,suscitar um julgamento em que o juiz, referindo-se a certas for-mas de equidade, o condene, realmente, a uma pena que o ou-tro seria obrigado a cumprir. Assim, tomaríamos exatamente o

lugar da justiça.Em um tribunal como o de Lens, não se exerce um poder de

contrajustiça, mas, primeiramente, um poder de informaç~o:tirou-se da classe burguesa, da direção das minas de carvao,

dos engenheiroS informações que negavam às massas: Segu~-do, o poder detendo os meios de transmitir a informaçao, o ~1-

bunal popular permitiu superar seu monopólio da informaçao.Exerceram-se, então, dois poderes importantes, o de saber averdade e o de difundi-Ia. É muito importante, mas não é umpoder de julgar. Aforma ritual do tribunal não representa, real-mente, os poderes que foram exercidos. Ora, quando exerce-mos um poder, é preciso que a maneira com que o exercemos -e que deve ser visível, solene, simbólica - somente remeta aopoder que realmente exercemos, e não a um outro poder que

não é realmente exercido naquele momento.Victor: Seu exemplo de contra justiça é totalmente idealista.

M. Foucault: Precisamente, penso que não pode haver, emsentido estrito, contra justiça. Porque ajustíça, tal como funcio-na como aparelho de Estado, só pode ter por função dividir asmassas entre elas. Então a ídeía de uma contra justiça proletá-ria é contraditória, não pode existir.Victor: Se você toma o tribunal de Lens, o mais importante,

em relação aos fatos, não é o poder tirado de saber e difundir, éque a ídeía "minas de carvão, assassinas" torna-se uma ídeía--força, que toma, nos espíritos, o lugar da ídeía "os tipos que

lançaram coquetéis são culpados". Digo que essepoder depro-

nunciar uma sentença inexecutável é um real poder que setraduz, materialmente, por um transtorno ideológico noespí-

rito das pessoas às quais se dirigia. Não é um poder judiciá-rio, é absurdo imaginar uma contra justiça, porque não pode aí

64 Michel Foucault - Ditos e Escritos1972 _ Sobre a Justiça popular. Debate com os Maoístas 65

ter um contrapoder judiciário. Mas há um contratríbuna]funciona no nível da revolução nos espíritos.

da por uma crítica muito severa; e não vejo, da mí-ser flltr~.dO o emprego dela a não ser no caso em que se

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M. Foucault: Reconheço que o tribunal de Lens represeuma das formas de luta antijudiciária. Ele representou umpel importante. Com efeito, desenrolou-se no momento mesem que um outro processo acontecia, onde a burguesia exer

seu poder de julgar, como pode exercê-lo. Ao mesmo tempodemos retomar palavra por palavra, fato por fato, tudo oera dito nesse tribunal para fazer aparecer a outra face. O trínal de Lens era o inverso do que era feito no tribunal burguele fez aparecer em branco o que era preto lá. Isso me paruma forma perfeitamente ajustada para saber e fazer conheo que realmente se passa nas usinas, de um lado, e nos tríbnaís, de outro. Excelente meio de informação sobre a manecomo se exerce a justiça com respeito à classe operária.Victor: Então, estamos de acordo sobre um terceiro ponto:

uma operação de contrapoder, uma operação de contraproceso, de tribunal popular, no sentido preciso em que funcíocomo o inverso do tribunal burguês, o que osjornais burguechamam de "paródia de justiça".M. Foucault: Não penso que as três teses que você enunci

representam inteiramente a discussão e os pontos sobre os qestivemos de acordo. Pessoalmente, a ideia que eu quis intrduzir na discussão é que o aparelho de Estado burguês de justíça, cuja forma visível, simbólica é o tribunal, tinha por fun ~essencial introduzir e multiplicar as contradições no seio d

massas, principalmente entre o proletariado e a plebe não prletarizada, e que, desse fato, as formas dessa justiça e a ideol~gía que lhes está ligada devem tornar-se o alvo de nossa luatual. E a ideologia moral - pois o que é a nossa moral senãoque não cessou de ser reconduzido e reafirmado pelas sentenças dos tribunais -, essa ideologia moral como as formas djustiça operadas pelo aparelho burguês devem ser passadas nocrivo da crítica a mais severa ...Victor: Mas, a respeito da moral, você faz também contrape-

der: o ladrão não é aquele que acreditamos ...

M.Foucault: Aí, o problema torna-se muito difícil. Édo pon-to de vista da propriedade que há roubo e ladrão. Eu diria, paraconcluir, que a reutilização de uma forma como essa do tribu-nal, com tudo que implica - posição terceira do juiz, referência

parte, v l~ente a um processo burguês, fazer um contra-, parale fa a a arecer como mentira a verdade do ~utro ~'

esse quedç d~r suas decisões. Fora dessa sítuaçao. vejo

o ab~~O. e l O d 'um lado, de guerrilha judiciária, e, de ou-poss1bilida es, e _ m um nem ou-

d

. tiça popular que nao passam, ne

atos e jus ', 1 forma do tribunal. - d, pe a . stamos de acordo com a sistematizaçao aVictor: ~drea10Agquoer:possível que não tenhamos ido ao fundotíca VIVI· ,

um desacordo filosófIco...

1972

1972 - Encontro Verdade-Justiça. 1.500 Grenoblenses Acusam 67

Na usina. Quando um rapaz de 18 anos se apresenta na ad-

missão com o seu CAP: "Escuta, meu velho, em dois anos vocêvai fazer seu serviço militar, então compreende que não pode-

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Encontro Verdade-Justiça. 1.500Grenoblenses Acusam (Intervenção)

"Meetíng Vérité-Justice. 1.500 Grenoblois accusent", Vérité Rhône-Alpes.

Journal du Secours rouge Rhônes-Alpes (suplemento de J'accuse), n2 3, de-

zembro de 1972, p. 6.

Extrato de uma intervenção no Estádio de Gelo de Grenoble, quando de umen-

contro de 1.500 pessoas organizado pelo comitê Vérité-Justice Rhône-Alpes,

em 24 de novembro de 1972. Na noite de 31 de outubro a 12 de novembro de

1970, a 5/7, discoteca de Saínt-Laurent-du-Pont, perto de Grenoble, foi assola-

da por um incêndio. As saídas de emergência foram condenadas por impedi-rem o aproveitamento da entrada: 146jovens morreram asfíxíados ou queima-

dos. O inquérito judiciário apontou uma causa técnica: um gerador de ar poten-te demais para o cenário em poliuretano. Apopulação local pôs em causa o não

controle do estabelecimento de serviços de tutela e uma possível complacência

com respeito a criminosos grenoblenses suspeitos de praticarem extorsão.

Esse drama deu origem a uma legislação sobre a responsabilidade dos eleitoslocais.

Os comitês Verdade-Justiça eram manifestações da esquerda proletária.

Antes de colocar a questão: Quem matou?, creio que é preci-so colocar a questão: Quem foi morto?Quem eram aqueles que morreram na noite da festa de To-

dos os Santos em 1970?Por exemplo, quando a polícia interroga uma testemunha

que não tinha 20 anos e assistiu ao começo do incêndio, o queacham que a polícia lhe perguntou?O que viu, entendeu? Não, perguntam se, por acaso, nessas

danceterias não se vendia droga, o que se passava com as mo-ças, se não era um bordel.Porque, para a polícia, como, infelizmente, para muitos jor-

nalistas, falar da juventude é, primeiramente, falar da droga, dadelínquêncía, dos roubos ...

Fala-se dos bandos de jovens, não se fala dos bandos que ex-torquem os jovens, que os roubam e expõem suas vidas.

mos lhe dar o trabalho que corresponde à profissão que você

aprendeu. Não podemos também lhe formar: ~ocê_quevai ~~-bora logo. Então, vamos admítí-lo como operario nao especíalí-

zado, como empregado de manutenção, aguardando."Bem, coloco a questão, será que é honesto, que os emprega-

. dores são honestos com esse rapaz?Com o pouco dinheiro que lhe damos, vamos nos livrar de

recuperá-Io e o mais rápido possível; há, com certeza, a matra-ca publicitária, que leva ao consumo: compra isso, compra

aquilo... , .Esse jovem, como não tem alojamento, convem que saia ...

Então, ele vai sair, e vem de novo a matraca: é preciso 12 ou 15francos para entrar em uma danceteria; ele pede um suco de la-

ranja que vale 8 ou 10 francos etc.Bem, digo que exploramos e roubamos esses rapazes e

moças.Esse dinheiro que lhes tomamos não está perdido por todo

mundo e não é absolutamente embolsado por qualquer um: há,com certeza, os impostos do cobrador, mas há os impostos dosvagabundos; há bandos de exploradores que, nas danceteriasda região, vocês bem o sabem, retiram qualquer coisa como de

25 a 30% da receita.Bem, digo que há roubo em todo lugar, mas roubo em que os

jovens são as vítimas ... Então que não nos venham falar da de-linquência geral dos jovens, mas antes que nos falem, interro-guem-nos sobre a delínquêncía geral em relação aos jovens ...

Esse gênero de injustiça e de exploração não data de hOj:_,éverdade, mas desde algum tempo, na França, e nessa regiao,talvez, bem mais do que em outros lugares, tomou uma forma

que é, creio, particularmente perigosa.Esse gênero de injustiça e de exploração tem, agora, ligação

direta com os homens que estão no poder hoje.Para o pessoal político do que chamamos uma democracia, é

uma tradição estar em contato com a corrupção e as ilegalidades.Para a polícia, é uma tradição trabalhar perto, muito perto,

bastante perto dos canalhas. .

O que há de novo hoje é que o poder trabalha, agora, direta-mente com os canalhas.

68 MíchelFoucault - Ditos e Escritos

São os canalhas que servem, agora, de motoristas, guarda--costas de corporação, coladores de cartazes, indicadores deagentes eleitorais, são os canalhas que estão encarregados de

1972

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intimidar uma cidade, de vigiar a população, de fazer votarcomo é preciso ...

Pelo país instala-se, discreta ou indiscretamente, ruídose;mente ou não, todo um quadrilhado: o deputado com sua con-decoração, os quadros UDR,1 o SAC,2 as polícias paralelas ou

não: tudo isso está a enquadrar a população e a fazê-Ia andarou a reduzi-Ia ao silêncio.

Quanto à Administração, nisso tudo, o que faz? Ela só temuma coisa a fazer, e o faz bem: fecha os olhos e deixa fazer.Ela deixa construir, abrir e queimar a 5/7, ela deixa Coppola-

nr' e os traficantes de droga, os canalhas, ela deixa fazer portodo lugar e cada vez que alguém quer se aproveitar.

À véspera de Todos os Santos de 1970, tudo estava no lugarpara que tudo ocorresse como aconteceu, e será necessário quea Administração preste contas.

Será preciso que a Administração preste contas de todos osjovens que não eram ladrões nem drogados, mas que foramqueimados.

1. UDR: sigla do partido gaullista, a união dos Republicanos.2. SAC: "Serviço de Ação Cívíca", serviço paralelo gaullista.3. COppolani: suspeito de ligações com o crime.

UmEsguicho de Sangue ou um Incêndio _(lntervençao)

J' 033 10. díe" La Cause du peuple - accuse, n= ,-Unegíclée de sang ou un rncen 1 ,

de dezembro de 1972, p. 6.

t d ",{Snstala-se discreta ou ruidosamente, poucoor o o o pais mstara-se, dim orta, todo um quadrilhado: o deputado com su~ con ec~-p d UDR o SAC as buscas e contencíosos, polí-ção os qua ros , ,

r·aiS ~aralelos ou não. Os canalhas, doravante, encarreg~-sede enquadrar a população, de fazê-Ia andar ou de reduzí-Ia ao

silêncio. f ?Só tem umaQuanto àAdministração, nisso tudo, o que az. .

coisa a fazer, e o faz bem: fecha os olhos e deixa fazer. DeIXaz -zer os escroques, os canalhas, deixa fazer em todo l~gar e ca avez ue al émquer se aproveitar. Ela deixa fazer Ri~es-He~ry,COP~olanFe os traficantes de droga, deixa construir d ~~nr e

queimar não importa que danceteria e nem em que con ínístr.Então, não podemos deixar de dizer que, pm:a,aAdmínís ~-ão o incêndio da 5/71 era um incidente impreVlsI:rele lam~nta-;el 'De fato tudo foifeito na 5/7 de tal sorte que nao pOd~r~a~e-

nã~ queim~ como uma tocha. Era uma ~stopa. -":A~:~l: T~~ão deixou fazer, porque respeita o proveíto. Na vesp _dos os Santos em 1970, tudo estava no lugar para que acontecesse o que aconteceu.

00 Grenoblenses Acusam, neste volume..VerEncontro Verdade-Justiça. 1.5

1972

1972- OsDoisMortos de Pompidou 71

ros roubados: é Fleury-Mérogís, com o isolamento. a inação. omegafone como único interlocutor. Ésuficiente que não receba

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Os Dois Mortos de Pompidou

"Les deux morts de Pompidou" L Nzembro de 1972, p. 56-57. ,e ouvel Observateur, nº 421, 4-10 de de-

Em 21 de setembro de 1971, Buffet e Bo .Central de Clairvaux mataram nfintems,detidos por crime demorte na

, uma e ermeíra e . '1quando de uma tentativa de evasão P al ~m VIgIante tumultuadosão, a guarda dos Sceaux su rim" ara ac m~ a colera dos guardas da prí-cote postal anualmente auto~zad lU,para o conjunto das prisões, o único pa-que incendiou o sistema penitenc?' a?s pr~SiOneirOSpelo Natal. Foi a centelhaforma das prisões manutença-o iario no In~Ternode 1971. Daí em diante, re-

- ' ou supressao da p dquestoes políticas em que dír lt ena e morte tornaram-sefazia largamente conhecer a ~~:d:~~~~e:~: se_defrontav~, enquanto o GIP

1972, os tenores do foro defrontavam-se u açao nas pnsoes. Em junho deterns, que se tornou aquele da d q ando do processo de Buffet eBon-P . pena e morte. Em de b .ompIdou recusou-Ihes o índulto I fi zem ro, o presIdente, e e es oram guiJhotin d ' .te. Nesse mesmo ano de 1972 a os no patío da San-

, uma onda de suícídí dícasos foram relatados. lOSsacu lUas prisões: 37

Há um homem que mora em Auteuil .da para terça-feira últím h que. na noite de segun-

a. gan ou 1200 000 fObrecht foi esperto por duas vezes: 600 000 francos .. M.por uma cabeça saltando e . rancos antigos

. m um cesto.Isso exíste ainda faz parte d .em torno de sua cer~ônia a m~.n~s~s mStitui?ões, convoca.armados e na sombra o ld 1S a ra, a Igreja. os policiaistodos os p~deres' há' presi en~eda República - em suma.mente insuportáv~l. qualquer COIsade fiSicamente. politica-

Mas a guilhotina não é alodtriunfante. a ponta vera: ~ re 1 ade, senão o cume visível eTodo o síste ,e a e preta de uma alta pirâmide.

e por ela regi~~.p~~~:~:~i~:~~· ori~ntada..em_direçãoà mortecremos. a prisão ou bem a t :on enaçao nao decide. comosempre. emsuplemento mor e. m:s '.se prescreve a prisão. érapaz de 18ano' d' com umprernm possível: amorte. Um

se con enado a seis meses por um ou dois car-

visitas ou que sua noiva pare de lhe escrever: único recurso. acabeça contra as paredes ou a camisa torcida para tentar se en-forcar.Aí. já. começam o risco. a eventualidade. pior: a tentação. o

desejo da morte. a fascinação pela morte. À saída. ele terá o re-gistro judiciário. a inatividade. a recidiva. o indefinido recome-ço até o fim. até a morte. Digamos. em todo caso. até a reclusãopor 20 anos ou a perpetuidade - "à vida". como dizemos. "Àvida" ou "àmorte". as duas fórmulas querendo dizer a mesmacoisa. Quando se está certo de que não sairá mais disso. o queresta a fazer? Senão arriscar a morte para salvar sua vida. ar-riscar sua vida mesmo ao preço da morte. Foi o que fizeramBuffet e Bontems.Aprisão não é alternativa para a morte. ela traz a morte con-

sigo. Ummesmo fio vermelho corre ao longo dessa instituição

penal. que é reputada de aplicar a lei. mas que. de fato. a sus-pende: uma vez abertas as portas da prisão. reinam o arbitrá-rio. a ameaça. a chantagem. os golpes. Contra a violência dopessoal penitenciário. os condenados só têm seus corpos parase defenderem e seus corpos a defender. Édevida ou de morte.não de "emenda". de que se trata nas prisões.Meditemos um pouco sobre isto: somos punidos na prisão

quando queremos nos matar; e quando a prisão está cansadade nos punir. mata-nos.Aprisão é uma máquina de morte que produziu. com o caso

de Claírvaux, duas vezes duas mortes. E é preciso sonhar queBuffet teria passado antigamente pela Legião. essa outra má-quina onde se aprende. também. a pavorosa equivalência davida e da morte.Diziam: Pompidou vai matar Buffet - perfil duro - e vai indul-

tar Bontems - perfil doce. Ora. ele fez com que se executassemos dois. por quê?Plataforma eleitoral? Sem dúvida. Mas talvez porque 63%

dos franceses. segundo o IFOP. são pela manutenção da penade morte e do direito de indulto. É. sem dúvida. mais grave; osnúmeros teriam sido invertidos. creio que teria sido a mesma

coisa. Ele quis mostrar que era um homem duro e intransigen-te. que. se fosse preciso. teria recorrido aos meios extremos;que estaria pronto a apoiar-se. em caso de necessidade. em ele-

72 MichelFoucault - Ditos e Escritos

mentos OS mais violentos e reacionários. Sinal de uma orienta_~ão possível, sinal de uma resolução já tomada, antes que fide-Iídade ao movimento mqjoritário da nação. "Vouaté lá, quando

1972- OsDoisMortos de Pompidou 73

tes deles, Bonaldi (FO) e Pastre! (CGT)tinham, sem serem cha-mados à ordem, feito declarações imperativas e sangrentas.

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é preciso."

A esse primeiro cálculo outro foi acrescentado. Eis aqui, re-sumido em três proposições:

1) Se somente Buffet tivesse sido executado, apareceria

como o último dos guilhotinados. Com ele, depois dele, ne-nhum outro. Amáquina, a partir de então, teria sido bloquea-da. E, dessa vez, Pompidou teria sido o último a fazê-Ia funcio-nar. Bontems permite continuar indefinidamente, sua execu-ção generaliza, de novo, a guilhotina.

2) ~o~tems não foi condenado por assassinato, mas porcumplIcIdade. Sua execução dirige-se, de fato, a todos os de-tentos: "Se você agiu com qualquer cúmplice contra a admi-nistração penitenciária, ser-lhe-ão pedidas contas de tudo que

possa acontecer, mesmo que não o tenha feito." Responsabili-

dade coletiva. Arecusa do indulto é, aqui, o espírito da lei an-timotins.

3) Buffet, é inegável, impeliu muito a condenação de Bon-tems. Ele se arrisca, então, de aparecer como co-responsávelpor sua execução - é, ao menos, o cálculo oficial. "Não se ilu-dam a respeito desse Buffet, ele arrastou seu cúmplice àmorte'o m~ndo vilão dos canalhas, com seus ódios e suas traições:manIfesta-se, ainda, nesta dupla execução." Pompidou não estásó ao ter matado Bontems.

Tal foi o cálculo, sem dúvida. Esperamos que seja frustradoe que seja preciso pagá-lo.

Mas falo como se só estivessem em cena os dois condenadose o pre.sident~, como se fosse apenas questão única de justiça. Ab.~~ dízer, ha um terceiro elemento - a administração peníten-ciaria, com a batalha que se trava, hoje, nas prisões".

Sabemos as pressões que foram feitas pelos sindicatos de vi-gilantes para obter essa dupla condenação. Um responsávelpela CGT falou de um plano que fora preparado, caso não con-

cordas~em com su~ von~a~e de vingança. Épreciso saber qualera o clíma na Santé na últíma segunda-feira: Pompidou acaba-va de voltar daAfrica; ora, as execuções acontecem, tradicional-

~ent~, na terç~-feira, dia sem visitas. Sabia-se, então, que seria~ noíte. _Um Jovem vigilante dizia diante das testemunhas:Amanha, comeremos uma cabeça ao vinagrete." Mas, bem an-

Uma vez mais, a administração penitenciária passara porcima da justiça. Ela reclamou antes do processo e antes do in-dulto sua "justiça" e a impôs. Reivindicou ruidosamente e tevereconhecido o seu direito de punir, ela que só teria a obrigaçãode aplicar, serenamente, as penas cujo princípio, a medida e ocontrole pertencem a outros. Estabeleceu-se como um poder, eo chefe de Estado acaba de dar sua aceitação.Ignora ele que esse poder que acaba de consagrar é combati-

do hoje, de todas as partes, pelos detentos que lutam para quesejam respeitados os direitos que ainda têm; pelos magistradosque entendem controlar a aplicação das penas que prescreve-ram; por todos aqueles que não aceitam nem o jogo nem osabusos do sistema repressivo?Entre Buffet e Bontems e uma mãe de famílía" que de~a um

compromisso sem pagamento, não há nada em comum. E ver-

dade. E, entretanto, "nosso" sistema repressivo lhes impôsuma "medida" comum: a prisão. Donde a morte, uma vez mais,veio para homens e para uma criança.Acusamos a prisão de assassinato.

1. Bonaldi e Pastre: responsáveis pelos dois grandes sindicatos deguardas pe-

nitenciários. considerados como os verdadeiros dirigentes da administração

penitenciária. . _2. Yvonne Huríez, mãe de oito filhos. condenada a quatro meses de pnsao fe-

chada por não ter respondido ao tribunal que lhe ordenara pag~ .umcompro-misso de 75 francos. devido à locação de um aparelho de televísáo. Seu filhoThíerry, de 14 anos. que não suportara ouvir seus colegas de escola tratarem

sua mãe de ladra. suicidou-se.

1973

1973 - Prefácio (De Iaprison à Ia révolte) 75

ta que emprega omais meticuloso cálculo) e as aventuras dober lícíal t. tnoso (que devem ser o inverso do romance po ICI : sor e,crillll ídêncí . 1 s

fatalidade cálculos frustrados, provi encia rmracu o a,azar, , '/ /

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Prefácio (De la prison à la révolte)

Préface, in Livrozet (s.), De la prison à la révolte, Paris, Mercure de France,1973, p. 7-14.

Lacenaire, Romands, já há mais de 130 anos ... Os condena-dos não têm do que se queixar: desde o tempo em que tiveram apalavra, tiveram a ocasião de dizerem o que tinham a dizer.Prestamos-lhes uma atenção que os honra, e que nos lisonjeia:não nos enganamos, não foio sistema que os condenou; seus li-vros são a garantia, visto que temos o cuidado de arranjá-losuns ao longo dos outros, mesmo se deixamos seus autores dooutro lado.

A esses colocamos uma única condição: que contem suavida. Épreciso que contem sua vida. Regra rigorosa sob seuprocedimento de tolerância. O que é imposto por essa regra? Éque, primeiramente, a condenação e a prisão apareçam comoaventuras singulares. Elas só poderiam acontecer em seguidade uma fatalidade ou de algo desmedido. Quem aí se acha to-mado as teria chamado, sem dúvida, por uma espécie de fra-queza ou um gênio obscuro: isso só poderia acontecer a ele. Oencontro, a ocasião, o gesto, a fuga, a captura, a prova, a senten-ça, a evasão - uma soma de improbabilidades e de riscos que sóse encontram uma única vez, e só têm um nome. ,

No centro de nossa relação com a justiça, só pomos, e nãoqueremos ver, o acaso. Épreciso muitos acasos para fazer umcriminoso; muitos acasos para cometer um crime; muitos aca-sos para que seja descoberto. É essencial, para nós, acreditar-os que a máquina penal só funciona de vez em quando, des-anchada, a cada vez, por um concurso inacreditável de cir-unstâncias. Para convencer-nos disso, temos dois gêneros dearrativas que se confrontam: o romance policial (máximo demprobabilidades, vestígios indecifráveis, acaso de uma desco-

improvável da borboleta). A ínímagínável aventura que sovoo / d - dase produz uma vez responde a Infalível etecçao que, a ca

descobre o improvável. Assim ficamos sossegados.vez, / d tidoAssim acha-se conjurado tudo que ar pode ter e co iano,

de familiar, de extremamente provável, de central, afmal de con-tas, em nossa relação com a polícia e à justiça. _Assim acha-se estabelecido que o condenado nao pode /t~r

pensamento, visto que só deve ter lembr/anças. Sua memonasomente é admitida, não suas ideias. Atras de seu gest?, n~~amais do que um desejo louco, que tudo desordenou, ou ínevítá-veis circunstâncias, que contra tudo conspiraram: mas sempreemseu lugar, e sem que possa haver nisso um sentid~ comuni-cável ou uma verdade que poderia ser aquela de muitos. A ín-fraçã~ não foi feita para ser pensada; de:e, somente, ser ~ivida,

depois relembrada. Não toleramos o SIstema, mas a símplesmemória do crime. /Assim acha-se estabelecido, ainda, que o condenado ser~

sempre um homem só. Ele pode ter cúmplice/s, ou comp~hel-ros de cela, mas é, somente, para reencontrá-los. Ele fOIap~-nhado com eles em uma conjunção do acaso ou em uma fatalí-dade comum, mas, de toda maneira, cada um deles terá sido sóentre vários. Suas lembranças podem bem cruzar-se ou enc,?-brír-se ficarão sempre as lembranças de um ou de outro. Naoé, então, questão que pudessem ter juntos um único e ~esm?

discurso que seria, coletivamente, o seu, e on~e podenam dí-zer, em comum acordo, não o que viveram antígamente, mas o

que, hoje, pensam. ., /"Vocêcontará, então, suas lembranças para SImesmo, dirá o

que fez, porque foiapanhado, como viveu na pri~ão: de que ma-neira se evadiu. Que seja o mais extremo e o mais singular pos-sível. Que relembre suas impressões e reative seus sentimen-tos. Que diga o que viveu. O coletivo, o conjunto, por que comu-nícá-Io? Não se preocupe: não é o caso de pensar ou de refletir,mas de escrever. É pelo trabalho, a beleza, a originali~ade de

sua escrita que será reconhecido. A escrita, aprenda, e noss?lugar sagrado e nosso elemento universal. Deixe de querer dI:zer, a qualquer preço, o que pensa. Escreva. Escreva co~]P.epreciso, quer dizer como queremos. Você não sabe? Voce dIZ

76 Michel Foucault - Ditos e Escritos

vulgaridades, repete-se, cai em especulações ociosas, quando

lhe pedimos a escritura mesma do que viveu? Não tem impor-tância. Vamos arranjar um gravador e você contará sua Vida.

1973 - Prefácio (De Iaprtsori à Ia révolte) 77

distribuiÇão de papéis, em que a crímínología representa tãob rn quanto o romance policial. Memória, escrita, acaso, certe~za, verdade, tudo isso tem um lugar determinado nessa dtstrí-

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Nós, nós vamos escrevê-Ia. Compartilharemos a receita."

*

E, todavia, não estamos bem situados para saber que a infra-ção, o tribunal, o castigo não são - não somente, em todo caso -casos de aventuras individuais? Temos desde muito tempo -quase desde que lemos as Memórias de Lacenaire e nos habitua-mos a escutar as lembranças dos condenados - uma sociologia euma psicologia da delinquência. Sabemos, então, que existe emnossa sociedade uma quantidade constante de infrações, que arepressão aos crimes é uma das funções centrais de nossa socie-dade; que, mais além de todas as peripécias das aventuras sin-gulares, a delinquência existe como fenômeno de conjunto; que o

criminoso não é somente um jogador ou umjoguete, mas porta-dor de um certo número de caracteres, de sintomas, de traços fí-sicos; que é um caso - um caso normalmente anormal.Mas eis, justamente, o que é significativo: para que o conde-

nado pare de ser o simples sujeito de suas aventuras, é precisoque um olhar sábio recaia sobre ele; é preciso que um discurso,todo armado de conceitos, fale dele; é preciso que uma institui-ção - "sociologia", "psiquiatria", "psicologia", "crímínología",

pouco importa seu nome - o tome por objeto; é preciso não quefale e que o escutemos, mas que responda às perguntas que lhefazemos, para, em seguida, submetermos o que diz a um exa-

me. Os condenados só existem no plural por efeito e graça deum discurso "científico" sustentado por um preposto. Eles for-mam um conjunto, porque os agrupamos sob categorias gerais;devem ter palavras ou ideias em comum, são as palavras' pelasquais os designamos, e as noções que lhes aplicamos. Aanáliseou a reflexão é conduzida do exterior: não lhes perguntamosqual é a deles; exercitamo-Ia sobre eles com todo cuidado pos-sível. Averdade os clareia de cima.

Assim podemos estar certos de que só formarão uma cole-ção; jamais um movimento coletivo, portador de sua própria

reflexão.É preciso não se enganar com isto: a narrativa, vivida pelo

condenado, de suas próprias aventuras faz parte de uma certa

buiÇão. Eis a cena: você, você é o indivídu?, _aaventura, a ~e-mória; falará na primeira pessoa, em condições de uma escnta

cuja lei só nós detemos; a esse preço será c,o~pr~end~do eabsolvido. Nós, nós escutaremos narrativas ftctícías (ínquíetan-

tes-tranquilizadoras) em que sua aventura irregular será segui-da, reconstituída, controlada por um certo cálculo racional quetriunfará sobre suas astúcias e resolverá o enigma por um enge-nhoso achado. E, enquanto estivermos encantados com essasficções, vocês, que são sábios, serão os únicos a poderem trans-formar a aventura singular que conta a memória individual emum fenômeno de conjunto que, em nome da ciência, vocês de-signarão e desarmarão com o termo de delínquêncía.

*

Eu dizia ainda agora que a crtrnínología se formava à épocamesma em que as Memórias de Lacenaire (redigidas na prisão

ejusto antes de sua execução) eram acolhidas com mui~o.favo~pelo público. Ora, é preciso lembrar que essas Memonas soapareceram censuradas. Nada, sem dúvida, permitirá <:I~e~-constituamos o que foi apagado. Todavia, podemos adlvmha-10, visto que o editor pontilhou as passagens expurgadas. Nadafoi excluído do que poderia ser lembranças e aventuras: os rou-bos são contados, os assassinatos e as tentativas de assassina-to, a maneira como foram executados, as chances e os azares, o

número de golpes levados a efeito. Mas todas as frases censura-das tratam, manifestadamente, das relações entre o crime, oEstado, a política, a religião, a economia. Não é a prática, é a teo-ria do crime que "chegou a caviar". O regime de Louis-Philippepodia bem suportar que um assassino relembrasse um assassi-nato; mas não que um criminoso refletisse sobre o crime, sobrea questão política do crime, ou fizesse uma análise que outros(criminosos ou não) pudessem retomar e trabalhar como uma

obra comum.E é precisamente no espaço branco desse discurso explici~-

mente interdito (enão "recalcado") que a crímínología, a SOCIO-logia e a psicologia do crime encontraram lugar: elas, se encar-regaram de fazer existir a criminalidade como fenomeno de

78 Michel Foucault - Ditos e Escritos

conjunto, e de maneira que ela se exprima somente como umobjeto de saber, como um campo de análises, como um tema dereflexões, conduzidas por outros e para outros. Nãose surpreen-der, então, se tais "ciências" decompõem a criminalidade em

1973 - Prefácio (De Ia prisori à Ia révolte) 79

seus delitos, afirma o direito de um "delínquente" de falar dalei; uma primeira pessoa que se recusa a ser despojada dessedireito pela permissão que lhe foi dada para contar as suas lem-

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uma soma de pequenas aventuras individuais, em que seriamproduzidos os azares e as chances como a possessividade damãe, a ausência do pai, a desestruturação familiar ou a imaturi-dade do superego: azares socíopsícológícos.Parceira hábil e dócil, a crímínologta responde como é preci-

so à narrativa de aventuras. Ela canta no mesmo tom, em umaoutra oitava e com outras palavras. E, de um outro lado, faz ecoao romance policial: da mesma forma que este desata por cál-culo certo o improvável enigma, ela traz de volta todas as irre-gularidades da aventura individual para um perfil geral, quetem, precisamente, o nome de "desvio".

Que não me digam que exagero. Umpsicanalista americanohavia escutado criminosos clientes com tanta atenção que tinhapodido compreender como e por que tal crime pudera ser co-

metido. Apolícia o consultava, então: e, diante de um cadáver,ele reconstituía tão bem o retrato psicológico do cliente (destavez o da polícia) que chegava a desmascarar o culpado. Ele sechama: Brussels. A cena de que falo é aquela do trio Lacenaí-re-Gaboriau-Lombroso.

O livro de Serge Livrozet desarranja essa distribuição. Eleretoma o fio de um discurso que os censores de Lacenaire te-riam querido interromper. Empreende ver - do ponto de vistado infrator - o sentido político da infração. Não são as Memó-rias de um detento. Não quero dizer que seja inútil trazer, sobforma de lembranças, os testemunhos que podem ter valor decrítica e de denúncia. Quero dizer que é tempo de escutar outracoisa, que é nova e muito antiga.

Nova, porque são raros, sem dúvida, aqueles que têm a cora-gem de publícá-los tais quaís. Nova, porque não estamos habi-tuados a esses textos em que as lembranças, apenas mostra-das, interrompem-se; elas não estão lá, um instante, senãopara dar direito de dizer, sem "qualificação científica": "Vistoque se trata de questão de crime, de lei, de infração, de delín-q~ência, ei~ o que penso; eis o que pensava ou queria, quandoVIolavaa leí e cometia um delito." Aprimeira pessoa que fala, ao

longo do livro, é menos uma primeira pessoa de memória doque de teoria. Ou, antes, uma primeira pessoa que, recordando

branças. Vocês não saberão de minha vida, diz Serge Livrozet,a não ser o mínimo necessário para estabelecer o seguinte fato:infringindo a lei antigamente, e levando, hoje, uma vida que nãose opõe a ela, jamais renunciei a atacá-Ia com discurso armado.

Além disso, é um direito que meus delitos me deram e do qualtenho mais do que as lembranças que me deixaram.Nisso, o livro de Serge Livrozet apega-se a toda uma antiga

tradição que foi, sistematicamente, afastada e desconhecida.Pois há, desde bastante tempo, um pensamento da infração in-trínseca à própria infração; uma certa reflexão sobre a lei na re-cusa ativa da lei; uma certa análise do poder e do direito que sepraticavam em luta cotidiana contra o direito e o poder. Estra-nhamente, esse pensamento parece ter feito mais medo do quea própria ilegalidade, visto que ela foi mais severamente censu-rada do que os fatos que a acompanhavam, ou de que ela ense-

java a ocasião. Vimo-Ia aparecer de tempos em tempos, ruido-samente, em toda uma corrente anarquista em particular, masmais frequentemente às escondidas. Ela foi transmitida, contu-do, e elaborada.Eis que ela brilha, hoje, nesse livro. E brilha porque, nas pri-

sões, entre aqueles que delas saem ou que nelas entram, ela ad-quiriu, pela revolta e pela luta, a força de se expressar. O livrode Serge Livrozet faz parte desse movimento que, desde algunsanos, age nas prisões. Não quero dizer que ele "representa" oque pensam os detentos em sua totalidade ou mesmo em sua

maioria. Digo que é um elemento dessa luta; que nasceu dela eque representará um papel. Éa expressão individual e forte deuma certa experiência e de um certo pensamento populares dalei e da ilegalidade. Uma filosofia do povo.Serge Livrozet foi um dos incentivadores do movimento de

luta que se desenvolveu na central de Melun desde o inverno de1971-1972. Quando de sua saída, foi um dentre os fundadoresdo Comitê de Ação dos Prisioneiros.

1973

1973- Por uma Crônica da MemóriaOperária 81

luta operária desde o século XIX,mal contada emal conhecida.VemOscorno os operários, a partir de sua própria experiência e /I

sem ainda estarem enquadrados, nem pelos sindicatos nem pe-

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Por uma Crônica da Memória Operária

"Pour une chroníque de Ia mémoire ouvríêre" (conversa com José e umjorna-

lista de Libération), Libératton, nQ ao , 22 de fevereiro de 1973, p. 6.

M. Foucault havia proposto ao Libératton, ainda em preparação, abrir uma

crônica da memória operária.

M. Foucault: Existem na cabeça dos operários experiênciasfundamentais, saídas das grandes lutas: o Front popular, a Re-sistência ... Mas os jornais, os livros, os sindicatos só retêm o

que lhes interessa, quando não "esquecem", simplesmente. Por• causa de todos esses esquecimentos, não podemos tirar provei-to do saber e da experiência da classe operária. Seria interes-sante, em relação aojornal, reagrupar todas essas lembranças,para contá-Ias e, sobretudo, para poder delas servir-se e defi-nir, a partir daí, os instrumentos de lutas possíveis.

José:' Como o senhor, intelectual, amigo dos operários, in-terpreta as últimas lutas em que os sindicatos foram ultrapas-sados?M.Foucault: Isso não é novo. Todas as grandes lutas passa-

ram por uma ultrapassagem dos sindicatos. Por exemplo, em1936, as grandes greves das estradas de ferro no começo do sé-culo. Isso foi feito contra os sindicatos, indo mais longe queeles. Rapidamente, o trabalho do sindicato consistiu em recon-siderar as lutas ~ediante um certo número de objetivos preci-sos e limitados. E uma constante que é preciso conhecer.José: Então, os operários foram recuperados. Foram reuni-

dos e colocados nas fileiras!M. Foucault: É por isso que pensei que seria interessante

contar lembranças bem mais antigas. Há toda uma tradição da

1. José Duarte, operário licenciado por sua militãncia no seio das usinas Re-nault de Billancourt.

los partidos políticos, souberam lutar contra a burguesia.Atualmente, quando se coloca o problema de saber se os sin-

dicatos e os partidos políticos são bons instrumentos da luta daclasse operária, poderia ser interessante referir-se ao exemplo

dessas lutas antigas.Libération: No quadro da crônica "memória operária", não

poderíamos extrair, de um período presente, os grandes temasdas lutas operárias e procurar em que se prendem às lutas do

passado?M. Foucault: Poderíamos conceber uma espécie de folhetim

coletivo. Diríamos: atualmente, há tal tema importante; porexemplo, as cadências operárias. Pediríamos a um certo núme-ro de operários para contarem suas lembranças, suas expe-riências, para enviarem o que pudessem saber. Construiría-

mos, assim, um folhetim com a ajuda dos operários, dos cor-respondentes, com a ajuda de todas as pessoas que enviasseminformações. Publicaríamos, assim, um certo número de docu-mentos, em que uns seriam muito antigos e os outros bem re-centes. O folhetim poderia sair uma ou duas vezes por semana.Ele progrediria até o momento que o filão se esgotasse. Passa-ríamos a um outro tema. O que não impediria que, se um acon-tecimento importante ocorresse, juntássemos a esse folhetimos documentos referentes a esse acontecimento novo, um movi-

mento de agitação camponesa, por exemplo.