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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito REPERCUSSÃO GERAL: uma análise crítica das suas implicações no processo penal democrático Fabricio Santos Almeida Belo Horizonte 2009 PDF processed with CutePDF evaluation edition www.CutePDF.com

REPERCUSSÃO GERAL: uma análise crítica das suas ... · appeal system in the Democratic Criminal process, the general repercussion of the questions constitutional brings serious

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Page 1: REPERCUSSÃO GERAL: uma análise crítica das suas ... · appeal system in the Democratic Criminal process, the general repercussion of the questions constitutional brings serious

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Direito

REPERCUSSÃO GERAL:

uma análise crítica das suas implicações no

processo penal democrático

Fabricio Santos Almeida

Belo Horizonte

2009

PDF processed with CutePDF evaluation edition www.CutePDF.com

Page 2: REPERCUSSÃO GERAL: uma análise crítica das suas ... · appeal system in the Democratic Criminal process, the general repercussion of the questions constitutional brings serious

Fabricio Santos Almeida

REPERCUSSÃO GERAL:

uma análise crítica das suas implicações no

processo penal democrático

Dissertação que se apresenta no Curso de Pós-graduação stricto sensu em Direito Processual da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais para obtenção do título de Mestre. Área de concentração: Direito Processual - O Processo na Construção do Estado Democrático de Direito. Orientadora: Prof. Drª Flaviane de Magalhães Barros.

Belo Horizonte

2009

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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Almeida, Fabrício Santos A447r Repercussão geral: uma análise crítica das suas implicações no processo penal

democrático / Fabrício Santos Almeida. Belo Horizonte, 2009. 168f. Orientadora: Flaviane de Magalhães Barros Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Direito 1. Recurso extraordinário. 2. Processo penal. 3. Poder judiciário – Reforma. I.

Barros, Flaviane de Magalhães. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título.

CDU: 347.957

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Fabricio Santos Almeida

REPERCUSSÃO GERAL: uma análise crítica das suas implicações no

processo penal democrático

Dissertação que se apresenta no Curso de Pós-graduação stricto sensu em Direito Processual da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais para obtenção do título de Mestre. Área de concentração: Direito Processual -O Processo na Construção do Estado Democrático de Direito.

_________________________________________________________

Prof. Drª. Flaviane de Magalhães Barros (Orientadora) – PUC Minas

_________________________________________________________

Prof. Dr. Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira (Co-orientador) – PUC Minas

_________________________________________________________

Prof. Dr. Alexandre Gustavo de Melo Franco Bahia - Faculdade Batista

_________________________________________________________

Prof. Dr. Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias – PUC Minas

_________________________________________________________

Prof. Dr. Dierle José Coelho Nunes – PUC Minas (Suplente)

Belo Horizonte, 2 de junho de 2009

Page 5: REPERCUSSÃO GERAL: uma análise crítica das suas ... · appeal system in the Democratic Criminal process, the general repercussion of the questions constitutional brings serious

Aos meus pais Rosely e José Carlos

Por me construírem ser humano, com amor, carinho e liberdade.

Page 6: REPERCUSSÃO GERAL: uma análise crítica das suas ... · appeal system in the Democratic Criminal process, the general repercussion of the questions constitutional brings serious

Agradecimentos

À Milloca que, mesmo distante, irradia boas energias.

À Gizele, companheira enviada pelos anjos, pela inspiração

na reta final, cobrança, incentivo e compreensão.

À minha orientadora, Prof. Drª. Flaviane de Magalhães

Barros, pela paciência, sinceridade, confiança, amizade e pela

orientação para além da dissertação.

Ao Prof. Dr. Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, pela

interlocução e amizade.

Aos mentores espirituais, pela orientação, presença e

incentivo.

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RESUMO

A “Reforma do Judiciário”, na busca por “celeridade processual”, promoveu

alterações lesivas no modelo constitucional de processo. Dentre estas alterações

está a previsão da repercussão geral das questões constitucionais como novo

requisito de admissibilidade do recurso extraordinário. Trata-se de mais uma

restrição à interposição de recursos ao argumento de solução, travestida de

paliativo, para a morosidade da função judiciária do poder. O instituto, por sua vez,

se apresenta incompatível com o paradigma do Estado Democrático de Direito,

desconsiderando a co-originalidade entre interesse público e privado, restringindo o

controle difuso de constitucionalidade, atribuindo escopos metajurídicos do

processo, reforçando o papel protagonista do juiz, travestindo-os de argumentos

neoliberais, ressuscitando a argüição de relevância e não permitindo o espaço

argumentativo recursal como possibilidade de revisibilidade das decisões. Mais

especificamente no que tange ao sistema recursal no Processo Penal Democrático,

a repercussão geral das questões constitucionais traz sérias conseqüências,

dilacerando as garantias fundamentais do cidadão ínsitas a esse microssistema,

principalmente com sua regulamentação pela Lei n.° 11.418/06. Com efeito, tal

“inovação”, trazida pela “Reforma do Judiciário”, não se insere na plataforma de

constitucionalidade democrática e, por tal motivo, é incompatível com os princípios

indissociáveis do processo, de bases democráticas, entendido como garantia de

implementação de direitos fundamentais.

Palavras-chave: Repercussão geral; Recurso Extraordinário; Duração razoável do

processo; “Reforma do Judiciário”; Processo Penal

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ABSTRACT

The “Reformation of Judiciary”, in the search for “procedural agility”,

promoted harmful alterations in the constitutional model of process. Amongst these

alterations it is the forecast of the general repercussion of the constitutional

questions as new requirement to admit the extraordinary appeal to the Brazilian

Supreme Court. One is about plus a restriction to the interposition of resources to

the argument of solution, disguised of palliative, for the slowness of the judiciary

function of the power. The institute, in turn, if presents incompatible with the

paradigm of the Democratic Constitucional State, disrespecting the co-originality

between public and private interest, exterminating with the judicial review, standing

out purposes extra juridic of the process, strengthening the paper protagonist of the

judge in the process, disguised itself for neoliberal arguments, making over again

the petition for certiorari and not permitting the appeal argumentative space as

possibility of revision of the decisions. More specifically in what it refers to the

appeal system in the Democratic Criminal process, the general repercussion of the

questions constitutional brings serious consequences, destroying the fundamental

guarantees inherent of the citizen to this micro system, mainly with its regulation for

the Law n.° 11.418/06. With effect, such “innovation”, brought for the “Reformation of

the Judiciary” one, is not inserted in the platform of democratic constitutionality and,

for such reason, is incompatible with the inseparable principles of the process idea,

of democratic bases, understood as a guarantee of implementation of fundamental

rights.

Key words: General repercussion; Extraordinary Appeal to the Brazilian Supreme

Court; Reasonable duration of the process; “The Reformation of the Judiciary one”;

Criminal process

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LISTA DE ABREVIATURAS

art. Artigo

§- Parágrafo

n.° Número

Min. Ministro

Rel. Relator

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LISTA DE SIGLAS

CP- Código Penal

CPC- Código de Processo Civil

CPC/73 – Código de Processo Civil de 1973

CPP- Código de Processo Penal

CPP/41 – Código de Processo Penal de 1941

CR – Constituição da República

EC – Emenda Constitucional

LCP – Lei das Contravenções Penais

LEP – Lei de Execuções Penais

MP – Ministério Público

ONU- Organizações das Nações Unidas

RISTF- Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal

RISTM- Regimento Interno do Superior Tribunal Militar

STF- Supremo Tribunal Federal

STJ- Superior Tribunal de Justiça

TSE- Tribunal Superior Eleitoral

TST- Tribunal Superior do Trabalho

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 10

2 O DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO E O PAPEL DO JUIZ NO CONTEXTO DAS REFORMAS PROCESSUAIS: REFLEXOS NA TEORIA DOS RECURSOS A PARTIR DA EC N° 45/04 .......................................................................................... 15

2.1 Duplo grau de jurisdição .................................................................................. 16

2.2 O papel do juiz no instrumentalismo ............................................................... 25

2.3 “Reforma do Judiciário” e o instituto da repercussão geral das questões constitucionais ........................................................................................................ 34

2.3.1 As bases das reformas processuais no Brasil .................................................. 35

2.3.2 “Reforma do Judiciário”: argumentos das reformas processuais no Brasil e o instituto da repercussão geral ................................................................................... 45

2.3.3 A Lei n.° 11.418/06 e a regulamentação do instituto da repercussão geral das questões constitucionais ........................................................................................... 54

3 ANÁLISE DO PAPEL DO JUIZ E DO INSTITUTO DA REPERCUSSÃO GERAL NO CONTRAPONTO COM OS PRINCÍPIOS DO PROCESSO JURISDICIONAL DEMOCRÁTICO ....................................................................................................... 63

3.1 Concepção procedimental do Estado Democrático de Direito e a co-dependência entre interesse público e privado: reflexos da repercussão geral no controle difuso de constitucionalidade ........................................................... 65

3.2 Para além dos escopos metajurídicos e do ativismo judicial no instituto da repercussão geral em um processo como garantia dos direitos fundamentais: teoria do processo adequada ao Estado Democrático de Direito ...................... 83

3.3 Por detrás das reformas processuais: desvelando o processualismo social a partir de uma celeridade neoliberal .................................................................. 108

3.4 Ambivalência entre argüição de relevância da questão federal e a repercussão geral das questões constitucionais através de uma análise paradigmática ........................................................................................................ 116

4 O DIREITO CONSTITUCIONAL AO RECURSO POR UMA COMPREENSÃO CONSTITUCIONALMENTE ADEQUADA DO PRINCÍPIO DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO .......................................................................................................... 121

5 AS LIMITAÇÕES IMPOSTAS PELO INSTITUTO DA REPERCUSSÃO GERAL AO DIREITO CONSTITUCIONAL AO RECURSO NO PROCESSO PENAL......... 133

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 145

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 157

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1 INTRODUÇÃO

A Emenda Constitucional n.º 45, de 8 de dezembro de 2004, assim chamada

de “Reforma do Judiciário”, trazendo institutos diretamente direcionados ao sistema

recursal brasileiro, dentre eles, a garantia da duração razoável do processo, a

súmula vinculante e a repercussão geral das questões constitucionais.

A morosidade dos órgãos jurisdicionais brasileiros é notória no que tange à

prestação do serviço público jurisdicional, notadamente dos Tribunais Superiores.

Munido do ímpeto de imprimir celeridade aos procedimentos jurisdicionais, o

legislador vem alterando o processo, de forma contrária aos princípios do processo

democrático1. A repercussão geral das questões constitucionais é uma dessas

alterações que, apesar de ter ocorrido em nível constitucional, não se coaduna com

a plataforma de constitucionalidade democrática, mostrando-se incompatível com o

modelo constitucional de Processo (ANDOLINA; VIGNERA, 1990).

Essa morosidade constante que assola todos os órgãos jurisdicionais

brasileiros não é privilégio nacional. Entretanto, não é correto depositar a

responsabilidade pela demora dos procedimentos jurisdicionais no sistema recursal.

A morosidade parece ser um problema estrutural e não processual ou

procedimental2. Na tentativa de solucionar esse problema não pode o legislador

atacar os direitos e garantias fundamentais já consolidados no texto constitucional,

inerentes à própria concepção de Estado Democrático de Direito.

1 No marco do Estado Democrático de Direito, afirmar que alterações no processo alteram o processo

constitucional democrático constitui-se um pleonasmo. Ao substantivo “processo”, no Estado Democrático de Direito brasileiro, é redundante o conteúdo dos adjetivos “constitucional” e “democrático” que o qualificam no texto. Não faz mais sentido a dicotomia direito processual constitucional e direito constitucional processual, pois o processo é (deve ser) o responsável pela construção, implementação e manutenção do próprio Estado Democrático de Direito. Sobre o tema conferir CATTONI DE OLIVEIRA, 2001b e BARACHO, 1984. 2 Brêtas C. Dias, por exemplo, denuncia, neste sentido, o problema da morosidade do serviço público

jurisdicional. Segundo ele, ocorre por culpa (em sentido estrito) dos funcionários públicos responsáveis pela prestação jurisdicional (magistrados) e pela inescrupulosa postura do Estado em não prover os órgãos jurisdicionais de materiais humano, físico e técnico-científico necessários ao exercício de suas funções. Neste sentido, expõe mencionado jurista: “No fundo, todas essas situações de funcionamento anormal ou de funcionamento defeituoso do serviço público jurisdicional decorrem da falta de cumprimento das normas jurídicas processuais, o que acarreta dilações indevidas no processo em que o provimento de mérito almejado pelas partes deverá ser obtido, tal significando atividade estatal omissiva, intempestiva, ineficiente, logo, ativi dade estatal ilícita e potencialmente danosa aos particulares, em franca violação aos princípios constitucionais da legalidade e da eficiência, que regem e estruturam o moderno Estado Democrático de Direito, orientando o exercício da função jurisdicional” (BRÊTAS C. DIAS, 2004, p. 195).

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A análise crítica constitui uma perspectiva metodológica da pesquisa científica

utilizada nas ciências sociais aplicadas, entre as quais se insere a ciência do Direito.

Uma pesquisa científica tem como marco uma questão sem resposta definitiva, uma

indagação proposta que não apresenta solução imediata. Se a resposta ao problema

suscitado pelo pesquisador é encontrada sem a utilização de procedimentos

racionais e críticos, deve ser considerada como simples aprofundamento de estudo

sobre determinado tema e não como uma investigação científica (GUSTIN; DIAS,

2006, p. 6-7). A partir dessa compreensão, no presente trabalho opta-se pela crítica

à adoção do instituto da repercussão geral no Direito brasileiro, de tal forma que a

metodologia de abordagem desse instituto não se constitui simplesmente em um

mero aprofundamento de estudo.

Na concepção da maioria dos autores nacionais e da jurisprudência brasileira,

como veremos, o instituto da repercussão geral apresenta uma receptividade

inquestionável quanto à sua constitucionalidade e legalidade pelo Direito brasileiro.

Para esses, a repercussão geral corresponde a mais um requisito de admissibilidade

necessário para a apreciação do recurso extraordinário, de modo a “filtrar” as causas

que realmente devam ser submetidas à jurisdição do mais alto órgão jurisdicional do

país3.

Entretanto, a análise do instituto jurídico da repercussão geral, em termos de

contraponto com os princípios de um processo como garantia de implementação dos

direitos fundamentais, proporciona uma inquietação quanto à aceitação ou não do

instituto pelo Direito brasileiro, pois choca-se com o próprio paradigma de um Estado

que se pretende Democrático de Direito.

Para tanto, há apropriação de questões discutidas na Filosofia do Direito, na

Teoria do Direito e na Hermenêutica Constitucional, de forma pontual, para nortear e

auxiliar a reflexão proposta na Teoria do Processo. No presente trabalho, fixa-se,

como marco teórico, o entendimento por uma concepção democraticamente

adequada de processo, a partir das reflexões da Teoria do Processo como

procedimento em contraditório e da Teoria Discursiva do Direito. Nesse sentido

entende-se o processo como uma garantia constitucional dos cidadãos para

implementação e efetivação de seus direitos fundamentais, diante de uma Teoria do

3 A Lei n.° 11.672/08 incluiu no CPC o art. 543-C, prevendo a possibilidade do STJ julgar por recurso

especial paradigma uma “idêntica questão de direito”, quando estiver diante da multiplicidade de recursos especiais.

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Processo de bases principiológicas uníssonas, aplicável a qualquer processo, seja

legislativo, administrativo ou jurisdicional.

Não se pretende aqui uma abordagem dogmática do recurso extraordinário ou

dos recursos em geral, muito menos do próprio instituto da repercussão geral das

questões constitucionais.

Assim, investiga-se cientificamente a repercussão geral imbuída nesse

contexto de sua aceitabilidade, uma vez que o duplo grau de jurisdição, os recursos

e o processo carecem de uma (re)leitura no paradigma do Estado Democrático de

Direito, a partir de uma análise no contraponto com o modelo constitucional de

processo. Sem essa (re)leitura seria impossível o desvencilhamento das limitações

impostas à concepção de duplo grau de jurisdição e que, conseqüentemente,

sustentam a própria repercussão geral como requisito de admissibilidade do recurso

extraordinário, tendo em vista o reflexo do tema na Teoria do Processo.

A dissertação tem como problema central o intuito de averiguar se esse

instituto da repercussão geral, como novo requisito de admissibilidade do recurso

extraordinário, se insere no paradigma do Estado Democrático de Direito,

principalmente no que tange à sua aplicação no microssistema do processo penal.

Com assento na literatura instrumentalista e na busca por celeridade em detrimento

de garantias fundamentais, o legislador constituinte reformador, seguido pelo

legislador infraconstitucional, desconhece princípios constitucionais do processo,

atribuindo o problema da demora na tramitação dos procedimentos jurisdicionais ao

sistema recursal brasileiro.

Há a exposição das bases em que, atualmente, se constrói a compreensão do

princípio do duplo grau de jurisdição pelos autores e pela jurisprudência no Brasil.

Também se analisa o entendimento que mencionados juristas possuem acerca da

posição do juiz no processo jurisdicional (como superparte), para pontuar os

fundamentos das reformas processuais. Após isso, explicita-se como essas

concepções influenciam diretamente na disciplina constitucional e legal dos

recursos, inclusive no que tange à técnica de estudo e aplicação da repercussão

geral das questões constitucionais por eles proposta. Para tanto, a apresentação do

estudo instrumentalista é feita, acompanhada do percurso histórico dos fundamentos

que sustentam as reformas no Brasil.

Por sua vez, discute-se como o caráter procedimental do Estado Democrático

de Direito não autoriza essa insistente restrição do espaço argumentativo do

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contraditório e da ampla argumentação no processo. A função legislativa brasileira

se vale do processo legislativo para incutir no Direito verdadeiras mazelas jurídicas,

dentre elas o instituto da repercussão geral. Não se constatam definição racional e

objetiva desse novo requisito de admissibilidade, mais uma vez, colocando os

órgãos jurisdicionais brasileiros, de forma solipsista, como os salvadores dos

problemas da sociedade. Dessa forma, é feito um contraponto do instituto da

repercussão geral com o paradigma do Estado Democrático de Direito, visando

desconstruir o argumento instrumentalista de que a seleção de teses pelo STF tem

fundamento na supremacia do interesse público sobre o privado, e objetivando

demonstrar reflexo desse raciocínio até mesmo no controle difuso de

constitucionalidade. Posteriormente faz-se uma aproximação entre os escopos

metajurídicos do processo e o protagonismo judicial, sustentados na

instrumentalidade, para defender uma teoria de processo adequada ao paradigma

democrático e rechaçar, mais uma vez, o instituto da repercussão geral.

Há também uma explanação no sentido de analisar como o argumento de

celeridade4 foi elevado a direito fundamental absoluto, e demonstrar como esse

argumento vem sendo utilizado de forma ideológica nas reformas processuais. O

movimento reformista brasileiro, por argumentos ideológicos, é perfeitamente

compatível com o Estado Social a que paradigmaticamente estaria vinculado,

entretanto, apresentando traços latentes de liberalismo processual. A proximidade

com o Estado Social será demonstrada também pela análise paradigmática da

ambivalência entre repercussão geral e argüição de relevância.

Com fundamento nessas questões, há a tentativa de redefinir o espaço

argumentativo afeto ao instituto dos recursos, a partir da crítica ao entendimento

instrumentalista acerca do duplo grau de jurisdição. Passando pelo princípio da

revisibilidade das decisões, afirma-se a indispensabilidade do instituto dos recursos

em um processo democrático e retomam-se críticas à repercussão geral como óbice

aos recursos extraordinários.

Por fim, busca-se toda a discussão para o microssistema do processo penal,

confirmando-se que o instituto da repercussão geral das questões constitucionais

não se coaduna com um processo penal de bases democráticas, por ferir não

4 Como sinônimo de efetividade, de rapidez e velocidade processual, discurso incrementado com a

EC n.° 45/04, que trouxe para o rol dos direitos fundamentais meramente declarados constitucionalmente, a “razoável duração do processo”.

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apenas o modelo constitucional de processo, mas também suas especificidades.

Nesse passo, aponta-se em que termos esse microssistema carece do espaço

argumentativo recursal, ou seja, demonstra-se como o direito constitucional ao

recurso é ferido no processo penal, caso nele se aplique, indiscriminadamente, a

repercussão geral das questões constitucionais. Para tanto, serão analisadas as

decisões que o STF proferiu, até agora, reconhecendo repercussão geral em

temas penais, que, na verdade, ratificam o fato de serem indissociáveis recurso

extraordinário e processo penal.

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2 O DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO E O PAPEL DO JUIZ NO CONTEXTO DAS

REFORMAS PROCESSUAIS: REFLEXOS NA TEORIA DOS RECURSOS A

PARTIR DA EC N° 45/04

Conforme abordado na introdução, a opção metodológica pela análise crítica

será utilizada no presente trabalho para discutir o instituto jurídico da repercussão

geral das questões constitucionais. Na perspectiva desse instituto, a maioria dos

juristas e dos tribunais nacionais o estudam partindo do pressuposto que a

repercussão geral não apresenta qualquer problema quanto a sua

constitucionalidade e/ou legalidade no Direito brasileiro, pois a concebem como

apenas mais um requisito de admissibilidade do recurso extraordinário, trazida pela

“Reforma do Judiciário”. Entretanto, pensar a repercussão geral como vêm fazendo

esses juristas, não é metodologicamente correto, pois nenhuma contribuição é

acrescentada, em termos científicos, à ciência do Direito.

A análise acerca do instituto jurídico da repercussão geral das questões

constitucionais, aqui proposta em termos de contraponto com os princípios de um

Processo como garantia, proporciona uma inquietação quanto à compatibilidade ou

não do instituto com o Direito brasileiro, pois há um choque entre a leitura dogmática

e o paradigma de Estado Democrático de Direito.

Em primeiro lugar, antes da tentativa de análise crítica do duplo grau de

jurisdição e da posição do juiz no processo jurisdicional, importante a compreensão

desse princípio no contexto em que regularmente é utilizado pelos autores5 e pela

jurisprudência nacionais. Portanto, serão expostas as bases em que se insere a

concepção de duplo grau e o entendimento acerca da posição do juiz no processo

jurisdicional para maioria dos processualistas brasileiros, bases que têm

5 O vocábulo “doutrina” é comumente utilizado na acepção de opinião de autores, que escrevem

sobre determinado assunto. Dicionários da língua portuguesa (FERREIRA, s.d.) e (BUENO,s.d.) definem “doutrina” também como conjunto de princípios que servem de base a um sistema religioso, político, filosófico, científico, etc. Entretanto, diante da concepção de pesquisa científica na contemporaneidade, o termo “doutrina” é inadequado para definir conjunto de princípios que serviriam de base à ciência do Direito, por significar uma idéia já sedimentada, um conceito cerrado e inquestionável. A pesquisa científica hoje visa, com um esforço argumentativo, sair da cerrada tradição unidisciplinar do Direito, ou seja, o propósito atual da ciência do Direito é passar de uma razão centrada no sujeito e no paradigma da consciência à razão comunicativa e ao paradigma da intercompreensão e da transcompreensão (GUSTIN; DIAS, 2006, p. 10). Por isso, a utilização, pelos juristas brasileiros, da expressão “doutrina”, apesar de significar simplesmente opinião de autores que escrevem sobre determinado assunto no Direito, acarreta aceitar tais opiniões como argumentos de autoridade, inquestionáveis ou intocáveis, sem qualquer ilação científica.

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fundamentado nossas reformas processuais num contexto socializante. A partir

disso, será pontuado o reflexo dessas questões na técnica de estudo e aplicação da

repercussão geral das questões constitucionais por eles proposta, que tem por base

a dicotomização do interesse em público e privado. Tudo isso com a finalidade de

preparar os fundamentos para a análise crítica de toda essa técnica6 de análise,

estudo e aplicação do Direito.

No presente trabalho, pretende-se a investigação científica da repercussão

geral partindo desse enfoque, uma vez que o duplo grau de jurisdição, o processo e

a figura do juiz, carecem de uma (re)leitura no paradigma do Estado Democrático de

Direito. Sem essa (re)leitura seria impossível o desvencilhamento das limitações

impostas à concepção de duplo grau de jurisdição e que, conseqüentemente,

sustentam a própria repercussão geral como requisito de admissibilidade do recurso

extraordinário, tendo em vista o reflexo do tema na teoria do processo. Assim,

haverá exposição sobre as bases em que o princípio do duplo grau de jurisdição é

atualmente compreendido pelos autores e pela jurisprudência no Brasil.

2.1 Duplo grau de jurisdição

A análise da concepção adotada por adeptos do processo como relação

jurídica acerca do princípio do duplo grau de jurisdição se faz necessária porque, é a

partir dela que será estabelecido um contraponto com os princípios do processo na

acepção procedimentalista, na tentativa de realçar sua possível incompatibilidade do

instrumentalismo com um processo de bases principiológico-democráticas únicas a

todo e qualquer procedimento em contraditório.

Neste momento haverá uma descrição do entendimento dos adeptos da teoria

6 Diz-se “técnica” porque o próprio idealizador da instrumentalidade do processo expõe que trabalha o

“processo como mero instrumento técnico e o direito processual como ciência neutra em face das opções axiológicas do Estado” (DINAMARCO, 2008, p. 39). A instrumentalidade, como estudo, “pretende ser uma síntese das novas tendências metodológicas representadas pela bandeira da efetividade do processo, pelo destaque ao seu caráter instrumental” (DINAMARCO, 2008, p. 13), através da “necessidade de revisitar a técnica processual” (DINAMARCO, 2008, p. 14). Apresentando um livro específico sobre o instituto da repercussão geral, de autoria de Bruno Dantas (2008), Nelson Nery Júnior afirma que tal obra “constitui-se em perfeita simbiose entre a teoria e a prática, qualidade imprescindível num trabalho que examina a técnica processual do recurso extraordinário” (NERY JÚNIOR, 2008, p. 11). O presente trabalho, ao contrário, pretende uma análise científica do instituto, para além de uma análise meramente técnica ou dogmática.

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do processo como relação jurídica, que apenas a incrementaram no

instrumentalismo, desenvolvido pela Escola Paulista de Processo, representada por

Dinamarco (2008), Grinover, Cintra, Dinamarco (2008), a partir das reflexões de

Liebman (1984), Chiovenda (1940) e Bülow (1964).

Mencionados autores entendem o duplo grau de jurisdição como a

possibilidade de se levar o inconformismo da parte à apreciação de uma instância

superior, figurando como óbice ao abuso judicial, permitindo a fiscalização por outro

órgão do judiciário (DEMERCIAN; MALULY, 2005, p. 552-553). A fiscalização,

assim, é atribuída a um órgão colegiado na estrutura do Judiciário, com fundamento

na autoridade superior desse órgão em relação àquele que primeiro decidiu

(GRINOVER; CINTRA; DINAMARCO, 2008, p. 80)7. O duplo grau então, em

resumo, consiste na possibilidade de “apenas um” reexame completo de “questões

de fato” e “questões de direito” (mérito da causa) por órgão jurisdicional distinto

(MARCATO, 2006, p. 2; 24).

O duplo grau de jurisdição decorre da colisão entre o princípio da justiça8 e o

princípio da certeza9, no que tange à temática dos recursos, sendo o duplo grau o

responsável por estabelecer um ponto de equilíbrio entre esses dois princípios,

através da vedação, ao infinito, do reexame das decisões judiciais (GRINOVER;

GOMES FILHO; FERNANDES, 2008, p. 19). Portanto, trabalham o duplo grau de

jurisdição no contraponto entre certeza e justiça, entre efetividade e segurança

jurídica (MARCATO, 2006, p. 2), buscando contextualizar exceções ao princípio do

duplo grau na busca de resultados pragmáticos (BEDAQUE, 2003, p. 16) que

satisfaçam os escopos metajurídicos do processo (DINAMARCO, 2008).

Como justificativa para a manutenção do duplo grau de jurisdição no

ordenamento jurídico, os instrumentalistas identificam fundamentos em relação aos

jurisdicionados, em relação ao juiz, em relação à própria decisão, bem como

fundamentos políticos.

Em relação aos jurisdicionados, pontuam a necessidade do duplo grau de

jurisdição tendo em vista a natural inconformidade do vencido em relação à decisão

7 Nesse sentido, ver também (CARVALHO, 2007, p. 450); (CAPEZ, 2006, p. 26-27); (BOMFIM, 2007,

p. 59); (OLIVEIRA, 2007, p. 671). O que diferencia as várias definições sobre o princípio do duplo grau de jurisdição dentre esses adeptos da teoria do processo como relação jurídica é o conteúdo da matéria devolvida, ou seja, a matéria objeto do exame pelo órgão recursal. 8 No sentido de que a perfeita distribuição da justiça está atrelada à possibilidade de reexame da

decisão. 9 Como exigência de que a decisão seja proferida no menor tempo possível, sem procrastinações

inúteis.

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que lhe é contrária (GRINOVER; GOMES FILHO; FERNANDES, 2008, p. 20;

GRINOVER; CINTRA; DINAMARCO, 2008, p. 80-81). O duplo grau atenderia a

natureza humana, que por si só (inerente), se insurge contra tudo que se

incompatibiliza com suas pretensões, anseios e concepções.

Em relação ao juiz, expõem a necessidade do duplo grau de jurisdição como

forma de pressão psicológica nos juízes, no sentido de que a existência de um órgão

superior de segundo grau, composto por magistrados mais experientes na carreira,

possibilita a revisão de suas decisões, o que faria com que os juízes se sentissem

compelidos a julgar melhor (GRINOVER; GOMES FILHO; FERNANDES, 2008, p.

20; GRINOVER; CINTRA; DINAMARCO, 2008, p. 81). Seria o duplo grau um

princípio autônomo, decorrente do próprio texto constitucional, que prevê a

competência dos órgãos da chamada jurisdição superior (GRINOVER; GOMES

FILHO; FERNANDES, 2008, p. 21; GRINOVER; CINTRA; DINAMARCO, 2008, p.

81). Tal posicionamento demonstra como os adeptos da instrumentalidade

relacionista depositam, intrinsecamente, a responsabilidade pela função jurisdicional

no juiz monológico.

Em relação à própria decisão, os instrumentalistas fundamentam a

importância do duplo grau de jurisdição no sentido de que essa decisão do juiz pode

ser efetivamente incorreta e injusta e a possibilidade de revisão pelo órgão superior

de segunda instância acarretaria a viabilidade de correção dessa decisão

(GRINOVER; GOMES FILHO; FERNANDES, 2008, p. 20; GRINOVER; CINTRA;

DINAMARCO, 2008, p. 80-81). O duplo grau, nesse ponto, segundo esse

entendimento, seria uma “garantia” decorrente do princípio da igualdade, pelo qual

todos os litigantes, em paridade de condições, devem poder usufruir ao menos de

um recurso para a revisão das decisões, não sendo admissível que venha ele

previsto para algumas e não para outras (GRINOVER; GOMES FILHO;

FERNANDES, 2008, p. 21). Viabilizaria, portanto, na acepção de necessário controle

dos atos estatais, um controle da legalidade e da justiça das decisões de todos os

órgãos do “Poder Público”. Nesse sentido vislumbra-se que encaram o duplo grau de

jurisdição como uma “garantia” de “boa justiça”.

Esses autores destacam ainda que há um fundamento político para o

princípio do duplo grau de jurisdição, qual seja, o fato de que todo ato estatal deve

estar sujeito à revisibilidade. Assim, o ato estatal “decisão judicial” deve se submeter

ao controle interno, a ser exercido por órgão da jurisdição diverso daquele que

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julgou em primeiro grau, afim de que possam avaliar sua legalidade e sua justiça

(GRINOVER; GOMES FILHO; FERNANDES, 2008, p. 21).

Com base nessas justificativas ao duplo grau de jurisdição, os processualistas

adeptos do relacionismo instrumentalista argumentam a favor e contra o princípio,

bem como sustentam exceções possíveis a esse mesmo princípio.

Militam em favor da adoção do princípio do duplo grau de jurisdição os

seguintes argumentos: maior experiência do órgão revisor colegiado, possibilidade

de erro do juiz de primeira instância, controle dos atos desses juízes de primeira

instância, exame mais detalhado da questão submetida à apreciação e conveniência

psicológica para a parte no sentido de revisibilidade de suas decisões que lhe forem

desfavoráveis (MARCATO, 2006, p. 41-42).

Em desfavor da adoção do princípio do duplo grau de jurisdição são

sustentados os seguintes argumentos: ofensa ao acesso à justiça devido à longa

duração do processo, desprestígio da primeira instância e a inutilidade da decisão

recorrida quando o órgão revisor a mantém (MARCATO, 2006, p. 46).

O duplo grau de jurisdição teve previsão expressa no texto constitucional

brasileiro, apenas na Constituição do Império de 1824, no art. 15810 (GRINOVER;

GOMES FILHO; FERNANDES, 2008, p. 21; GRINOVER; CINTRA; DINAMARCO,

2008, p. 81), sendo esse o único texto a garantir, de forma irrestrita, esse direito

(MARCATO, 2006, p. 26). As demais Constituições brasileiras não se referiram

expressamente ao princípio nos respectivos textos.

Como “garantia” de “boa justiça”, o princípio do duplo grau de jurisdição,

segundo os instrumentalistas, não está previsto expressamente no texto

constitucional de 1988 e integra o ordenamento jurídico brasileiro como regra

imanente (GRINOVER; GOMES FILHO; FERNANDES, 2008, p. 21). Registram que

o duplo grau não possui previsão expressa nem na CR/88, nem no CPC/73, sendo

possível, entretanto, constatar sua presença analisando as normas constitucionais e

infraconstitucionais, como, por exemplo, o art. 496 do CPC, que trata do princípio da

taxatividade dos recursos, e as disposições sobre o recurso de apelação, nos arts.

513 e seguintes do CPC (MARCATO, 2006, p. 22).

A maioria dos juristas nacionais entende o duplo grau de jurisdição como

regra imanente no texto constitucional (GRINOVER; GOMES FILHO; FERNANDES,

10

“Art. 158 - Para julgar as causas em segunda, e última instância haverá nas Províncias do Império as Relações, que forem necessárias à comodidade dos Povos” (BRASIL, 1824).

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2008, p. 21), extraída da regra do devido processo legal (GRINOVER; GOMES

FILHO; FERNANDES, 2008, p. 22; DEMERCIAN; MALULY, 2005, p. 552-553).

Não obstante isso, o duplo grau tem previsão em tratados internacionais,

como na Convenção Americana dos Direitos Humanos, também conhecido como

Pacto de San José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil em 1992, que integrou o

Direito brasileiro pelo Decreto n.° 678/92 (GRINOVER; GOMES FILHO;

FERNANDES, 2008, p. 21). Os instrumentalistas entendem, pois, o duplo grau de

jurisdição, como um princípio inerente ao Estado Democrático de Direito, tendo

integrado o ordenamento jurídico brasileiro positivado, em nível supralegal11

(GRINOVER; GOMES FILHO; FERNANDES, 2008, p. 23), mesmo antes da regra do

art. 5°, §3° da CR/88.

Importante ressaltar que, em matéria processual penal, ainda tratam do

princípio do duplo grau o art. 14.5 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e

Políticos, ONU/1966 (Decreto n.° 592/1992), o art. 40.2, b, V da Convenção sobre os

Direitos da Criança, ONU/1989 (Decreto n.° 99.710/1990) e os arts. 81-84 do

Estatuto de Roma para o Tribunal Penal Internacional, ONU/1998 (Decreto n.°

4.388/2002).

Conforme mencionado, apesar do conteúdo atribuído ao princípio do duplo

grau de jurisdição pelos adeptos dessa linha argumentativa da relação jurídica

instrumentalista, entendem esses autores constituir o duplo grau um princípio

constitucional (MARCATO, 2006, p. 30). Argumentam no sentido de que, apesar de

não previsto de forma expressa no texto constitucional, o princípio foi

indiscutivelmente agasalhado pelo texto constitucional como princípio constitucional

implícito, tendo em vista que há previsão expressa da competência recursal dos

tribunais superiores, bem como previsão de tribunais superiores e inferiores nas

11

Aqui os instrumentalistas utilizam “supralegal” como sinônimo de texto legal que, apesar de não aprovado por quorum qualificado, ostenta status de emenda constitucional, por decorrência do próprio sistema constitucional, in verbis: “Como sustentamos nas edições anteriores, hierarquicamente, os dispositivos da Convenção Americana colocam-se no mesmo nível das regras constitucionais, por força do disposto no art. 5°, §2°, CF ('Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa seja parte'). Entendemos, também, que a edição da Emenda Constitucional n.° 45, de 2004, introduzindo o §3° ao art. 5° ('Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais') não altera os termos da questão aqui discutida, até porque a garantia do duplo grau já decorre do próprio sistema constitucional, não sendo necessária uma emenda - com quorum exigido pelo novo texto - para incluí-la no ordenamento, em nível supralegal” (GRINOVER; GOMES FILHO; FERNANDES, 2008, p. 22).

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“justiças estaduais” (MARCATO, 2006, p. 27). A ausência de previsão expressa do

princípio no texto constitucional não admite o raciocínio de que o sistema jurídico

brasileiro, por esse motivo, não acolheu o princípio do duplo grau de jurisdição

(CRETELLA NETO, 2002, p. 85). Sempre que existir hierarquia entre órgãos

julgadores, onde ao órgão de grau superior compete apreciar recursos contra

decisões emanadas dos órgãos imediatamente inferiores, estará consagrado o

princípio do duplo grau de jurisdição (CRETELLA NETO, 2002, p. 85).

Nessa linha de raciocínio, sustentam que o duplo grau de jurisdição decorre

do princípio do devido processo legal, em uma concepção ainda liberal. As garantias

que integram a fórmula do due process of law proporcionam aos litigantes direito a

um processo “justo e équo”, com oportunidades reais e equilibradas, fórmula essa

onde está albergado o princípio do duplo grau (DINAMARCO, 2001, p. 245).

Segundo esses autores é irrelevante, para constatação do princípio do duplo

grau de jurisdição, o fato da reapreciação ou do reexame se dar ou não por órgão de

hierarquia ou nível superior. Nesse sentido, alguns utilizam a nomenclatura “duplo

juízo de mérito” como sinônimo de “duplo grau de jurisdição” (MARINONI, 1999,

p.302), pois o princípio assegura duas decisões completas no mesmo processo,

entretanto, proferidas por juízos diversos (LASPRO, 1995, p. 27).

O órgão julgador do recurso pode ser da mesma instância ou grau de

jurisdição, sem que haja ofensa, por isso, ao princípio do duplo grau de jurisdição

(LASPRO, 1995, p. 19)12, como ocorrem nos juizados especiais. Entretanto,

diferenciam a nomenclatura duplo grau de jurisdição de duplo exame. O duplo

exame ocorre nos recursos dirigidos ao mesmo juízo que prolatou a decisão

impugnada, como ocorre, por exemplo, nos embargos de declaração e nos

embargos infringentes.

Outra vertente do duplo grau de jurisdição, seguindo o entendimento da

Escola Paulista de processo, é constatada no sentido de funcionar o princípio como

óbice à supressão de instâncias, ou seja, “como proibição ao Tribunal de, com seu

julgamento, impedir o pronunciamento do juiz de primeiro grau - garantia de exame

em primeiro grau” (GRINOVER; GOMES FILHO; FERNANDES, 2008, p. 23). Assim,

o duplo grau de jurisdição garante tanto o reexame da decisão pelos órgãos

12

Apesar desse entendimento, alguns relacionistas entendem que há necessidade de ser o órgão, que apreciará o recurso, hierarquicamente superior ao órgão que prolatou a decisão recorrida. Nesse sentido Ovídio A. Baptista da Silva e Flávio Gomes (SILVA; GOMES, 2002, p. 311).

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superiores, quanto a vedação ao Tribunal de apreciar questões ou matérias não

analisadas em primeiro grau13.

Os autores adeptos do instrumentalismo relacionista paulista, apesar de

entenderem o duplo grau de jurisdição como um princípio constitucional, sustentam

não se tratar, entretanto, de uma garantia constitucional (MARCATO, 2006, p. 30).

Como conseqüência desse raciocínio, a própria Constituição possibilita a supressão

de recursos, ou seja, autoriza que a jurisdição seja exercida em um único grau, sem

possibilidade de recurso (DINAMARCO, 2001, p. 239).

Significa dizer que

Diferentemente dos demais princípios integrantes da tutela constitucional do processo, este não é imposto pela Constituição com a exigência de ser inelutavelmente observado pela lei. Além de não explicitar exigência alguma a respeito, ela própria abre caminho para casos em que a jurisdição será exercida em grau único, sem possibilidade de recurso (DINAMARCO, 2001, p. 239).

Assim sendo, o princípio do duplo grau de jurisdição configura-se em um

princípio constitucional e, como tal, serve apenas como conselho ao legislador e ao

juiz, pois a CR/88 não o prevê expressamente. A interpretação que se infere desse

raciocínio é que, para que um princípio não atue simplesmente como conselho, é

necessário que seja expressamente previsto, para ser alçado à condição de garantia

constitucional. Isso porque a função do princípio é apenas de norteador, não

podendo se impor de modo absoluto (DINAMARCO, 2003, p. 160-161). Seguindo

esse entendimento, concluem ser indubitável que a CR/88 tenha recepcionado e

prestigiado o princípio do duplo grau de jurisdição, entretanto, não o elevou à

condição de garantia constitucional (MARCATO, 2006, p. 33).

O raciocínio esboçado permite a conclusão no sentido de que

não havendo garantia constitucional do duplo grau, mas simples previsão do princípio, está aberta a oportunidade de a própria Constituição e o legislador infraconstitucional estabelecerem exceções ao princípio (MARCATO, 2006, p. 32).

As exceções possíveis ao duplo grau de jurisdição são fruto exatamente do

13

Tal raciocínio foi materializado pelo Supremo Tribunal Federal, antes da vigência da Lei n.° 11.719/08, ao analisar questões sobre mutatio libelli, na Súmula n.° 453, in verbis: “Não se aplicam à segunda instância o art. 384 e parágrafo único do Código de Processo Penal, que possibilitam dar nova definição jurídica ao fato delituoso, em virtude de circunstância elementar não contida explícita ou implicitamente na denúncia ou queixa”.

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próprio conteúdo que os instrumentalistas atribuem ao princípio. Por ser um

princípio, e não uma regra, como tal deve ceder diante de outros princípios que, no

caso concreto, são mais importantes, como, por exemplo, celeridade, racionalidade,

otimização e eficiência14 (MARCATO, 2006, p. 71). Nesse diapasão, por não se

constituir em garantia constitucional, o princípio do duplo grau de jurisdição admite

exceções (constitucionais ou infraconstitucionais) à sua aplicação (MARCATO, 2006,

p. 71). Como exceções constitucionais colocam os casos de competência originária

dos tribunais e, por razões óbvias, fruto da concepção que adotam acerca do duplo

grau, não incluem aqui o instituto da repercussão geral das questões constitucionais.

A possibilidade de limitação do princípio do duplo grau consiste no fato de

que, para viabilizá-lo, basta a possibilidade de uma única via de impugnação da

decisão. Assim, o princípio do duplo grau de jurisdição não abrange todos os

reexames possíveis, no Direito brasileiro, até se chegar ao STF, pois se esgota com

a possibilidade de apenas um reexame (MARCATO, 2006, p. 167). Significa dizer

que os recursos constitucionais (especial e extraordinário, por exemplo), vinculados

a certos requisitos de admissibilidade, não garantem o duplo grau de jurisdição

(MARCATO, 2006, p. 60). Os recursos destinados aos tribunais superiores –

Tribunal Superior do Trabalho (TST), Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Superior

Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal Federal (STF) – então, não estariam

amparados pelo duplo grau (GRINOVER; GOMES FILHO; FERNANDES, 2008, p.

23). Especificamente no que tange ao recurso extraordinário para o STF, assim

pontua Ana Cândida Menezes Marcato:

Note-se que o recurso extraordinário, da mesma forma que o especial, não possibilita o novo reexame da causa, como ocorre na apelação. Por meio dele são discutidas apenas as questões relativas à interpretação da Constituição Federal, ficando alijadas as questões de fato e as questões de direito infraconstitucional, razão pela qual igualmente não pode ser considerado como recurso garantidor da observância do duplo grau de jurisdição (MARCATO, 2006, p. 59-60).

Percebe-se que, em termos de uma Teoria do processo como relação

jurídica, o duplo grau é restrito à segunda instância de revisibilidade, o que não se

altera no instrumentalismo. Nesse contexto, o duplo grau fornece sua completude

14

No choque entre princípios, os relacionistas (MARCATO, 2006, p. 5-19) utilizam a ponderação de valores de Robert Alexy (1997), e se equivocam em pensar que Ronald Dworkin (2007a) comunga desse raciocínio.

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somente nos recursos destinados à revisibilidade em segunda instância, em que há

ampla análise das questões fáticas e jurídicas. Outros juristas ressaltam que

somente diante de uma ampla análise dessas questões é possível afirmar a

existência do duplo grau de jurisdição (LASPRO, 1995, p. 27).

Entretanto, como será analisado no capítulo seguinte, a concepção acerca do

duplo grau de jurisdição esboçada pelos adeptos da instrumentalidade do processo

não se coadunar com os princípios do processo democrático. Os instrumentalistas

trabalham especificamente a posição do juiz como centro da teoria geral do

processo jurisdicional e concebem uma dicotomia entre interesse público e interesse

privado, o que dá sustentação a se pensar o duplo grau de jurisdição nessa

perspectiva apenas de viabilizador de reexame das decisões em segundo grau ou

de vedação aos Tribunais em analisarem matérias ou questões ainda não

apreciadas em primeiro grau, no contexto da primazia do interesse público. Nesse

diapasão, como já esboçado, ficam excluídos os recursos extraordinários lato sensu

(recurso especial e recurso extraordinário) do amparo do princípio, o que não se

amoldar ao modelo constitucional de processo.

Os autores instrumentalistas, quanto à adoção do princípio do duplo grau de

jurisdição pelo Direito brasileiro, como já mencionado, trabalham no contraponto

entre certeza e justiça, entre a efetividade e a segurança jurídica (MARCATO, 2006,

p. 2). Para eles, a temática do duplo grau, e do próprio sistema recursal, está

inserida no contexto circunscrito a duas questões: 1) a necessidade de controle de

abuso de poder do juiz; 2) a harmonização entre o tempo despendido para se

efetivar a tutela jurisdicional com qualidade e justiça (MARCATO, 2006, p. 38).

Nesse confronto, expõe Ana Cândida Menezes Marcato, que

[...] a doutrina tem entendido que a consecução de uma tutela mais adequada e justa é possibilitada pela observância do duplo grau de jurisdição, permitindo que as decisões sejam reexaminadas; de outro turno, é inegável que a revisão das decisões demanda tempo, e faz com que o resultado definitivo acerca da pretensão da parte seja postergado (MARCATO, 2006, p. 39-40).

Diante do fato de não se constituir em uma garantia constitucional, o duplo

grau pode ser flexibilizado, uma vez que as regras infraconstitucionais é que serão

responsáveis pelo seu condicionamento, pela disciplina de seu alcance. É nesse

ponto que se encontram os argumentos para que a receptividade do instituto jurídico

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da repercussão geral seja, por mencionados autores, inquestionável quanto à sua

constitucionalidade e/ou legalidade pelo Direito brasileiro. Daí a importância dessa

exposição da concepção predominante entre os autores nacionais e os tribunais

pátrios acerca do princípio do duplo grau. Para tal concepção fica patente, sem

maiores questionamentos, se tratar a repercussão geral de um requisito de

admissibilidade a ser analisado para deflagrar o recurso extraordinário, filtrando as

causas que, a critério do Supremo Tribunal Federal (STF), realmente devam ser

submetidas à sua jurisdição, uma vez que atingem o interesse público (em

detrimento ao interesse privado e do caso concreto). Mas mencionada concepção

será desconstruída no capítulo 4, a partir de uma proposição diversa para o princípio

do duplo grau de jurisdição no paradigma procedimentalista.

Colocada a limitada concepção do princípio do duplo grau de jurisdição para a

maioria dos autores brasileiros e para a jurisprudência nacional, ancorados na

instrumentalidade do processo, no item seguinte será exposta a posição do juiz no

processo, fundamentada na relação jurídica processual para, no segundo capítulo,

esboçar como a repercussão geral das questões constitucionais adere a essas

concepções, todas elas embasadas no paradigma do Estado Social.

2.2 O papel do juiz no instrumentalismo

Para demonstrar o papel do juiz assumido no processo, nessa concepção

instrumentalista, pode-se apropriar da discussão, produzida por esses autores,

acerca da existência ou não de uma teoria geral do processo. Uma teoria geral do

processo, por sua vez, que não tem como sustentáculo uma base principiológica

uníssona constitucionalmente garantidora, que permita englobar, num esquema

único, o processo jurisdicional, o processo legislativo, o processo administrativo e

demais processos (BARROS, 2006).

Para os instrumentalistas, existe uma teoria geral do processo15,

entretanto, estruturada com fulcro na tríade jurisdição, ação e processo,

15

Entendo também que existe uma Teoria Geral do Processo, entretanto, fundada em outras bases, qual seja, em princípios constitucionalmente garantidores da implementação dos direitos fundamentais.

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acrescida do instituto da defesa à estrutura desta teoria geral do processo, após a

Constituição Federal de 1988. No raciocínio por eles esboçado, o Direito

processual consiste no estudo sistemático e operacional do processo jurisdicional

mediante a compreensão da jurisdição (BARROS; ALMEIDA, 2007, p. 1960 -

1961).

Para Dinamarco, o processualista moderno tem que vislumbrar o processo

como “instituto a serviço da população na busca por resultados jurídico-

substanciais convergentes ao bem comum por modos e medidas eleitos pela

própria sociedade política”. Segundo mencionado jurista, jurisdição e processo

têm por finalidade realizar “valores sociais e políticos da nação”. “Liberdade e

igualdade são valores a serem realizados pela jurisdição e estão atrelados a

modelos axiológico-culturais de cada nação” (BARROS; ALMEIDA, 2007, p.

1961).

A respeito do papel do juiz, Dinamarco (2008) coloca que, no exercício da

função jurisdicional do Estado, o julgador “necessita buscar as aspirações ou o

espírito da lei, representado por um juízo axiológico que razoavelmente pode se

considerar instalado no texto legal”. Para o autor, interpretar e aplicar o Direito

são atividades que possuem “papel corretivo das desvirtudes da legislação

(ultrapassada ou mal elaborada)”, apelando para os “compromissos éticos do

juiz”, para as “finalidades políticas do processo” e para um “uso alternativo do

Direito” (BARROS; ALMEIDA, 2007, p. 1961). Finalidades políticas essas que

objetivam a realização do “bem comum” e, conseqüentemente, a “pacificação

social” (TUCCI, 2002, p. 226).

A concepção instrumentalista reforça uma teoria geral do processo

jurisdicional, tendo como eixo a jurisdição. O juiz é um sujeito do processo

investido de autoridade para dirimir a “lide”, alçado, em razão disso, à posição de

superioridade em relação às partes (GRINOVER; CINTRA; DINAMARCO, 2008,

p. 315). Tendo em vista que a jurisdição é exercida pelo juiz, ele é o centro do

processo, nessa concepção, uma vez que, “em torno da jurisdição é que gravitam

os demais institutos do direito processual e sua disciplina” (DINAMARCO, 2008,

p. 91). Os instrumentalistas articulam essa afirmativa com base na concepção

que têm da tríade jurisdição - ação/defesa - processo, da seguinte forma: os

órgãos que exercem o poder jurisdicional são inertes, necessitando de

provocação do interessado, daí a instituição legal do direito de ação, como poder

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de exigir do Estado o exercício da jurisdição; tendo em vista a projeção de efeitos

do exercício do direito de ação na esfera jurídica de outrem, esse outro tem

direito de defesa, constitucionalmente garantido em qualquer processo;

entretanto, a jurisdição não pode ser arbitrária, e nem ação e defesa podem ser

desordenadas, necessitando do procedimento previsto em lei para regrá-los; esse

procedimento, por sua vez, para cumprir a regra constitucional do contraditório,

“assenta sobre as situações jurídicas ativas e passivas integrantes de uma

relação jurídica de direito público”, que é o processo. Daí a conclusão de que,

diante dessa visão publicista do processo, frente a seus objetivos e inserções “no

sistema político-jurídico da nação”, é “natural” conceber a jurisdição ao centro

(DINAMARCO, 2008, p. 91-92).

Desta forma, admitem a influência das concepções pessoais (“sócio-

políticas”) do juiz no seu ato de sentenciar, de forma a refletir as aspirações da

própria sociedade, o que evita a “injustiça” da decisão. Nessa concepção, o juiz,

ao decidir, tem a tarefa de “examinar as provas, intuir o correto enquadramento

jurídico e interpretar de modo correto os textos legais à luz dos grandes princípios

e exigências sociais do tempo” (DINAMARCO, 2008, p. 230-231).

Oscar Bülow (1964)16 foi o sistematizador da Teoria do Processo como

Relação Jurídica, e conceitua o processo como uma relação jurídica de direito

público (BÜLOW, 1964, p. 2). A Teoria de Bülow trouxe contribuição para o processo

moderno17 pois tal sistematização foi o marco da autonomia do processo em relação

ao conteúdo de direito material nele esboçado (MELENDO, 1964, p. XI)18. Bülow

buscou inspiração no italiano Búlgaro, para quem “o processo é ato de três

personagens: do juiz, do autor e do réu”19 (BÜLOW, 1964, p. 4)20, e também no

16

“Alguns processualistas brasileiros insistem em dizer que se escreve o nome do mencionado processualista alemão 'Oscar von Bülow', entretanto, em nenhum dos livros escritos na língua original alemã existe 'von', problema oriundo das traduções para outras línguas, sendo que a grafia correta é Oscar Bülow”, conforme notícia dada por Dierle Coelho Nunes na palestra “Revisão das Teorias do Processo para adequação ao paradigma do Estado Democrático de Direito”, apresentada no “Núcleo de Estudos Constituição, Processo e Hermenêutica”, supervisionado por Flaviane de Magalhães Barros, evento realizado pelo Instituto de Hermenêutica Jurídica, Seção Minas Gerais, em 09/09/08. 17

A obra de Bülow (1964) “Teoria das exceções processuais e os pressupostos processuais” foi escrita em 1868, no original alemão: Die Lehre von den Processeinreden unde Processvoraussetzungen (BÜLOW, 1964). Ver também (NUNES, 2008, p. 99); (LEAL, 2008, p. 78); (LEAL, 2002, p. 81); (NASCIMENTO, 2004, p. 42); (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 2008, p. 297; 300); (AGUIAR et al, 2005, p. 15); (TORNAGHI, 1987, p. 4); (FERNANDES, 2005a, p. 24). 18

Nesse sentido conferir também (PELLEGRINI, 2004, p.20); (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 2008, p. 300); (LEAL, 2008, p.78); (LEAL, 2002, p. 81); (NASCIMENTO, 2004, p. 44) e (AGUIAR et al, 2005, p. 15-16). 19

Na expressão de Búlgaro: “judicium est actum trium personarum: judicis, actoris et rei” (CINTRA,

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28

alemão Bethamann-Hollweg21 (BÜLOW, 1964, p. 1). Alguns autores (GONÇALVES,

2001, p. 71; AGUIAR et al, 2005, p. 23) apontam influência da obra de Benhard

Windscheid22 na sistematização de Bülow, o que contribuiu para implementação da

noção de direito subjetivo na construção da noção de processo como relação

jurídica processual.

Especificamente no que tange ao microssistema do Processo Penal, com

assento em Hélio Tornaghi23 (1987, p. 13), Flaviane de Magalhães Barros ressalta

outra importante conquista da Teoria do processo com relação jurídica:

[...] a Teoria da relação jurídica foi um grande marco para a Teoria do processo por ter sido a porta para a autonomia científica do direito processual e para o processo penal em especial, haja vista que foi com a relação jurídica processual que o acusado passou a ser sujeito de direitos (PELLEGRINI, 2004, p. 20).

Para os adeptos da relação jurídica processual, o processo é o meio para se

chegar a uma decisão justa e só existe em função do juiz, para servi-lo. Nesse

sentido, “o processo é um caminhar para frente (pro cedere); é uma seqüência

ordenada de atos que se encadeiam numa sucessão lógica e com um fim: o de

possibilitar, ao juiz, o julgamento” (TORNAGHI, 1987, p. 1). “O processo é uma

relação que avança gradualmente e que se desenvolve passo a passo” (BÜLOW,

1964, p. 2, tradução nossa)24, ou seja, “a relação jurídica processual está em um

constante movimento e transformação” (BÜLOW, 1964, p. 3, tradução nossa)25.

Os instrumentalistas entendem que o processo é o instrumento por meio do

qual a jurisdição trabalha, é meio pelo qual o juiz positiva o poder jurisdicional do

Estado (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2008, p. 297). Concebem o processo

em uma noção teleológica, uma vez que esse se caracteriza por sua finalidade de

exercício do poder jurisdicional (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2008, p. 297;

GRINOVER, DINAMARCO, 2008, p. 300); (LEAL, 2008, p. 78); (AGUIAR et al, 2005, p. 23). 20

Nesse sentido conferir também (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 2008, p. 300); (LEAL, 2008, p. 78); (AGUIAR et al, 2005, p. 23). 21

Obra publicada em 1864-1874, “O processo civil do direito comum em seu desenvolvimento histórico”, no original em alemão: “Der Civilprocezess Rechts ind geschichtlicher Entwincklung” (AGUIAR et al, 2005, p. 23). 22

Obra publicada em 1856, “A ação do direito romano do ponto de vista do direito civil”, no original em alemão: Die Actio des RO: mischen Zivilrechts, von Standpunkte des heutigen Rechts (AGUIAR et al, 2005, p. 23). 23

Hélio Tornaghi (1987) expõe sobre o aprimoramento da Teoria do processo como Relação Jurídica por Wach (triangular), Kohler (linear), Planck e Hellwig (angular). 24

El proceso es una relación jurídica que avanza gradualmente e que se desarrolla paso a paso. 25

La relación jurídica procesal está en un constante movimiento y transformación.

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29

315-316). Processo é, simplesmente, “o instrumento do exercício da jurisdição”

(TUCCI, 2002, p. 161).

O procedimento, por sua vez, é apenas o meio extrínseco pelo qual se

manifesta o processo, ou seja, trata-se do processo em sua “realidade

fenomenológica perceptível” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2008, p. 297). O

procedimento é concebido em uma noção formal, “não passando da coordenação de

atos que se sucedem” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2008, p. 297).

Acrescentando conteúdo teleológico ao procedimento como expressão da unidade

do processo26, Antônio Scarance Fernandes (2005, p. 15) conceitua-o como “um

conjunto de atos marcado por seqüência pré-determinada e pela vinculação de

todos a um mesmo objetivo final”.

Segundo Bülow (1964, p. 3), o processo se constitui em uma relação jurídica

de direito público, que se desenvolve gradualmente, entre o juiz e as partes. Já o

procedimento é a marcha do processo, é o aspecto do processo que salta à

percepção da maioria das pessoas, cuja origem remonta à Idade Média.

A relação que acontece entre processo e procedimento, segundo eles, é no

sentido de que o procedimento, como aspecto formal do processo, consiste no meio

pelo qual a lei exara os atos e fórmulas do processo (CINTRA; GRINOVER;

DINAMARCO, 2008, p. 297). O processo, assim, é a síntese de uma relação jurídica

progressiva (relação processual), bem como a síntese “da série de fatos que

determinam a sua progressão (procedimento)” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO,

2008, p. 304).

Bülow, assim, foi a base da Teoria instrumentalista do processo, e delineou a

relação jurídica processual como pública com lastro na figura do juiz, cabendo às

partes mera colaboração na formação do convencimento daquele decididor

(BÜLOW, 1964, p. 2).

Essa concepção de Bülow é “nítida” na instrumentalidade (CINTRA;

GRINOVER; DINAMARCO, 2008, p. 301), principalmente no que tange à jurisdição,

representada pelo juiz, colocada como epicentro na solução dos conflitos sociais.

26

Segundo Anônio Scarance Fernandes, a concepção unitário do procedimento reflete também a unidade do processo, pois “o procedimento apresenta a característica de ser composto de atos ordenados de forma metódica, de maneira que um pressupõe o próximo até o último ato da série, distinguindo-se, por isso, de outras realidades de formação sucessiva. A idéia de ordem insere-se no contexto da realidade unitária procedimental e a explica”. E continua o autor, acrescentando o conteúdo teleológico ao procedimento: “Os atos ordenados da cadeia procedimental ligam-se pela unidade do escopo a ser atingido com o provimento jurisdicional pretendido pelas partes e preparado pelo juiz” (FERNANDES, 2005a, p. 33).

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30

Nesse sentido, o juiz se posiciona, na relação jurídica processual, como “super et

inter partes” e se investe de autoridade para dirimir a lide (CINTRA; GRINOVER;

DINAMARCO, 2008, p. 315). Os instrumentalistas afirmam o acerto de Bülow,

sustentando ser essa Teoria da relação jurídica a que melhor explica o processo

(CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, p. 302).

Concebendo a jurisdição como sua base institutiva sistematizada, a

instrumentalidade vislumbra o processo como um instrumento de pacificação

social. O processo, assim, é entendido como forma de realização da jurisdição,

como instrumento da jurisdição, naquele marco relacionista de subordinação

(BARROS; ALMEIDA, 2007, p. 1960-1961). Nesse sentido, temos processo

jurisdicional (presente a figura do juiz), em que a compreensão de sua atividade

jurisdicional é o eixo central do Direito processual.

As bases relacionistas da instrumentalidade são, portanto, latentes. A

concepção de processo oriunda da relação jurídica predomina ainda hoje entre os

autores brasileiros e na jurisprudência nacional, influenciando a elaboração de leis

processuais e códigos. Wach (s.d.), Chiovenda (1940), Liebman (1984) e Dinamarco

(2008) são, na verdade, desdobramentos das concepções relacionistas, todos

vinculados à idéia de subordinação das partes ao juiz.

No Direito brasileiro, a concepção da relação jurídica vem sofrendo revisões,

através do movimento conhecido como Escola instrumentalista de processo, nascido

no Estado Paulista (NASCIMENTO, 2004, p.47). Os instrumentalistas se valem da

teoria da relação jurídica de Bülow e subordinam o processo à jurisdição, com

escopos metajurídicos. Assim, infere-se que “as teorias que trabalham com os

antigos conceitos de relação jurídica e de direito subjetivo, na clássica acepção, são

ainda predominantes na ciência do Direito Processual”, o que não é diferente para

os processualistas brasileiros (GONÇALVES, 2001, p. 72-73).

Para desenvolver seu trabalho no processo como seu instrumento

(DINAMARCO, 2008, p. 25), o juiz se coloca em posição de superioridade em

relação às partes, o que lhe dá autoridade para dirimir a “lide”27 (GRINOVER;

CINTRA; DINAMARCO, 2008, p. 315) e, em conseqüência, traz a noção de

subordinação das partes ao juiz, própria do entendimento do processo como relação

jurídica.

27

Importante ressaltar a tese defendida por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (1989) no sentido de que não existe lide no processo penal, desconstruindo toda concepção carneluttiana de lide.

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31

Diante desse instrumentalismo relacionista, o processo penal sempre foi

colocado em segundo plano no que tange a seus institutos servirem de base para

uma teoria geral do processo28. No Brasil, se pensa o processo penal a partir de

uma teoria geral do processo civil, talvez devido ao fato de ser o Decreto-Lei n.°

3.689, de 3 de outubro de 1941 (CPP/41), uma legislação mais antiga que a Lei

n.° 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (CPC/73). Tal situação acarreta um processo

penal forçado a se adequar à estrutura teórica do processo civil. De uma forma

desprovida de cientificidade o CPP/41 é levado a integrar essa teoria geral do

processo civil, de bases relacionistas. Essa questão já havia sido pontuada no

Direito brasileiro por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (1998, p. 134; 136;

146), e cada vez mais é evidenciada, inclusive nas reformas recentes

implementadas no CPP/41 pelas Leis n.° 11.690/08 e Lei n.° 11.719/08, como

agora reforça Flaviane de Magalhães Barros (2008a, p. 107).

O revogado art. 43 do CPP/41, por exemplo, era aplicado a partir da

tentativa de adequá-lo a uma teoria das condições da ação prevista no art. 267,

VI do CPC/73 (como sistematizado por Bülow e adaptado por Liebman), de forma

que a atipicidade do fato narrado na denúncia era tratada como impossibilidade

jurídica do pedido, e a extinção da punibilidade era concebida como hipótese de

falta de interesse de agir. Com a reforma implementada pela Lei n.° 11.719/08,

com a nova redação dada ao art. 395, inciso II do CPP/41, novamente há um

problema em se tentar aplicar as idéias relacionistas do CPC/73 ao CPP/41, uma

vez que os incisos III e IV do art. 397 do CPP/41 determinam a absolvição

sumária do denunciado em caso de atipicidade ou extinção da punibilidade.

Assim, sobre um mesmo ponto, duas situações são possíveis, decisão

absolutória ou decisão de inépcia da exordial acusatória.

Como se não bastasse, embasado em uma Teoria do processo como

relação jurídica, o CPP/41 (era Vargas) permite uma postura mais autoritária do

juiz no processo que o próprio CPC/73, até mesmo porque criado a partir do

Código de Processo Penal italiano de 1930, no contexto histórico-político do

fascismo (questão claramente apresentada na Exposição de Motivos do CPP/41).

Essas concepções estão inseridas na procedimentalidade do CPP/41,

28

Nesse sentido, reforçando as bases instrumentais da relação jurídica processual, assim se manifestam os adeptos dessa concepção: “A teoria da relação processual, que surgiu com vista ao processo civil e na teoria deste foi desenvolvida, discutida e consolidada, tem igual validade para o direito processual penal ou o trabalhista” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2008, p. 304).

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32

como visto, e são aplicadas sem maiores questionamentos no Direito brasileiro,

mesmo após 1988. As propostas do instrumentalismo, em termos teóricos, se

concretizam em alguns momentos no CPP/41, convergindo para a constatação da

noção de subordinação das partes ao juiz e reforçando seu poder-dever no

processo. O problema é que, mesmo após a “implementação” de um Estado

Democrático de Direito, essas concepções continuam a influenciar a produção

legislativa no Brasil.

Na gestão da prova, por exemplo, a busca pela verdade real autoriza a

indevida ingerência do juiz na produção da prova (ALMEIDA, 2008, p. 119). Tucci

(2008, p. 178-179; 230), chega a defender a produção da prova de ofício pelo

juiz, concebendo como benéfica a inquisitoriedade na persecução penal. O art.

156 do CPP/41, seja na redação original29 ou em sua redação definida pela Lei

n.° 11.690/0830, reforça essa concepção relacionista do juiz no centro do

processo e demonstra a influência desse entendimento na elaboração de leis no

Brasil, uma vez que houve ampliação na atuação de ofício do juiz, inclusive, em

sede de produção antecipada de provas, para autorizá-lo a produzir provas

antecipadamente e de ofício.

Em alguns momentos relacionados ao recurso, no CPP/41 também há

concretização da idéia relacionista do juiz como o centro do processo, reforçando

as idéias de subordinação e poder-dever, bem como o entendimento do duplo

grau de jurisdição como princípio que pode deixar de ser atendido na

infraconstitucionalidade. A decisão judicial que recebe a denúncia, nos termos do

art. 41 do CPP, por exemplo, é irrecorrível. A instauração de um processo

criminal contra qualquer cidadão é intocável por via recursal, e todos os ônus de

ter contra si um processo penal virão à tona. Ao contrário, se essa decisão não

receber a denúncia, poderá ser atacada via recurso em sentido estrito. Com base

em um procedimento investigatório, o MP, titular da ação penal e órgão oficial

acusador, oferece denúncia contra um suposto autor de um delito. O juiz entende

que o processo não deve ser instaurado e deixa de receber a denúncia, decisão

29

Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer; mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante. 30

Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: I- ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.

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33

que caberia recurso em sentido estrito a ser interposto pelo MP. Entretanto, o

cidadão que tem contra si instaurado um procedimento penal não pode utilizar

das vias recursais para tentar modificar a decisão que lhe afeta.

A decretação de uma prisão cautelar, como a prisão preventiva, por

exemplo, com fundamento no art. 312 do CPP/41, da mesma forma, é uma

decisão irrecorrível. O juiz, em sede de cautelaridade, de ofício (pela redação

original do CPP/41), ou a requerimento da autoridade policial ou do MP, sem

ouvir o afetado pela suposta decisão, decreta sua prisão em sede cautelar.

O habeas corpus que pode atacar decisão de recebimento da denúncia ou

decretação de preventiva, ou qualquer das decisões mencionadas, é exatamente

um substitutivo ao recurso que não é previsto nessas fases do procedimento. A

mesma situação é constatada no mandado de segurança que, diante das

reformas no CPC/73, poderá ser utilizado em situações onde seria possível

interposição de agravo de instrumento.

A aplicação do Direito, no Brasil, está baseada na instrumentalidade do

processo, como demonstrado pela postura que os Tribunais adotam no que tange

à posição do juiz, tomando como exemplos os dispositivos legais apontados.

Todos os dispositivos aqui citados para pontuar a questão, diante do declarado

Estado Democrático de Direito, deveriam ser considerados como não

recepcionados pelo texto constitucional de 1988, ou mesmo inconstitucionais,

devido à incompatibilidade com o novo paradigma ou com o paradigma em que

foram criados. Entretanto, toda essa concepção ainda fundamenta a elaboração

de leis no Brasil, leis como as de n.° 11.689/08, n.° 11.690/08 e n.° 11.719/08,

que ratificam a posição superior do juiz no processo.

A perspectiva do processo centrada no papel do juiz contribui para a

concepção de que limitações recursais não acarretem, a priori, qualquer tipo de

incongruência com o Direito ou mesmo perplexidade nos juristas. Como o juiz é o

eixo do processo, limitações ao princípio do duplo grau de jurisdição são

perfeitamente admissíveis, por respeito àquele eixo, aliado ao fato de não se

constituir o princípio do duplo grau de jurisdição em uma garantia constitucional.

Entender o processo como relação jurídica entre juiz, autor e réu, dotado de escopos

metajurídicos, em que o juiz é o centro e o tradutor desses escopos para o processo,

justifica o duplo grau de jurisdição em sua pessoa, como já exposto no item anterior.

O duplo grau justifica-se, em relação ao juiz, como forma de “pressão psicológica”

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34

para que bem desempenhe sua função de sentenciador, pois, se assim não o fizer,

terá sua decisão revisitada por magistrados mais experientes e hierarquicamente

superiores (GRINOVER; GOMES FILHO; FERNANDES, 2008, p. 20; GRINOVER;

CINTRA; DINAMARCO, 2008, p. 81). O juiz é o responsável único e solitário pela

função jurisdicional (produção da decisão) nessa concepção.

A posição do juiz no instrumentalismo, aliada à concepção de processo como

instrumento da jurisdição, circunscrito ao conteúdo do duplo grau nesse mesmo

contexto, dão reforço à chamada “Reforma do Judiciário” sem que se opere qualquer

questionamento crítico-científico, seja em sede de processo legislativo ou de

processo jurisdicional, o que corrobora a viabilidade técnica do instituto da

repercussão geral das questões constitucionais como mais um requisito de

admissibilidade do recurso extraordinário. O problema é pensar esse requisito de

admissibilidade no recurso extraordinário no processo penal, questão a ser pontuada

adiante (Capítulo 5).

2.3 “Reforma do Judiciário” e o instituto da repercussão geral das questões

constitucionais

No presente item pretende-se pontuar os argumentos que fundamentam a

“Reforma do Judiciário” e apontar como suas bases convergem com a concepção

instrumentalista do princípio do duplo grau de jurisdição e com a posição do juiz

no processo jurisdicional até então apresentadas. Principalmente no que tange à

influência dessas concepções nas reformas processuais que atingiram a teoria dos

recursos no Brasil, com a implementação do instituto da repercussão geral das

questões constitucionais como requisito de admissibilidade do recurso

extraordinário.

Nesse contexto, valendo-se da reconstrução histórica dos movimentos

reformistas proposta por Dierle José Coelho Nunes (2006; 2008), na quadra da

modernidade compreendida entre a crise do paradigma liberal e a passagem para

o paradigma social, serão pontuados os argumentos ideológicos que sustentam

as reformas no Brasil, inclusive na chamada “Reforma do Judiciário”,

implementada pela Emenda Constitucional n.° 45/04.

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35

2.3.1 As bases das reformas processuais no Brasil

Os estudos do processo e as reformas na história da legislação processual,

no que concerne à técnica processual, ocorrem em âmbito de um movimento

pendular entre dois extremos (NUNES, 2006, p.50)31. Isto é, define-se a partir de

duas bases teóricas tradicionais dos séculos XIX e XX. De um lado priorizava-se

o procedimento escrito, de cognição exauriente e baseado na não-fungibilidade

das formas, com prevalência do papel das partes, movimento chamado

liberalismo processual. De outro lado priorizava-se o procedimento oral,

buscando celeridade e baseado na fungibilidade, com prevalência do papel do

juiz no processo, movimento designado por socialização processual (NUNES,

2008, p. 55; NUNES, 2006, p. 1).

Em termos de compreensão entre os paradigmas liberal e social, como

ressalta Lenio Streck (1999, p. 137-204), com a “virada lingüística”32 na Teoria do

Direito, a interpretação jurídica está circunscrita à pré-compreensão, ao

paradigma em que se insere. Habermas (2005, p. 469-532), ao estruturar sua

noção de paradigmas jurídicos, demonstra como a organização do Estado,

implementada em determinada época, exerce influência na formação e aplicação

dos sistemas processuais, orientando a hermenêutica jurídica calcada nesse

paradigma. Segundo mencionado autor,

é evidente que os peritos não apenas interpretam as distintas proposições normativas a partir do direito considerado como um todo, mas também a partir de uma pré-compreensão da sociedade contemporânea, que a rege em todo seu trabalho de interpretação

(HABERMAS, 2005, p. 469, tradução nossa)33

.

Isso porque qualquer texto jurídico é objeto de interpretação, entretanto,

essa atividade interpretativa deve estar delineada por um pano de fundo

assentado na gramática das práticas sociais, o que permitirá a que essas práticas

31

Da mesma forma Habermas (2002, p. 303) expõe que a própria política do Direito oscila entre esses dois paradigmas jurídicos da modernidade (Estado Liberal e Estado Social). 32

Oliveira (2006) prefere o termo “giro hermenêutico-pragmático”, ou “reviravolta lingüístico-pragmática”. 33

Y entonces queda claro que los expertos no sólo interpretan las distintas proposiciones normativas a partir del contexto que esas propsiciones tienen en el corpus del derecho considerado em conjunto, sino también desde el horizonte de uma pre-comprensión de la sociedad contemporánea, la cual resulta rectora em todo su trabajo de interpretación.

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sejam enquadradas em visões de mundo condizentes com contextos

determinados. Significa dizer que a atividade interpretativa de todos os

operadores jurídicos, seja na aplicação do Direito ou na elaboração dos textos

normativos, está vinculada ao paradigma jurídico em que está inserido

(CARVALHO NETTO, 1998, p. 235-237).

Assim, aquelas duas bases teóricas que estão sempre oscilando na

história do Direito Processual (liberalismo processual e socialização processual)

estão vinculadas aos dois macromodelos de Estados (paradigmas jurídicos) uma

vez que, por razões históricas, estão inseridas nas respectivas fases da

modernidade em que foram pensadas (Estado Liberal e Estado Social).

Cappelletti e Garth (1988, p. 12) expõem que as técnicas processuais servem a

funções sociais e, citam Klein, para quem “o processo civil está, de fato,

estreitamente ligado aos grandes movimentos intelectuais dos povos (KLEIN

apud CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 12). Percebe-se, assim, na estruturação

técnica dos procedimentos, “uma construção que retrata o próprio ideal do papel

dos indivíduos na sociedade de determinada época” (NUNES, 2008, p. 56).

Esses modelos de Estado (Liberal e Social) são, na verdade, dois dos

grandes paradigmas da modernidade, cuja análise, no contexto da influência nas

reformas processuais, permitirá uma melhor compreensão do paradigma

positivado na CR/88, que constitui o terceiro paradigma da modernidade, o do

Estado Democrático de Direito (CARVALHO NETTO, 1998, p. 237).

Nesse sentido, importante reconstruir as duas compreensões da posição

do processo nos paradigmas liberal e social para aferir as diferentes formas no

tratamento da posição do juiz nesse processo e constatar como essas posturas

têm reflexo, atualmente, no entendimento acerca do duplo grau de jurisdição.

O Estado Liberal, fruto das concepções burguesas, do século XII até a

primeira metade do século XIX (NUNES, 2006, p. 2), pressupõe cidadãos auto-

suficientes que, independente de qualquer auxílio estatal, podem defender seus

direitos (HABERMAS, 2005, p. 478; 479).

O processo, nessa quadra histórica, era considerado coisa das partes,

sendo que sua técnica e seu desenvolvimento era por elas dominado, cabendo às

partes alongar ou acelerar o procedimento a seu critério. Em uma perspectiva

privatística então, o processo era tido como mero instrumento de solução de

conflitos. Os atos processuais eram predominantemente formais e escritos, e o

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papel do juiz resumia-se ao julgamento, pois era proibido do contato direto com

as provas para não se tornar parcial, vedado qualquer ativismo judicial (NUNES,

2006, p. 2; NUNES, 2008, p. 62; 73).

O juiz, no Estado Liberal, cumpria o papel de “mero expectador passivo e

imparcial do debate, sem quaisquer ingerências interpretativas” (NUNES, 2008, p.

77). No liberalismo processual, assim, o juiz estava totalmente vinculado à lei,

cabendo apenas à sua atividade interpretativa o esclarecimento de obscuridades

(BAHIA, 2004, p. 305).

O Estado Liberal tentava romper com as monarquias absolutistas que

defendiam a ingerência consistente do monarca (Estado-religião) nas relações

privadas (PICARDI, 2008, p.82), na busca por um Estado minimalista que

corrigisse os erros do absolutismo, limitando, por conseguinte, o poder desse

Estado34.

Assim, a perspectiva burguesa privilegiava o individualismo, sendo que o

Estado deve ter atuação negativa no sentido de fomentar e respeitar a liberdade

individual (NASCIMENTO, 2004, p. 22; 25; CRUZ, 2001, p. 218). Nessa

perspectiva individualista, os direitos fundamentais eram vistos como pré-

existentes ao Estado, cabendo a esse somente uma postura no sentido de evitar

que fossem infringidos por outros, acarretando uma proteção meramente formal,

mas não efetiva (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 9).

O mercado e a sociedade econômica estão isentos de restrição pelo

Estado, por meio de uma interpretação, nesse paradigma, do princípio da

liberdade. A autonomia privada é privilegiada pela proteção das liberdades

clássicas do direito privado, quais sejam, os direitos da personalidade e da

proteção do indivíduo, a autonomia dos contratos, os direitos de propriedade e os

direitos de associação privada. A autonomia privada se expressa através do

direito a iguais possibilidades de exercício de iguais liberdades subjetivas de

ação (HABERMAS, 2005, p. 481-482).

A intervenção judicial nos contratos, por exemplo, não se adequava a uma

perspectiva liberal, sendo típica desta época a expressão pacta sunt servanda.

Não só o direito privado e a dicotomização do Direito em público e privado

tiveram suas bases no paradigma liberal (HABERMAS, 2005, p. 478). O

34

Noticia Picardi (2008, p. 83) que “O direito era reduzido à lei, e a lei à vontade do soberano”.

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liberalismo processual teve sua base nesse paradigma, a partir da formação dos

grandes estados liberais burgueses. Na teoria das nulidades, por exemplo,

percebe-se o reflexo de tal paradigma na rigidez das formas que regula a

questão. Outro exemplo seria o ônus da prova, ocasião em que foi cunhada a

expressão “dá-me os fatos que te darei o direito”35.

Os processos dimensionados nessa fase histórica guardavam as seguintes

características: 1) o processo era eminentemente dispositivo, ou seja, era coisa

das partes e o juiz não agia senão mediante provocação e, sem ativismo, se

portava como espectador passivo do debate das partes; 2) “monopólio do

procedimento escrito”, o que acarretava a proibição de contato do juiz com as

provas, vez que tal contato implicava em sua parcialidade, o que deu origem ao

sistema de apreciação de provas denominado tarifário ou da prova legal36; 3)

presunção legal de igualdade entre as partes, decorrente da presunção de auto-

suficiência dos cidadãos dessa quadra histórica (NUNES, 2008, p. 64-65; 73).

O Estado Liberal trazia uma igualdade econômica e social pressuposta entre

os indivíduos, pois previa a inexistência de qualquer disparidade entre eles

(HABERMAS, 2005, 483). Tal situação gerava, no liberalismo processual, uma

impossibilidade de compensação dessas desigualdades pelo Estado (atividade

judicial e/ou advogados financiados pelo Estado) e fomentava o entendimento do

contraditório como mera bilateralidade de audiência (NUNES, 2008, p. 74-75). O

princípio dispositivo sustentava a questão, uma vez que, por ele, “o liberalismo

processual idealizou uma concepção de protagonismo processual das partes”, onde

o desenvolvimento do procedimento e os prazos dependiam da vontade dessas

partes (AROCA apud NUNES, 2008, p. 76-77).

Mas o liberalismo processual puro gerou uma série de problemas, aliados à

própria insatisfação social com o modelo de Estado Liberal, dando margem ao uso

da luta entre partes e da esperteza entre os advogados (NUNES, 2008, p. 77). Essa

situação fomentava um processo moroso e complexo. As principais características

do liberalismo processual (igualdade formal e princípio dispositivo), somadas às

características oriundas dos processos pré-liberais (escrituração e domínio das

35

A expressão tem relevância também no contexto jurídico brasileiro, uma vez que se amolda à concepção de processo proposta por Bülow, onde o juiz é o sujeito processual que tem conhecimentos para dizer o direito no caso concreto, como centro da teoria geral do processo. 36

Onde a própria legislação considerava tal ou qual prova com mais credibilidade e “peso” em relação a outra, influenciando no julgamento, objetivamente.

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39

partes), foram o estopim para a busca de outro paradigma de Estado e,

conseqüentemente, de processo.

Buscou-se um contraponto, então, para esse modelo processual oriundo de

uma concepção de Estado Liberal e para o próprio paradigma interpretativo

[...] com uma nova perspectiva teórica que, problematizando os efeitos deletérios do liberalismo, tentava melhoria da técnica processual mediante novos pressupostos (NUNES, 2008, p. 77).

Os direitos fundamentais necessitavam de uma nova interpretação que

repudiasse uma visão individualista meramente proclamada nas “declarações de

direitos”, buscando, assim, uma interpretação coletiva que os tornasse efetivos,

ou seja, acessíveis a todos (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 10-11).

O paradigma social, assim, como um novo paradigma jurídico, surge da

crítica reformista ao direito formal burguês (HABERMAS, 2005, p. 483). O Estado

Social, a partir de metade do século XIX (HABERMAS, 2005, p. 479), já

pressupõe a existência de cidadãos hipossuficientes, carentes de atuação

assistencial do Estado para busca e defesa de seus direitos. Utilizando

legislações sociais, nesse paradigma oriundo da luta de classes implementada

pela Revolução Industrial (CRUZ, 2001, p. 219-220), acreditava-se que assim

haveria correção do maior inconveniente criado pela exploração, sem

precedentes históricos, do Estado Liberal, a desigualdade econômica e social

(BAHIA, 2004, p. 306). O Estado necessitava, então, de uma atuação positiva

para que pudesse assegurar o gozo daqueles direitos simbolicamente

proclamados (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 11).

O Estado Social idealizava o direito como instrumento de transformação

social, como tentativa de solução dessa desigualdade social, ou seja, um Estado

Social providente que cuida da existência dos indivíduos, que, distributivamente,

reparte oportunidades de vida, garantindo a todos uma base para uma existência

humana digna através do Direito (HABERMAS, 2005, p. 489). O Estado, assim,

passa a interferir em diversas áreas da sociedade, não apenas legislativamente,

mas participando diretamente dessa intervenção37, não só ratificando a

segmentação público-privado oriunda do Estado Liberal, como ampliando a

37

Por meio de fundações ou autarquias criadas e mantidas pelo próprio Estado (BAHIA, 2004, p. 308).

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40

concepção de esfera pública (BAHIA, 2004, p. 308).

Nesse paradigma socializante, buscava-se a efetiva materialização

daqueles direitos que foram apenas formalmente previstos no paradigma liberal.

O paternalismo do Estado Social conta com a materialização dos direitos de

liberdade acarretando a criação de outros direitos, todos baseados no coletivo, no

bem comum (HABERMAS, 2005, p. 485), como previdência, saúde e assistência

social. Ao Estado Liberal coube a previsão dos direitos fundamentais e ao Estado

Social sua materialização, partindo da idéia de que “o mero elenco de direitos não

era suficiente para garantir igualdade e liberdade reais e o efetivo acesso à

propriedade” (BAHIA, 2004, p. 307).

Assim, a sociedade passa de auto-suficiente a credora/cliente do Estado,

“cobrando-lhe prestações positivas que permitam uma melhoria na qualidade de

vida do proletariado”. O chamado Estado Providência não admite um Estado

minimalista ou não intervencionista. O Estado busca agora a implementação de

uma sociedade mais justa, através da positivação de políticas públicas que

possam viabilizar direitos sociais, coletivos e econômicos (CRUZ, 2001, p. 220-

221).

Visando suplantar as deficiências do paradigma liberal, o Estado Social

reflete hermeneuticamente no processo de forma a enfraquecer o papel das

partes e reforçar o papel dos magistrados, dentro das perspectivas teóricas

idealizadas por Anton Menger (1890), Franz Klein (1895) e Oskar Bülow (1868)

(NUNES, 2008, p. 77).

Enquanto o liberalismo processual trabalhava com os princípios da

instrumentalidade das formas e dispositivo, a socialização processual passou a

lidar com os princípios da imediatidade, da oralidade, da identidade física do juiz

e da concentração. Nessa fase autonomista do Direito Processual, privilegiou-se

a oralidade, como mecanismo de aceleração prática dos atos processuais, com

aumento de ingerência do Estado-juiz, responsável pela direção do processo

(NUNES, 2008, p. 55-57). Oralidade e concentração eram princípios defendidos

para tentar a redução de dois inconvenientes trazidos pelas demandas, a duração

e o custo do processo (NUNES, 2006, p. 9).

Menger38 defendia uma concepção socializadora do direito, passando por

38

Obra publicada em 1890, “O direito civil e os pobres”, no original em alemão: “Das Burgerliche Recht und die Besitzlosen Volkslassen” (NUNES, 2008, p. 80).

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41

uma “crítica à lógica liberal de liberdade das forças políticas e econômicas”,

mediante intervenção legislativa. Sua crítica se dirigia especialmente à complexidade

da jurisdição e à passividade judicial, na tentativa de superar a igualdade formal do

liberalismo (NUNES, 2008, p. 79-80).

Menger então propõe um reforço legislativo do papel do juiz, em uma

verdadeira revolução no direito processual, deixando de ser mero expectador das

partes. Assim, extraprocessualmente o juiz deveria ter papel de educador, instruindo

os cidadãos acerca de seus direitos. Endoprocessualmente o juiz deveria adotar a

postura de representante dos mais pobres, compensando, assim, os déficits de

igualdade material entre as partes (NUNES, 2008, p. 80-81).

As idéias de Menger refletiram na “moldagem da primeira legislação

tipicamente socializadora”, obra de um aluno seu, Franz Klein, que, como Ministro da

Justiça no Império austro-húngaro, em 1895, editou a Ordenança processual civil do

Império austro-húngaro - ÖZPO (NUNES, 2008, p. 81).

Klein defendia uma reestruturação do papel das partes e dos juízes no

processo, em uma postura nitidamente antiliberal e autoritária, de modo a evidenciar

o significado39 político, econômico e social do processo. Em Klein o processo era

uma “instituição estatal de bem estar social”, cujo objetivo era a busca da pacificação

social, a serviço do direito e do bem comum (NUNES, 2008, p. 83).

Segundo Klein

delineiam-se as bases para uma avaliação sócio-político-econômica do conflito como chaga social que deveria ser estirpada por uma jurisdição salvadora, à qual caberia, no âmbito de um pensamento econômico e quantitativo, oferecer um processo rápido (KLEIN apud NUNES, 2008, p. 86).

O processo em Klein, então, é uma instituição de bem estar social com a

finalidade de pacificar os conflitos, que têm de se eliminar com a máxima rapidez

possível (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 76). Daí a importância da oralidade e

da concentração para aceleração dos procedimentos.

Nessa concepção, ganha força a discricionariedade do juiz, pela técnica

legislativa de adoção de conceitos jurídicos indeterminados, que Klein chamava

de “conceitos amplos”, a serem completados valorativamente pelo juiz,

depositando nele (o juiz) considerável espaço para seu pensamento original, fruto

39

Ou escopos, como já preferem os instrumentalistas (DINAMARCO, 2008).

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de sua sabedoria, subjetivista (NUNES, 2008, p. 84).

A função supletiva e assistencial do juiz proposta por Menger,

implementada por Klein na codificação austríaca, rompeu com a concepção

liberal de processo e serviu de base para a reforma dos sistemas processuais do

mundo no final século XIX e todo século XX (DENTI, TARUFFO apud NUNES,

2008, p. 86-87). “Impunha-se, assim, no âmbito do discurso legislativo, a

socialização processual, com implementação, no campo da técnica, do

protagonismo judicial” (NUNES, 2008, p. 89).

Alemanha e Itália foram dois países que adotaram a concepção de Menger

e Klein (NUNES, 2008, p. 88-98). Na Itália, por sua vez, as idéias de Menger

foram difundidas por Calamandrei, no contexto do Codice italiano de 1940, para

quem o processo não é apenas instrumento dos direitos privados, mas também, e

antes de tudo, um meio de atuação da vontade do Estado, representado pelo juiz.

Permitia, assim, um maior exercício da discricionariedade pelo juiz mediante uma

atuação mais incisiva do princípio autoritário, privilegiando a busca por celeridade

e acentuando o instituto da preclusão (CALAMANDREI apud NUNES, 2008, p.

95).

Já nos países latino-americanos ocorreu a difusão das concepções de

Menger por Chiovenda, quando de sua proposta de reforma do Codice de 1920.

O projeto de Chiovenda defendia o princípio da oralidade aliado à imediatidade

entre o juiz e as provas orais, para permitir sua valoração, identidade física do

juiz, irrecorribilidade das decisões interlocutórias, concentração de audiências e

autoritarismo (NUNES, 2008, p. 96).

Apesar do projeto elaborado por Chiovenda não ter sido convertido em lei,

com base em seu relatório sobre o projeto os autores latinos começaram a

difundir as idéias de Klein “para implementação de reformas legislativas nos

respectivos países”, de forma que até hoje comemoram essas tendências como

se novidades fossem (NUNES, 2008, p. 96).

No Brasil, portanto, essas concepções influenciam as reformas ainda hoje,

e tiveram início com a elaboração do Código de Processo Civil de 1939. Tendo

como base a concepção do modelo social de Estado vigente à época (era

Vargas/Estado Novo), o reforço do papel do juiz no processo foi a tônica do

CPC/39, calcada no discurso de restauração da autoridade estatal no processo

pelo juiz, cujo fundamento era a prevalência do interesse social sobre o interesse

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individual (NUNES, 2008, p. 96-97). O objetivo era reforçar o papel do juiz

legando às partes apenas o ato de deflagrarem os procedimentos.

Apesar da introdução embasada no Estado Social, resquícios liberais foram

constatados, já na época do CPC/39. Apesar da previsão do princípio da oralidade,

as argumentações eram desenvolvidas por escrito, o que acarretava descaso ao uso

do procedimento oral (NUNES, 2008, p. 98).

O liberalismo processual também não foi extirpado por completo no Brasil,

ainda hoje, mesmo com o CPC/73 e as recentes reformas processuais (NUNES,

2008, p. 98). Autos do processo são a regra na pragmática forense, demonstrando

que a escrituração ainda prevalece, bem como apontando que a vigência do

princípio dispositivo também ainda é constatada. Taruffo (1980, p. 31), após

descrever os movimentos codificadores que explodem na história do Direito com as

idéias iluministas da segunda metade do século XVIII, expõe também que essa nova

tendência não teve o condão de reestruturar por completo o sistema processual,

ocorrendo a manutenção das bases do processo pré-liberal (escrituração e domínio

das partes).

Por sua vez, denúncia acontece no sentido de que

o único aspecto da socialização que se implementou no Brasil foi o de se reforçar o papel da magistratura e a credulidade de sua superioridade, ao se partir de um suposto privilégio cognitivo, que encontra suas bases no âmbito da teoria do processo, no pensamento de vários autores, mais notadamente no de Oskar von Bülow (NUNES, 2008, p. 98).

Contemporâneo de Klein (1895) na tentativa de superação do modelo do

liberalismo processual, Bülow (1868), na Alemanha, desenvolve cientificamente sua

teoria do processo como relação jurídica com fulcro na aplicação solitária e sensível

do juiz no processo jurisdicional (NUNES, 2008, p. 98). Apontando a influência do

paradigma de Estado Social em sua teoria, para o reforço do papel do Estado-juiz no

processo, Bülow implementa um protagonismo judicial vinculado a uma

subordinação das partes aos tribunais e juízes (partes como meras expectadoras),

sendo que a decisão judicial não se traduz apenas na aplicação de uma norma, mas

também em atividade criadora do Direito40. Essa atividade criadora do Direito

desenvolvida pelo juiz no processo, por sua vez, está atrelada a critérios subjetivos,

40

É em 1885, portanto, que Bülow revela integralmente sua proposta embrionária, iniciada em 1868, em defesa do protagonismo judicial em obra traduzida por Lei e função judicial, no original: Gesetz und Richteramt (NUNES, 2008, p. 100).

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tendo em vista seu desenvolvimento com sabedoria e sensibilidade (NUNES, 2008,

p. 100-101), como já exposto no item 1.2.

Assim, Bülow vê no juiz um captador do sentimento jurídico do povo (valores),

cujas decisões são autorizadas em virtude de sua atividade criadora do Direito, uma

vez que é representante do Estado no processo (NUNES, 2008, p. 102). Nesse

sentido o juiz pode, até, contrariar o Direito, uma vez que o ordenamento jurídico é

construção jurisprudencial, e, assim, pode decidir com base em sua consciência.

Segundo Dantas (2008, p. 61), o juiz realiza a ordem jurídica através da investigação

da solução mais justa ao caso concreto, por meio de sua criatividade judicial, que lhe

é peculiar.

A concepção de processo como relação jurídica desenvolvida por Bülow

(1964), por sua vez, como mencionado no item anterior, é a base da teoria

instrumentalista do processo, que tem orientado todas as reformas processuais até

então no direito processual brasileiro. A jurisdição consiste, assim, na atividade do

juiz de criar o direito representando o Estado, com auxílio da sua experiência de

vida, dos seus valores e do seu sentimento de justiça. Por isso o estudo da Teoria

do processo pelos instrumentalistas parte da jurisdição como seu eixo central, o que

autoriza a concepção do juiz como protagonista no processo, dando sustentação ao

duplo grau como princípio mitigável na via da infraconstitucionalidade.

Perceptível, assim, que a proposta dessa linha do Direito Processual paulista

(DINAMARCO, 2008),

que busca o aprimoramento do sistema jurídico mediante a boa escolha de juízes, seu decorrente ativismo judicial e a aplicação solitária do direito com sensibilidade, encontra parte de suas raízes nos pensamentos de Menger e Bülow, na doutrina, e de Klein, na legislação (NUNES, 2008, p. 103).

No segundo pós-guerra, o movimento pela socialização processual atinge

seu apogeu com o Projeto Florença de Acesso à Justiça, realizado de 1973 a

1978, cuja direção cabia a Mauro Cappelletti. O projeto consistiu na realização de

relatórios por juristas de 23 países41, onde relataram os problemas de seus

respectivos sistemas jurídicos, apontando possíveis soluções (FERNANDES;

41

Austrália, Áustria, Bulgária, Canadá, Chile, China, Colômbia, Inglaterra, França, Alemanha, Holanda, Hungria, Indonésia, Israel, Itália, Japão, México, Polônia, União Soviética, Espanha, Suécia, Estados Unidos e Uruguai (NUNES, 2008, p. 115).

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PEDRON, 2008, p. 92)42.

O Projeto Florença foi desenvolvido na quadra histórica da concepção do

Estado Social e, em conseqüência, trouxe consigo os reflexos desse paradigma

para as bases teóricas do processo (procedimentos orais e o reforço do papel do

juiz), já defendidas anteriormente por Klein.

Além da defesa das bases teóricas lançadas por Klein, o movimento pelo

acesso à justiça decorrente do Projeto Florença idealizava três ondas reformistas

consistentes em: 1) a primeira onda seria a implementação da assistência jurídica

integral e gratuita (CAPPELLETTI; GARTH, 2008, p. 31-49); 2) a segunda onda

reformista desaguaria na implementação de mecanismos de defesa dos

interesses difusos e coletivos (CAPPELLETTI; GARTH, 2008, p. 49- 67); 3) a

terceira onda, por fim, pensava na simplificação procedimental, buscando formas

privadas e informais de solução de conflitos, em cumulação com o processo

jurisdicional (CAPPELLETTI; GARTH, 2008, p. 67-73).

O Projeto de Florença e seu decorrente movimento pelo acesso à justiça

passaram a servir de base para os movimentos reformistas a partir de então

(FERNANDES; PEDERON, 2008, p. 82; NUNES, 2008, p. 115), figurando como

um marco importante para o Direito Processual, com nítida influência no modelo

brasileiro.

Na quadra da modernidade compreendida entre a crise do paradigma

liberal e a passagem para o paradigma social, foram apontadas as bases das

reformas processuais no Brasil. Percebe-se, então, como convergem com a

concepção instrumentalista do princípio do duplo grau de jurisdição (que vai

orientar a teoria dos recursos) e com a posição do juiz no processo jurisdicional

por eles defendida.

2.3.2 “Reforma do Judiciário”: argumentos das reformas processuais no Brasil

e o instituto da repercussão geral

A partir da exposição das bases das reformas processuais, serão

pontuados os argumentos ideológicos que sustentam, no Brasil, a chamada

42

Nesse sentido ver também (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 7) e (NUNES, 2008, p. 115).

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“Reforma do Judiciário”, cuja implementação, em nível constitucional, aconteceu

pela Emenda Constitucional n.° 45/04. Nesse contexto, será apontada a influência

desses argumentos na teoria dos recursos, o que permite pensar a mitigação do

princípio do duplo grau pelos autores e pela jurisprudência nacionais, pois se

ancoram na posição instrumentalista do juiz no processo e em concepções

estranhas ao paradigma do Estado Democrático de Direito. Todos esses argumentos

dão ensejo à justificação e aplicação do instituto da repercussão geral das questões

constitucionais como requisito intrínseco de admissibilidade do recurso

extraordinário, no Direito brasileiro, sem maiores questionamentos de cunho

científico, hermenêutico ou pragmático.

A socialização processual e o decorrente movimento pelo acesso à justiça

refletiram no Brasil a partir da segunda metade da década de oitenta e durante toda

a década de 90, dando azo a deflagrarem uma nova tendência pragmática nos

estudos do Direito Processual brasileiro. Essa nova tendência repercutiu, por

exemplo, no delineamento de institutos como a ação civil pública (Lei n.° 7.347/85),

as ações coletivas (Lei n.° 8.078/90, art. 81 e seguintes), a antecipação de tutela (Lei

n.° 8.952/94), os Juizados Especiais (Lei n° 9.099/95) e nas inúmeras alterações no

CPC/73, que ainda repercutem atualmente nas alterações manejadas no Direito

Processual brasileiro, como recentemente aconteceu no CPP/41 (Leis n.° 11.689/08,

n.° 11.690/08 e n.° 11.719/08).

Entretanto, no Brasil, o discurso da socialização processual de reforço do

papel dos juízes (Menger, Klein e Bülow) vem reforçado e acompanhado do

incentivo dos instrumentalistas ao estudo de escopos metajurídicos da jurisdição

(NUNES, 2008, p. 141), escopos esses sociais e políticos (DINAMARCO, 2008, p.

177-207; 313-361).

No plano doutrinário, Dinamarco (2008), influenciado por concepções

socializantes, coloca o juiz (jurisdição) como eixo-central da teoria do processo

(DINAMARCO, 2008, p. 90-96). Processo esse, por sua vez, entendido como

instrumento colocado à disposição da jurisdição para realização de seus escopos

metajurídicos, mediante a intervenção do Estado-juiz (DINAMARCO, 2008, p. 148-

162).

Assim, Dinamarco (2008)43 nada mais fez que repetir os argumentos que

43

O reforço do papel do juiz e o estudo dos escopos metajurídicos da jurisdição têm início com a obra “A Instrumentalidade do Processo”, publicada pela primeira vez, por Cândido Rangel Dinamarco

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Klein (1895) já havia implementado no âmbito legislativo (NUNES, 2008, p. 142),

cujos reflexos incidiram no âmbito doutrinário do processo, como já apontado,

através de Bülow (1964), e que, no Brasil, chegaram pelo plano doutrinário da

instrumentalidade do processo, de bases assumidamente relacionistas

(DINAMARCO, 2008, p. 149; CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2008, p. 301).

No que se refere à legitimidade das decisões na socialização processual, que

se opera pelo protagonismo judicial (Estado-juiz), os instrumentalistas sustentam a

aplicação do Direito pela mente sapiente e sensível do magistrado, que capta os

valores sociais latentes na sociedade e os traduz no processo, visando a “justiça” e o

“bem comum”. Nesse sentido, o juiz funciona como “canal de comunicação entre a

carga axiológica atual da sociedade em que vive e os textos legais”, de modo que a

decisão é um “ato valorativo”. “Para o adequado cumprimento da função

jurisdicional, é indispensável boa dose de sensibilidade do juiz aos valores sociais e

às mutações axiológicas da sua sociedade”, visando a correção e atualização dos

textos normativos (DINAMARCO, 2008, p. 347-348). Assim, a função jurisdicional,

no plano ideológico, assume o papel de aplicação solitária dos “valores uniformes”

da sociedade (NUNES, 2008, p. 142).

Ao afirmar que “a liberdade do juiz encontra limite nos ditames da lei”

(DINAMARCO, 2008, p. 379), a instrumentalidade tenta se afastar da “Escola de

Direito Livre” de bases bülowianas. Trata-se de um paradoxo, entretanto, que coloca

Bülow e Dinamarco no mesmo plano (conforme já elucidado no item anterior), uma

vez que, na instrumentalidade, a importância do processo está vinculada à

legitimação da atividade jurisdicional (NUNES, 2008, p. 142-143). Para Dinamarco,

Em suma: o juízo do bem e do mal das disposições com que a nação pretende ditar critérios para a vida em comum não pertence ao juiz. Este pensa no caso concreto e cabe-lhe apenas, com sua sensibilidade, buscar no sistema de direito positivo e nas razões que lhe estão à base, a justiça do caso. Tem liberdade para a opção entre duas soluções igualmente aceitáveis ante o texto legal, cumprindo-lhe encaminhar-se pela que melhor satisfaça seu sentimento de justiça (DINAMARCO, 2008, p. 235).

A participação dos cidadãos se resume a colaborar para que o juiz, como

canal da carga axiológica da sociedade, encontre uma decisão, “de acordo com uma

presumida ordem de valores” (NUNES, 2008, p.144). Nesse sentido, o próprio

(2008), em 1987, fruto de seus estudos de Especialização em Direito Processual Civil na Universidade Estatal de Milão, Itália, junto ao Prof. Enrico Túlio Liebman (1984).

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Dinamarco admite a vinculação da instrumentalidade do processo ao paradigma do

Estado Social que:

[...] pretendendo ser a providência do seu povo, sente que o bem-estar coletivo depende intimamente da sua participação efetiva nos destinos da população. Ele é, por isso, declaradamente intervencionista, agindo sobre a ordem econômica e social e buscando a sua modelagem segundo os objetivos da ideologia aceita. O pacto social, refletido na nova ordem constitucional, inclui o traçado de diretrizes da integração social e econômica da população (DINAMARCO, 2008, p. 35).

Nesse ponto, é possível uma crítica à relação jurídica aplicada ao processo

penal. Os instrumentalistas avaliam o sistema processual por uma perspectiva

externa (teleológica), e têm no processo a forma de preservação dos valores

postos axiologicamente pela sociedade e afirmados pelo Estado (FERNANDES;

PEDRON, 2008, p. 36). Dessa forma, o Direito é gerado em razão das vontades

daqueles que estão envolvidos, assim como sua aplicação, em virtude da

provocação da jurisdição pelas partes (princípio dispositivo). Surge, portanto, da

aplicação dessa teoria, um problema para o processo penal: como se dizer que o

processo penal se instaura em razão da vontade dos envolvidos?

Para Tornaghi (1987), na relação jurídica processual penal não há vínculo

entre vontades. A relação jurídica processual penal é caracterizada pelos seus

pressupostos processuais (quanto aos sujeitos e quanto ao objeto), que são seus

elementos e consistem em condição de existência do próprio processo. Esses

pressupostos processuais são as condições pelas quais se permite afirmar a

existência regular do processo. Nessa concepção as partes têm dever de se

submeterem à decisão do juiz e o Estado-juiz tem a obrigação de não negar

jurisdição, justificando a relação jurídica processual. Ademais, a proibição da

vontade privada acarreta o fato de que os interesses da sociedade no processo

são representados pelo Estado, através do MP, seja na ação penal publica, por si

mesmo, seja na ação penal privada, como fiscal da lei. Essas são as justificativas

da relação jurídica processual penal.

O problema é se pensar, no microssistema do processo penal, em uma

relação de direitos e obrigações entre MP/acusado e juiz. Mas o vínculo

obrigacional faz surgir com muita evidência, na teoria do processo como relação

jurídica, o processo como coisa das partes. E pior, na representação triangular da

relação jurídica, mais utilizada entre os processualistas penais (TORNAGHI,

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1987), ainda existe uma questão que intensifica a crítica: a existência de um

vínculo entre MP e acusado, no sentido de erigir o MP a papel de sujeito que

pode exigir do acusado determinada conduta.

Não é possível uma teoria da relação jurídica no processo penal. Não há

como explicar um vínculo entre vontades no processo penal, porque não é uma

questão somente de vontade do MP ou de vontade do particular iniciar o

processo, por uma razão óbvia, a extinção da possibilidade de exercício da

vingança privada. Com mais razão, não há como conceber vontade do juiz e

vontade do acusado, diante do fato de que o juiz não pode negar-se à jurisdição,

e mais, deve-se considerar o fato de que o direito penal só pode ser aplicado por

meio do processo penal. Conclui-se, assim, que o processo penal é necessário

para aplicação do próprio direito penal, não dependendo da vontade dos sujeitos

processuais. O Estado teria vontade em punir o acusado da prática de um delito?

Não há, portanto, que se falar, assim, em vontade dos sujeitos processuais

no processo penal (ainda que exista) e muito menos em relação jurídica

processual penal, como sustenta Tornaghi (1987), ultrapassando, de forma

problemática, a idéia de que o processo é coisa das partes (vínculo entre

vontades), onde sempre se constata uma lide (CHIOVENDA, 1940).

Em um processo democrático, como será posto no capítulo 3, é de difícil

compreensão o que venha a ser lide. Aplicar um conceito cunhado para o

processo civil, ao processo penal, baseado em uma teoria geral do processo civil

de bases eminentemente relacionistas é mais difícil ainda. É inviável a tradução

do litígio em lide por meio da instauração do processo penal. Quando se traz o

litígio para o processo, ele é traduzido em lide. A questão que se coloca é qual o

litígio traduzido em lide no processo penal? Seria o litígio do agressor com a

vítima, do agressor com a sociedade, do acusado com o MP, do agressor com o

Estado, do MP com o réu? No processo penal, não se define a lide, mas tem que

existir processo. O processo é garantia de liberdade do acusado.

Isso porque, com Fazzalari (1994)44, contraditório não é sinônimo de

conflito de interesses, como implica para os relacionistas. Consiste em igualdade

de participação, de deveres, direitos, faculdades e ônus processuais na

preparação do provimento. Afasta-se, assim, a concepção de lide no processo

44

A teoria do processo como procedimento em contraditório, um dos marcos do presente trabalho, é melhor apresentada no item 3.2.

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50

penal (COUTINHO, 1998) e constata-se a incompatibilidade entre a teoria do

processo como relação jurídica e a teoria do processo como procedimento em

contraditório, diferentemente do que entendem os instrumentalistas (CÂMARA,

2004, p. 10), incompatibilidade que tem maior ênfase nesse microssistema. Os

instrumentalistas, entretanto, se confundem e chegam a afirmar que há

compatibilidade entre as teorias do processo relacionista e fazzalariana,

constituindo-se o processo, então, “em um procedimento realizado mediante o

desenvolvimento da relação entre seus sujeitos, presente o contraditório”

(CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2008, p. 305).

Os reflexos da adoção dessa teoria relacionista permitem entender o

recurso como expressão do duplo grau, o que não é suficiente em um

microssistema com contraditório e ampla argumentação dilatados em função do

princípio do estado de inocência, principalmente em se tratando de liberdade

individual, o que será pontuado mais adiante (capítulos 4 e 5).

Entretanto, retomando a questão do protagonismo judicial, o contexto

socializante de reforço do papel do juiz no processo, com esvasiamento do papel

das partes (seus advogados, vítima e demais participantes do processo) e de acesso

à justiça, em um viés instrumentalista, após quase vinte anos de Constituição, ainda

vem explícito na EC n.° 45/04. Assim, traz (ou retoma) para o Direito brasileiro

institutos como o das súmulas vinculantes e o da repercussão geral das questões

constitucionais, bem como acrescenta direito ao rol dos direitos fundamentais, qual

seja, a duração razoável do processo, visando extirpar o “patológico” discurso

burocrático do processo jurisdicional.

A rejeição de recursos pelo relator, que estiverem em confronto com súmulas

dos tribunais superiores e do STF (art. 557, caput e 518, §1°, ambos do CPC), a

procedência de recursos pelo relator cuja decisão recorrida também confrontar com

súmulas dos tribunais superiores e do STF (art. 557, §1°- A do CPC), o julgamento

liminar de improcedência de processos com casos idênticos (285-A do CPC), a

edição das súmulas vinculantes (103-A da CR/88) e a repercussão geral das

questões constitucionais, segundo os instrumentalistas, são “mecanismos

processuais” que contribuem para a compatibilização das decisões judiciais,

uniformizando-as e proporcionando concretude do “valor constitucional da igualdade

no formalismo processual”. Dessa forma, esses mecanismos contribuem para a

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unidade do Direito, trazendo racionalidade45 à atividade judiciária e atentando para a

economia dos atos processuais (MARINONI; MITIDIERO, 2007, p. 19).

Entretanto, duração razoável do processo, agora expressa no texto

constitucional no inciso LXXVIII do art. 5° da CR/88, já integrava o Direito brasileiro

pelo Decreto n.° 678/92, por força da combinação do §2° do art. 5° da CR/88 com o

art. 8° da Convenção Americana dos Direitos Humanos de 1969, ratificada pelo

Brasil em 1992.

Os ideais reformistas no Brasil passam pela discussão da reforma do estatuto

da magistratura e da organização, competência e estrutura dos tribunais. Entretanto,

para o movimento reformista brasileiro, a “grande mudança de que o país precisa”

deverá ser implementada “através de uma transformação radical nas leis

processuais”, pois o “povo aguarda com ansiedade a modernização das leis e a

agilização da prestação jurisdicional” (SILVA, 2004, p. 60).

O discurso adotado e divulgado maciçamente pelos órgãos judiciais e pela

maioria dos juristas nacionais (principalmente dos adeptos do instrumentalismo) é o

de que a morosidade do exercício da função jurisdicional é fruto do abarrotamento

de processos nos fóruns e tribunais, oriundo do exagerado sistema recursal vigente,

que atrasam e atravancam a “marcha processual”. Os autores atrelados a uma

concepção relacionista de processo afirmam que, a rigor, o acúmulo dos processos

e a demora da prestação jurisdicional decorrem da complexidade da legislação

processual e da quantidade de recursos (MELO, 2000, 409).

Cristalinamente constata-se esse discurso quando se fala em reforma do

judiciário na imprensa, com sérios reflexos na legislação infraconstitucional, como se

infere em matéria publicada no Informativo do Tribunal de Justiça do Estado de

Minas Gerais em abril de 2006, no contexto das reformas do CPC/73 operadas pela

Lei n° 11.187/05, Lei n.º 11.232/05, Lei n.º 11.276/05, Lei n.º 11.277/06 e pela Lei n.º

11.280/06:

A legislação processual civil passa por mudanças que trarão significativas melhorias na prestação jurisdicional. Com as novas leis já sancionadas pelo Presidente da República e os projetos que aguardam

45

Para esses instrumentalistas a racionalidade da decisão judicial está na garantia de unidade do Direito, no sentido de fazer com que as orientações jurisprudenciais dos tribunais superiores sejam respeitadas. Nesse diapasão: esses mecanismos processuais “têm por desiderato racionalizar a atividade judiciária, impedindo que recursos em confronto com a orientação dos Tribunais Superiores tenham seguimento, ocupando inutilmente a estrutura judiciária” (MARINONI; MITIDIERO, 2007, p. 19).

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votação no Congresso Nacional, a Justiça ganhará em eficiência. As medidas visam diminuir, em parte, a morosidade dos processos judiciais e inibir o uso dos recursos com fins apenas protelatórios. [...] Caetano Levi Lopes explicou que a reforma leva em conta dois princípios fundamentais do Processo Civil Brasileiro: o primeiro é o princípio da segurança jurídica, que garante a solução dos conflitos de forma justa e legal, visando à obtenção da harmonia e da paz social. O segundo é o princípio da celeridade, que assegura a razoável duração do trâmite processual, eliminando-se formalismos inúteis (GOMES, 2006, p. 5).

O recurso (sistema recursal) atacado pelo movimento reformista no Brasil é

conceituado como “meio de impugnação voluntário de decisões, utilizado antes da

preclusão e na mesma relação jurídica processual, apto a propiciar a reforma, a

invalidação, o esclarecimento ou a integração da decisão” (GRINOVER; GOMES

FILHO; FERNANDES, 2008, p. 30).

O argumento de ataque ao sistema recursal já é antigo no Brasil, tendo como

sustentáculo o abarrotamento dos Tribunais pelo excesso de processos, sendo isso

considerado pelos “reformistas” como uma crise dos órgãos jurisdicionais. A

argüição de relevância, congênere da repercussão geral, analisada mais a frente

(item 2.4), foi uma tentativa de solução dessa crise entre os anos de 1975 e 1988

(DANTAS, 2008, p. 50-51; MARINONI; MITIDIERO, 2007, p. 30). A criação do

Superior Tribunal de Justiça (STJ) com a Constituição de 1988 foi fruto, também, do

abarrotamento de processos pelo qual passava o STF, como tentativa de solução

dessa crise por excesso de trabalho (DANTAS, 2008, p. 51).

Com fundamento em dados estatísticos, o movimento reformista, atrelado às

bases instrumentalistas de processo, divulga como o número de recursos

direcionados ao STF “há muito tempo assumiu proporções insuportáveis, revelando

a necessidade inexorável de uma solução drástica ante a falência do sistema”. E a

solução aplaudida e festejada foi a previsão (ou retorno) da repercussão geral das

questões constitucionais, visando impedir o “exercício minimamente saudável das

elevadas atribuições do STF”, de guardião do Texto Constitucional (DANTAS, 2008,

p. 81-83). O estabelecimento desse filtro aos recursos extraordinários visa salvar o

STF do estado de “banalização” em que se encontra a “jurisdição extraordinária”

(DANTAS, 2008, p. 213).

Vislumbrando os recursos como “assunto eminentemente dogmático”,

consistindo em terreno fértil de manifestação político-judiciária do legislador

(DANTAS, 2008, p. 24), o argumento das reformas processuais no Brasil é, em

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suma, simplificação de procedimentos, ou seja, acesso à justiça com todas as suas

nuances. Celeridade, assim, é sinônimo de duração razoável do processo, que

também significam o mesmo que velocidade e/ou rapidez nos procedimentos.

Depois da introdução do inciso LXXVIII do art. 5° da CR/88, celeridade passou a um

direito fundamental absoluto, buscado como fundamento de todas as reformas

processuais, a partir de então no Brasil.

Os reflexos dessa concepção reformista, que empunha a bandeira da

celeridade, atingem o recurso extraordinário. Nessa esteira, partindo da visão de

duplo grau de jurisdição e da posição do juiz no processo, sustentadas em acepção

socializadora (instrumentalista), visando imprimir celeridade nos procedimentos, a

repercussão geral das questões constitucionais foi introduzida com o objetivo de

reduzir os recursos direcionados ao Supremo Tribunal Federal. Em virtude do

acúmulo de recursos, a repercussão geral das questões constitucionais é encarada

e aplaudida como um instituto oportuno para o Direito Processual brasileiro (MELO,

2000, p. 373), que tem por objetivo dar folga ao STF para que possa desempenhar

sua função eminentemente constitucional, a de proteger a Constituição.

Essa guarda da Constituição consiste na garantia da unidade constitucional,

que não autoriza a discussão do interesse das partes no caso concreto a uma

“terceira ou quarta” instâncias. Daí o acerto da instituição da filtragem recursal pela

repercussão geral como requisito intrínseco de admissibilidade do recurso

extraordinário (MARINONI; MITIDIERO, 2007, p. 14-17), segundo os

instrumentalistas, pois se encontra

[...] em absoluta sintonia com o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva e, em especial, com o direito fundamental a um processo com duração razoável. Guardam-se delongas inerentes à tramitação do recurso extraordinário apenas quando o seu conhecimento oferecer-se como um imperativo para a ótima realização da unidade do Direito no Estado Constitucional brasileiro. Resguardam-se, dessarte, a um só tempo, dois interesses: o interesse das partes na realização de processos jurisdicionais em tempo justo e o interesse da Justiça no exame de casos pelo Supremo Tribunal Federal apenas quando essa apreciação mostrar-se imprescindível para a realização dos fins a que se dedica a alcançar a sociedade brasileira (MARINONI; MITIDIERO, 2008, p. 18).

O instituto da repercussão geral das questões constitucionais foi inserido

como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário direcionado ao STF,

pelo acréscimo do §3° do art. 102 da CR/88 pela EC n.° 45/04. Festejado como um

importante mecanismo de seleção dos casos que devam ser submetidos ao

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reexame do STF por meio do julgamento do recurso extraordinário (NERY JÜNIOR,

2008, p. 11), o instituto é definido como uma

técnica processual que conspira para a realização do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva (que é necessariamente prestada em prazo razoável), estimulando ainda a compatibilização vertical das decisões judiciais, prestando homenagem ao valor da igualdade e perseguindo a racionalização da atividade judiciária (MARINONI; MITIDIERO, 2007, p. 5).

Entretanto, a EC n.° 45/04 não delimita o conteúdo do que seja repercussão

geral das questões constitucionais suscitadas no caso para dar ensejo à

admissibilidade de recurso extraordinário. Essa tarefa foi transmitida ao legislador

infraconstitucional, “nos termos da lei”.

2.3.3 A Lei n.° 11.418/06 e a regulamentação do instituto da repercussão geral

das questões constitucionais

Por disposição constitucional expressa no §3° do art. 102 da CR/88, o novo

requisito de admissibilidade do recurso extraordinário necessitaria de

regulamentação. A regulamentação ocorreu com a edição da Lei n.° 11.418, de 19

de dezembro de 2006, cuja entrada em vigor aconteceu em 18 de fevereiro de

200746. A Lei n.° 11.418/06 implementou a regulamentação do instituto por alteração

no CPC/73, incluindo nele os arts. 543-A e 543-B.

Nesse sentido, funcionando como uma limitação ao princípio do duplo grau

de jurisdição, a repercussão geral muda o enfoque do recurso extraordinário. O

46

Entretanto, o STF só passou a exigir que os recursos extraordinários individuais (matéria isolada) a ele encaminhados demonstrassem a repercussão geral das questões constitucionais neles discutidas a partir da reforma do seu Regimento Interno, o que aconteceu pela Emenda Regimental n.° 21/07, publicada em 3 de maio de 2007. Esse entendimento para recursos individuais foi firmado pelo STF na Questão de Ordem no Agravo de Instrumento n.° 664.567/RS, cujo relator foi o Ministro Sepúlveda Pertence (BRASÍLIA, STF. AI-QO. 664.567, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 2007). Quanto aos recursos extraordinários múltiplos (matéria repetitiva), o entendimento do STF é também no mesmo sentido, ou seja, de que não terão negado seguimento por falta do requisito intrínseco de admissibilidade da repercussão geral, quando interpostos antes de 3 de maio de 2007. Entretanto, entendeu o STF que seria possível a aplicação do disposto nos §§1° e 3° do art. 543-B do CPC, mesmo quando interpostos antes de 3 de maio de 2007. Esse entendimento para recursos múltiplos (matéria repetitiva) foi firmado pelo STF no Agravo de Instrumento na Questão de Ordem n.° 715.423/RS, cuja relatora foi a Ministra Ellen Gracie (BRASÍLIA, STF. QO-AI. 715.423, Rel.ª Min.ª Ellen Gracie, 2008a) e na Questão de Ordem no Recurso Extraordinário n.° 540.410/RS, cujo relator foi o Ministro Cézar Peluso (BRASÍLIA, STF. QO-RE. 540.410, Rel. Min. Cezar Peluso, 2008b).

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recurso extraordinário, segundo Dantas (2008, p. 74), abandona seu caráter

“subjetivo” ou de “defesa do interesse das partes”, para agora assumir uma

“função de defesa da ordem constitucional objetiva”.

Com o instituto da repercussão geral das questões constitucionais como

requisito intrínseco de admissibilidade do recurso extraordinário, por seu

“prudente arbítrio”, o STF passa a selecionar as causas que entender tenham

repercussão geral, ou seja, causas que envolvam “questões relevantes do ponto

de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses

subjetivos da causa”, conceito esse trazido pelo legislador no art. 543 -A do

CPC/73.

Assim, a solução do problema do abarrotamento dos tribunais por

processos, oriundos do “complexo” sistema recursal nacional, passa, em se

tratando de recuso extraordinário, pelo próprio STF, que, a partir de então, nos

recursos extraordinários a ele submetidos, terá que dizer se a questão

constitucional ali suscitada apresenta ou não repercussão geral, ou seja, se a

tese discutida atinge um número maior de pessoas que não somente aquelas que

participam do processo, em questões referentes à economia, à política, à

sociedade ou ao Direito.

As finalidades do instituto são expressas pelo próprio STF, quais sejam,

Delimitar a competência do STF, no julgamento de recursos extraordinários, às questões constitucionais com relevância social, política, econômica ou jurídica, que transcendam os interesses subjetivos da causa. Uniformizar a interpretação constitucional sem exigir que o STF decida múltiplos casos idênticos sobre a mesma questão constitucional (BRASIL, 2008a).

O objetivo do instituto é, assim, reduzir os recursos extraordinários aviados

ao STF, por necessitarem esses de demonstrar a relevância das questões neles

suscitadas. Assim, evita-se que o STF analise vários processos ou causas que

versem sobre um mesmo tema. Tudo isso visando celeridade nos procedimentos,

sem atentar para outros direitos ou garantias fundamentais.

Assim, na petição do recurso extraordinário o recorrente fundamentará,

preliminarmente, os motivos pelos quais o STF deverá apreciar seu recurso, de

forma a demonstrar que as questões constitucionais, por ele argumentadas,

transcendem às partes e seus respectivos interesses no processo. E deverá

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demonstrar mais: que discute no recurso questão relevante em temas que

versem sobre a economia, a política, a sociedade ou o próprio Direito. Sem essa

formalidade o recurso será inadmitido47.

Nos termos do Regimento Interno do STF (art. 327, Regimento Interno do

Supremo Tribunal Federal (RISTF), a recusa de recurso extraordinário ocorrerá

por ausência do requisito de admissibilidade que demonstre fundamentadamente

a existência de repercussão geral48. Essa recusa preliminar poderá ser feita

mesmo antes da distribuição do recurso extraordinário, pelo próprio Presidente do

STF (art. 13, V, “c” do RISTF). Caso contrário, ocorrendo distribuição, tal recusa

poderá ser feita pelo relator.

Parece que a única hipótese de interposição de recurso em caso de

análise de repercussão geral é a recusa do recurso extraordinário

preliminarmente (art. 327, §2° do RISTF). Nos termos do art. 6°, inciso II, “d” do

RISTF, é competente o Plenário do STF para julgar agravo regimental contra ato

do Presidente e contra despacho do relator nos processos de sua competência.

O instituto da repercussão geral das questões constitucionais é um

requisito objetivo de admissibilidade do recurso extraordinário, ligado ao

cabimento. Até mesmo porque, pela sua própria finalidade, não seria diferente.

Ademais, tal questão fica expressa no texto constitucional, pois o legislador se

vale da frase “a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso”. Nesse

mesmo sentido também se expressa a Lei n.° 11.418/06, uma vez que o STF não

“conhecerá” do recurso que não tenha repercussão geral. Na mesma direção

orienta o RISTF (art. 322), uma vez que haverá “recusa” de recurso extraordinário

cuja questão constitucional não apresentar repercussão geral.

A repercussão geral, portanto, se traduz em um instituto que restringe

recursos constitucionais, cujo conteúdo é aferido por meio de conceito jurídico

indeterminado. Entretanto, problema algum existe nessa questão, uma vez que a

“recorribilidade é definida pelo próprio sistema jurídico a priori, pelo texto

constitucional” (DANTAS, 2008, p. 219), o que demonstra como a noção

instrumentalista de duplo grau de jurisdição reflete nesse sistema recursal

deflagrado pela regulamentação do §3° do art. 102 da CR/88.

47

Segundo o STF, “exige-se preliminar formal de repercussão geral, sob pena de não ser admitido o recurso extraordinário” (BRASIL, 2008). 48

Salvo se a tese discutida houver sido revista ou se encontrar em processo de revisão.

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Amparado nessa visão instrumentalista, Luiz Manoel Gomes Júnior explica o

instituto da repercussão geral:

O §3º do art. 102 da Constituição Federal exige que a causa em julgamento possua uma repercussão geral da questão constitucional, ou seja, que transcendam o normal ou à rotina, ou seja, que tenha importância econômica, política, social, ou jurídica. Ao nosso ver, haverá repercussão, em determinada causa/questão, quando os reflexos da decisão a ser prolatada não se limitarem apenas aos litigantes, mas, também, a toda uma coletividade. Não necessariamente a toda coletividade (país), mas de uma forma não individual (GOMES JÚNIOR, 2005, p. 150).

Assim, como conceito jurídico indeterminado49 que é, “requer valorações

objetivas para o seu conhecimento” (relevância e transcendência). Para aferir sobre

a configuração ou não da repercussão geral concorrem as partes ou terceiros.

Entretanto, em que pese a possível crítica a ser formulada posteriormente, o STF

não está vinculado aos argumentos “despendidos” nas razões e contra-razões

recursais, como entendem os instrumentalistas (MARINONI; MITIDIERO, p. 79-80).

A previsão, por sua vez, de um conceito jurídico indeterminado para definir a

repercussão geral se insere no contexto da posição do juiz defendida pela

instrumentalidade. O STF, dessa forma, passa a “poderoso catalisador de

sentimentos da sociedade” com “aguda sensibilidade para detectar em casos

corriqueiros questões de interesse fundamental da sociedade inteira ou de largos

segmentos dela” (DANTAS, 2008, p. 220).

Porém, algumas questões constitucionais suscitadas em recursos

extraordinários são consideradas, pelo legislador, como de repercussão geral

presumida. Isso ocorre quando o recurso extraordinário atacar decisão de Tribunal

de origem ou turma recursal dos juizados especiais que contrarie súmula ou

jurisprudência dominante do STF. Nessa hipótese há presunção legal de que as

questões discutidas naquele recurso extraordinário têm repercussão geral, devendo

mencionado recurso ser admitido (art. 543-A, §3° do CPC e art. 323, §1° do RISTF).

Outra hipótese de presunção de repercussão geral acontece nos termos do

art. 324, parágrafo único do RISTF. A ausência de manifestação dos demais

49

“Conceito jurídico indeterminado” é uma expressão utilizada como argumento para justificar a

discricionariedade judicial, criticada neste trabalho. O problema da discricionariedade judicial agrava-se em

razão da teoria do processo adotada pela maioria dos juristas do país (relação jurídica), o que justificaria a

determinação de conceitos de forma solipsista pelo magistrado, valendo-se de sua posição de superioridade às

partes.

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Ministros do STF, no prazo de 20 dias por meio do plenário virtual, acarretará a

presunção de que as questões constitucionais discutidas naquele recurso

extraordinário possuem repercussão geral, mesmo que o Ministro relator tenha

proferido voto em sentido contrário.

A competência para aferir a repercussão geral se dá de duas formas:

concorrente ou exclusiva. A competência será concorrente quando se tratar da

análise desse requisito de admissibilidade formalmente, ou seja, verificação da

existência ou não de preliminar formal suscitando os motivos que ensejam

repercussão geral de questões constitucionais, naquele caso, que o sejam

transcendentes. Essa competência é concorrente entre os tribunais de origem e o

STF. Já a competência exclusiva se dá na análise e reconhecimento da existência

ou não da repercussão geral (material ou presumida), cuja competência é somente

atribuída ao STF50.

Para aferir a existência ou não da repercussão geral, o STF, no uso de sua

competência exclusiva, adota dois procedimentos. O primeiro procedimento para

recurso extraordinário isolado, cuja matéria nele discutida não é entendida como

uma demanda de massa, necessitando de individual decisão. E um segundo

procedimento para recursos extraordinários múltiplos, cuja matéria então suscitada é

repetida em outros recursos extraordinários, os famosos julgamentos em massa.

A competência exclusiva do STF é exercida pelo Plenário, nos termos do art.

543-A, §4° do CPC. Entretanto, se a Turma, composta por cinco Ministros, pelo voto

de quatro deles, entender que há repercussão geral das questões constitucionais

discutidas no recurso extraordinário, ficará dispensada a manifestação do Pleno

sobre a repercussão geral. Assim, bastam quatro votos (Turma) para que o STF

conheça do recurso extraordinário por atenção a tal requisito intrínseco de

admissibilidade, podendo isso acontecer no âmbito da própria Turma, sem

necessidade de manifestação do Plenário.

A desnecessidade de envio da questão ao Plenário decorre do §3° do art. 102

da CR/88. Segundo mencionado dispositivo, para não reconhecer que o recurso

extraordinário apresenta repercussão geral de questões constitucionais e, em

50

O STF se manifesta sobre a competência da seguinte forma: “A verificação da existência da preliminar formal é de competência concorrente do Tribunal, Turma Recursal ou Turma de Uniformização de origem e do STF. A análise sobre a existência ou não da repercussão geral, inclusive o reconhecimento de presunção legal de repercussão geral, é de competência exclusiva do STF” (BRASIL, 2008).

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conseqüência, inadmiti-lo, é necessário o quorum de 2/3 dos membros do STF

nesse sentido (oito Ministros). Assim, se os quatro Ministros que integram a Turma

(dos onze Ministros do STF), já decidiram que há repercussão geral no recurso

extraordinário, o quorum para negar repercussão geral jamais seria atingido no

Plenário (oito votos), uma vez que restaram apenas sete Ministros para votarem a

matéria.

Conclui-se, portanto, que a repercussão geral será reconhecida pelo voto de 4

votos dos Ministros da Turma, pois, para negá-la seriam necessários um número

maior de votos (8 votos no Plenário) que os já proferidos.

A decisão negativa do STF quanto à configuração da repercussão geral

vincula todos os outros tribunais do país, inclusive o próprio STF. Portanto,

reconhecendo o STF que não há repercussão na matéria apresentada no recurso,

tal decisão transcende o caso, podendo ser base para o não conhecimento de

outros recursos extraordinários, que tratam da mesma questão constitucional. Nesse

sentido Dantas (2008, p. 305) expõe ser acertada essa opção legislativa esboçada

no §5° do art. 543-A, em caso de convergência entre a “decisão paradigmática” e

outros casos submetidos ao Tribunal posteriormente. O acerto do legislador,

segundo mencionado autor, se deve ao fato de que, assim, evita-se que o STF

analise o instituto repercussão geral no caso concreto, toda vez que distribuído a ele

um recurso extraordinário. Submeter à apreciação do STF todos os recursos

extraordinários, pragmaticamente, frustraria o objetivo do instituto, qual seja, a

redução do número de tais recursos (DANTAS, 2008, p. 305). Trata-se da eficácia

vinculante das decisões negativas de repercussão geral.

Em ambos os procedimentos, reconhecida a repercussão geral pelo STF, os

recursos extraordinários serão recebidos, devendo, a partir de então, acontecer o

julgamento do mérito dos recursos.

Visando solução ao problema das demandas em massa, o legislador previu,

no §1° do art. 543-B do CPC que, em se tratando de múltiplos recursos, cujos

fundamentos sejam “idêntica controvérsia”, o Tribunal de origem selecionará um ou

mais recursos que representem adequadamente essa idêntica controvérsia, a fim de

encaminhá-los ao STF para que, naqueles recursos extraordinários encaminhados,

haja a análise da existência ou não do instituto da repercussão geral. Assim, os

recursos não selecionados, mas que versem sobre essa mesma controvérsia,

ficarão suspensos no Tribunal de origem, até que o STF se manifeste sobre a

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repercussão geral.

Essa seleção dos processos que representam a controvérsia poderá

acontecer pelo próprio STF, quando o Tribunal de origem não proceder à seleção

mencionada. Nesses casos, a competência será do relator designado ou do

Presidente do STF, de ofício ou a requerimento do interessado (art. 328 do RISTF).

Na ocasião, deverão eles comunicar os tribunais e turmas recursais do país para

que sobrestem as “causas com questão idêntica”, cujas decisões tenham sido

atacadas via recurso extraordinário, bem como devolver a eles as demais “causas

com idêntica controvérsia” não selecionadas.

Selecionada a causa representativa da controvérsia, os tribunais e turmas

recursais não mais procederão ao juízo de admissibilidade nos recursos

extraordinários perante eles interpostos, até que o STF analise se a questão

constitucional neles discutida apresenta repercussão geral.

Em se tratando de “multiplicidade de recursos”, negada a repercussão geral

da “idêntica controvérsia”, todos os recursos sobre o tema, que ficaram suspensos

quando da seleção pelo Tribunal de origem, serão “automaticamente” inadmitidos.

Nesse caso, ao argumento de idêntica controvérsia, o STF sequer chega a tomar

ciência dos argumentos das partes naqueles recursos que permaneceram

sobrestados no Tribunal de origem, simplesmente negando seguimento àqueles

recursos extraordinários. Também não existe possibilidade de escolha, pelos

destinatários, de qual recurso extraordinário representará a controvérsia, pois a

escolha cabe ao Tribunal de origem ou, em não acontecendo, monocraticamente ao

Presidente do STF ou ao relator designado.

Reconhecida a repercussão geral das questões constitucionais, em caso de

recursos extraordinários múltiplos, ocorrerá o julgamento do mérito do recurso

extraordinário selecionado pelo STF, não ocorrendo a remessa dos demais recursos

suspensos a esse Tribunal. Nesse caso, a análise dos recursos sobrestados,

segundo o §3° do art. 543-B do CPC, pelos tribunais de origem, ocorrerá de duas

maneiras, dependendo do provimento ou não do recurso extraordinário que

representa a controvérsia pelo STF.

Assim sendo, reconhecendo a repercussão geral, se o STF negar provimento

ao recurso extraordinário “múltiplo”, julgando-o improcedente, estará mantendo a

decisão dos tribunais de origem. Esses tribunais, por sua vez, deverão declarar

prejudicados os recursos extraordinários com a mesma controvérsia, que, na origem,

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61

permaneceram suspensos até que o STF se manifestasse sobre a repercussão

geral.

Ocorrendo o reconhecimento da repercussão geral, mas, ao revés, se o STF

decidir pela procedência do recurso extraordinário representativo da controvérsia,

seu provimento acarreta a reforma da decisão recorrida.

Diante disso, devem os tribunais de origem adotar uma dentre duas posturas.

A primeira delas seria a retratação de sua decisão (art. 543-B, §3° do CPC), vez que

o STF, no julgamento do recurso extraordinário representativo da controvérsia,

julgou em sentido contrário ao decidido pelo Tribunal de origem. Assim, o Tribunal

de origem se retrataria, reformando sua própria decisão. A segunda postura a ser

adotada pelo Tribunal de origem é a manutenção da decisão recorrida. Nesse caso

o Tribunal de origem determinará o envio do recurso extraordinário sobrestado ao

STF (art. 543-B, §4° do CPC), oportunidade em que poderá o Supremo cassar ou

reformar liminarmente essa decisão da origem, de ofício, por decisão monocrática do

relator sorteado, nos termos do art. 21, §1° do RISTF. Assim, percebe-se um

aumento dos poderes do relator no STF, pois o mesmo poderá julgar o mérito do

recurso extraordinário, monocraticamente.

Há que se ressaltar a possibilidade de participação da figura do amicus curiae

no processo de averiguação do instituto da repercussão geral das questões

constitucionais. Tal possibilidade é admitida no §3° do art. 543-A do CPC.

O amicus curiae “se legitima no processo em virtude do interesse institucional

que possui em auxiliar o juiz na busca da melhor solução para a lide” (DANTAS,

2008, p. 299). O “amigo da corte” consiste em uma modalidade de intervenção de

terceiros que tem por objetivo ampliar as formas de participação dos afetados na

construção da decisão final, no caso, acerca da repercussão geral. A competência

para admitir o amicus curiae, na análise da repercussão geral, é do relator, de ofício

ou a requerimento, em decisão irrecorrível, nos termos do art. 323, §2° do RISTF.

Em se tratando de repercussão geral, pode ocorrer, ainda, a intervenção de

terceiro no processo, mediante o instituto da assistência (art. 50, CPC). O

interveniente pode não apresentar interesse institucional, entretanto, em se tratando

de recursos múltiplos, o assistente poderia ser, por exemplo, outro recorrente que

teve seu recurso sobrestado no Tribunal de origem e que não verá seus argumentos

analisados pelo STF (DANTAS, 2008, p. 301). Contudo, até o presente momento o

STF não se manifestou sobre o assistente como “terceiro” no processo do instituto

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da repercussão geral.

A Lei n.° 11.418/06 que alterou o CPC parece disciplinar que apenas a

repercussão geral de questão constitucional sem potencial para gerar multiplicidade

de recursos extraordinários é irrecorrível, nos termos do art. 543-A, caput do CPC.

Entretanto, nos termos do art. 326 do RISTF, seja no julgamento dos recursos

extraordinários isolados ou no julgamento dos recursos extraordinários múltiplos, a

decisão sobre a repercussão geral é sempre irrecorrível.

Como dito anteriormente, a única hipótese de recurso se dá quando o não

recebimento do recurso extraordinário ocorre por decisão monocrática (Presidente

do STF ou relator), no caso do art. 327, §2° do STF.

Entretanto, apesar de não haver julgado ainda nesse sentido, como forma de

impugnação de decisão, parece que a hipótese do mandado de segurança não pode

ser excluída em matéria de repercussão geral. O próprio RISTF dá suporte a esse

raciocínio, nos termos do seu art. 5°, inciso V, principalmente nas hipóteses de

amicus curiae ou assistente.

Em síntese, a Lei n.° 11.418/06 trouxe, assim, um processo especial,

antecedente ao do recurso extraordinário, em que o STF aferirá a admissibilidade

do referido recurso, pela análise da carência ou não do instituto da repercussão

geral. Trata-se de regra procedimental cuja inadmissibilidade, ou seja, cuja

constatação da carência de repercussão geral acarreta uma decisão irrecorrível

em matéria constitucional. Portanto, a decisão que inadmite um recurso

extraordinário, ao argumento da inexistência de repercussão geral nele suscitada,

é irrecorrível. Não acontece, assim, manifestação, em sede de controle difuso de

constitucionalidade, do órgão que seria, no texto constitucional, aquele

competente pela “guarda da Constituição”.

As limitações ao duplo grau de jurisdição impostas pelos autores

instrumentalistas e pela jurisprudência no Brasil são fruto da concepção de

processo que se sustenta no protagonismo judicial, teses incompatíveis com o

paradigma do Estado Democrático de Direito. Exatamente em virtude desse contexto

que o instituto da repercussão geral das questões constitucionais é previsto

novamente no Direito brasileiro como mais um requisito de admissibilidade do

recurso extraordinário, sem precedência de análises científica, hermenêutica e até

mesmo pragmática, questões essas que serão analisadas no próximo capítulo.

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63

3 ANÁLISE DO PAPEL DO JUIZ E DO INSTITUTO DA REPERCUSSÃO GERAL

NO CONTRAPONTO COM OS PRINCÍPIOS DO PROCESSO JURISDICIONAL

DEMOCRÁTICO

Na quadra histórica da passagem do Estado Liberal para o Social, no campo

estatal, acontece a busca por outro tipo de paradigma, como já exposto (item 2.3.1).

Como características desse novo paradigma o Estado se torna provedor, interventor,

visando a correção dos problemas oriundos do Estado Liberal.

No Estado Social passa a ter maior relevância na estrutura estatal a função

executiva do poder, ou seja, o executivo ganha capacidade tentacular de resolver

problemas do cidadão, alterando-se o enfoque dos administrados, passando a

hipossuficientes, clientes do Estado. Pela reconstrução histórica dos movimentos

reformistas do processo (NUNES, 2008, p. 55-140) percebe-se como os argumentos

utilizados pelos instrumentalistas, no Direito brasileiro, estão vinculados ao

paradigma de Estado Social51.

Seguindo o paradigma socializante, os sistemas processuais de caráter social

implementados pelas reformas processuais apresentam constantes preocupações

em submeter o controle do processo ao juiz, visando afastar, assim, os

inconvenientes gerados no paradigma anterior (Estado Liberal), que sustentou o

sistema processual de caráter liberal (NUNES, 2008, p. 125).

Ainda que se constatem, no direito comparado, reformas processuais

delineadas nas bases da socialização processual, atentas ao paradigma do Estado

Social, mas que buscaram a defesa do reforço do papel do juiz aliada à participação

das partes e seus advogados com co-responsabilidade e cooperação durante todo o

procedimento52, é inegável a crise desse paradigma social e a tentativa de busca de

novas perspectivas processuais, no contexto da procura por um novo paradigma de

51

Mais a frente (item 2.3), entretanto, será exposto como esses argumentos instrumentalistas utilizados nas reformas processuais brasileiras são ideológicos e/ou demagógicos, uma vez que retomam conceitos do Estado Liberal em seus discursos. 52

Foi o que aconteceu no Modelo de Sttutgart e na reforma processual de 1976 na Alemanha, com sua concepção cooperativa entre juiz e partes (NUNES, 2006, p. 40-41). Foi também o que constatado no sistema português pela alteração do CPC/39 pelos Decretos-Leis 329-A/95 e 180/96, com seu princípio da cooperação intersubjetiva e pelo Decreto-Lei 108/06, com o instituto da “agregação” para solução dos “litígios em massa”. E por fim, também constatado no sistema inglês com o Civil Procedure Rules de 1999, com o instituto do case manegement (NUNES, 2008, p. 116-134).

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Estado (NUNES, 2008, p. 134).

O Estado Social deixou como mazela o fato de não conseguir atingir seu

grandioso programa. O paradigma socializante, apesar da materialização de direitos

individuais pelo Estado, não conseguiu “formar cidadãos ativos e autoconscientes de

seu papel na esfera pública” (BAHIA, 2004, p. 313). O Estado Social assumiu, “como

agente conformador da realidade social”, a busca pelo estabelecimento de “formas

de vida concretas, impondo pautas públicas de vida boa” (CATTONI DE OLIVEIRA,

2002, p. 59).

Ao mesmo tempo em que esmaga a autonomia privada, esse paradigma

explicita o fato de que não cabe somente ao Estado a definição acerca de políticas

públicas. “À Política não cabem mais” a definição dos “grandes projetos ou ideais” do

Estado (BAHIA, 2004, p. 313).

O paradigma do Estado de Bem-Estar tem sua derrocada após a Segunda

Guerra Mundial, com os movimentos de contracultura registrados na década de 60

(movimento hippie, movimentos estudantis e movimento feminista). O apogeu da

implosão ocorre com a desaceleração econômica e a crise do petróleo que assolou

os anos 70 (BARROS, 2008b, p. 26). Isso porque o Estado era detentor de um custo

altíssimo para manutenção de todos os seus infinitos projetos sociais (BAHIA, 2004,

p. 312), fazendo com que “as múltiplas expectativas colocadas sobre os ombros do

Estado” se tornassem “um fardo insuportável por sua incapacidade de fazê-los

frente” (CRUZ, 2001, p. 222).

Somado a isso, contribuindo para a queda do paradigma social, viu-se a

necessidade de introdução, na “sociedade civil”, de interesses difusos e coletivos, o

que acarretou a exigência de uma “constante participação” dos membros da

sociedade nos debates “tanto das coisas públicas como de seus interesses

fundamentais” (BARROS, 2008b, p. 27), ou seja, nas discussões atinentes à

autonomia pública e à autonomia privada dos membros daquela sociedade.

A questão paradigmática no Direito é fundamental, uma vez que a

jurisprudência e os autores não podem mais se desvencilhar de uma concepção de

sociedade como um pano de fundo. Isso proporciona uma justificação autocrítica do

Direito que deve estar ancorada nesse modelo de sociedade fornecedora daquela

compreensão (HABERMAS, 2005, p. 474-475). Por isso se busca um paradigma

adequado, vez que as tentativas do modelo liberal e do modelo social foram

frustradas no que tange às respectivas capacidades de convicção (HABERMAS,

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65

2005, p. 475).

No contexto de um novo paradigma é que será possível aferir uma (re)leitura

do duplo grau de jurisdição, da postura do juiz e questionar a compatibilidade do

instituto da repercussão geral das questões constitucionais com a nova perspectiva

de processo então delineada. Essa releitura traz reflexos na teoria dos recursos,

uma vez que a elaboração e a aplicação da repercussão geral deve, ou pelo menos

deveria, se compatibilizar com a interpretação normativa no paradigma jurídico do

Estado Democrático de Direito.

A inserção dessas propostas no paradigma procedimental do Direito será

pontuada a partir de uma concepção de processo que contribui para uma reviravolta

na teoria do processo, cujas bases são de apropriação inevitável para uma

compreensão do processo no Estado Democrático de Direito, e, em conseqüência,

proporcionarão elementos para a pretendida releitura.

3.1 Concepção procedimental do Estado Democrático de Direito e a co-

dependência entre interesse público e privado: reflexos da repercussão geral

no controle difuso de constitucionalidade

O paradigma do Estado Democrático de Direito é princípio fundamental da

República Federativa do Brasil, nos termos do art. 1° da CR/8853. O paradigma

jurídico tem influência na criação e na aplicação do Direito em uma determinada

sociedade.

Importante a noção de paradigmas jurídicos54 proposta por Habermas (2005)

53

Para Habermas (2005, p. 354), no Estado Democrático de Direito, a Constituição deve ser entendida como “interpretação e configuração de um sistema de direitos fundamentais mediante o qual se faz valer a coesão interna entre autonomia privada e pública”. Esses direitos fundamentais, segundo o autor, consistem em: a) iguais liberdades subjetivas; b) iguais direitos de pertinência; c) garantia do devido processo legal; d) elaboração legislativa autônoma; e e) direitos participatórios (HABERMAS, 2005, p. 188-189). Cattoni de Oliveira (2006, p.117) de outra forma expõe que “a Constituição deverá ser compreendida como a institucionalização das condições processuais para a formação da vontade e da opinião políticas e como instância de reconhecimento reflexivo de espaços públicos e privados abertos à interpretação que, presente a tensão entre faticidade e validade, pretendem garantir o exercício das autonomias pública e privada dos co-associados jurídicos”. 54

Brêtas C. Dias utiliza a expressão paradigma no sentido de sistema. A expressão “sistema jurídico-normativo consistente” é cunhada por mencionado autor em oposição ao entendimento de Thomas Kuhn, que entende como paradigmas o liberal, o social e o democrático. Brêtas C. Dias expõe que Khun simplesmente rebatizou o conceito de sistema para paradigma. Vislumbrando uma íntima

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66

e Carvalho Netto (1998). Com assento em Thomas Kuhn na filosofia da ciência,

Carvalho Netto (1998), superando-o, expõe que a noção de paradigma explica o

desenvolvimento científico como um “processo que se verifica mediante rupturas”,

pois o pano de fundo das “práticas sociais” é aferido em “determinadas sociedades

por certos períodos de tempo” e em “contextos determinados”, por “pré-

compreensões”, “visões de mundo” que tematizam e explicitam aquelas práticas

sociais (CARVALHO NETTO, 1998, p. 236-237). Cattoni de Oliveira sintetiza o que

significa um paradigma:

“[...] são realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante

algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de

praticantes de uma ciência” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002, p. 52).

Um paradigma traduz-se em um consenso científico atrelado a teorias,

modelos e métodos de compreensão do mundo. Delineia um modelo da sociedade

contemporânea e, em conseqüência, explica como princípios e direitos

constitucionais devem ser considerados e implementados para que cumpram, num

dado contexto histórico, as funções a eles normativamente atribuídas (CATTONI DE

OLIVEIRA, 2001a, p. 108).

Habermas (2005, p. 469-532) amplia e redefine o conceito de paradigma

proposto por Kuhn, remodelando-o no debate teórico contemporâneo da ciência

jurídica:

Os paradigmas jurídicos possibilitam diagnósticos da situação capazes de orientar a ação. Esclarecem o horizonte de uma dada sociedade no que diz respeito ao projeto de realização do sistema de direitos. Nesse aspecto têm primariamente a função de abrir novas perspectivas de mundo. Os paradigmas abrem perspectivas de interpretação desde que os princípios do Estado de Direito possam se referir (em uma determinada interpretação) ao contexto da sociedade global. Iluminam as restrições e as possibilidades de realização dos direitos fundamentais, os quais, enquanto princípios não saturados hão de necessitar de uma interpretação posterior, desenvolvimento e configuração. Por isso que o paradigma procedimental do direito contém também, como todos os demais, elementos normativos e

elementos descritivos (HABERMAS, 2005, p. 523, tradução nossa)55

.

conexão entre Estado de Direito e Estado Democrático de Direito, define esses “sistemas jurídico-normativos consistentes” como “complexo de idéias, princípios e regras juridicamente coordenados, relacionados entre si por conexão lógico-formal, informadores da moderna concepção de Estado e reveladores das atuais tendências científicas observadas na sua caracterização e estruturação jurídico-constitucional” (BRÊTAS C. DIAS, 2004. p. 101). Nessa questão ficamos com Carvalho Netto (1998), pelos argumentos aduzidos no texto. 55

Los paradigmas jurídicos posibilitan diagnósticos de la situación capaces de orientar la acción. Aclaran el horizonte de uma sociedad dada en lo concerniente al proyecto de realización del «sistema de los derechos». En este aspecto tienen primariamente uma función abridora de mundo. Los

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Assim sendo,

[...] as compreensões jurídicas paradigmáticas de uma época, refletidas por ordens jurídicas concretas, referem-se a imagens implícitas que se tem da própria sociedade; um conhecimento de fundo, um background, que se confere às práticas de fazer e de aplicar o Direito a uma perspectiva, orientando o projeto de realização de uma comunidade jurídica (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002, p. 54-82).

A necessidade de uso da concepção de paradigmas jurídicos se faz presente

para explicar como o Direito pode cumprir seu papel de integrador nos processos

sociais. Isso porque, pelo paradigma jurídico, se estabiliza a “tensão entre realidade

e idealidade”, uma vez que ele aponta um “horizonte histórico de sentido, ainda que

mutável, para a prática jurídica concreta”, o que permite entender o contexto social

do Direito e, assim, compreender como se procede à interpretação das questões

jurídicas (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002, p. 82-83).

Daí a importância de exposição das características desse novo paradigma no

marco da Teoria Discursiva do Direito, com análise da relação entre direitos

fundamentais (autonomia privada) e soberania popular (autonomia pública). O

aporte na Filosofia do Direito e na Hermenêutica Constitucional, aqui, apenas

subsidiam a justificação do Estado Democrático de Direito, em uma apropriação de

concepções56. Tais enfoques irão proporcionar uma crítica ao instituto da

repercussão geral das questões constitucionais, já que a justificativa que embasada

a limitação dos recursos extraordinários é a supremacia do interesse público sobre o

privado,verificável no próprio texto legal, “questões relevantes que ultrapassem os

interesses subjetivos discutidos na causa”.

A complexidade social, que culminou por acarretar a crise do Estado Social,

passou a exigir “novas pretensões a direitos a partir de diferentes concepções de

vida boa” (BAHIA, 2004, p. 313). Essas concepções de vida boa, ora se chocavam

umas com as outras e, muitas vezes, divergiam da própria concepção desse bem

comum que era imposto pelo paternalismo assistencialista do modelo social (BAHIA,

paradigmas abren perspectivas de interpretación desde las que los princípios del Estado de derecho pueden ser referidos (en una determinada interpretación) al contexto de la sociedad global. Iluminan las restricciones y los espacios de posibilidad de la realización de los derechos fundamentales, los cuales, em tanto que princípios no saturados, han menester de uma ulterior interpretación, desarrollo y configuración. De ahí que el paradigma procedimental de derecho contenga también, como todos los demás, ingredientes normativos e ingredientes descriptivos. 56

Dessa forma, as discussões empreendidas na Filosofia do Direito, na Teoria do Direito e na Hermenêutica Constitucional servirão como sustentáculo aos debates que aqui serão propostos. Não é objeto do presente trabalho ingressar especificamente nas questões realizadas naqueles contextos.

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68

2004, p. 313).

O grande problema do paradigma socializante era o paternalismo do Estado,

que terminou por interferir na esfera dos interesses privados das pessoas,

esmagando, como dito, a própria autonomia privada, expressa pelos direitos

fundamentais.

O Estado Social assumiu toda a dimensão do público e relegou aos indivíduos

a cômoda posição de seus clientes, com assunção de posturas paternalista pelo

Estado e dependente pelos indivíduos. Essa situação gerou o desrespeito à

autonomia privada desses indivíduos, incutindo neles uma consciência de

inatividade face os processos de tomada de decisão, uma vez que não se sentiam

responsáveis pela construção e definição dos contornos das políticas públicas.

O desrespeito à autonomia privada, produzido no paradigma social, é definido

por Habermas (2005, p. 492) como um risco à própria autonomia privada.

Além de se revelar insuficiente a garantia que o direito formal oferece à autonomia privada, e além de perceber que o regulamento e o controle sociais por meio do direito representam um risco para a própria autonomia privada, que esse direito teria a função de restabelecer, só há uma saída: a tematização da conexão entre as formas de uma comunicação que garantam, simultaneamente, a autonomia privada e a autonomia pública no nascedouro ou no surgimento delas próprias (HABERMAS, 2005, p. 492, tradução nossa)

57.

Habermas (2002, p. 303-305; 2005, p. 502-512) trabalha a questão dos

movimentos feministas ocorridos nos paradigmas liberal e social para ilustrar como

aconteceu essa usurpação da autonomia privada pelo paternalismo do Estado

Social. Trabalhando no pêndulo entre liberalismo e socialização política do Direito,

Habermas (2002, p. 303) procede a um comparativo da evolução ocorrida no

movimento feminista.

No Estado Liberal, a concepção de igualdade de gêneros para o movimento

feminista “clássico” consistia em garantir à mulher, formalmente, igualdade de

chances aos postos de trabalho, ao sistema educacional e aos direitos políticos.

Entretanto, a situação se manteve retoricamente (HABERMAS, 2005, p. 505) e

57

Tras haberse revelado insuficiente la garantía que el derecho formal ofrece a la autonomía privada, y tras haberse visto que la regulación y control sociales por medio del derecho representa un riesgo para la autonomía privada que ese derecho tendría la función de restablecer, solo puede ofrecernos una salida la temarización de la conexión entre formas de comunicación que garanticen simultáneamente la automonía privada y la autonomía pública en el proprio punto de nacimiento o surgimiento de éstas.

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evidenciou a desigualdade que, de fato, se destinava às mulheres (HABERMAS,

2002, p. 303-304).

O Estado Social, percebendo que a diferença só se intensificara com a mera

formalização do direito à igualdade das mulheres, impôs políticas especiais de

proteção (HABERMAS, 2005, p. 506), principalmente com regulamentações no

campo dos direitos trabalhista, social e da família, com disposições, por exemplo,

sobre gravidez, maternidade e ônus sociais em matéria de divórcio (HABERMAS,

2002, p. 304). Assim, a proteção à mulher seguiu o programa do Estado Social e

procurou fomentar a “equiparação jurídica da mulher mediante compensação seja

das desvantagens de natureza social, seja das de natureza biológica” (HABERMAS,

2005, p. 506).

Entretanto, críticas oriundas do próprio movimento feminista foram inevitáveis.

Além do Estado Social não fazer frente aos direitos formalizados que assumiu em

forma de políticas públicas, seu paternalismo gerou resultados contrários à proteção

da mulher. Esses resultados geraram “conseqüências ambivalentes dos programas

socioestatais implementados com êxito”, como, por exemplo, o aumento do risco de

desemprego fruto das compensações legais, o emprego de mulheres em trabalhos

remunerados com salários mais baixos e o problema do “bem-estar da criança”

(HABERMAS, 2002, p. 304). Toda essa situação deu ensejo ao que Habermas

(2002, p. 304; 2005, p. 506) chamou de “feminização da pobreza”.

Esse quadro problemático, decorrente da igualdade de tratamento entre

homem e mulher, leva os cidadãos à tomada de consciência no sentido de que a

efetiva igualdade pretendida não pode ser entendida somente como favores por

justa distribuição social, oriundos do Estado Social. Os direitos não podem apenas

facultar às mulheres que tracem suas vidas de forma autônoma e privada. A elas

deve-se resguardar, ao mesmo tempo, uma participação, dotada de iguais direitos,

na prática de sua autodeterminação como cidadãs. Somente assim as afetadas

podem esclarecer, em cada caso, quais são os aspectos relevantes de igualdade e

desigualdade (HABERMAS, 2005, p. 503-504).

Em outra obra, a conclusão do exemplo do movimento feminista é assim

resumida por Habermas:

Em lugar da controvérsia sobre ser melhor assegurar a autonomia das pessoas do direito por meio de liberdades subjetivas para haver concorrência entre indivíduos em particular, ou então mediante

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reivindicações de benefícios outorgadas a clientes da burocracia de um Estado de bem-estar social, surge agora uma concepção jurídica procedimentalista, segundo a qual o processo democrático precisa assegurar ao mesmo tempo a autonomia privada e a pública: os direitos subjetivos, cuja tarefa é garantir às mulheres um delineamento autônomo e privado para suas próprias vidas, não podem ser formulados de modo adequado sem que os próprios envolvidos articulem e fundamentem os aspectos considerados relevantes para o tratamento igual ou desigual em casos típicos. Só se pode assegurar a autonomia privada de cidadãos em igualdade de direitos quando isso se dá em conjunto com a intensificação de sua autonomia civil no âmbito do Estado (HABERMAS, 2002, p. 305).

O exemplo habermasiano do movimento feminista, além de sinalizar como

acontece o desprezo à autonomia privada dos indivíduos no contexto socializante

dos programas paternalistas, proporciona entender como o cidadão, nesse novo

modelo de sociedade, passa a exigir participação dos afetados nas discussões

públicas, para formação da consciência democrática.

Por isso, no paradigma do Estado Democrático de Direito, a sociedade passa

a exigir a participação dos afetados nos processos de integração social e de

formação da vontade. Construção participada é a postura que ganha relevo nesse

modelo democrático de Estado.

Segundo Habermas (2002, p. 301), “a idéia da autonomia jurídica dos

cidadãos exige que os destinatários do direito possam ao mesmo tempo ver-se

como seus autores”. Com status de sujeitos de direito, os cidadãos somente

conseguirão essa autonomia se entenderem e se comportarem como autores

daqueles direitos dos quais pretendem ser destinatários (HABERMAS, 2005, p. 192).

Apesar dos avanços trazidos pelos paradigmas liberal e social, a

complexidade da sociedade, aflorada com a crise do Estado Social, não permitia aos

cidadãos se contentarem com a mera materialização de direitos (Estado Liberal),

uma vez que o reconhecimento apenas formal desses direitos não era garantia de

proteção à autonomia privada. Ao mesmo tempo, a simples materialização desses

direitos como direitos sociais (Estado Social) não proporcionou a plena construção

de uma autonomia pública (BAHIA, 2004, p. 315).

A partir de um Direito participativo, o Estado Democrático de Direito visa fazer

com que a “sociedade civil” exerça seu papel de controladora e conformadora do

próprio Estado, buscando a implementação de direitos. Nenhuma proteção acontece

com a mera previsão de direitos sociais, ou mesmo de direitos difusos, sem

garantias mínimas de que a atuação estatal não atingirá os direitos fundamentais

(BARROS, 2008b, p. 27).

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Nesse sentido, as desigualdades somente serão combatidas por meio de

espaços de discussão pública em que se assegure o caráter discursivo com

igualdade de participação dos diferentes grupos afetados pela questão (BAHIA,

2004, p. 315).

Em suma, a participação dos afetados garante a autodeterminação de direitos

fundamentais. Direitos fundamentais esses que se amoldam ao conteúdo

procedimentalista do direito buscando a conjugação entre autonomia pública e

autonomia privada “como um todo indivisível” (BARROS, 2008b, p. 36), uma vez que

não se distanciam ou se contrapõem, como ocorria nos paradigmas liberal e social.

Aqui reside a questão da legitimidade das decisões no Estado Democrático

de Direito e do próprio Direito, compreendida pela Teoria do Discurso de Jürgen

Habermas (2005), que enseja uma nova compreensão da aplicação do Direito.

O Estado Democrático de Direito consiste em um “projeto de sociedade que

se organiza a si mesma” (HABERMAS, 2005, p. 515). Isso significa dizer que o

paradigma democrático diverge dos paradigmas modernos anteriores e não mais

pré-determina uma sociedade ideal, ou um conceito de “vida boa”, ou concebe a

priori o que seja “bem comum”. Pois a formalidade do Estado Democrático de Direito

se limita a garantir as condições institucionais necessárias através das quais os

sujeitos do direito, assumindo seu papel de cidadãos, poderão entender-se e definir

quais seus problemas e suas possíveis soluções, ou seja, eles mesmos apontarão

seu próprio conceito de “vida boa” e de “bem comum”. Assim, o paradigma

procedimental “carrega uma esperança a respeito de si mesmo”, qual seja, a de

determinar não somente a autocompreensão dos especialistas que operam o direito,

mas também a de todos os afetados nos processos de formação da opinião e da

vontade58 (HABERMAS, 2005, p. 531).

Por isso, a instrumentalidade crente no protagonismo judicial como

mecanismo para a aplicação do Direito, não pode ter como base valores uniformes

que seriam compartilhados pela sociedade. Esses valores uniformes são

desacreditados em sociedades complexas e plurais pautadas no paradigma do

58

Aqui é possível uma conexão com o texto de Häberle (1997), onde defende uma hermenêutica constitucional implementada por uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição, por intermédio de um processo interpretativo plural e procedimental, onde não existam intérpretes autorizados do Direito. A ligação com a idéia habermasiana (HABERMAS, 2005) está na convergência de participação dos afetados na construção e aplicação do Direito, onde, nesse sentido, todos eles seriam, então, intérpretes autorizados do texto constitucional, ressaltando, assim, em uma democracia, a formação de uma sociedade aberta de intérpretes do Direito.

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72

Estado Democrático de Direito (NUNES, 2008, p. 41).

O princípio do discurso, assim, é fundamental para o entendimento da

legitimidade do Direito. Isso porque as “construções sociais” requerem, para serem

legitimadas, uma construção a partir de discursos públicos em que se garanta a

participação dos atingidos na argumentação de seus “pontos de vista” (HABERMAS,

2005, p. 510). Habermas coloca que

uma ordem jurídica é legítima na medida em que assegura as co-originárias autonomia privada e autonomia cidadã de seus destinatários; ao mesmo tempo deve sua legitimidade às formas de comunicação, nas quais pode essa autonomia se expressar e se prestigiar (HABERMAS, 2005, p. 491-492, tradução nossa)

59.

No paradigma defendido pelo autor, a legitimidade do Direito, portanto, está

atrelada a seus elementos justificadores: direitos fundamentais (autonomia privada)

e soberania popular (autonomia pública). A co-dependência e a co-originariedade da

autonomia pública e da autonomia privada se entrelaçam por meio da teoria do

discurso, sendo decisiva a ligação entre o princípio democrático e a fórmula jurídica.

Tal entrelaçamento deve ser entendido como uma “gênese lógica de direitos”,

reconstruída progressivamente (HABERMAS, 2005, p. 187). Essa progressividade

Começa com a aplicação do princípio do discurso ao direito a liberdades subjetivas de ação - direito que é constitutivo da forma jurídica como tal - e acaba quando acontece a institucionalização jurídica de condições para um exercício discursivo da autonomia política mediante a autonomia privada, que em um primeiro momento só se coloca em termos abstratos, e pode ser objeto de desenvolvimento e configuração jurídica (forma jurídica). Por isso o princípio democrático só pode aparecer como núcleo de um sistema de direitos. A gênese lógica desses direitos constitui um processo circular ou movimento circular, no qual o código que é o direito, quer dizer, o princípio democrático, se constituem co-originariamente (HABERMAS, 2005, p. 187,

tradução nossa)60

.

59

Un orden jurídico es legítimo en la medida en que asegura la cooriginaria autonomía privada y autonomía ciudadana de sus destinatarios; pero al proio tiempo debe su legitimidad a las formas de comunicación, sólo en las cuales puede esa autonomía expresarse y acreditarse. 60

La idea decisiva es que el principio democrático se debe ao entrelazamiento de «principio de discurso» con la forma jurídica. Este entrelazamiento lo entiendo como una génesis lógica de derechos, que puede reconstruirse paso por paso. Comienza con la aplicación de «principio de discurso» al derecho a liberdades subjetivas de acción - derecho que es constitutivo de la forma jurídica como tal - y acaba con la institucionalización jurídica de condiciones para un ejercicio discursivo de la autonomía política mediante la que la autonomía privada, que en um primer momento sólo queda puesta em términos abstractos, puede ser objeto de desarrollo y configuración jurídicos. De ahí que el principio democrático sólo pueda aparecer como núcleo de un sistema de derechos. La génesis lógica de estos derechos constituye enconces un proceso circular o movimiento circular, en el que el código que es el derecho y el mecanismo para la generación de derecho legítimo, es decir, el principio democrático, se constituyen cooriginalmente.

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Assim, o exercício da autonomia privada e da autonomia pública eleva os

cidadãos ao patamar de importantes na formação e na definição dos rumos da

sociedade, o que caracteriza o paradigma procedimentalista do Estado Democrático

de Direito. Dessa forma, BARROS (2008, p. 37) conclui que os direitos fundamentais

só podem se estabelecer por intermédio da participação dos afetados no “processo

de discussão e formação de opinião e vontade”, que só poderá ser garantido se a

autonomia pública que lhe é complementar puder ser exercida.

Os contornos desse novo paradigma se delimitam à medida que o cidadão

passa a ter oportunidade de influenciar os processos de tomada de decisões,

espaços esses onde o público não se resume mais ao estatal. Dessa forma, o

paradigma do Estado Democrático de Direito exige um “direito participativo, pluralista

e aberto” (CARVALHO NETTO, 2000, p. 481).

A perspectiva da teoria discursiva habermasiana é fundamental para a

“reconstrução de uma visão não conflitiva tanto da relação entre autonomia pública e

autonomia privada quanto da relação entre constitucionalismo e Democracia”

(CATTONI DE OLIVEIRA, 2006, p.110), delineando uma nova compreensão da

aplicação do Direito pela reconstrução da legitimidade das decisões.

Dessa forma, não faz mais sentido, em um Estado Democrático de Direito, se

permitir a segmentação e a dicotomização entre autonomia pública e autonomia

privada, como fazem os instrumentalistas na ratificação da repercussão geral como

requisito objetivo de admissibilidade dos recursos extraordinários. O argumento

utilizado é o de que, nessas “questões que ultrapassam os interesses subjetivos da

causa”, o interesse público (celeridade e segurança jurídica) deve se sobrepor ao

interesse privado. Nesse sentido,

[...] a redefinição de esfera pública e privada, num modelo revisável e argumentativo, constituem aspectos definidores do Estado Democrático de Direito e a base para distingui-lo dos paradigmas anteriores. Este ponto nos introduz na Teoria Discursiva, de Habermas, que define o paradigma do Estado Democrático de Direito a partir da relação complementar entre a autonomia privada e a autonomia pública. Desse modo, a Democracia se garante por meio de um sistema de direitos fundamentais que asseguram um processo legislativo democrático com base na soberania popular. Assim, ambas, autonomia privada e pública, são co-originárias (BARROS, 2008b, 28).

Isso se deve ao fato de que os paradigmas jurídicos liberal (interesse privado)

e social (interesse público) permanecem em tensão no Estado Democrático de

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Direito, “concorrendo caso a caso” para a interpretação do Direito que lhe seja

aplicável (CATTONI DE OLIVEIRA, 2004, p. 205). Conclui-se, assim, que nas

esferas de decisões do sistema jurídico há necessidade de, discursivamente, ocorrer

a problematização das concepções liberal e social na criação e aplicação do Direito,

para que se afastem as degenerações que tais concepções possam ocasionar

(NUNES, 2008, p. 137).

Em resumo,

A relação entre o público e o privado é novamente colocada em xeque. Associações da sociedade civil passam a representar o interesse público contra o Estado privatizado ou omisso. Os denominados direitos de primeira e segunda geração ganham novo significado. Liberdade e igualdade são retomados como direitos que expressam e possibilitam uma comunidade de princípios, integrada por membros que reciprocamente se reconhecem pessoas livres e iguais, co-autores das leis que regem sua vida em comum. Esses direitos fundamentais adquirem uma conotação de forte cunho procedimental que cobra de imediato a cidadania, o direito de participação, ainda que institucionalmente mediatizada, no debate público constitutivo e conformador da soberania democrática do novo paradigma, o paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito e de seu Direito participativo, pluralista e aberto (CARVALHO NETTO, 2004, p. 37).

Assim, no Estado Democrático de Direito não há segmentação entre o público

e o estatal. Concebe-se uma visão co-dependente ou co-originária entre autonomia

pública (cidadania) e autonomia privada (direitos fundamentais). A base da

discussão política pública pelos afetados é a participação dos atingidos. Os

procedimentos são democráticos e os processos são compreendidos como garantia.

Nesse paradigma, o Direito é construído e discutido entre iguais, e não como no

Estado Social em que o direito é paternalista.

Entretanto, no Direito brasileiro, apesar do art. 1° da CR/88, a concepção

procedimental então esboçada é ignorada, assim como a co-dependência entre

autonomia pública e autonomia privada. Isso se torna evidente diante do objeto de

investigação do presente trabalho, o instituto da repercussão geral das questões

constitucionais como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário.

Os chamados recursos extraordinários (gênero), abrangem o recurso especial

(STJ) e o recurso extraordinário (STF) propriamente dito (GRINOVER; GOMES

FILHO; FERNANDES, 2008, p. 31-34)61. Bahia (2009, p. 363-364) expõe que a

61

Quanto à nomenclatura existe posição em sentido contrário. A nomenclatura “recurso ordinário”, em contraponto com a nomenclatura “recurso extraordinário” utilizada em alguns países do mundo, não é utilizada no Direito brasileiro, segundo alguns autores (DANTAS, 2008, p. 27). Nesse sentido, o

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doutrina e a jurisprudência brasileiras dominantes sempre conceberam tais recursos

como “meios extremos de impugnação de uma decisão não mais sujeita a outros

recursos, tendo em mira a violação ou má aplicação da Constituição ou da lei

federal”.

Segundo Dantas (2008, p. 57-78), esses recursos extraordinários (especial e

extraordinário em sentido estrito) apresentam as seguintes funções: 1) função

nomofilática – visando a unidade do Direito, mediante utilização de processos

hermenêuticos afinados com os preceitos constitucionais; 2) função uniformizadora -

buscando uniformidade na aplicação e interpretação das regras e princípios jurídicos

em todo território submetido a sua vigência; 3) função dikelógica - associada à busca

da justiça no caso levado ao Tribunal, mediante a correta aplicação do Direito; 4)

função paradigmática - como vinculação e persuasão nos órgãos inferiores da

estrutura judiciária a julgar conforme já decidido pelos Tribunais Superiores.

A partir disso, o STF e o STJ passam a “Tribunais sui generis”, pois “os

recursos extraordinário e especial lhes dariam oportunidade de agirem como

guardiões da Constituição e da lei federal” (BAHIA, 2009, p. 364). Como objeto do

recurso extraordinário tem-se a Constituição da República e do recurso especial

tem-se a lei federal.

[...] sendo estes os objetos daqueles Recursos, o STF e o STJ devem levar em conta não a “injustiça” da decisão impugnada, mas apenas (ou, preferencialmente) um suposto “interesse público”, que se traduziria aqui na “garantia da autoridade” daquelas normas, e, para além do caso, tendo em vista outros casos “idênticos” (atuais e futuros), suas decisões também visariam gerar e preservar “uniformidade” jurisprudencial, “celeridade” processual e “previsibilidade” das decisões (BAHIA, 2009, p. 364).

Com ironia, Bahia (2009, p. 364) chega a afirmar que é por isso que

recurso extraordinário dirigido ao STF é meramente uma espécie de recursos excepcionais. Importante expor que essa nomenclatura merece ser pontuada à luz da concepção instrumentalista sobre o duplo grau de jurisdição. Bruno Dantas (2008, p.27) classifica os meios de impugnação das decisões judiciais com base na instauração ou não do que ele chama de relação jurídica processual. Assim, divide os meios de impugnação em ordinários (os recursos, por exemplo) e extraordinários (revisão criminal, por exemplo). Os meios de impugnação extraordinários recebem essa designação por instaurarem uma “nova relação jurídica processual”. Os meios de impugnação ordinários são assim chamados porque não instauram uma nova relação jurídica processual entre juiz, autor e réu. Os recursos, por sua vez, como meio de impugnação ordinários que são, se classificam em comuns ou excepcionais, e de fundamentação livre ou de fundamentação vinculada (DANTAS, 2008, p.25-27). Na classificação proposta, o recurso extraordinário para o STF, enfocado no presente estudo, está enquadrado como meio de impugnação ordinário excepcional e de fundamentação vinculada. Entendemos que a classificação proposta por Dantas (2008) pouco ou nada diverge da utilizada no texto, usada por Grinover, Gomes Filho e Fernandes (2008).

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[...] a atividade daqueles Tribunais (e dos Tribunais Superiores em geral) se diferencia daquela comum aos demais órgãos judiciários, porque, enquanto os últimos tratariam de resolver um caso, uma “lide”, os primeiros tratariam apenas de questões de direito (BAHIA, 2009, p. 364).

Além de dar ênfase às funções dos recursos extraordinários, a repercussão

geral ratifica a busca por esse “interesse público”. A repercussão geral é

considerada, no §1° do art. 543-A do CPC, como “questão relevante do ponto de

vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassa os interesses subjetivos

da causa”. Dessa forma, o “interesse público” consiste na discussão de questões de

direito relevantes, que transcendam ao interesse privado das partes no processo,

estendendo seus efeitos para outros “casos idênticos”.

Dicotomizando autonomia pública e autonomia privada em uma relação

independente, com fundamento na supremacia do interesse público sobre o

interesse privado, a repercussão geral fomenta o fato do STF se incumbir de julgar

“grandes questões” e não “mero interesse dos litigantes”.

A preocupação desse Tribunal de cúpula, segundo os instrumentalistas, deve

ser apenas com aquelas questões que lhe pareçam “de maior impacto para

obtenção da unidade do Direito”, e não toda e qualquer questão que lhe seja

apresentada (MARINONI; MITIDIERO, 2007, p. 17). Isso permite ao STF “guardar a

Constituição”, protegendo “os valores em que se funda a sociedade brasileira”

(MARINONI; MITIDIERO, 2007, p. 14). Assim, delineia-se no Direito brasileiro “um

novo ambiente jurídico” que propiciará “melhores condições” para o STF

desempenhar sua “elevada função constitucional” (DANTAS, 2008, p. 55).

Portanto, o culto à celeridade no Direito Processual brasileiro é fruto da

sobrecarga do judiciário por processos, desde os Tribunais Superiores às instâncias

ordinárias. Infere-se dos argumentos dos instrumentalistas (DANTAS, 2008;

MARINONI; MITIDIERO, 2007), que o volume de processos que tramitam no STF o

impedem de exercer sua função mais importante, a de “guarda da Constituição”.

Essa situação autoriza, valendo-se da concepção do princípio do duplo grau já

apresentada (item 2.1), a mitigação do próprio princípio, entendido como direito

constitucional ao recurso no Brasil (capítulo 4). Dessa forma, atribui-se ao STF a

discricionariedade em selecionar, pela repercussão geral, as questões que entenda

sejam relevantes para a defesa do interesse público.

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No diapasão instrumentalista, o STF é alçado à condição de Corte

Constitucional e se responsabiliza pelo julgamento de questões envolvendo os

“valores mais caros à sociedade”. Entretanto, essa visão desconsidera o fato de que

tais “valores” e concepções de “bem comum” não são definidos a priori em um

Estado Democrático de Direito. Ao limitar o recurso extraordinário à questão que

repercuta na esfera (pública) econômica, social, política, ou jurídica de outros

sujeitos, o legislador deixa de perceber que casos pontuais, individuais e únicos, que

tenham como base fundamentos constitucionais, simplesmente por não terem

extensão para além do caso concreto, deixam de ser analisados.

Segundo Dworkin (2007b, p. 287), não existem respostas prévias para

solução de um caso, nem tampouco há possibilidade de uma resposta definitiva,

dada a um caso, para servir como solução para outros casos. Nesse sentido,

interpretar um caso é um processo construtivo, e não como se pretende na

repercussão geral.

Chegar à resposta correta (decisão final) de um caso, no sentido de “única

resposta correta” de Dworkin (2007b, p. 287), só

[...] é possível dada a complexidade do evento posto à decisão, que o torna único; se ele é único, a respectiva decisão não pode ser a criação de um standard que determine, a priori a solução de qualquer outro caso, ainda que “semelhante (BAHIA, 2004, p. 324).

Como se não bastasse o fato de, na concepção procedimentalista do Estado

Democrático de Direito, o conceito desses “valores” necessitar de construção pelos

membros da sociedade, o STF passa agora a Tribunal que aprecia apenas teses

relevantes e não meros casos isolados dos cidadãos62. Interessante é que, para os

instrumentalistas, o direito fundamental (absoluto) à celeridade parece retirar do

judiciário a responsabilidade de respeito a outros direitos fundamentais e garantias

processuais.

O interesse público na celeridade processual e na segurança jurídica

mediante a previsibilidade das decisões se sobrepõe ao interesse privado na

implementação de direitos fundamentais e no respeito às garantias constitucionais

do processo. Percebe-se que a relação defendida pelos instrumentalistas é de

superioridade e não de co-dependência.

62

O que já acontecia com a dicotomia questões de fato e questões de direito, mas que agora ganha suporte não apenas jurisprudencial, mas também legal e constitucional.

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Por isso é possível afirmar que a repercussão geral não se compatibiliza com

o paradigma do Estado Democrático de Direito, exatamente por ter como

fundamento a supremacia do interesse público sobre o interesse privado.

E essa demagógica supremacia do público sobre o privado, incompatível com

o Estado Democrático de Direito, gera problemas. Isso porque esse conceito de

interesse público é concebido a priori63, e não construído pelos cidadãos nos

espaços públicos de formação da opinião e da vontade. É questionável se esse

“público” não se vincula a interesses “estatais”,

[...] quer isso signifique interesses institucionais do Judiciário (preocupado com seu funcionamento), quer sejam os interesses da Administração Pública, que possui a maior parcela dos processos que chegam àqueles Tribunais e que, por defender “sempre” o “interesse público”, conta com uma série de benefícios processuais” (BAHIA, 2009, p. 364).

Nesse diapasão, a morosidade dos órgãos jurisdicionais é o argumento

aduzido para proporcionar reformas processuais que atendam à celeridade, visando

“acesso à justiça”. Entretanto, essas reformas buscam apenas resultados (ponto de

vista pragmático e/ou teleológico), sem preocupação com a qualidade das decisões

judiciais, no sentido de garantia dos direitos fundamentais, conforme ressaltado.

Para os instrumentalistas, no Direito brasileiro, o instituto da repercussão

geral das questões constitucionais contribui para a concretização do direito

fundamental ao processo com duração razoável (MARINONI; MITIDIERO, 2007, p.

26). Segundo eles, a contribuição ocorre porque, acontecendo a decisão da questão

constitucional, nova apreciação da mesma tese sobre a questão constitucional

importaria em dilação indevida do processo, quando não presente o objetivo de

revisão de tal tese. Por isso busca-se, pela repercussão geral, economia de atos

processuais através do “encurtamento” do processo (MARINONI; MITIDIERO, 2007,

p. 27).

Entretanto, antes mesmo da EC n.° 45/04, Almeida Melo (2000, p. 373) já

previa que um filtro aos recursos extraordinário e especial, “em vez de aliviar a

estrutura judiciária”, acarretaria o acúmulo dos “plenários do STF e do STJ com o

exame de todas as relevâncias”.

Como se infere, os próprios instrumentalistas já percebem o paradoxo em que

63

Ou é fruto de uma construção solipsista do juiz no processo jurisdicional, na busca pelos escopos metajurídicos do processo, como se verá no item subseqüente, o que também permite críticas à repercussão geral no paradigma democrático.

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se insere a repercussão geral. Ainda que se reduzam os números de recursos

extraordinários admitidos, isso não acarretará a diminuição do serviço para os

Ministros do STF, pois terão que analisar o processo, da mesma forma, para

dizerem se existe ou não repercussão geral das questões constitucionais ali

discutidas. Incoerente se mostra o raciocínio do ponto de vista pragmático pois, se já

houve análise do processo para dizer que existe ou não repercussão geral, já se

está em condições de julgá-lo. A almejada celeridade resta prejudicada, portanto.

Pragmaticamente, não apenas esse paradoxo é perceptível. No que tange

aos recursos extraordinários múltiplos, outro problema, do ponto de vista pragmático,

pode ser apontado. O art. 543-B do CPC, “ao determinar que serão escolhidos um

ou mais processos representativos da controvérsia para o julgamento” atribui ao

Tribunal de origem a competência para tal (STRECK, 2009, p. 7-8). O Tribunal de

origem quem selecionará um ou mais recursos que, a seu juízo, represente

adequadamente essa idêntica controvérsia. E esses recursos que serão

encaminhados ao STF atacam as decisões do próprio Tribunal de origem

responsável pela escolha do recurso paradigma. Em outras palavras, o Tribunal que

verá sua decisão reformada é quem seleciona o recurso que entender “melhor

representar a controvérsia”, e que servirá de paradigma para todos os demais que

lá, na origem, ficarão suspensos, aguardando o STF se pronunciar sobre a

existência ou não de repercussão geral na tese defendida no recurso paradigma.

Assim, tendo como espelho a Suprema Corte americana (BAHIA, 2009, p.

364), a repercussão geral é festejada como mais um ornamento para abrilhantar a

celeridade processual, no intuito de fazer frente ao abarrotamento do judiciário por

processos. O STF, agora, novamente64 possui meios para levar a ocupar sua pauta

apenas com casos em que sobreleve um “interesse público”, transcendente ao mero

interesse privado das partes (BAHIA, 2009, p. 365).

Portanto, a crítica à repercussão geral, tendo como pano de fundo a relação

entre direitos fundamentais e soberania, acontece tanto no caso de recurso

extraordinário individual (art. 543-A do CPC), quanto em caso de recursos

extraordinários múltiplos (art. 543-B do CPC). Em nome do idealizado “interesse

público”, o instituto da repercussão geral outorga ao STF a escolha discricionária dos

64

Diz-se “novamente”, uma vez que o instituto da repercussão geral das questões constitucionais parece reproduzir a argüição de relevância da questão federal, que existia no Direito brasileiro na vigência da Constituição de 1967, como será analisado no item 3.4.

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casos que tenham ou não transcendência das questões constitucionais. Ademais,

como visto (item 2.3.3), no caso de multiplicidade de recursos, ainda acontece, pelo

Tribunal a quo ou pelo STF, a escolha do recurso extraordinário paradigma que será

encaminhado a julgamento, sendo que este predetermina o julgamento dos demais

recursos.

Assim, com base em uma escolha discricionária (conceito jurídico

indeterminado), o STF seleciona o que pretende julgar. Da mesma forma arbitrária,

não permite a participação dos afetados, pois os Ministros, por exemplo, nos casos

de recursos múltiplos, julgam um processo que terá efeito a todos os outros que

tratem de “idêntica” controvérsia.

Por fim, se respeitada fosse a engrenagem de complementaridade das

dimensões da autonomia jurídica (pública e privada), na perspectiva procedimental,

terminaria por retirar dos ombros do juiz e das partes o ônus de encontrarem, de

forma solipsista, a melhor aplicação do Direito. Nesse sentido,

no que se refere especificamente à aplicação jurídica, uma reconstrução paradigmática do Direito combinaria história e teoria, procurando retirar dos ombros do operador jurídico um papel ou encargo que só poderia ser desempenhado por um juiz Hércules: uma vez reconstruído o paradigma, ter-se-ia, sem maiores mediações, um vetor interpretativo já presente e efetivo para a resolução de questões jurídicas (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006, p. 199).

Tudo isso permite, no âmbito da jurisdição, uma compreensão do processo

como institucionalização de espaço onde os melhores argumentos sejam levados

em consideração, pela jurisdição, no momento da decisão, cuja discussão tenha

acontecido em simétrica paridade entre as partes que serão afetadas pelo

provimento jurisdicional, diante de um juiz imparcial (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006,

p. 220). Assim, uma tomada de decisão será legítima ante o paradigma do Estado

Democrático de Direito.

É perceptível, portanto, que o objetivo do instituto da repercussão geral,

além da redução do número dos recursos extraordinários aviados ao STF65, tem

como finalidade transformar esse Tribunal em Corte Constitucional.

Entretanto, mais um paradoxo é constatado. O instituto da repercussão

geral não eleva o STF à condição de Corte Constitucional, pois retira-lhe a

65

O que possibilita ao STF evitar a análise de vários processos ou causas que versem sobre um mesmo tema, aumentando, segundo os instrumentalistas, a celeridade nos procedimentos.

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possibilidade de análise de questões constitucionais que não ultrapassem o caso

concreto a ser analisado. Se uma discussão de questão constitucional não

possuir repercussão geral, quem dará a última palavra em matéria constitucional

será o STJ. Dessa forma, uma indagação surge dessa afirmativa: que Corte

Constitucional é essa que não analisa questão constitucional?

A postura de uma Corte Constitucional seria se posicionar de forma que a

última palavra em questão constitucional fosse a si atribuída, seja essa questão

de qualquer amplitude, desde que argumente com fundamento constitucional. Se

o objetivo fosse mesmo erigir o STF à Corte Constitucional, esse deveria atrair

para si a discussão de qualquer questão constitucional, e não se eximir em

apreciá-las, como é possível pelo instituto da repercussão geral das questões

constitucionais como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário.

Inevitável, portanto, diante de uma concepção procedimental do Estado

Democrático de Direito, perceber que a repercussão geral, na verdade, retira a

possibilidade de discussão de questão constitucional no último espaço

argumentativo possível para implementação discursiva dessa discussão, qual

seja, o recurso extraordinário.

A repercussão geral acarreta, além da diminuição de competência do STF,

um incremento na competência do STJ ou dos Tribunais de Segunda Instância e das

Turmas Recursais. Os próprios instrumentalistas reconhecem esse paradoxo, e

Dantas (2008, p. 190) chega a afirmar que “fica delegada ao STJ a competência

para analisar o fundamento constitucional suficiente desprovido de repercussão

geral”. Contudo, o problema do abarrotamento de processos no STJ também tem a

mesma solução dada no STF, entretanto, aconteceu por meio da Lei n.° 11.672/0866.

Conclui-se, dessa forma, que a repercussão geral, ao argumento de

imprimir celeridade aos procedimentos e transformar o STF em Corte

Constitucional, termina por inviabilizar, no Direito brasileiro, o controle difuso de

constitucionalidade, ao retirar a possibilidade do “guarda da Constituição” analisar

questão constitucional, seja ela de qual amplitude for.

O contraponto entre o controle difuso de constitucionalidade e o instituto da

repercussão geral das questões constitucionais é a discussão que surge nesse

66

A Lei n.° 11.672/08 incluiu no CPC o art. 543-C, prevendo a possibilidade do STJ julgar por recurso especial paradigma uma “idêntica questão de direito”, quando estiver diante da multiplicidade de recursos especiais.

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ponto, merecendo análise mais aprofundada. Entretanto, diante da restrição que se

impõe ao presente trabalho, apenas esses questionamentos quanto à discussão

serão aventados, como problematização para futuras pesquisas.

Por sua vez, vozes instrumentalistas não faltarão a soltarem aos ventos que o

instituto da repercussão geral das questões constitucionais é de constitucionalidade

induvidosa por ter se inserido no Direito brasileiro via Emenda Constitucional, que

incluiu ao art. 102 da CR/88, o §3°, disciplinado pela Lei n.° 11.418/06. A espécie

normativa escolhida, segundo os instrumentalistas, teria o condão de legitimar o

processo legislativo por si só. Não vislumbram, portanto, a Constituição como um

processo de consagração das autonomias pública e privada (CATTONI DE

OLIVEIRA, 2006, p. 141) e, muito menos compreendem a teoria das normas

constitucionais inconstitucionais (BACHOF, 1994), acrescida de uma leitura

procedimentalista do Direito (HABERMAS, 2005).

O princípio da supremacia constitucional impõe vedação a alterações no

Direito que se choquem com a Constituição, com aquilo que o próprio constituinte

originário determinou (STRECK, 2009, p. 4-5). A “Reforma do Judiciário” não

observa o projeto democrático e, pela repercussão geral, consegue desprover os

cidadãos da possibilidade de verem seus argumentos, que atacam decisões que não

observam a Constituição, apreciados em sede de controle difuso de

constitucionalidade.

No contexto desse novo paradigma será possível, então, proceder a uma

releitura do princípio do duplo grau de jurisdição, da postura do juiz e, dessa forma,

prosseguir no questionamento acerca da compatibilidade do instituto da repercussão

geral das questões constitucionais com a nova perspectiva de processo que deve

ser delineada. Por isso passa-se, agora, à busca de uma teoria do processo que

possa sustentar a legitimidade das decisões no Estado Democrático de Direito.

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3.2 Para além dos escopos metajurídicos e do ativismo judicial no instituto da

repercussão geral em um processo como garantia dos direitos fundamentais:

teoria do processo adequada ao Estado Democrático de Direito

O Estado Democrático de Direito, como já mencionado no item anterior,

passa a exigir a participação dos afetados nos processos de integração social e de

formação da vontade. Como visto, do entrelaçamento entre autonomia pública e

autonomia privada, constata-se que os sujeitos de direitos são os cidadãos que se

colocam, a partir de então, como autores e destinatários das normas jurídicas.

Assim, a construção participada é uma postura que ganha relevo nesse modelo

democrático de Estado. A influência dessa concepção, portanto, na teoria do

processo, é inevitável, pois somente a partir da teoria discursiva do Direito é que é

possível uma compreensão democrática do processo.

Habermas (2005, p. 291) já sinaliza essa influência da teoria discursiva na

leitura do processo jurisdicional. Dessa forma, o Direito processual é garantia de que

os sujeitos de direitos terão analisados todos seus argumentos sobre o caso, e,

assim, os afetados se resguardam de que a sentença se valerá de argumentos não

arbitrários. Por fim, essa garantia depende do processo, uma vez que há o

preenchimento da expectativa de uma comunidade jurídica preocupada com sua

integridade, orientada por princípios, de forma que a cada um seja garantido os

direitos que lhe sejam próprios (HABERMAS, 2005, p. 291). Conclui-se que a

argumentação jurídica da norma adequada ao caso concreto só pode ser exercida a

partir de um processo jurisdicional, que garanta a igualdade de oportunidades aos

afetados para que, pela argumentação jurídica, defina-se o melhor argumento

(BARROS, 2008b, p. 173).

Assim, a incursão sobre hermenêutica constitucional, feita no item anterior,

além de sustentar críticas ao objeto do trabalho (repercussão geral), tem reflexo em

todo trabalho e, por conseqüência, tem relevância para a fixação de um modelo

constitucional de processo (ANDOLINA; VIGNERA, 1990), conjugado à concepção

do processo como procedimento realizado em contraditório (FAZZALARI, 1994), no

marco do Estado Democrático de Direito.

Pretende-se uma apropriação da teoria fazzalariana como mais adequada ao

paradigma democrático em razão da possibilidade de compreensão do processo

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para além da jurisdição e da noção de construção participada das decisões. Ao

mesmo tempo, busca-se no modelo constitucional de processo a compreensão de

um esquema geral que abarca como pontos iniciais as garantias processuais do

contraditório, da ampla argumentação, da fundamentação das decisões e da

presença de um terceiro imparcial, nos moldes analisados em Barros (2008a, p. 13-

15).

Tal incursão permitirá uma compreensão adequada da postura do juiz no

processo jurisdicional e, em conseqüência, dará suporte teórico para as críticas que,

mais adiante, serão direcionadas ao instituto da repercussão geral das questões

constitucionais.

Anteriormente ao movimento constitucionalista da segunda metade do século

XX, em 1958, o processo foi incluído no critério lógico de distinção com o

procedimento (FAZZALARI, 1994), o que permitiu uma virada naquela teoria do

processo ainda hoje adotada maciçamente no Brasil, a teoria do processo como

relação jurídica exposta anteriormente (item 1.2).

A aproximação da teoria fazzalariana com a concepção habermasiana ocorre

com a defesa, por aquela teoria do processo, de uma cognição jurisdicional

dependente da atuação de todos os sujeitos processuais, não apenas do juiz

(FAZZALARI, 1994, p. 100). Dessa forma, a participação das partes na formação do

provimento final é que dá legitimidade aos atos jurisdicionais (FAZZALARI, 1994, p.

324). Esse é o ponto de apropriação da teoria do processo como procedimento em

contraditório que vale para sedimentar-se um processo democrático.

Assim, com distanciamento da teoria do processo como relação jurídica,

inaugura-se o entendimento segundo o qual o processo seria um procedimento

realizado em contraditório. Esse contraditório, por sua vez, seria o elemento

viabilizador da participação dos atingidos pelos provimentos e, ao mesmo tempo,

seria elemento legitimante desse mesmo provimento (FAZZALARI, 1994, p. 73-90),

em um critério lógico de inclusão (GONÇALVES, 2001, p. 67-69; 115).

O mérito da estruturação do conceito de procedimento se deve aos estudos

realizados no Direito Administrativo, cabendo aos administrativistas estruturar um

esquema de teoria geral do procedimento, cuja utilização vai além da jurisdição

(FAZZALARI, 1994, p. 74-76).

Os estudos de processo anteriores, por sua vez, sempre apresentaram

dificuldades em definir o que lhes cabe como objeto de estudo, o processo. Isso se

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85

deve “ao velho e inadequado clichê pandectista da relação jurídica processual”,

segundo Fazzalari (1994, p. 75, tradução nossa)67. Assim, Bülow (1964) seria um

dos responsáveis por essa dificuldade em se desvencilhar do “fenômeno processual”

e, quando resolveram mudar o conceito que atribuíam ao procedimento, se

esqueceram do conceito de processo, fazendo com que o contraditório ficasse

esquecido, e o processo fosse encampado pelo conceito de procedimento

(FAZZALARI, 1994, p. 75-76).

Procedimento, na perspectiva fazzalariana, consiste em uma seqüência de

atos previstos pelas normas. Sua estrutura é obtida por uma série de normas, cada

uma delas reguladora de uma determinada conduta (posições subjetivas), e que

enunciam como pressuposto de sua respectiva aplicação, o cumprimento de uma

atividade regulada por outra norma da série (FAZZALARI, 1994, p. 77).

Em uma releitura de Fazzalari, Gonçalves (2001, p. 102) expõe que o

procedimento consiste em atividade preparatória dos atos estatais, regulada por uma

estrutura normativa (seqüência de normas, atos e posições subjetivas) que se

desenvolve “em uma dinâmica bastante específica”, na preparação do provimento

final.

Essa dinâmica se liga às “posições subjetivas”, consistentes essas em

faculdades, poderes ou deveres extraídas das mencionadas normas, e que a elas se

ligam (FAZZALARI, 1994, p. 77-78). A posição subjetiva é a “posição dos sujeitos

perante a norma, que valora suas condutas como lícitas, facultadas ou devidas”. As

normas, portanto, disciplinam os atos e as posições subjetivas e os conectam de

forma a tornar viável o ato final, por ele preparado (GONÇALVES, 2001, p. 109).

Já o processo é uma espécie do gênero procedimento, realizado em

contraditório (FAZZALARI, 1994, p. 60; GONÇALVES, 2001, p. 111). Consiste em

[...] um procedimento no qual participam (são habilitados a participar) aqueles cuja esfera jurídica o ato final é destinado a direcionar seus efeitos: em contraditório, e de modo que o autor desse ato não possa se esquivar

de suas atividades (FAZZALARI, 1994, p. 82, tradução nossa)68

.

O elemento diferenciador do processo em relação ao procedimento é o

67

[...] al vecchio e inadatto cliché pandettistico del «rapporto giuridico processuale». 68

...è un procedimento in cui partecipano (sono abilitati a partecipare) coloro nella cui sfera giuridica l'atto finale è destinato a svolgere effeti: in contradittorio, e in modo che l'autore dell'atto non possa obliterare le loro attività.

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contraditório. Nesse sentido, o que individualiza o processo é a presença de uma

série de normas (atos e posições jurídicas) cujo efeito se estende aos destinatários

do provimento, realizado em contraditório (FAZZALARI, 1994, p. 84).

O processo começa a se definir pela participação dos interessados no provimento na fase que o prepara, ou seja, no procedimento. Mas essa definição se concluirá pela apreensão da específica estrutura legal que inclui essa participação, da qual se extrairá o predicado que identifica o processo, que é o ponto de sua distinção: a participação dos interessados, em contraditório entre eles (GONÇALVES, 1994, p. 113).

Esse é o elemento que dá ao procedimento o status de processo

(contraditório) e, via de conseqüência, garante a efetiva participação dos

interessados na construção do provimento.

O que é esse elemento? O contraditório é a estrutura dialética do

procedimento. Consiste na participação dos destinatários do provimento, em

simétrica paridade (FAZZALARI, 1994, p. 82). Trata-se da igualdade de

oportunidades que compõem a essência do contraditório enquanto garantia de

simétrica paridade de participação no processo. (GONÇALVES, 2001, p.127).

O Contraditório, assim, é o espaço argumentativo que deve oportunizar aos

afetados construírem a decisão, participadamente. É o elemento legitimador das

decisões nos procedimentos. Dessa forma, essa participação em simétrica

paridade é uma garantia de existência do próprio processo.

O conceito de contraditório evoluiu. Já não se limita ao direito da parte de ser ouvida, ao direito de se defender, mas erigiu-se como uma garantia dos destinatários da decisão de participar do processo, em simétrica igualdade, na etapa preparatória do ato imperativo do Estado - a sentença -, para influir em sua formação. (GONÇALVES, 2001, p.191).

Com essas noções, desconstrói-se a concepção de direito subjetivo a partir

da crítica à teoria do processo como relação jurídica. É inviável se pensar em um

direito subjetivo como poder de um sob a conduta de outrem em um processo

como procedimento em contraditório.

Nesse sentido, a admissão da teoria do processo como relação jurídica

significa afirmar que existe vínculo de subordinação entre as partes e o juiz no

processo, e que cada um deles pode exigir do outro determinada conduta

(GONÇALVES, 2001, p. 97). Essa posição de supra-ordenação se incompatibiliza

com a noção de cooperação das partes na produção do provimento (BARROS,

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87

2008b, p. 174), delineada por Fazzalari (1994). Importante observar que

os conceitos de garantia e de sujeição vêm de esquemas teóricos distintos, de momentos sociais distintos, de concepções distintas. Pela evolução do conceito de contraditório, a categoria da relação jurídica processual já não é logicamente admitida. Perante o contraditório não se pode falar em relação de sujeição ou de subordinação; as partes se sujeitam ao provimento, ao ato final do processo, de cuja preparação participam, e não ao juiz. A categoria da relação jurídica já não é própria para a concepção de processo centrada na garantia do contraditório, porque não é com ela compatível: ou existem vínculos de sujeição ou existe liberdade garantida de participação (GONÇALVES, 2001, p. 193).

Pelo processo, inaugura-se uma forma de controle dos atos decisionais, no

sentido de que as partes fiscalizam a atuação do decididor, e esse, a elas deve

prestar contas de seus argumentos (FAZZALARI, 1994, p. 7; 83).

Assim, como mencionado, a concepção de processo como procedimento

realizado em contraditório é a que se adéqua ao Estado Democrático de Direito,

principalmente pela participação dos atingidos, em simétrica paridade, na

construção dos provimentos (BARROS, 2008b, p. 44).

Entretanto, uma das críticas que podem ser feitas à teoria do processo

como procedimento em contraditório é o fato de não haver estruturação de uma

base de aplicabilidade por princípios constitucionais. “A teoria fazzalariana

trabalha exclusivamente no campo da técnica processual” (NUNES, 2008, p.

207).

Apesar disso, sua grande contribuição à ciência processual foi retirar do

centro dos estudos do processo a figura do juiz e da jurisdição, bem como o

enfoque do processo desvinculado da noção relacionista de direito subjetivo. Isso

sem falar na instituição, pelo processo, de uma forma de controle dos atos

decisionais. Ou seja, muda toda a abordagem da Teoria Geral do Processo, não

mais embasada na tríade jurisdição - ação - processo, mas no processo como

procedimento em contraditório.

Entretanto, para o marco procedimentalista do Estado Democrático de

Direito esse é um problema que pode ser suprido com a apropriação de

concepções da teoria constitucionalista de processo, com o advento do “modelo

constitucional de processo”69 (ANDOLINA; VIGNERA, 1990).

69

Apesar de Andolina e Vignera (1990) pensarem uma teoria geral do processo civil, no presente trabalho apropria-se das características desse modelo constitucional de processo (expansividade,

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Consenso acadêmico existe na comunidade jurídica70 no que tange ao fato

de que, após o movimento do constitucionalismo, o Direito Processual é

interpretado a partir da Constituição e tem nela suas bases71.

A proposta do Processo como garantia apta a construir o Estado

Democrático de Direito não se funda na visão dos instrumentalistas (BARROS;

ALMEIDA, 2007, p. 1962). A pretensão atual é uma reconstrução do processo,

como garantia (não como instrumento), e para além da compreensão da

jurisdição e da figura do juiz. A posição consiste em pensar o processo a partir de

um modelo constitucional, a partir de um esquema principiológico, para

proporcionar uma verdadeira coerência entre os diversos ramos do Direito

Processual (BARROS; ALMEIDA, 2007, p. 1957).

Para tanto, busca-se uma teoria do processo que não se limite ao processo

civil, mas que se embase em Fazzalari (1994) e permita compreender o

procedimento como gênero, que tem como espécie o processo, cujo plus é o

contraditório, e no qual o provimento é preparado em simétrica paridade pelos

afetados. Nessa mesma esteira, mas indo um pouco além, o processo deve se

justificar pela existência de uma estrutura uníssona de princípios, compreendidos

como bases gerais para sua própria existência (BARROS; ALMEIDA, 2007, p.

1963).

A norma e os princípios constitucionais que dizem respeito ao exercício da função jurisdicional, se consideradas na sua complexidade, consentem ao intérprete delinear um verdadeiro e próprio esquema geral de processo, suscetível de formar o objeto de uma exposição unitária

(ANDOLINA; VIGNERA, 1990, p. 13, tradução nossa)72

.

variabilidade e perfectibilidade) para aplicá-lo principiologicamente à teoria geral do processo, de forma a adequar o processo ao paradigma democrático. Por isso, conforme já mencionado, busca-se no modelo constitucional de processo a compreensão de um esquema geral que abarca como pontos iniciais as garantias processuais do contraditório, da ampla defesa, da fundamentação das decisões e da imparcialidade (BARROS, 2008a, p. 15). Exatamente em razão da apropriação crítica do modelo constitucional de processo proposto por Andolina e Vignera (1990) que as críticas direcionadas a essa perspectiva (LEAL, 2009, p. 283-284) não se contextualizam com a abordagem ora pretendida. 70

Nesse sentido ver (BARACHO, 1984); (CATTONI DE OLIVEIRA, 2001b); (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2008); (FERNANDES, 2005b); (DANTAS, 2008, p. 191); (BARROS, 2008a; 2008b); (NUNES, 2006; 2008); (FERNANDES; PEDRON, 2008); (CAPPELLETTI; GARTH, 1988); (LEAL, 2008); (BRÊTAS C. DIAS, 2004); (LASPRO, 1995); (CRETELLA NETO, 2002); (BARROS; ALMEIDA, 2007); (BARROS, 2009); (ALMEIDA, 2008), dentre outros. 71

A diferenciação se dá entre os autores a partir do momento em que divergem suas respectivas idéias acerca do conceito de Constituição, e de como deve ser ela aplicada, e até mesmo para que ela serve. Contudo, os instrumentalistas dizem trabalhar com um Estado Democrático de Direito e chegam a denominar essa democratização de acesso à justiça. 72

Le norme ed i principi costituzionali riguardanti l'esercizio della funzione giurisdizionale, se considerati nella loro complessità, consentono all'interprete di disagnare un vero e proprio schema

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Constitucionalizando a idéia de Fazzalari (1994) pelo modelo constitucional

(ANDOLINA; VIGNERA, 1990) se alcança um processo adequado ao paradigma

do Estado Democrático de Direito.

Assim, a “chave interpretativa” nesse novo paradigma é a hermenêutica

constitucional, exatamente o que agora se pleiteia, visando compatibilizar teoria

do processo com teoria da constituição. Cattoni de Oliveira (2006, p.118) expõe

que só assim é possível uma visão crítica e científica acerca dos institutos

jurídicos, ou seja, pelo estudo do Direito Processual Constitucional, no marco da

teoria da constituição e da teoria do processo. Essa conjugação entre

constituição e processo se dá na perspectiva do marco teórico do trabalho

apresentado no item anterior, qual seja, a teoria procedimentalista, de forma que

uma teoria da constituição seria, assim, capaz de fornecer aquela “chave

interpretativa” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006, p. 119).

O processo, no Estado Democrático de Direito, deve ser entendido como

garantia constitucional, categoria a que foi elevado pela constitucionalização do

processo oriunda do movimento constitucionalista do século XX. A questão

primordial nesse paradigma é compreender o processo definido principiologicamente

na Constituição, de forma que todas as normas processuais específicas têm que se

adequar ao modelo constitucional de processo. Por isso a estreita relação entre o

processo e a Constituição.

Cattoni de Oliveira (2006, p. 141) bem conclui sobre a forma jurídica

participativa na construção dos provimentos, ressaltando o liame entre a teoria

discursiva do Direito e da democracia e o modelo constitucional de processo:

Não se trata, assim, simplesmente de uma relação Constituição, por um lado, processo, por outro, mas a construção de uma compreensão procedimentalista da Constituição como processo, como a regulação, institucionalização jurídica de processos, através da consagração das autonomias pública e privada dos cidadãos (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006, p. 141).

Em resumo, no paradigma do Estado Democrático de Direito, uma

discussão sobre teoria geral do processo deve estar conectada com uma teoria

da constituição. Somente através do modelo constitucional de processo

(ANDOLINA; VIGNERA, 1990) é que

generale di processo, suscettibile di formare l'oggetto di uma esposizione unitária.

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90

se pode reconstruir adequadamente os institutos do Direito Processual. Assim como há uma relação fundamental entre Constituição e processo no plano jurídico-normativo, hoje, mais que ontem, a Teoria Geral do Processo depende de uma Teoria da Constituição que a guie no seu trabalho não somente jurídico-dogmático, mas também crítico-reflexivo (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006, p. 118).

O modelo constitucional de processo é um “modelo único de tipologia

plúrima” (ANDOLINA; VIGNERA, 1990, p. 15, tradução nossa)73, em que o

processo penal, civil, trabalhista, por exemplo, se enquadram como uma dessas

plúrimas tipologias, cujas especificidades, no caso do processo penal, serão

ressaltadas no capítulo próprio. Assim, a teoria geral do processo seria um

macrossistema, do qual o processo penal, por exemplo, seria um microssistema,

com suas garantias específicas e próprias, principalmente em relação ao estado

de inocência, às garantias de liberdades individuais, e ao princípio do in dubio pro

reo (BARROS; ALMEIDA, 2007, p. 1962).

Essa perspectiva é possível em função das três características essenciais

do modelo constitucional de processo: expansividade, variabilidade e

perfectibilidade (ANDOLINA; VIGNERA, 1990, p. 14-15). Esse esquema geral de

processo permite, então, “a compreensão de um esquema de processo, formando

uma exposição unitária do processo, o qual pode ser expandido para outros

microssistemas, variando de acordo com seus escopos” (BARROS, 2008b, p.

176), sempre respeitando o esquema geral. A expansividade consiste na garantia

de que as normas constitucionais (processuais) têm posição primária na

hierarquia das fontes normativas e podem (devem) ser expandidas para outros

microssistemas. A variabilidade é a capacidade de especialização das normas

processuais em formas diversas, devido às características próprias de cada

microssistema. E, por fim, a perfectibilidade é a capacidade de aperfeiçoamento

do modelo constitucional pelo processo legislativo (ANDOLINA; VIGNERA, 1990,

p. 14-15).

O modelo constitucional de processo permite perceber que “o processo não

é somente um procedimento em contraditório” (LEAL, 2002, p. 87), mas um

processo disciplinado por outros princípios constitucionais que compõem a

estrutura lógica de um processo adequado a um Estado Democrático de Direito

(BARROS; ALMEIDA, 2007, p. 1964). Todo processo tem como base os

73

A modello unico ed a tipologia plurima.

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princípios constitucionais do contraditório, da ampla argumentação, da

imparcialidade e da fundamentação das decisões (BARROS, 2009, p. 335).

Ademais, Andolina e Vignera (1990, p. 19) também exigem, na

configuração do modelo constitucional de processo, um procedimento que se

destina a um provimento jurisdicional dependente da cooperação das partes.

Em resumo, a teoria do processo como procedimento em contraditório, ao

garantir as bases técnicas da “participação endoprocessual das partes”, permite, em

conjunto com a concepção trazida pelo constitucionalismo, uma procedimental

democratização do processo (NUNES, 2008, p. 208). Por isso a garantia do

processo se revela co-dependente aos direitos fundamentais (BARROS, 2009,

p.336), ressaltando o liame com a teoria procedimentalista do Estado Democrático

do Direito, na tensão entre autonomia pública74 e autonomia privada.

No paradigma proposto, não é mais possível se compreender a postura do

juiz a partir das compreensões delineadas na instrumentalidade do processo, cujas

bases estão na teoria do processo como relação jurídica.

O ativismo característico do juiz, no Direito brasileiro, tem como base os

escopos metajurídicos, uma vez que o processo, para a teoria instrumentalista, se

resume a um “instrumento de pacificação social” (DINAMARCO, 2008). Dessa

forma, o juiz, responsável pela condução do processo, é munido de “poderes” para o

desempenho das funções jurídica e metajurídicas que lhes são outorgadas.

Entretanto, com a integração das garantias constitucionais do contraditório e

da ampla argumentação, em uma estrutura procedimental intersubjetiva e

comparticipativa de formação de todos os provimentos judiciais, delineia-se um

cenário de inviabilidade de atuação monológica do juiz na construção desses

provimentos. Por isso, os escopos metajurídicos do processo, que enaltecem o

ativismo judicial, não se compatibilizam com um Estado Democrático de Direito

(NUNES, 2006, p. 151).

A postura do juiz como centro do processo, defendida pela Escola Paulista de

74

O processo aqui se conecta à soberania popular que, por sua vez, está vinculada à noção de exercício da cidadania. A cidadania, no Estado Democrático de Direito, deve ser entendida na acepção de Cattoni de Oliveira (2006, p. 130), como a “titularidade de direitos reciprocamente reconhecidos e que se garantem através dessa institucionalização de procedimentos capaz de possibilitar a formação democrática da vontade coletiva, a formação imparcial de juízos de aplicação jurídico-normativa e a execução de programas e de políticas públicas, sem impor um único modelo de vida boa, embora estes devam garantir aos cidadãos, no exercício de sua autonomia pública, a possibilidade de realização de um projeto cooperativo de fixação de condições de vida recorrentemente mais justas”.

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Processo, é fruto ainda de uma concepção oriunda do paradigma de Estado Social.

E o entrelaçamento da teoria do processo como relação jurídica com o insuficiente paradigma do Estado Social leva vários desses autores a examinar o processo como relação jurídica desenvolvida entre partes, que se encontra à disposição do Estado, ao atendimento de interesses públicos de origem extralegal (escopos metajurídicos) (LEAL, 2002, p. 82).

E os instrumentalistas trabalham com conceitos oriundos desse paradigma

socializante, ou até mesmo de paradigmas pré-modernos, uma vez que ainda

permitem dogmas, indenes de questionamentos. Alguns juristas (FERNANDES;

PEDRON, 2008, p. 37) chegam a dizer que a instrumentalidade se tornou verdadeira

“febre”, sendo cultivada como dogma pelos processualistas pátrios, que trabalham

com pré-compreensões inquestionáveis e subjacentes.

E, em se tratando de ciência, o uso de determinados conceitos revela “um

mundo de pressupostos carentes de explicitação”, quando se pretende o

desenvolvimento de uma crítica construtiva da respectiva ciência (SILVA FILHO,

2003, p.130). Na ciência jurídica não é diferente, ao contrário do que se constata em

Dinamarco (2008, p. 23), uma vez que, diante da ruptura constitucional com os

paradigmas anteriores faz constante a necessidade de consciência do projeto

democrático. A tarefa de sua construção crítica é permanente, principalmente ao se

deparar com a “inflação do uso da expressão paradigma do Estado Democrático de

Direito”, sem que a jurisprudência e os autores nacionais tenham consciência do que

efetivamente significa esse novo paradigma (SILVA FILHO, 2003, p. 130).

Em termos de uma teoria que se funda na tríade jurisdição, ação e processo,

não se pode sustentar uma teoria geral do processo, a não ser adotando o

entendimento dos instrumentalistas, qual seja, uma teoria geral do processo civil

enfiada “a fórceps” no processo penal (BARROS; ALMEIDA, 2007). Essa situação se

mostra totalmente desvinculada, portanto, de um modelo constitucional de processo,

que toma como marco a teoria procedimentalista do Estado Democrático de Direito,

e que se propõe à reconstrução da compreensão de processo a partir da teoria do

processo como procedimento em contraditório.

A posição subjetivista do juiz no processo jurisdicional, típica dos

instrumentalistas, demonstra como os argumentos, por esses autores analisados, se

tornam insustentáveis diante de uma interpretação adequada ao paradigma de um

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Estado “efetivamente” Democrático de Direito75, devido à subordinação das partes

ao juiz, encontrada na teoria geral do processo jurisdicional por eles abordada.

Os instrumentalistas e, com eles, uma gama de juristas brasileiros, muito

confundem “doutrina” com “teoria”. Teoria

[...] designa uma construção conceitual e lingüística, aproximável e aperfeiçoável ou refutável, que permite ver e compreender algo dentro do contexto e ambiente em que objeto e observador se situam e se relacionam. Uma teoria, na ciência, funciona mais como uma hipótese ou tese do que como uma verdade acabada: só foi formulada e só se mantém em razão dos dados e dos fatos constatados, produzidos ou disponíveis que a sustentam e, consequentemente, pode ser alterada, revelada falsa, rejeitada e substituída em razão de outros ou novos dados e fatos. A teoria não vale em razão de quem a formulou, por mais respeitável que seja. Por sua vez, a doutrina demanda adesão de vontade e o emissor, original ou intermediário, desempenha importante papel na adesão: ou é a fonte sublime e transcendente da doutrina ou é a testemunha ou o exemplo, que arrasta e move a vontade do adepto. O termo doutrina é, assim, adequado para indicar a organização do conteúdo do dogma, da mensagem cifrada, como tal sempre aberta à inclusão de qualquer conteúdo pelo respectivo receptor, e do mistério. Isso não é o que ocorre no Direito enquanto conhecimento científico. A designação “doutrina” não é adequada e não corresponde, pois, ao estatuto cognitivo do Direito, se é que correspondeu inteira ou parcialmente em alguma época e, sobretudo, se o Direito deve se constituir como ciência (MARÇAL, 2007, p. 46).

Os instrumentalistas não trabalham em seus estudos com “uma reflexão

paradigmática de fundo”, adequada a um estudo científico na

contemporaneidade. Se houvesse uma “reflexão paradigmática de fundo” pelos

processualistas brasileiros, eles descobririam que “o modelo constitucional do

processo não está enquadrado no Estado Social que eles tanto admiram”

(FERNANDES; PEDRON, 2008, p. 93). E tal reflexão, diante do marco teórico

que adotam na teoria do processo, em consonância com o paradigma do Estado

Social, não permitiria outra metodologia de estudo senão a meramente técnica

75

Os argumentos esboçados pelos adeptos da Escola Paulista de processo sempre estão atrelados a argumentos de autoridade, ainda entrelaçados no paradigma do Estado Social. Sempre se posicionam em questões controversas que discutem, com a regra da confrontação de argumentos ou compilação de idéias: o autor “x” pensa “A”, o autor “y” pensa “B” e o autor “z” pensa “C”; entretanto, fico com o argumento “B” do autor “y”. Em 90% dessas ilações, não se sabe o motivo ou o porquê se ficou com o argumento “B” do autor “y”, como ocorre, por exemplo, em Marcato (2006, p. 27-33). Importante apontar como o próprio idealizador da Teoria parte de pré-conceitos estanques e inquestionáveis, in verbis: “...chegou o terceiro momento metodológico do direito processual, caracterizado pela consciência da instrumentalidade como importantíssimo pólo de irradiação de idéias e coordenador dos diversos institutos, princípios e soluções” (DINAMARCO, 2008, p. 22). Quanto a esses institutos e princípios, assim continua o autor: “O que conceitualmente sabemos dos institutos fundamentais desse ramo jurídico já constitui suporte suficiente para o que queremos, ou seja, para a construção de um sistema jurídico-processual apto a conduzir aos resultados práticos desejados” (DINAMARCO, 2008, p. 23).

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94

dos institutos do Direito Processual, como fazem.

Em função dessa desatenção paradigmática, apontou-se a relevância do

Direito italiano para o presente trabalho no item 1.3.1, especialmente no Direito

Processual, em que foi ressaltada a importância dos reflexos da concepção de

Menger e Klein. Esses apontamentos, associados à crítica que agora é feita

quanto ao método de estudo, servem para constatar que a socialização

processual defendida na instrumentalidade pode chancelar uma postura

autoritária, típica do Estado Social, evidente nas recentes reformas.

A proximidade de defesa desses autores, do período nazista, de um juiz portador de uma concepção privilegiada de valores uniformes compartilhados, de algumas defesas, ditas contemporâneas, de um juiz engenheiro social, que atua como canal dos valores da sociedade, é no mínimo preocupante, quando se recorda o que a magistratura nazista realizou nesse período (autorização de esterilizações em massa dos judeus, chancela das medidas de pseudo-eugenia etc), e conduz à reflexão sobre se tal concepção pode ser nomeada com verdadeiramente democrática (NUNES, 2008, p. 92-93).

Na Itália, portanto, o processo como mecanismo de resolução de conflitos

sustentou a base ideológico-jurídica do Estado Social fascista (NUNES, 2008, p.

94). Esse é um dos exemplos de onde pode chegar a busca pelo “bem comum”,

que, inclusive, sustentou a ideologia do Estado nazista.

Os instrumentalistas, com sua proposta de avaliação do sistema

processual pela perspectiva teleológica, nos termos de Gonçalves (2001), têm no

processo a forma de preservação dos valores postos axiologicamente pela

sociedade e afirmados pelo Estado (FERNANDES; PEDRON, 2008, p. 36). O

Direito é gerado em razão das vontades daqueles que estão envolvidos, assim

como sua aplicação, em virtude da provocação da jurisdição pelas partes

(princípio dispositivo).

Isso significa dizer que o processo é instrumento do Direito, na medida em

que o processo realiza as finalidades jurídicas (como atuação da vontade do

direito material), além de não deixar de lado suas finalidades sociais (pacificação

social com justiça, educação para conscientizar) e políticas (ratificação do poder

do Estado, preservação da liberdade, participação democrática, dentre outros). O

processo, assim, é um meio para obtenção de um fim, porque o Direito só é

aplicado na medida em que realiza esses valores, cujo canal é o juiz

(DINAMARCO, 2008, p. 158). Se tais valores não forem atendidos pela

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positivação do Direito, o juiz afasta a norma e aplica tais valores. O juiz pode,

inclusive, “corrigir” o Direito (legislação imperfeita e envelhecida) para que ele se

ajuste a esses escopos jurídicos e metajurídicos (BARROS; ALMEIDA, 2007, p.

1961).

Na instrumentalidade, o problema é também o caráter substitutivo da

jurisdição frente às partes (teoria da relação jurídica) para se obter a pacificação

social. Se o juiz substitui as partes na solução de um conflito existente entre elas,

significa dizer, para os instrumentalistas, que elas (as partes) atribuem ao

Estado-juiz, uma vez proposta a demanda, a tarefa de solucionar um conflito que

elas mesmas não solucionaram. Por isso, a intervenção do juiz pressupõe uma

incapacidade jurídica e fática76 por parte das partes em construírem uma solução

daquela controvérsia em que estão envolvidas. As partes, portanto, não

participam da construção da decisão, pois o juiz as substitui.

Concebendo um contraditório como bilateralidade de audiência (dizer e

contra-dizer o Direito), o juiz apenas ouve os argumentos das partes77, sem estar

adstrito a eles. O juiz decide, assim, sem vinculação aos argumentos debatidos e

discutidos no processo, uma vez que o argumento é a paradigmática

hipossuficiência (incapacidade das partes em solucionar os conflitos em que

estão envolvidas). As partes não participam da preparação da decisão e, para o

paradigma democrático, aí não se viabiliza a garantia do contraditório.

Na perspectiva procedimentalista do Direito, que ultrapassa a visão

instrumentalista de processo, não significa dizer que, uma vez proposta a

demanda, não se tenha mais nada a dizer ou debater a respeito dela. Não

significa que, no exercício da função jurisdicional pelo Estado, essa não se

realize com a participação dos destinatários da decisão.

Não entendem os instrumentalistas que o contraditório é constitutivo do

processo (FAZZALARI, 1994) e, muito menos, a relação de co-dependência entre

autonomia pública e autonomia privada (HABERMAS, 2005). Isso porque a

função estatal da jurisdição é desempenhada pelo Estado, com a participação

dos jurisdicionados, ou seja, construída participadamente com os afetados pela

76

A incapacidade fática aqui não significa incapacidade absoluta das partes na produção probatória. Utiliza-se a expressão com referência aos poderes instrutórios do juiz, de forma que as partes não apenas apresentam os fatos e o juiz decide. Incapacidade fática aqui significa hipossuficiência probatória das partes, podendo o juiz gerir a prova e se valer de seus poderes instrutórios. 77

O juiz ouve as resmungações do autor, ouve as lamúrias do réu, e então decide solitariamente, sem que os argumentos o vinculem ou o influenciem na decisão.

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decisão, ao contrário do que aqui acontece. A decisão jurisdicional não é mais

construção do intelecto do juiz, não é exclusiva do julgador, mas sim produto de

um discurso argumentativo empreendido entre as partes.

A postura do juiz como centro do processo, defendida pela Escola Paulista de

Processo, além de ser fruto de uma concepção oriunda do paradigma de Estado

Social, como dito, permite uma atuação subjetivista e protagonista no processo

jurisdicional (GRINOVER; CINTRA; DINAMARCO, 2008).

Por isso o processo não pode mais ser reduzido e confundido com um

simples método de atuação da jurisdição, na mesma esteira que o procedimento não

se identifica com mera materialização do processo, como sustentam os adeptos da

instrumentalidade, imprimindo cunho apenas teleológico às concepções.

Tomando por outra base teórica (STRECK, 2009), mas com conclusões

próximas, a respeito do mesmo tema, Streck (2009) delineia como a crença na figura

do juiz como protagonista do processo é tão imanente que se infere como depositam

nele todas as esperanças dos problemas sociais. Nesse contexto, as mini-reformas

processuais, em 20 anos da Constituição, passaram a apostar cada vez mais no

protagonismo judicial (STRECK, 2009, p. 8).

Percebe-se, assim, que a questão é tão intrínseca e arraigada nesses

instrumentalistas, a ponto de se afirmar que sequer passaram pela reviravolta

lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea, encontrando-se ainda

estacionados em uma filosofia da consciência, ou como prefere Streck (2009, p. 5),

esses juristas continuam reféns do “esquema sujeito-objeto” e nem percebem.

Filosofia da consciência, ativismo judicial e discricionariedade judicial são todas

concepções com identidades convergentes (STRECK, 2009, p. 12).

Mas, como já ressaltado no presente item, em um Estado Democrático de

Direito a sociedade é multicultural e, portanto, não é possível definir, a priori,

quais são essas aspirações, senão por um processo democrático que respeite a

simbiose entre autonomia pública e autonomia privada. Procura-se, do ponto de

vista normativo, um nexo ou coesão interna entre Estado de Direito e Democracia,

entre direitos humanos e soberania popular, entre autonomia privada e autonomia

pública (HABERMAS, 2005). Assim, a intersubjetividade é a condição de “superação

do paradigma epistemológico da consciência”, conseqüentemente superando a

questão do solipsismo judicial (STRECK, 2009, p. 11).

Se o juiz é o centro do processo e pode, inclusive, criar o Direito, uma vez

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que capta o sentimento jurídico do povo (BÜLOW, 1964) ou os valores da

sociedade (DINAMARCO, 2008), diante de um direito constitucional ao recurso

que pode ser derrogado pela legislação infraconstitucional (fi ltros), ele pode,

também, dizer que celeridade é o direito fundamental que a sociedade busca

como absoluto, uma vez que captou nela a ânsia por velocidade nos

procedimentos. Isso reflete tanto na justificação (criador) quanto na aplicação

(decididor) do Direito78. Sendo assim, pode o julgador, também, dizer o que tem

ou não repercussão geral para ser julgado pelo STF.

O resultado disso é que aquilo que começa com (um)a subjetividade “criadora” de sentidos (afinal, quem pode controlar a “vontade do intérprete”? perguntariam os juristas), acaba em decisionismos e arbitrariedades interpretativas, isto é, um “mundo jurídico” em que cada um interpreta como (mais) lhe convém...! Enfim, o triunfo do sujeito solipsista, o Selbstsüchtiger, que carrega seu egoísmo (e seu destino) no próprio nome! (STRECK, 2009, p. 14)

79.

Daí a necessidade de releitura dessa atuação do juiz no processo

jurisdicional, visando compatibilizar o exercício da função jurisdicional com o Estado

Democrático de Direito.

Como visto no item 1.3.1, a função do juiz, no liberalismo processual, era

meramente passiva, cabendo às partes o completo domínio sobre o

desenvolvimento do processo. Vigorava o princípio dispositivo. Com a socialização

processual, o juiz teve ampliado seu papel, conseqüentemente reduzindo o papel

das partes no processo. Ao juiz cabia a função de condutor do procedimento,

passando de expectador a protagonista.

O juiz, na relação jurídica processual, é representante do Estado no processo

e tem como função a eliminação das desigualdades das partes no exercício de sua

função jurisdicional. Essa participação judicial é elevada, no processo

instrumentalista, ao protagonismo judicial, o que permite ao juiz uma postura

participativa solitária no processo (DINAMARCO, 2008, p. 156), conseqüentemente

relegando às partes uma postura passiva e de subordinação.

78

Sobre diferenciação entre discurso de aplicação e discurso de justificação do Direito, para construção da argumentação no marco democrático, importante o trabalho de Günther (1995), cuja essência encontra-se nas bases da teoria discursiva (HABERMAS, 2005). 79

Apesar de Streck (1999; 2002; 2005; 2009) não adotar uma concepção procedimentalista do Direito usada como marco no presente trabalho, suas conclusões quanto ao protagonismo do juiz convergem com as conclusões aqui propostas e dão reforço à crítica ao instituto da repercussão geral das questões constitucionais.

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A compatibilidade entre a visão instrumentalista de processo, tendo o juiz

como o protagonista na relação processual, e a “Reforma do Judiciário” ganha

reforço pela confusão entre poder e função, entre autoridade e fiscalidade

participativa, uma concepção equivocada da posição da função jurisdicional, que,

nas bases sociais, se dá como “poder” judiciário e não como função judiciária. A

influência nas reformas processuais é evidente, pois, sedento o legislador por

celeridade, acaba por implementar o aumento dos poderes judiciais no processo,

implicando no excesso de subjetividade nos provimentos. Percebe-se que

[...] as tendências reformistas brasileiras ainda trabalham com um modelo monológico de aplicação de tutela, em que se cria uma credulidade de que a grande maioria dos problemas do sistema processual poderão ser sanadas com o paulatino aumento dos poderes judiciais (NUNES, 2006, p.160).

Por isso, a duração razoável do processo, que tem na essência o movimento

do “acesso à Justiça” oriundo do Projeto Florença (CAPPELLETTI; GARTH, 1988),

vem ancorada na visão instrumentalista, segundo a qual essa forma de pensar o

processo é que proporciona um judiciário acessível, justo e dotado de uma

produtividade escalonar, o que otimiza o sistema processual e alcança sua

celeridade “ou” efetividade, tudo na busca da demagógica “paz social”.

Seria mesmo inquestionável a mitigação do princípio da revisibilidade das

decisões (MARCATO, 2006, p. 3; 88; 163), em nome dessa celeridade “ou”

efetividade. Assim, a instrumentalidade ocupa o processo com a lógica do

procedimento (dogmática) e com sua celeridade (FERNANDES; PEDRON, 2008, p.

61).

Esse papel protagonista permite ao juiz adotar uma postura compensadora

dos déficits de igualdade material, caso aconteçam entre as partes (NUNES, 2008,

p. 80-81). Diante da incapacidade das partes em solucionar seus problemas, o

procedimento de formação dos provimentos judiciais acontece com base apenas na

racionalidade e na autoridade do juiz, de forma solipsista. Metodologicamente, com

base nessas proposições, Dinamarco (2008, p. 41) reforça a idéia instrumental do

processo e da insuficiência apenas do seu escopo jurídico, ratificando seus escopos

político e social. Assim, compreende que o processo é um instrumento não apenas a

serviço do direito material, mas com a elevada missão de “pacificação social” para

“estabilidade das instituições” (DINAMARCO, 2008, p. 41).

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Entretanto, não é isso que um processo democrático deve buscar como

instrumentalidade, para evitar a aplicação subjetiva, solipsista e sensível do juiz. A

instrumentalidade técnica do processo não significa, como querem os

instrumentalistas, a técnica se desenvolvendo para se produzir a si mesma. Mas

está em procurar que o processo se constitua na melhor, mais ágil e mais

democrática estrutura para que o provimento, que dele seja gerado, aconteça com

garantia de “participação igual, paritária e simétrica” dos seus destinatários

(GONÇALVES, 2001, p. 171).

Portanto, com base nos argumentos já esboçados no presente item e no

anterior, o Direito deve fundar-se no princípio democrático, não mais compreendido

como o mecanismo liberal da decisão majoritária ou a partir da pretensa vontade

geral republicana (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006, p. 99-105). O princípio

democrático, “no modelo a que se propõe o Estado de Direito”, deve ser entendido

como institucionalização de processos estruturados por normas que garantam a

possibilidade de participação discursiva dos cidadãos no processo de tomada de

decisões (CATTONI DE OLIVEIRA, 2001b, p. 226).

Nesse contexto, o instituto da repercussão geral das questões constitucionais

é estudado com sustentáculo em um paradigma de Estado Social, vinculado a uma

jurisprudência dos valores e a uma teoria do processo como relação jurídica. Todas

essas questões, já superadas no paradigma do Estado Democrático de Direito.

Esses estudos feitos sobre a repercussão geral são ratificados por uma posição

autoritária do julgador na condução do processo, ainda com base na

instrumentalidade. A instrumentalidade admite a influência das concepções

pessoais, “sócio-políticas” do juiz no seu ato de sentenciar, de forma a refletir as

aspirações da própria sociedade, o que evita a “injustiça” da decisão

(DINAMARCO, 2008, p. 230; 231). Nessa concepção, o juiz, ao decidir, tem a

tarefa de “examinar as provas, intuir o correto enquadramento jurídico e

interpretar de modo correto os textos legais à luz dos grandes princípios e

exigências sociais do tempo” (DINAMARCO, 2008, p. 231). É nítido como o

instituto da repercussão geral, pela Lei n.° 11.418/06, pelo próprio texto legal,

busca os escopos metajurídicos do processo.

Assim, é perceptível como esses escopos metajurídicos fomentam o ativismo

judicial no instituto da repercussão geral das questões constitucionais. Como

mencionado, um dos problemas mais graves da Lei n° 11.418/06 se mostram

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nesses escopos metajurídicos. Além do ativismo judicial sustentado nos escopos

metajurídicos, esses próprios escopos, por si, também se encontram inseridos no

paradigma socializante.

O §1° do art. 543-A do CPC define o instituto da repercussão geral da

seguinte forma: “Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou

não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico,

que ultrapassem os interesses subjetivos da causa”.

O legislador brasileiro afirma categoricamente a visão de resultados que se

espera do processo na concepção instrumentalistas. Corroborando a idéia de que há

objetivos a serem atingidos pelo processo através do exercício da atividade

jurisdicional, os relacionistas ratificam a postura do Estado que, para cumprir seus

objetivos, usa a jurisdição como instrumento para perseguir esses valores pré-

definidos pela lei. Por isso permite-se ao STF que defina o que irá julgar, mediante

instituição de um filtro cuja definição é reflexo da adoção da idéia teleológica dos

escopos jurídicos e metajurídicos da jurisdição, na esteira do processo de

resultados.

Com o instituto da repercussão geral das questões constitucionais o STF não

analisa mais casos que não tenham interesse público, interesse social relevante ou

que não atinjam a sociedade como um todo. Significa que, a partir da repercussão

geral, não julga casos que não tenham relevância econômica, política, social ou

jurídica ultrapartes.

Pelo filtro da repercussão geral das questões constitucionais o STF, por

seu “prudente arbítrio”, passa a selecionar as causas com repercussão geral. Isso

porque o juiz do Estado Social, do alto de sua posição de superparte, pode captar

os “valores jurídicos, sociais e políticos da nação” na busca do “bem comum”

(BARROS; ALMEIDA, 2007, p. 1961). Por conseqüência o processo se afirma

como instrumento da jurisdição na busca da “pacificação social” (TUCCI, 2002, p.

226).

Conforme já registrado, o objetivo do instituto é a redução dos recursos

extraordinários aviados ao STF, por necessitarem esses, então, de demonstrarem

a relevância das questões neles suscitadas. Com isso o STF evita a análise de

vários processos ou causas que versem sobre um mesmo tema, visando

celeridade nos procedimentos. Entretanto, o modelo constitucional de processo

com suas garantias fundamentais do contraditório, da ampla argumentação, da

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imparcialidade e da fundamentação das decisões é rechaçado pelo juiz da

instrumentalidade, que constrói solitariamente suas decisões e não precisa

atentar para os argumentos despendidos pelas partes.

A recusa de recurso extraordinário ocorrerá por ausência do requisito de

admissibilidade que demonstre fundamentadamente a existência de repercussão

geral (art. 327, RISTF). Essa recusa preliminar poderá ser feita até mesmo antes

da distribuição do recurso extraordinário, pelo próprio Presidente do STF (art. 13,

V, “c” do RISTF), ou pelo relator. Mais uma situação da repercussão geral que

demonstra essa postura autoritária e solipsista do juiz, com assento na

instrumentalidade do processo. O acesso ao STF, além da repercussão geral, é

obstruído por uma mera formalidade.

A repercussão geral restringe recursos constitucionais mediante requisitos

cujo conteúdo é aferido por meio de conceito jurídico indeterminado, como já

mencionado. É mais um exemplo de como uma concepção de processo,

destoada do paradigma democrático, permite defender que nenhum problema

existe em definir institutos processuais mediante conceitos subjetivos. Como

conceito jurídico indeterminado, requer valorações subjetivas para o seu

conhecimento (relevância e transcendência)80. O juiz instrumentalista, filiado a seus

escopos metajurídicos e em posição de superioridade em relação aos afetados,

responsável único e solitário pela função jurisdicional, age como “poderoso

catalisador de sentimentos da sociedade” (DANTAS, 2008, p. 220), podendo a priori,

dizer o que tem ou não repercussão geral. Dessa forma, impõe conceitos de “bem

comum” e “vida boa” a uma sociedade complexa, dando ênfase apenas ao interesse

público, pois só o STF tem “aguda sensibilidade para detectar em casos corriqueiros

questões de interesse fundamental da sociedade inteira ou de largos segmentos

dela” (DANTAS, 2008, p. 220).

Em sendo a repercussão geral constitucional, em uma interpretação conforme

o modelo constitucional de processo, deveria tal temática ser submetida ao

contraditório, que significa a participação das partes ou terceiros, oferecendo

argumentos para a construção da decisão (ampla argumentação).

Em tese, as partes ou terceiros deveriam participar da argumentação se há ou

80

O pior é constatar-se que, para os instrumentalistas, relevância e transcendência, na repercussão geral, apesar de conceitos jurídicos indeterminados, são valorações objetivamente mensuráveis (DANTAS, 2008, p. 220).

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não repercussão geral. Entretanto, o STF não está vinculado aos argumentos

“despendidos” nas razões e contra-razões recursais, como entendem os

instrumentalistas (MARINONI; MITIDIERO, p. 79-80). Decisões são produzidas pelo

juiz, sem se atrelar aos argumentos trazidos pelas partes para o processo.

Como se não bastasse, em casos de recursos múltiplos, não só os

argumentos despendidos pelas partes são desconsiderados na construção

solitária da decisão. O Ministro do STF sequer tem contato com os autos dos

processos sobrestados, manuseando apenas o caso paradigma. Dessa forma,

ocorre uma decisão em um processo, cujos efeitos se estendem a todos os

demais casos com “igual controvérsia”, mas sem que, nesses demais casos que

se encontravam sobrestados, aconteça a análise dos argumentos que ali foram

esboçados. E mais que isso, sem nem mesmo discutir contraditoriamente se o

caso é mesmo igual, não se permitindo à parte sequer argumentar no sentido de

demonstrar que o caso paradigma é diferente do seu caso.

As concepções instrumentalistas influenciam o instituto da repercussão geral

e provocam paradoxos. Como mencionado no item anterior, o objetivo da reforma é

também impedir os recursos aviados ao STF e, por conseguinte, controlar o

conteúdo das decisões judiciais. Entretanto, do ponto de vista pragmático, esses

mecanismos criam situação paradoxal: na tentativa de retirarem competência em

questões constitucionais dos Tribunais inferiores, acabaram por atribuírem mais

competência a eles, tendo em vista que tais Tribunais quem selecionam o recurso

paradigma.

A conclusão que se chega é que, por vias transversas, o próprio Tribunal de

origem quem será competente para dizer se há ou não repercussão geral, uma vez

que têm que dizer, no juízo de admissibilidade, se há ou não essa repercussão geral

das questões constitucionais para que o recurso seja encaminhado ao STF81.

Entretanto, os julgadores nunca deixam de decidir. Nas instâncias inferiores, até pra

que os juízes ou desembargadores digam que não são competentes ou que um

recurso extraordinário não apresenta repercussão geral, têm que decidir e analisar o

processo. A repercussão geral, assim, termina por aumentar a complexidade do

trabalho dos Tribunais de origem, conseqüentemente aumentando o serviço judicial,

não diminuindo-o, como é o anunciado.

81

E o mesmo acontecerá no STJ, com os casos idênticos ou “com idêntica questão de direito”, implementados pela Lei n. 11.672/08, que incluiu o art. 543-C no CPC.

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Portanto, é jocoso constatar que o discurso do aumento de competência

constitucional do STF82, na busca da celeridade pela redução de possibilidades

recursais, termina por aumentar o volume de trabalho tanto dos Tribunais de origem

quanto do próprio STF, ressaltando, cada vez mais, o problema estrutural do

judiciário, esse sim, responsável pela morosidade.

Constata-se uma diminuição de competência constitucional do STF via

Emenda Constitucional, o que seria inviável e consubstanciaria em norma

constitucional inconstitucional (BACHOF, 1994). Como visto, portanto, não há que se

falar em excesso de recursos como entrave à celeridade processual, pois eles são a

extensão do espaço argumentativo da ampla argumentação e do contraditório, e

compõe o próprio modelo constitucional de processo, servindo de fomento ao

discurso e de forma de correção dos abusos e dos erros cometidos pelos juízes em

suas decisões.

Por esses argumentos, o instituto da repercussão geral, em um viés

hermenêutico-constitucional, diante da inadmissibilidade no ordenamento jurídico

brasileiro, segundo o STF, da teoria das normas constitucionais inconstitucionais

(BACHOF, 1994), seria o caso, então, de inaplicabilidade, pelos magistrados, do

artigo 102, §3º da Constituição Federal83.

Seguindo essa linha de raciocínio, mais grave é pensar a repercussão geral,

tendo como ponto de partida sua definição, que, além de se tratar de conceito

jurídico indeterminado, aconteceu na infraconstitucionalidade. O conceito de

repercussão geral não foi discutido em sede de Emenda Constitucional, que tem

quorum qualificado para votação e aprovação no processo legislativo. Tal função foi

delegada pelo art. 102, §3° da CR/88 ao legislador infraconstitucional para, então,

traçar seus parâmetros. Constata-se uma modificação indireta do artigo 5º da

Constituição, no que tange à ampla argumentação e ao contraditório, via disposição

82

Pois, para os defensores da repercussão geral, esse instituto seria o responsável por fazer com que o STF se torne o verdadeiro guardião da Constituição, se preocupando apenas com questões de maior importância, que atinjam a sociedade como um todo. 83

Postura nesse sentido é defendida por Streck (2009, p. 5-6): “Parece óbvio dizer que, vivendo sob a égide de uma Constituição democrática, compromissória e, quiçá, dirigente, o que se esperaria dos juristas, no que se relaciona ao processo de aplicação do direito, é que tivéssemos construído um sentimento constitucional-concretizante nesses vinte anos, a partir de um labor avassalador, pelo qual as leis infraconstitucionais seriam simplesmente devassadas a partir de uma implacável hermenêutica constitucional. Se novas leis não foram feitas (a contento), parece óbvio afirmar que os juristas tomariam para si essa tarefa de realizar uma verdadeira filtragem hermenêutico-constitucional”. Importante observar que essa questão está umbilicalmente ligada com o tema a ser apenas aventado no capítulo 3, qual seja, com o controle difuso de constitucionalidade.

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de norma constitucional de eficácia limitada, dependente de regulamentação via lei

ordinária. Ocorre que, como já mencionado, a celeridade não pode ser levada às

últimas conseqüências e alçada cegamente como o direito fundamental único e

supremo, como vem acontecendo no Direito brasileiro. Assim, mais uma vez

constata-se a incompatibilidade do instituto da repercussão geral das questões

constitucionais com o paradigma democrático.

Qualquer perspectiva hermenêutica crítica depende do respeito à Constituição

e às regras impostas por ela para sua própria alteração, atento às limitações

explícitas e implícitas colocadas às reformas. Portanto, mostram-se inconstitucional

e antidemocrática quaisquer alterações constitucionais por forma não prevista pela

Constituição (STRECK, 2002). Teses em contrário chegam a ser tratadas como

exercício de “golpismo” (STRECK et al, 2005), traduzindo-se o instituto da

repercussão geral como um exemplo de desrespeito às normas constitucionais.

Trata-se de uma forma de vedar o direito constitucional ao recurso, como ampliação

discursiva e revisional do espaço argumentativo do contraditório e da ampla

argumentação, que foi instituída por Emenda Constitucional inconstitucional, e que

possibilitou ao legislador infraconstitucional defini-la mediante conceitos jurídicos

indeterminados (subjetivos), na busca por escopos metajurídicos do processo.

Fica evidente, do ponto de vista hermenêutico-constitucional, como o instituto

da repercussão geral revela um retorno à filosofia da consciência, ao subjetivismo

dos julgadores e à arbitrariedade das decisões. Além dos argumentos já esboçados,

importante registrar que o instituto da repercussão geral, da forma como foi

idealizada sua aplicação, possui um problema hermenêutico grave até então

ressaltado, que desconsidera a participação das partes no procedimento de

construção dos provimentos.

A decisão do STF que reconhece ou não a repercussão geral das questões

constitucionais, além de ter aplicação, no caso de recursos múltiplos, aos demais

casos sobrestados, implica, seja com fundamento no art. 543-A ou no art. 543-B do

CPC, efeito vinculante a todos os casos, presentes ou futuros, que discutam a

mesma tese.

Com assento na hermenêutica-constitucional e no processo como garantia,

dizer que uma decisão tem aplicação automática é um contra-senso em uma

democracia, principalmente em se tratando de situação em que os afetados não

tiveram seus argumentos considerados e os futuros afetados sequer terão a

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105

oportunidade de argumentar e influenciar na construção do provimento. Decisão com

aplicação automática é um contra-senso, uma vez que qualquer texto, jurídico ou

não, exige a mediação de um aplicador ou intérprete.

Súmulas vinculantes ou filtros recursais como a repercussão geral, que têm a

pretensão de retirar decisão de questões constitucionais dos Tribunais a quo é vetar

não somente o controle difuso de constitucionalidade84, mas a capacidade e

exigibilidade interpretativa do aplicador do Direito, uma vez que todo texto é passível

de interpretação. Conseqüentemente veta-se a análise do caso concreto, passando-

se à idolatria do julgamento de teses jurídicas.

Diante disso é possível uma averigüação para sopesar essas alterações

legislativas brasileiras com o acesso à jurisdição e aos princípios constitucionais do

processo. Uma efetividade processual como sinônimo de celeridade, velocidade ou

duração razoável não garante que os cidadãos tenham seus casos analisados com

todas as especificidades argumentadas. Por isso não se pode admitir que os filtros

aos recursos extraordinários apreciem apenas teses jurídicas abstratas, ao invés de

casos concretos (BAHIA, 2009).

Essas questões transformam os discursos de aplicação em discursos de

fundamentação. Os discursos de aplicação, assim, criam situações de injustiça no

caso concreto, passando-se à admissão meramente argumentativa da cisão entre

aplicação e fundamentação. Essa situação se traduz em verdadeiro desvirtuamento

da própria matriz procedimental argumentativa (STRECK, 2009, p. 9).

Por isso, não se pode olvidar que tais questões estão umbilicalmente ligadas à crise dos paradigmas aristotélico-tomista e da filosofia da consciência, bases para a prevalência, ainda em nossos dias, do esquema sujeito-objeto. Essa crise é facilmente detectável nos diversos ramos do direito, mormente na problemática relacionada à jurisdição e ao papel destinado ao juiz (STRECK, 2009, p. 9).

Mas não bastou ao legislador a atrocidade de, no caso de recursos múltiplos,

eleger como órgão responsável pela seleção do recurso paradigma o Tribunal a quo.

Outro contra-senso é constatado no sentido de que essa situação acarreta o fato de

que o Tribunal a quo termina por limitar a capacidade e exigibilidade interpretativa do

próprio STF, a quem compete a “guarda da Constituição”. Perceptível, assim, que o

problema não acontece apenas na seleção, pelo STF, dos casos que pretende

84

Como questionado no item 3.1.

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106

julgar, com fincas no protagonismo judicial. Ocorre principalmente na associação

desse problema com o fato de que o STF apenas interpretará com base naquele

paradigma que para ele fora encaminhado.

As alterações legislativas, como já exposto, devem buscar resultados práticos

no campo processual, visando a melhoria dos serviços judiciais de aplicação do

Direito, com respeito ao modelo constitucional de processo. Ocorre que essa busca

por resultados práticos não pode ser arbitrária, abusiva ou autoritária como vem

ocorrendo.

Isso significa dizer que, na busca por resultados pragmáticos, não pode o

legislador negligenciar o importante papel do processo como “estrutura dialógica de

formação de provimentos e garantidor de direitos fundamentais (NUNES, 2008, p.

45).

[...] destituído de uma adequada compreensão hermenêutica, a partir dos dois teoremas fundamentais, qualquer forma de vinculação sumular, por mais paradoxal que possa parecer, reforçará o positivismo, com a continuidade do caso decisionista. Ou seja, na medida em que súmulas são textos e em que o positivismo interpreta textos sem coisas, qualquer tentativa de vinculação jurisprudencial/conceitual receberá uma adaptação darwiniana do senso comum teórico dos juristas. E, assim, corre-se sempre o risco de um retorno ao começo. Afinal direito é poder. E os juristas sabem muito bem disso! E por isso novas leis restritivas à interposição de recursos serão introduzidas no sistema (STRECK, 2009, p. 14).

Por isso, continua Streck,

[...] o sistema jurídico aposta em “precedentes vinculativos” para a resolução do problema decorrente do crescimento das demandas pela concretização dos direitos perante o Poder Judiciário (e a jurisdição constitucional). Mas, quanto mais realidade, mais ficção. Quanto mais demandas e processos, mais mecanismos restritivos Dito de outro modo, quanto mais “coisas”, mais “conceitualizações” (STRECK, 2009, p. 15).

Os estudos do Direito Processual tendo como objeto a busca única de

resultados pragmáticos nos procedimentos não podem prosperar. A

instrumentalidade técnica há que ser buscada, mas dentro do processo como

estrutura que viabilize, aplique e implemente as normas fundamentais do modelo

constitucional de processo (NUNES, 2008, p. 40-41).

Nesse sentido, a instrumentalidade técnica deve resguardar um processo que

“se constitua na melhor, mais ágil e mais democrática estrutura para que a sentença

que dele resulta se forme, seja gerada, com a garantia da participação igual,

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107

paritária, simétrica, daqueles que receberão os seus efeitos” (GONÇALVES, 2001, p.

171).

Procura-se uma estruturação de um procedimento que atenda, ao mesmo tempo, ao conjunto de princípios processuais constitucionais, às exigências de efetividade normativa do ordenamento e à geração de resultados úteis, dentro de uma perspectiva procedimental de Estado democrático de direito (NUNES, 2008, p. 41-42).

A pergunta que se mantém latente, portanto, se resume à forma adequada de

aplicação do texto constitucional. E a solução seria a hermenêutica, uma vez que

“estamos condenados a interpretar”. No paradigma democrático o direito assume,

cada vez mais um “caráter hermenêutico” (STRECK, 2009, p. 15). Só assim

acontecerá a superação da

[...] crise de “efetividade quantitativa” que gerou, “darwinianamente”, o surgimento das leis processuais que praticamente impedem a admissibilidade dos recursos especiais e extraordinários. É preciso entender que a discricionariedade, incentivada pelas posturas positivistas, é a responsável pela irracionalidade da aplicação do direito (STRECK, 2009, p. 17).

Em resumo, a fundamentação da decisão, construída argumentativamente em

contraditório entre as partes, permite afastar o protagonismo judicial no processo,

vedando que as concepções subjetivas do julgador influenciem nos fundamentos de

sua decisão. Isso porque, diante das discussões empreendidas a partir do caso

concreto, permite-se uma decisão racional pela “definição do argumento mais

adequado ao caso”, de forma vinculada a argumentos jurídicos (BARROS, 2008c, p.

145). O caso concreto, portanto, representa a “síntese do fenômeno hermenêutico-

interpretativo” (STRECK, 2009, p. 19).

Por fim, importante registrar que, apesar da atividade interpretativa conectada

ao paradigma jurídico democrático que se opera na lei, o aprimoramento das

instituições jurídicas é algo mais complexo que simplesmente uma reforma de

normas em textos legais. A produtividade positiva da “Reforma do Judiciário”

depende de uma mudança da própria sociedade, ou seja, das posturas e práticas

sociais como um todo, no sentido de se assumir efetivamente o projeto democrático

(CARVALHO NETTO, 1998, p. 235).

Portanto, nesse aspecto, assumindo destaque “na arquitetura constitucional

para assentamento das expectativas jurídicas prevalentes na sociedade”, a

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jurisdição é o cerne da “discussão teórica e teorética sobre a leitura e a aplicação

dos textos legislativos, ou seja, sobre a atividade de interpretação” (CARVALHO

NETTO, 1998, p. 235).

Por isso, o ataque à instrumentalidade do processo não acontece por meras

questões academicistas. Trata-se de demonstrar que a teoria processual utilizada

por eles (processo como relação jurídica) não mais se adéqua ao paradigma agora

vigente. O paradigma do Estado Democrático de Direito não convive mais com um

juiz solipsista, que é o responsável por captar o que seja “bem comum” e determinar

a priori “condições de vida boa”, pois estamos diante de sociedades plurais,

complexas e participativas. Assim, é inconcebível um juiz que seja o centro da teoria

do processo, pois a teoria do discurso exige a participação de todos os interessados

na aplicação do Direito para que a decisão final possa ser legítima.

O instituto da repercussão geral é um exemplo de como a “Reforma do

Judiciário” é leviana ao desrespeitar mencionado modelo constitucional de processo,

porque desconsidera o caso concreto, trata todas as questões como idênticas, e não

permite que as partes construam argumentativamente tal questão.

Por isso foi importante entender a concepção instrumentalista do processo,

para perceber como ela, acrescida de uma postura centralizadora do papel do juiz

no Direito brasileiro, para perceber como ela sustenta e fundamenta a limitação

recursal com argumentos político-subjetivos (como a repercussão geral das

questões constitucionais), mesmo diante de um Estado que se diz Democrático de

Direito.

No item seguinte, por sua vez, busca-se apontar como esses argumentos

político-subjetivos se escondem na “Reforma do Judiciário”, e aproveitam o discurso

da socialização processual para, encobertos pela demagógica celeridade

processual, permitirem o retorno da ideologia liberal-capitalista no processo.

3.3 Por detrás das reformas processuais: desvelando o processualismo social

a partir de uma celeridade neoliberal

Os argumentos esboçados no capítulo anterior (item 1.3), que sustentam a

chamada “Reforma do Judiciário” e, principalmente a partir de então, os

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109

argumentos que fundamentam as reformas processuais no Brasil, encobrem uma

realidade e, por isso, são meramente ideológicos e demagógicos. No plano do

Direito Processual, ganham base doutrinária na instrumentalidade oriunda da

Escola Paulista de processo.

Tais argumentos, além de se vincularem ao paradigma do Estado Social,

ainda acontecem, no Brasil, mediante distorções da socialização processual

através de fundamentos ideológicos, ou tidos por “neoliberais” como em Nunes

(2008, p. 157-170) e em Coutinho (2008, p. XXXVI). Sem utilizar o termo

neoliberal85, Calmon de Passos denuncia tais argumentos ideológicos que

sustentam as reformas processuais no Brasil, se referindo a um “processo de

produção do Direito”:

Distorção não menos grave, outrossim, foi a de se ter colocado como objetivo a alcançar com as reformas preconizadas apenas uma solução, fosse qual fosse, para o problema do sufoco em que vive o Poder Judiciário, dado o inadequado, antidemocrático e burocratizante modelo de sua institucionalização constitucional. A pergunta que cumpria fosse feita - quais as causas reais dessa crise - jamais foi formulada. Apenas se indagava - o que fazer para nos libertarmos da pletora de feitos e de recursos que nos sufocam? E a resposta foi dada pela palavra mágica "instrumentalidade", a que se casaram outras palavras mágicas - "celeridade", "efetividade", "deformalização", etc. E assim, de palavra mágica em palavra mágica, ingressamos num processo de produção do direito que corre o risco de se tornar pura prestidigitação. Não nos esqueçamos, entretanto, que todo espetáculo de mágica tem um tempo de duração e a hora do desencantamento (PASSOS, 2000, p. 15).

Os argumentos invocados para sustentar as reformas processuais no Brasil

terminam por esmagar o acesso aos órgãos jurisdicionais mediante uma análise

econômica do Direito (POSNER, 2007), num viés consumeirista do exercício da

jurisdição. Há clara preocupação com a falta de previsibilidade das decisões, com

o custo dos procedimentos devido à demora em seus encerramentos, com nítida

argumentação quantitativa (produção em série) das decisões judiciais, sem

qualquer preocupação com a qualidade dessas sentenças. O objetivo é que o

judiciário pense na produção de decisões em escala industrial86, como uma linha

de produção dinâmica oriunda do fordismo norte-americano. Nesse sentido

85

Outros autores também utilizam esse raciocínio sem mencionar o termo neoliberalismo processual, mas, da mesma forma, demonstram como ocorre uma subversão do “acesso à justiça” através da “colonização pelos imperativos funcionais do mercado”, principalmente com fundamento nos Documentos Técnicos do Banco Mundial (FERNANDES; PEDRON, 2008, p. 170-175). 86

Streck (2009, p. 8) chega a utilizar as expressões “efetividade quantitativa” e “eficacialidade” do sistema jurídico.

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110

pontua Streck (2009, p. 16), que a produção legislativa nacional vem

enfraquecendo a força normativa da Constituição, com leis processuais que

visam resguardar uma “efetividade meramente quantitativa, em detrimento de

uma efetividade qualitativa do sistema jurídico”.

A peculiaridade dos argumentos reformistas no Brasil retoma uma leitura

liberal (meramente formal) dos direitos fundamentais, permitindo sua

inobservância, para atender às tendências do mercado (POSNER, 2007;

DAKOLIAS, 1996). Toda essa concepção é fruto da pressão exercida pelos

órgãos financeiros mundiais, para adoção de práticas de índole liberal (NUNES,

2008, p. 157), por países da América Latina e pelo Caribe. O Banco Mundial

chegou a realizar vários estudos e propôs, em um deles, elementos para uma

reforma judicial nesses países (DAKOLIAS, 1996).

A análise feita pelo Banco Mundial87 visa uma padronização do Judiciário

em toda a América Latina, buscando órgãos jurisdicionais “favoráveis ao capital e

à integração econômica”. É expressa no documento a necessidade de que

ocorra, nesses países, um funcionamento do judiciário fundado na aplicação

previsível da lei de forma eficiente (sinônimo de celeridade), bem como tendo por

finalidade a proteção da propriedade privada (DAKOLIAS, 1996, p. 3).

A reforma do judiciário é parte do processo de redefinição do Estado e de seu relacionamento com a sociedade, e o desenvolvimento econômico não pode continuar sem efetivo esforço, definição e interpretação dos direitos de propriedade. Mais especificamente, a reforma do judiciário visa o aumento da eficiência e da equidade na solução dos conflitos, melhorando o acesso à justiça sem restrições e promovendo o desenvolvimento do setor privado (DAKOLIAS, 1996, p.

XI, tradução nossa)88

.

Essa idéia exerce influência nos argumentos reformistas no Brasil pela

análise meramente quantitativa das decisões judiciais, ou seja, uma visão de

87

Infere-se do Documento Técnico n.° 319 do Banco Mundial, em estudo voltado à constatação dos problemas do Judiciário nos países da América Latina e Caribe, essa análise meramente quantitativa das decisões judiciais: The public as well as most judges and lawyers also consider the time required for resolution of a typical case as excessive. It is not uncommon for cases to take up 12 years to be resolved in court. As a result, the courts are experiencing tremendous backlogs. In Brazil, more than 4 million cases were filed in the courts of first instance in 1990, but only 58 percent of those cases were adjudicated by the end of 1990 (DAKOLIAS, 1996, p. XI). 88

Judicial reform is part of the process of redefining the state and its relationship with society, and economic development cannot continue without effective enforcement, definition and interpretation of property rights. More specifically, judicial reform is aimed at increasing the efficiency and equity in resolving disputes by improving access to justice which is not rationed and promoting private sector development.

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111

efetividade processual como sinônimo de celeridade, rapidez, velocidade nos

procedimentos e razoável duração do processo. Segundo os reformistas

brasileiros, vinculados à instrumentalidade do processo, essa celeridade

proporcionaria maior “acesso à justiça”.

Nesse sentido, “a visão de celeridade como mera rapidez domina o

discurso jurídico brasileiro e gera reformas processuais que inviabilizam a própria

socialização defendida” (NUNES, 2008, p. 154), inclusive pelos instrumentalistas.

A mera previsão da razoável duração do processo como direito

fundamental pela EC n.° 45/04 demonstra como há um retorno ao Estado Liberal,

em que ocorria a simples formalização de direitos, sem preocupação com sua

materialização. No Direito brasileiro hoje, principalmente após a EC n.° 45/04,

celeridade assume posição de direito fundamental absoluto. Prioriza-se a

celeridade em detrimento de garantias fundamentais como contraditório,

imparcialidade, ampla argumentação e fundamentação das decisões, o que

termina por frustrar a argumentação jurídica no processo. A busca desenfreada

por celeridade no exercício da função jurisdicional não deve atrair todas as atenções

do legislador, uma vez que todos os princípios constitucionais do processo são

imprescindíveis à configuração do modelo constitucional de processo, única

estrutura (garantia) capaz de legitimar as decisões no Estado Democrático de

Direito.

Atuando nesse paradigma de ingerência imperialista do capital, o Judiciário

pode mesmo se tornar “parceiro” do sistema econômico do mercado, bastando,

para tal, desempenhar uma aplicação previsível das normas na defesa da

propriedade privada, com celeridade (FERNANDES; PEDRON, 2008, p. 172).

É a partir desse prisma, ou seja, racionalidade voltada aos interesses do capital despersonalizado, que também pode ser compreendido o processo de centralização das decisões jurídicas, como a súmula vinculante ou mesmo a adoção de mecanismos de filtragem de recursos para os Tribunais Superiores. Ao se limitar a interpretação jurídica, centrando-a em órgãos especializados, entendidos como os únicos autorizados a decidir, minimiza-se o risco de dissenso, mas assume-se, por outro lado, o risco de perder de vista o papel comunicacional presente nos processos de decisões jurídicas, responsável pela manutenção de sua legitimidade democrática (FERNANDES; PEDRON, 2008, p. 173).

Apesar do movimento pendular entre liberalismo e socialização

processuais (NUNES, 2006, p. 50), é visível a existência, quanto aos

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112

fundamentos do processo jurisdicional, de consenso acadêmico89 no sentido de

que todas as bases teóricas processuais devam buscar a instrumentalidade90

técnica do processo. Isso significa dizer que o processo tem que ter eficiência

técnica e precisa ser concluído de forma simples e adequada (NUNES, 2008, p.

41; 45). Entretanto, essa busca por resultados práticos não pode ser abusiva ou

autoritária, vez que deve atender a determinadas formalidades (não exacerbadas)

tendentes à implementação de direitos fundamentais, ou seja, deve guardar

correspondência com o modelo constitucional de processo na leitura

procedimental do Estado Democrático de Direito.

Nesse sentido,

A instrumentalidade técnica do processo, nessa perspectiva do Direito contemporâneo, não poderia, jamais, significar a técnica se desenvolvendo para se produzir a si mesma. A instrumentalidade técnica do processo está em que ele se constitua na melhor, mais ágil e mais democrática estrutura para que a sentença que dele resulta se forme, seja gerada, com a garantia da participação igual, paritária, simétrica, daqueles que receberão seus efeitos (GONÇALVES, 2001, p. 171).

Percebe-se, assim, como a socialização processual no Brasil foi distorcida.

Daí se dizerem ideológicos aqueles argumentos das reformas processuais,

fundadas na instrumentalidade do processo, que não atentam para o novo

paradigma previsto pela CR/88. Argumentos ideológicos esses entendidos na

acepção de encobrimento da realidade, ou seja, entendidos como demagógicos

em virtude do descumprimento dos próprios objetivos alegados para se proceder

à reforma.

Os argumentos reformistas circunscrevem-se em simplificação de

procedimento, ou seja, acesso à justiça com todas as suas nuances. Entretanto, têm

uma faceta “neoliberal” (NUNES, 2008, p. 157-170), sem qualquer preocupação

89

Nesse sentido ver (BARACHO, 1984); (CATTONI DE OLIVEIRA, 2001b); (GONÇALVES, 2001); (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2008); (FERNANDES, 2005b); (DANTAS, 2008, p. 191); (BARROS, 2008a; 2008b); (NUNES, 2006; 2008); (FERNANDES; PEDRON, 2008); (CAPPELLETTI; GARTH, 1988); (LEAL, 2008); (BRÊTAS C. DIAS, 2004); (LASPRO, 1995); (CRETELLA NETO, 2002); (BARROS; ALMEIDA, 2007); (BARROS, 2009); (ALMEIDA, 2008), dentre outros. 90

“A instrumentalidade técnica não deve ser confundida com as defesas de linhas instrumentais, do realismo norte-americano, ou brasileiras, que acreditam no protagonismo judicial como mecanismo para a aplicação do direito com base em valores uniformemente compartilhados pela sociedade, eis que não se acredita na existência desses valores uniformes em sociedades altamente complexas e plurais como as nossas” (NUNES, 2008, p. 41), ou seja, essa instrumentalidade técnica aqui colocada não é a instrumentalidade do processo defendida na Teoria Instrumentalista do processo de bases relacionistas, apresentada pela Escola Paulista de processo.

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com a legitimidade das decisões, longe de uma perspectiva procedimental de

democratização. Permanece o Direito brasileiro oscilando naquele pêndulo entre os

paradigmas social e liberal, sem entender, entretanto, o projeto democrático.

Essa perspectiva coloca o judiciário como mero “órgão prestador de serviços”

e “reduz o papel do cidadão” ao de simples usuários/consumidor dos

serviços/produtos fornecidos por esse judiciário produtor/prestador,

conseqüentemente diminuindo a interpretação dos princípios constitucionais a uma

perspectiva formal, “como se fossem utilizados tão-somente para que o processo

obtenha máxima eficácia prática dentro de critérios quantitativos (e privatísticos) e

não qualitativos” (NUNES, 2008, p. 163-164).

A redução dos espaços argumentativos judiciais (redução de recursos),

somada à diminuição “neoliberal” do papel do cidadão, vinculada a uma posição

ativista e superior do juiz no processo, fomenta o “surgimento de entendimentos

judiciais subjetivistas e particulares acerca da aplicação normativa”, com decisões

oriundas da mente solitária e voluntária do juiz (NUNES, 2008, p. 164).

É exatamente o que acontece no Brasil.

Primeiro que a produtividade é alçada a nível constitucional como requisito

objetivo de promoção de juízes, por merecimento, na carreira do funcionalismo

público, pela EC n.° 45/04 (art. 93, inciso II, “c” da CR/88). Os juízes, a partir do

contexto da “Reforma do Judiciário”, devem, se quiserem progredir na carreira, se

preocuparem com produtividade, com quantidade de decisões elaboradas, sem

qualquer preocupação com sua qualidade.

Como se não bastasse, na disciplina dos recursos é perceptível uma

enxurrada de legislações excluindo as possibilidades recursais nos processos

jurisdicionais91, exatamente para fazer frente a esse ideal de celeridade,

91

Em obra sobre as reformas processuais implementadas CPC em 2005 e 2006 (englobou a Lei n.º 11.187/05, a Lei n.º 11.232/05, a Lei n.º 11.276/05, a Lei n.º 11.277/06 e a Lei n.º 11.280/06), Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias (2007, p. 221-222) expõem que, nestas alterações, o legislador infraconstitucional burla o processo constitucional mediante modificações no sistema recursal. Segundo mencionado autor, que escreveu seu texto em 2006, o Código de Processo Civil de 1973 entrou em vigor em 1974. Durante seus 32 anos de vigência, o CPC vem sendo bombardeado por modificações intermináveis. Segundo mencionado autor, o que orienta essas modificações, a força motriz dessas intermináveis alterações é sempre a mesma, qual seja, imprimir celeridade aos procedimentos, obter uma jurisdição mais célere. Entretanto, nesses 32 anos, pela análise dos índices cronológicos das leis reformistas do Código de Processo Civil, infere-se que foram editadas 42 leis reformando o CPC. Dessas 42 leis, foram mais de 400 modificações no Código de Processo Civil, sendo que, dessas alterações, 72 artigos modificados se referem a recursos. Assim, o legislador infraconstitucional, visando celeridade, direciona sua “artilharia reformista” aos recursos. Os recursos incomodam, porque expõe vícios e erros das decisões judiciais, e, ao mesmo tempo, provocam o

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velocidade, efetividade ou de razoável duração do processo. A oscilação entre os

paradigmas social e liberal é aferida, aqui, pelo fato de que, apesar de acontecer

um incremento ao ativismo judicial (que seria a base da socialização processual),

essa atividade do juiz acontece para implementar a celeridade processual

mercadológica, ou seja, para proporcionar mais decisões na esteira de

produtividade do judiciário (que seria a base do liberalismo processual).

Assim, essa questão se denota incompatível com o Estado Democrático de

Direito, uma vez que o processo (com suas garantias) é visto como um óbice à

celeridade (colocada como direito fundamental absoluto) e não como uma

garantia de implementação de direitos fundamentais que possui uma integridade

principiológica.

Pontuando a questão no microssistema do processo penal, interessante

ressaltar que

Falar apenas em celeridade como parâmetro de justificação política neste caso é mais uma reafirmação do princípio da eficiência que pauta os sistemas penais em tempos de neoliberalismo. Pode-se, inclusive, argumentar que a principal causa da tão falada “morosidade” seja l igada aos problemas infra-estruturais do próprio Poder Judiciário (COUTINHO, 2009, p. 230).

Com o instituto da repercussão geral das questões constitucionais, que

veio (ou retornou92) ao Direito brasileiro nesse contexto “neoliberal”, para

utilizarmos a expressão de Nunes (2008, p. 157-170) e Coutinho (2008, p.

XXXVI), não foi diferente.

O novo requisito de admissibilidade do recurso extraordinário retira (filtra) a

possibilidade de interposição desses recursos com base em argumentos

metajurídicos (Lei 11.418/06, art. 543-A, §1° do CPC) e, em conseqüência, reduz

o espaço argumentativo reservado à ampla argumentação num Estado

Democrático de Direito, consequentemente restringindo o acesso aos órgãos

jurisdicionais. Tudo para priorizar uma sedenta e inconseqüente celeridade, que

proporcionaria mais “acesso à justiça”93 para os cidadãos. Como se não

bastasse, esses argumentos metajurídicos, como já analisados, evidenciam um

entulhamento dos Tribunais. Para Brêtas é perceptível que, para os mentores da reforma do Código de Processo Civil, os recursos provocam o atravancamento do judiciário. 92

Como será pontuado no item seguinte. 93

Acesso à justiça na acepção de acesso a uma ordem jurídica justa.

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reforço do papel do juiz como intérprete autorizado do Direito, como superparte,

como tradutor das escolhas dos valores maiores da sociedade.

A repercussão geral das questões constitucionais surge assim, nesse

contexto do que se costuma rotular de crise do recurso extraordinário ou crise do

STF, como sinônimo de acumulação de processos nesse Tribunal (DANTAS,

2008, p. 50)94. Assim, o volume de processos estorva os Tribunais mediante

interposição de recursos, sendo o instituto dos recursos visto como um “mal”

(DANTAS, 2008, p. 54).

Festejando o instituto da repercussão geral das questões constitucionais,

os instrumentalistas defendem a restrição de recursos argumentando que o

constituinte de 1988 jamais deveria tê-lo extinto do Direito brasileiro (fazendo

alusão à argüição de relevância), pois trouxe resultados positivos em outros

países como Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Austrália, Alemanha, Argentina

e Japão (DANTAS, 2008, p. 56; 125).

A escala de produtividade judicial implantada no judiciário brasileiro, aliada

à celeridade como direito fundamental absoluto, “faz com que os procedimentos

deixem de buscar uma adequação constitucional (legitimidade), que partiria do

julgamento do caso concreto em suas especificidades”. Nesse sentido, “o

judiciário fica predisposto a julgar teses jurídicas e deixa de se preocupar com o

julgamento dos casos concretos” (NUNES, 2008, p. 210). O objetivo, com a

“Reforma do Judiciário”, é implementar celeridade por meio dos julgamentos em

massa, com previsão de institutos como repercussão geral (art. 543-A e B do

CPC), súmulas vinculantes (art. 103-A da CR/88) e sentenças idênticas (art. 285-

A do CPC).

E ainda chegam a defender que a “Reforma do Judiciário” errou ao prever

a repercussão geral somente para o STF, sendo que deveriam tê-la previsto

também para o STJ (DANTAS, 2008, p. 54)95.

Fica evidente como os argumentos socializantes das reformas no Brasil,

ideologicamente utilizados ao passarem pela deturpação do capital, sustentam e

94

Essa questão será pontuada no item 3.4, uma vez que foi esse contexto que deu origem ao STJ depois da CR/88. Isso significa que não aprendemos com nossos erros e nele persistimos, ao, novamente, trazer um instituto nos moldes da argüição de relevância. 95

Na infraconstitucionalidade, mais uma vez influenciado pelas idéias socializantes do processo como relação jurídica instrumentalista, o legislador, como já ressaltado, altera novamente o CPC pela Lei n.° 11.672/08, e acrescenta o art. 543-C, que trata dos recursos repetitivos, restringindo recursos, novamente desprezando o modelo constitucional de processo previsto no paradigma do Estado Democrático de Direito.

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116

reforçam a repercussão geral das questões constitucionais como mais um requisito

de admissibilidade dos recursos extraordinários no Direito brasileiro.

O paradigma social defendido ideologicamente pelas reformas já se choca

com os princípios do processo democrático, ao corroborar um juiz que diz o direito

no caso concreto, sapiente, solitário, sujeito único, institucionalmente responsável

pela captação dos valores sociais, para aplicá-los nos processos jurisdicionais.

No contraponto com o processo democrático, também ocorre uma

incompatibilidade desses argumentos mercadológicos de produção de decisões com

o Estado Democrático de Direito, uma vez que fere o modelo constitucional de

processo e, em conseqüência, aponta em sentido contrário a uma legitimação das

decisões judiciais. Daí concluir Coutinho (2008, p. XLI) que nossa “democracia

processual” é decorrente da “assunção de uma postura ideológica”.

Com essa postura ideológica, ainda vinculada à filosofia da consciência,

fomentam-se institutos antidemocráticos no Direito brasileiro, do qual a

repercussão geral das questões constitucionais é um dos exemplos, quiçá

quando em análise no microssistema do processo penal, o que será pontuado no

capítulo 5.

3.4 Ambivalência entre argüição de relevância da questão federal e a

repercussão geral das questões constitucionais através de uma análise

paradigmática

A solução do problema do abarrotamento dos tribunais por processos,

oriundos do “complexo” sistema recursal nacional, passa, em se tratando de

recuso extraordinário, pelo próprio STF, de acordo com o raciocínio da “Reforma

do Judiciário”. Por isso, a partir da EC n.° 45/04, nos recursos extraordinários

submetidos ao STF, haverá análise, na questão constitucional ali suscitada, da

presença ou não da repercussão geral. O STF, conforme já mencionado (item

1.3.3), analisará se a tese discutida atinge um número maior de pessoas que não

somente aquelas que participam do processo, em questões referentes à

economia, à política, à sociedade ou ao Direito.

Entretanto, tal solução já foi pensada e implementada no Direito brasileiro.

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117

Ainda que à época houvesse compatibilidade dessa solução com o paradigma do

Estado Social, o instituto da argüição de relevância da questão federal frustrou seus

próprios objetivos e não conseguiu reduzir o número de processos que, naquele

contexto, eram distribuídos ao STF. Esse requisito de admissibilidade do recurso

extraordinário foi utilizado no Direito brasileiro com a Emenda Constitucional n.º

7/77, à Constituição de 1969, que deu nova redação ao então art. 119, §1º96, em que

havia previsão do instituto da argüição de relevância.

Ocorre que na construção do Direito com base em um modelo de Estado

Democrático de Direito, não é possível ressuscitar um instituto que vigorou com

assento em um paradigma socializante.

Constata-se exatamente o contrário no Direito brasileiro, com a vigência da

EC n.° 45/04 (art. 102, §3º da CF/88) e da Lei n.° 11.418/06. Percebe-se, que a

repercussão geral é apenas mais um artefato do Estado brasileiro para tentar

imprimir celeridade aos procedimentos jurisdicionais. Entretanto, reduz

drasticamente garantias fundamentais, conforme já explicitado (itens 3.1 e 3.2).

O enfoque do instituto da argüição de relevância no presente trabalho não

tem por objetivo a análise do mesmo de forma exaustiva. Com a menção à argüição

de relevância almeja-se pontuar de que forma o argumento usado para ratificação

da repercussão geral no Direito brasileiro já foi utilizado por aqui, quando da

argüição de relevância, e não conseguiu galgar seu intento. E isso dentro de um

paradigma que era adequado à época.

Pensar no mesmo instituto, apenas com outra roupagem, além da

incompatibilidade com o atual paradigma jurídico, pragmaticamente acarretará o

mesmo problema, qual seja, a incapacidade para solucionar o problema do

abarrotamento do STF por processos. E pior, usurpando direitos fundamentais em

nome de uma celeridade a qualquer custo.

A argüição de relevância apresenta diferenças sutis em relação à repercussão

geral. Como dito, vigorou no Brasil desde a Emenda Constitucional n.º 7/77 até a

Constituição de 1988, e foi à época regulamentada no Regimento Interno do

Supremo Tribunal Federal. Amparada no paradigma social, diante de um cenário

político extremamente inseguro, veio em um contexto muito forte de restrição à

96

§ 1º As causas a que se fere o item III, alíneas a e d , deste artigo, serão indicadas pelo Supremo Tribunal Federal no regimento interno, que atenderá à sua natureza, espécie, valor pecuniário e relevância da questão federal (BRASIL, 1969).

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liberdade de pensamento, uma vez que imperava no país o regime da ditadura

militar.

Da análise do artigo 119, §1º da Constituição de 1969 e de sua

regulamentação, infere-se que o instituto da argüição de relevância da questão

federal tinha por objetivo justificar o conhecimento do recurso extraordinário, que

não seria admitido segundo as taxativas hipóteses de cabimento previstas no

dispositivo constitucional mencionado. A argüição de relevância era um incidente

processual que necessitava ser provocado pelas partes, formando-se o respectivo

instrumento, de acordo com o previsto no RISTF de 1970, inclusive sancionando

com a deserção.

A semelhança entre a repercussão geral e a argüição de relevância reside

no fato de ambos os institutos apresentarem a mesma função, qual seja, a

filtragem dos recursos extraordinários (MACEDO, 2005, p. 88), com o intuito de

reduzir o número de distribuições dessa modalidade recursal no STF (DANTAS,

2008, p. 81).

Ao revés, é possível pontuar três diferenças entre os institutos da

repercussão geral e da argüição de relevância.

A argüição de relevância visa possibilitar o conhecimento do recurso

extraordinário que, em princípio, seria incabível. Apresenta, portanto,

“característica inclusiva” (MARINONI; MITIDIERO, 2007, p. 30-31). Já a

repercussão geral visa impossibilitar o conhecimento do recurso extraordinário pelo

STF, quando as controvérsias suscitadas não se caracterizem como tal, nos

termos da Lei n.° 11.418/06. Apresenta, assim, característica exclusiva.

Quanto aos conceitos, outra diferença. A argüição de relevância era

entendida focando o conceito de relevância, como reflexos na ordem jurídica,

moral e econômica. Já a repercussão geral se conceitua para além da relevância

da controvérsia constitucional, pois exige a transcendência da questão discutida no

recurso extraordinário (MARINONI; MITIDIERO, 2007, p. 31).

Em matéria procedimental, a diferença é inerente ao período da ditadura,

pois as sessões do STF para votação da argüição de relevância eram secretas. O

que não acontece com a análise da repercussão geral, cuja sessão deve ser

pública e a decisão motivada (MARINONI; MITIDIERO, 2007, p. 31).

Entretanto, apesar das diferenças e da afirmação de alguns juristas no

sentido de que repercussão geral e argüição de relevância não se assemelham

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119

(MARINONI; MITIDIERO, 2007, p. 31), percebe-se que ambos os institutos são

faces da mesma moeda. A peculiaridade de cada um deles não retira o raciocínio

ora proposto, no sentido de que se trata de dois institutos previstos como filtros à

interposição de recursos extraordinários, visando a redução do número desses

recursos direcionados ao STF. Por isso considera-se que a repercussão geral foi

(re)introduzida no Direito brasileiro.

Como se não bastasse, em um Estado Democrático de Direito, em que o

processo é garantia dos direitos fundamentais, vinculado a um modelo constitucional

do processo que tem como princípio o direito constitucional ao recurso, o instituto da

repercussão geral se apresenta mais restritivo aos recursos que a argüição de

relevância, que foi pensada em um paradigma socializante. A exigência da

transcendência se encarrega dessa restrição.

O argumento do abarrotamento dos tribunais pelo excesso de processos dá

ensejo a antigos e atuais ataques ao sistema recursal no Brasil, pois esse excesso é

considerado pelos “reformistas” como uma crise dos órgãos jurisdicionais ou do

próprio instituto dos recursos (DANTAS, 2008, p. 50; MACEDO, 2005, p. 86). As

soluções trazidas no Brasil (e no mundo) para essa crise não tiveram o condão de

diminuir o número de recursos que há muito tempo chegam ao STF, o que tem

revelado “a necessidade inexorável de uma solução drástica ante a falência do

sistema, que atualmente impede o exercício minimamente saudável das elevadas

atribuições da Corte” (DANTAS, 2008, p. 83). O problema é que a solução adotada

com o instituto da repercussão geral passa pelo mesmo raciocínio, mutatis mutandis,

da argüição de relevância e, para além de sua incompatibilidade com o paradigma

democrático, não resolverá a “crise do recurso extraordinário”.

A argüição de relevância, congênere da repercussão geral, foi uma tentativa

de solução dessa crise entre os anos de 1975 e 1988 (DANTAS, 2008, p. 50-51;

MARINONI; MITIDIERO, 2007, p. 30). Assim, a criação do STJ com a Constituição

de 1988 foi, também, uma tentativa de solução dessa crise por excesso de trabalho

que assolava o STF (DANTAS, 2008, p. 51).

Diante da tentativa de desafogar o STF do volume de processos que lhe são

direcionados com a argüição de relevância, percebeu-se que restou frustrado esse

intento, sendo, inclusive necessária a criação do STJ, com competência para

apreciar, em recurso especial, as questões federais infraconstitucionais. O problema

é que a saída encontrada pela EC n.° 45/04, com a previsão da repercussão geral,

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120

nada mais é que um retorno à argüição de relevância, que, por sua vez, não deu

certo.

A argüição de relevância estava inserida em um contexto socializante, sendo

que, agora, há previsão do instituto da repercussão geral que é mais restritivo aos

recursos que o anterior, não se compatibilizando, por óbvio, com o paradigma do

Estado Democrático de Direito.

O instituto da repercussão geral funciona como uma “técnica de filtragem da

matéria a ser enfrentada, no mérito, pela Corte Suprema, visando à superação da

tradicional crise do recurso extraordinário”, em um contexto neoliberal, travestido em

paradigma socializante. Sua reverberação, por conseguinte, no controle difuso de

constitucionalidade, também se mostra danosa e pode afetar a própria essência do

Estado Democrático de Direito, conforme pontuado no item 2.1.

Portanto, vislumbra-se que os argumentos utilizados na “Reforma do

Judiciário” ainda não transpuseram a dicotomia entre interesse público e privado e

ressaltam que a maioria dos juristas e dos tribunais nacionais ainda não entendeu o

projeto democrático. Utilizam ainda concepções sobre o papel do juiz no processo

jurisdicional, sobre o duplo grau e sobre os recursos que não convergem com o

paradigma do Estado Democrático de Direito. Essas questões, portanto, como visto

especificamente no que tange à postura do juiz, têm influência direta na ratificação e

defesa do instituto da repercussão geral das questões constitucionais no Direito

brasileiro.

Por isso, no capítulo 4 será adotada uma compreensão constitucionalmente

adequada do instituto dos recursos e será pleiteada uma nova concepção sobre o

princípio do duplo grau de jurisdição. Isso para nortear a discussão da repercussão

geral das questões constitucionais no microssistema do processo penal que será

procedida no capítulo 5.

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121

4 O DIREITO CONSTITUCIONAL AO RECURSO POR UMA COMPREENSÃO

CONSTITUCIONALMENTE ADEQUADA DO PRINCÍPIO DO DUPLO GRAU DE

JURISDIÇÃO

As mitigações ao duplo grau de jurisdição são constatáveis a muito no Direito

brasileiro, principalmente por disposição jurisprudencial. Como exemplo cita-se o

pré-questionamento como requisito de admissibilidade dos recursos especial e

extraordinário e a possibilidade de discussão apenas de questões de direito nesses

recursos.

Conforme apontado, com as reformas processuais não foi diferente,

principalmente com a EC n.° 45/04 e a edição da Lei n.° 11.418/06. O ataque ao

princípio do duplo grau de jurisdição se evidencia cada vez mais sob o rótulo da

celeridade processual, trazendo a reboque institutos como as súmulas vinculantes e

a repercussão geral.

Como já demonstrado (item 2.1), os adeptos do processo como relação

jurídica pensam o duplo grau de jurisdição de forma a fomentá-lo por apenas “um

reexame” do processo por outro órgão jurisdicional (MARCATO, 2006, p. 2). Essa

compreensão, aliada ao protagonismo judicial socializante (item 1.2), influencia a

concepção que têm do instituto dos recursos, possibilitando pensarem o recurso de

forma pragmática (DANTAS, 2008, p. 24). Por isso, buscando compatibilizar

certeza97 e justiça98 (MARCATO, 2006, p. 2), os instrumentalistas permitem

exceções ao duplo grau de jurisdição na busca de resultados pragmáticos

(BEDAQUE, 2003, p. 16) para que satisfaçam os escopos metajurídicos do processo

(DINAMARCO, 2008).

A concepção de princípio do duplo grau de jurisdição fundamenta a

compreensão sobre os recursos na instrumentalidade, e, pelas exceções a tal

princípio, fomentam-se óbices à interposição de recursos e, por conseqüência, ao

próprio espaço argumentativo recursal nas reformas processuais no Brasil, de forma

contrária ao modelo constitucional de processo.

O que se propõe então, nesse ponto, com base na perspectiva do Estado

97

Uma decisão, nos processos, deve ser proferida em um menor tempo possível, sem procrastinações inúteis. 98

Possibilidade de revisão dos provimentos.

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122

Democrático de Direito, fundada no processo como garantia de implementação de

direitos fundamentais em uma concepção procedimentalista, é rever o conceito de

duplo grau de jurisdição e, por conseqüência, do instituto dos recursos, já que a

compreensão instrumentalista não subsiste em tal paradigma.

Na visão instrumentalista,

[...] o princípio do duplo grau não significa apenas a garantia de revisão da decisão de primeiro grau (reexame em segundo grau). Também compreende a proibição para o Tribunal de, com seu julgamento, impedir o pronunciamento do juiz de primeiro grau (garantia do exame em primeiro grau) (GRINOVER; GOMES FILHO; FERNANDES, 2008, p. 23).

Ao permitirem limites ao princípio do duplo grau de jurisdição, expõem que

esse princípio

[...] se esgota nos recursos cabíveis no âmbito do reexame da decisão, por uma única vez. Os recursos de terceiro grau das Justiças trabalhista e eleitoral, o recurso especial, para o STJ, e o extraordinário, para o STF, não se enquadram na garantia do duplo grau [...] (GRINOVER; GOMES FILHO; FERNANDES, 2008, p. 23).

Sintetizando, o duplo grau de jurisdição, para os instrumentalistas, se esgota

nos recursos cabíveis no âmbito do reexame da decisão, por uma única vez, ou seja,

é viabilizado por “apenas um” reexame completo do mérito da causa por órgão

jurisdicional distinto. Nesse diapasão, os recursos destinados aos tribunais

superiores não estariam amparados pelo duplo grau (GRINOVER, GOMES FILHO,

FERNANDES, 2008, p. 23). O recurso, nessa concepção, significa “possibilidade de

reapreciação do mérito da causa, por meio do reexame da decisão final de instância

original, abrangendo tanto questões de fato como as de direito, por órgão

jurisdicional diverso, sendo esse de hierarquia superior ou não” (MARCATO, 2006,

p. 23). Recurso para os instrumentalistas é um mero procedimento em continuação

das ações correspondentes, sem qualquer autonomia e sem conteúdo cognitivo

algum (DANTAS, 2008, p. 148).

E Nunes (2006, p. 63) sintetiza criticamente essa visão instrumentalista, ao

ressaltar que o “instituto do recurso insere-se na estrutura normativa processual

como um prolongamento do direito de ação e não como uma ação autônoma”.

A conceituação utilizada pelos relacionistas está atrelada à possibilidade de

reexame das decisões, ou seja, desmembramento da competência em dois órgãos

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123

jurisdicionais distintos, pertencentes ou não a hierarquias diversas, nada se

relacionando com a duplicidade de jurisdição, que é una (MARCATO, 2006, p. 23).

Nesse sentido, não trabalham com duplicidade, mas com desmembramento de

competência material, portanto constitucional e absoluta.

Dessa forma, pelos argumentos utilizados pelos próprios instrumentalistas,

não se pode ratificar a inafastabilidade do princípio do duplo grau de jurisdição às

instâncias superiores, pois faltam argumentos jurídico-científicos, por se tratar de

mera questão de competência material.

O direito ao recurso, ao argumento de que funciona como pressão psicológica

nos juízes, como já esboçado no item 2.1, parece ser o responsável por revelar o

bom senso e a magnitude solipsista do juiz no exercício da “arte de julgar”,

funcionando como instigador dos dotes inerentes na atividade de dizer o direito nos

casos concretos. Por isso que, para Dinamarco (2008, p. 41), a sensibilidade do juiz

é evidenciada. Insensibilidade, para eles, não significa indiferença axiológica, em

outras palavras, isenção do magistrado não significa insensibilidade.

O conteúdo que a instrumentalidade atribui ao duplo grau de jurisdição, aliado

ao fato de permitirem sua flexibilização na busca da razoável duração do processo,

somados ao solipsismo do juiz posicionado como eixo da teoria geral do processo, é

evidenciado na postura técnica, e não científica, que os mesmos sustentam ao

abordarem institutos jurídicos como os “recursos”. Nessa concepção instrumental,

“recursos é assunto eminentemente dogmático, consistindo em região na qual o

legislador manifesta suas opções de política judiciária, buscando a pacificação

social” (DANTAS, 2008, p. 24).

É por isso que, no marco adotado, com base no modelo constitucional de

processo, apropriando-se das idéias de Nunes (2006) sobre o direito constitucional

ao recurso, procede-se a uma análise do duplo grau e dos recursos no contexto da

percepção do processo como garantia constitucional, deixando de levar em

consideração o princípio da discursividade (NUNES, 2006, p. 101). Pela

discursividade99 é necessário que haja argumentação jurídica nos recursos, uma vez

que o espaço procedimental recursal é entendido como possibilidade de garantia e

manutenção dos princípios do contraditório e da ampla argumentação. Por isso não

99

Nunes (2006, p. 101) se vale do termo dialogicidade, que substituímos aqui por discursividade. O princípio também é conhecido como princípio da dialeticidade, mas em uma acepção ainda ancorada no paradigma do Estado Liberal (NUNES, 2006, p. 101).

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se pode tolher, como acontece na repercussão geral, a oportunidade de interposição

de recursos somente tendo em vista a compreensão do duplo grau de jurisdição

como “apenas um reexame”.

Importante compreender o que sejam o contraditório e a ampla argumentação

nesse viés democrático para vislumbrar como o instituto do recurso tem que ser

entendido como extensão desses dois princípios que integram o modelo

constitucional de processo, viabilizando a discursividade.

O princípio do contraditório deve ser entendido, a partir da construção da

teoria do processo como procedimento em contraditório (FAZZALARI, 1994), como a

possibilidade dos afetados construírem participadamente a decisão, cujos efeitos

lhes afetarão. Barros (2008a, p.18), em uma acepção democraticamente adequada

compreende o contraditório como “o espaço procedimentalizado para garantia da

participação dos afetados na construção do provimento”.

O princípio da ampla argumentação, no paradigma do Estado Democrático de

Direito, deve ser entendido como a possibilidade dos argumentos aduzidos pelas

partes serem considerados no provimento final. Ou seja, pode-se defini-la como a

necessidade de garantia do tempo do processo no sentido de viabilizar “o esforço

reconstrutivo dos argumentos do discurso dialético das partes” de forma apropriada,

“de modo que todas as possibilidades de argumentação sejam perquiridas”

(BARROS, 2008a, p.20).

O Contraditório e a ampla argumentação, como bases do modelo

constitucional de processo, são fundamentais à legitimidade dos provimentos, e o

controle de adequação desse modelo constitucional ao processo no caso concreto

necessariamente passa por outra base, a fundamentação das decisões. Por isso,

repita-se, é que há possibilidade de dizer que, pelo processo de bases

fazzalarianas, inaugura-se uma forma de controle dos atos decisionais, no

sentido de que as partes fiscalizam a atuação do decididor, e esse, a elas deve

prestar contas de seus argumentos (FAZZALARI, 1994, p. 7; 83).

Desse modo, a fundamentação da decisão é indissociável do contraditório visto que a participação dos afetados na construção do provimento, base da compreensão do contraditório, só será plenamente garantida se a referida decisão apresentar em sua fundamentação a argumentação dos respectivos afetados, que podem, justamente pela fundamentação, fiscalizar o respeito ao contraditório e garantir a aceitabilidade racional da decisão. À co-dependência entre fundamentação das decisões e contraditório se conjuga, também, a necessidade de se garantir a ampla argumentação,

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vista aqui como uma proposta de releitura do princípio da ampla defesa (BARROS, 2008a, p. 19).

O recurso, portanto, deve ser entendido para além da concepção

instrumentalista. Em uma acepção adequada ao paradigma democrático, o recurso

consiste em um meio voluntário de impugnação das decisões (instrumentalistas) que

provoca a revisibilidade de seu respectivo conteúdo, garantindo aos afetados por

ela, a possibilidade de construção participada (contraditório) e de refutação de

argumentos (ampla argumentação).

O espaço recursal é necessário porque, além de ser um espaço de correção

da decisão (revisibilidade), é um espaço onde é necessária a exposição de

argumentos desprezados ou interpretados equivocadamente na decisão. Não é a

revisibilidade por si só que sustenta o duplo grau em um viés democrático. O duplo

grau se sustenta por traduzir-se em uma extensão da possibilidade daquele que é

afetado, por meio voluntário, se insurgir contra a decisão, buscando que seus

argumentos sejam levados em consideração.

O princípio do duplo grau dos instrumentalistas, portanto, carece de uma

releitura e deve ser compreendido como princípio da revisibilidade das decisões,

para viabilizar a discursividade ínsita à construção participada dos provimentos. O

instituto do recurso e o princípio da revisibilidade das decisões são indispensáveis

ao modelo constitucional de processo, por necessidade de implementação da

discursividade.

Essa discursividade é que permite aos discursos processualizados se

inserirem como construção cognitiva de provimentos e do próprio conhecimento.

Nesse sentido,

É só na qualidade de participantes de um diálogo abrangente e voltado para o consenso que somos chamados a exercer a virtude cognitiva da empatia em relação às nossas diferenças recíprocas na percepção de uma mesma situação. Devemos então procurar saber como cada um dos demais participantes procuraria, a partir do seu próprio ponto de vista, proceder à universalização de todos os interesses envolvidos (HABERMAS, 2003, p. 10).

Só assim haverá legitimidade na aplicação e na produção do Direito.

O instituto do recurso, assim, constitui um espaço procedimental necessário à

refutação das falibilidades do sistema processual, passando a “corolário ineliminável”

das garantias constitucionais do contraditório e da ampla argumentação, exercidas

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126

“comparticipadamente” pelos sujeitos processuais em todos os provimentos, como

decorrência do modelo constitucional de processo (NUNES, 2006, p. 177).

É possível concluir que somente o instituto do recurso, entendido como

extensão do contraditório e da ampla argumentação, é que seria o responsável por

viabilizar a ampliação do espaço argumentativo e discursivo, e, dessa forma, garantir

os direitos fundamentais. A restrição freqüente de recursos constatada no Direito

brasileiro, da forma como vem acontecendo, portanto, não viabiliza um projeto

democrático100.

Diante disso, não há fundamentos para afirmar, como fazem os

instrumentalistas, que o duplo grau de jurisdição não atingiria também o recurso

extraordinário, como garantia fundamental ancorada no contraditório e na ampla

argumentação.

Em um Estado Democrático de Direito não há sustentabilidade entre

diferenciar recurso ordinário e recurso extraordinário, uma vez que se trabalha com

uma concepção de recurso como um instituto de revisibilidade de decisões, dentro

da perspectiva de um direito constitucional ao recurso, como decorrência dos

princípios do processo democrático, onde está contida uma ampliação do espaço

argumentativo do contraditório e da ampla argumentação que, conectados à

fundamentação, são ínsitos à discursividade. Outra questão que inviabiliza a

dicotomia ordinário e extraordinário para os recursos é o fato de o STF, por

disposição Constitucional, ser o responsável pela “guarda da Constituição”, portanto,

o órgão jurisdicional que decide definitivamente temas constitucionais. Portanto, não

há que se falar em extraordinariedade do recurso dirigido ao STF, uma vez que

trata-se do órgão responsável pela última palavra em sede de controle difuso de

constitucionalidade (art. 102, inciso III da CR/88). Dessa forma, somente pelo

chamado recurso extraordinário é que o cidadão pode buscar uma decisão do

“guarda da Constituição” em temas constitucionais.

Assim, se o STF se colocasse como uma Corte Constitucional de verdade, no

contexto da “Reforma do Judiciário”, conforme anunciado pelos instrumentalistas,

todos os temas constitucionais deveriam por ele serem decididos, seja por meio de

ações diretas com legitimidade específica, seja por intermédio de um caso concreto,

no controle difuso de constitucionalidade. A vedação à instauração da discursividade

100

Ao contrário, traduz-se em demagogia, como, por exemplo, esboçado no item 3.3.

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127

recursal, em questões constitucionais, permitida pelo instituto da repercussão geral

das questões constitucionais adentra a um paradoxo, conforme já mencionado (item

3.1), por retirar competência constitucional do STF, ao invés de realmente elegê-lo

Corte Constitucional, como se anuncia.

Daí a necessidade de uma releitura da teoria dos recursos na perspectiva de

uma teoria geral do processo de bases principiológicas uníssonas. No sistema

recursal do microssistema do processo penal, por exemplo, com mais razão o filtro

específico do instituto da repercussão geral deve ser rechaçado, como se apontará

no capítulo seguinte.

Uma contradição é constatada, entre os instrumentalistas, no que tange à

possibilidade de haver excepcionalidades ao duplo grau em sede de teoria do

processo. Apesar de permitir a relativização do duplo grau de jurisdição por não se

constituir uma garantia constitucional101, Dinamarco (2001, p. 240) não autoriza às

regras, caso venham materializar tal princípio, extirparem a possibilidade de

interposição de recursos por completo. Pois a exclusão, por completo, do direito de

recorrer, atinge o fundamento político do duplo grau, possibilitando ausência de

controle ao juiz, o que acarretará uma postura arbitrária (DINAMARCO, 2001, p.

240).

Os instrumentalistas ressaltam um fundamento político para o princípio do

duplo grau de jurisdição, qual seja, o fato de que todo ato estatal deve estar sujeito à

revisibilidade. Nesses termos, o ato estatal “decisão judicial” deve se submeter ao

controle interno, a ser exercido por órgão da jurisdição diverso daquele que julgou

em primeiro grau, afim de que possam avaliar sua legalidade e sua justiça

(GRINOVER; GOMES FILHO; FERNANDES, 2008, p. 21). De todos os argumentos

aduzidos na instrumetalidade para justificar o princípio do duplo grau de jurisdição,

esse é o único plausível para o paradigma democrático, uma vez que o controle é

um argumento jurídico necessário em um Estado de Direito. Portanto, dos

fundamentos aduzidos para chancelar o duplo grau, o controle é o único argumento

que seria sustentável em uma democracia, desde que este controle seja exercido

democraticamente, conforme o modelo constitucional de processo, significando

101

O fato de não se constituir uma garantia constitucional decorre da ausência de previsão expressa do princípio do duplo grau de jurisdição no texto constitucional. Essa situação faz com que os instrumentalistas considerem-no simplesmente como um princípio, cuja força normativa não existe, atuando simplesmente como norteador, como conselho ao legislador (DINAMARCO, 2003, p. 160-161; MARCATO, 2006, p. 33).

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128

particularmente o direito ao contraditório e à ampla argumentação das partes

afetadas, pela possibilidade de revisão da decisão por outro órgão jurisdicional.

Entretanto, não se trata de um fundamento político, como sustentado, mas

sim democrático, tendo em vista que todo ato estatal é passível de controle em um

Estado Democrático de Direito. Pontua-se que esse controle, por sua vez, não é

para analisar a “justiça” da decisão, mas para dar a ela um conteúdo participativo-

fiscalizatório. Aqui se infere como contraditório e ampla argumentação atuam na fase

recursal, proporcionando a fiscalização e o controle das decisões.

Pensando na aplicação do mencionado argumento jurídico do princípio do

duplo grau de jurisdição, BARROS (2008b) sustenta que a possibilidade de a vítima

oferecer queixa-crime substitutiva tem exatamente fundamento na questão

democrática de que todos os órgãos, inclusive o MP, são passíveis de controle de

suas respectivas inércias.

Portanto, no Estado Democrático de Direito nenhum ato estatal (decisões

judiciais) pode ser legítimo se não garantir aos afetados a possibilidade de sua

revisão e controle. E revisão e controle somente são implementados pelo modelo

constitucional de processo, garantindo, aos atingidos pelo ato, contraditório e ampla

argumentação. As partes, no processo jurisdicional, têm a garantia de se insurgirem

contra a decisão judicial, buscando sua revisão e seu controle. As atividades

legislativa, administrativa e jurisdicional, comprometidas com a democracia, devem

se preocupar com a legitimidade de suas construções, em uma compreensão

participativa. Qualquer desconsideração em relação aos princípios que integram o

modelo constitucional de processo, fere o devido processo legal102, ainda que em

busca de uma pretensa “paz social” por meio de procedimentos céleres, mesmo que

implementada via emenda constitucional103, como a repercussão geral.

102

Devido processo legal, em um Estado Democrático de Direito, é sinônimo de devido processo constitucional. Não faz sentido a diferenciação porque o “processo constitucional” constitui-se em expressão redundante, nesse paradigma. Pois todo processo é construído a partir do modelo constitucional de processo, “quer em razão de sua estrutura e de seus fundamentos, quer pelo fato de garantir as condições institucionais para a problematização e para a resolução de questões constitucionais subjacentes às situações concretas de aplicação do Direito Civil, Comercial, Administrativo, Penal, Tributário etc” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002, p. 124; 2001b, p. 213). Sob os mesmos argumentos, Cattoni de Oliveira (2001, p. 211-215) ainda reforça que diante do entrelaçamento entre processo e Constituição, no contexto do processo como garantia constitucional no Estado Democrático de Direito, não há sustentação da distinção entre Direito Processual Constitucional e Direito Constitucional Processual. 103

Nesse sentido ver Bachof (1994), em importante trabalho sobre a possibilidade, no Direito, de normas constitucionais inconstitucionais. Apesar do trabalho, a jurisprudência brasileira não concorda com a tese defendida por mencionado autor.

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129

Defende-se o direito constitucional ao recurso e o princípio da revisibilidade

(duplo grau), que viabilizam a discursividade e legitimam as decisões. A legitimidade

das decisões é prejudicada quando se permite apenas uma possibilidade de tomada

de decisão, sem admitir-se sequer a tentativa de sua revisão. Não há legitimidade

em decisões cujos argumentos são imutáveis. Alcança-se legitimidade das decisões

também com possibilidade de reforma de seus argumentos.

Não se defende uma revisibilidade infinita, mas um mínimo que possa garantir

que aqueles que são os órgãos jurisdicionais responsáveis por determinadas

tomadas de decisões assumam seu respectivo papel, com respeito ao modelo

constitucional de processo, que legitima o exercício de suas respectivas funções.

Nesse sentido, vislumbra-se a incompatibilidade do instituto da repercussão

geral das questões constitucionais com uma leitura constitucionalmente adequada

do duplo grau como princípio da revisibilidade das decisões, no marco do direito

constitucional ao recurso. O STF, “guarda” do texto constitucional, se exime, pelo

novo requisito de admissibilidade do recurso extraordinário, de analisar questões

constitucionais que não “ultrapassem os interesses subjetivos da causa”. Veda-se

por completo, como dito (item 3.1), a possibilidade de controle difuso de

constitucionalidade pelo órgão judicial que tem tal função definida na Constituição.

Interessante apontar, no que tange ao princípio do duplo grau, outra

contradição constatada nos instrumentalistas. Com fundamento no já citado art. 8°

do Pacto de San José da Costa Rica, os instrumentalistas ainda afirmam,

contrariando todo o exposto no primeiro capítulo, que, “por conseqüência, o duplo

grau é irrestrito no processo penal e qualquer disposição de lei em ofensa a ele é

inconstitucional”. Interessante observar que, na esfera penal, o princípio do duplo

grau se traduz em exigência constitucional inafastável da garantia dos cidadãos

(MARCATO, 2006, p. 32-33).

Exatamente aqui reside o problema do presente trabalho, ou seja, constatar a

impossibilidade em se demonstrar repercussão geral em questões que tratam de

direitos individuais (principalmente diante do conceito jurídico indeterminado do

instituto trazido pela Lei n.° 11.418/06). Os instrumentalistas, mesmo dizendo que

qualquer restrição ao duplo grau de jurisdição no processo penal se configuraria

inconstitucional, admitem a repercussão geral das questões constitucionais como

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130

limitadora de recursos104. O contra-senso é decorrência de ainda conceberem o

princípio do duplo grau de jurisdição em uma acepção socializante, distante do

paradigma do Estado Democrático de Direito.

A jurisprudência também se mantém atrelada a toda essa concepção

relacionista, “à moda clássica”, sem atentar para o fato de que o paradigma atual é

(seria) o do Estado Democrático de Direito. Isso só demonstra como o judiciário

brasileiro ainda não se desvencilhou das amarras da relação de subordinação entre

juiz, autor e réu, e ainda entende o duplo grau em uma acepção socializante e

antidemocrática, senão vejamos:

Para corresponder à eficácia instrumental que lhe costuma ser atribuída, o duplo grau de jurisdição há de ser concebido à moda clássica, com seus dois caracteres específicos: a possibilidade de um reexame integral da sentença de primeiro grau e que esse reexame seja confiado a órgão diverso do que proferiu e de hierarquia superior na ordem judiciária (BRASÍLIA, STF. RHC. 79.785-7, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 2000).

A releitura do princípio do duplo grau de jurisdição em princípio da

revisibilidade das decisões é que sustenta uma concepção do instituto do recurso

em um viés democrático, como criador de espaço procedimental de argumentação.

A título de registro, importante expor a posição de Nunes (2006, p. 168-169),

que diverge da defendida no presente trabalho quanto ao princípio do duplo grau de

jurisdição, mas que, converge na compreensão do direito constitucional ao recurso.

Mencionado autor afirma que o princípio do duplo grau de jurisdição constitui-se em

uma redundância, pois é contraditório aceitá-lo como princípio constitucional em

virtude da duplicidade de exames. Mencionado autor expõe que o duplo grau não é

um princípio constitucional, pois não há necessidade de dois exames sobre todas as

questões suscitadas e debatidas no processo. Dessa forma, “o duplo exame não

constitui uma garantia ineliminável” (NUNES, 2006, p. 177).

No presente trabalho, por sua vez, busca-se uma análise principiológica do

princípio do duplo grau de jurisdição pelo viés do direito constitucional ao recurso.

Dessa forma, não se analisa o caráter dúbio ou duplo de competências. A análise de

Nunes (2006, p. 168-169) parece ainda se vincular à uma concepção de “duplo” grau

que não transpôs a discussão referente a instâncias ou graus de jurisdição. Talvez a

colocação aconteça em virtude de Nunes (2006) trabalhar apenas os recursos

104

Mais um exemplo de como as alterações de questões processuais, no Brasil, são pensadas apenas tendo como cerne o processo civil, havendo esquecimento quanto ao processo penal.

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131

ordinários como tema central de sua obra, e, propositalmente, não admitir a

abordagem do direito constitucional ao recurso por uma análise meramente de

competências duplas.

Entretanto, aqui, parte-se da concepção de revisibilidade das decisões como

princípio imprescindível ao modelo constitucional de processo, corolário do

contraditório e da ampla argumentação105. Revisibilidade de decisões, portanto, é

princípio ineliminável em um Estado Democrático de Direito, mas em uma acepção

não como “duplo” grau, mas como forma de correção dos provimentos, fiscalização

de seus respectivos conteúdos e implementação do discurso.

Há necessidade do princípio do duplo grau de jurisdição com a roupagem que

ora se defende, como princípio da revisibilidade das decisões. O contraditório e a

ampla argumentação, apesar de serem necessários no espaço argumentativo

recursal, como demonstrado, têm nele sua cognitividade argumentativa delimitada

pelas provas produzidas no processo. É esse, em resumo, o motivo da discordância.

Diante do exposto, a análise da artilharia reformista viabilizada, por exemplo,

por meio do instituto da repercussão geral, deve ser cautelosa, vez que ela, com

fundamento no solipsismo judicial e na celeridade processual, não permite

compreender o recurso como ampliação do espaço argumentativo do contraditório e

da ampla argumentação. Não permite, portanto, entender que o princípio do duplo

grau de jurisdição necessita de uma releitura, para além da mera duplicidade de

exame da matéria de fato e de direito106 (como fazem os instrumentalista), como um

direito constitucional ao recurso, portanto, como princípio de revisibilidade das

decisões, cujo conteúdo é a construção participada dos provimentos.

No que tange à repercussão geral, requisito de admissibilidade afeto ao

recurso extraordinário, confrontada com o Estado Democrático de Direito, se depura

um instituto meramente político (filtro), desprovido de qualquer legitimidade, por

retirar a possibilidade de discussão das questões constitucionais pelos afetados e,

por conseqüência, desviar a análise do “guarda da Constituição”, o STF. O instituto

impede a apreciação do recurso extraordinário por ausência de requisito objetivo de

admissibilidade, sendo que essa análise pode acontecer pelo Plenário do STF, pelas

turmas virtuais, pelo Presidente ou pelo próprio relator, em decisão irrecorrível. A Lei

105

Brêtas C. Dias (2004, p. 151) trabalha a questão no mesmo sentido, entretanto, utiliza a nomenclatura princípios da recorribilidade. 106

Apesar do uso da dicotomia no texto, não concordamos com a cisão matéria de fato e matéria de direito.

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132

n° 11.418/06 terminou por vedar a possibilidade de revisão dessa decisão, excluindo

do devido processo constitucional o princípio da revisibilidade das decisões,

característico do modelo constitucional de processo.

Ademais, a repercussão geral, diante de sua definição legal que se vale do

emprego de conceitos jurídicos indeterminados (§1° do art. 543-A do CPC), permite

ao juiz da instrumentalidade a análise axiológico-subjetiva (valorativa), que não vai

além de seu intelecto (individual), e desconsidera o recurso como espaço

procedimental discursivo. Esse fomento aos conceitos jurídicos indeterminados pelo

legislador brasileiro outorga ao juiz a integração do Direito, e acarreta a imposição

subjetiva de suas convicções particulares (pré-compreensões de mundo) nos

provimentos. Adverte Nunes (2006, p. 211) que essa remessa de integração do

Direito mediante conceitos jurídicos indeterminados gera critérios solipsistas de

julgamento, esvaziando a contribuição democrática das partes.

Em um Estado Democrático de Direito, restrição recursal se traduz em

inviabilidade de argumentação jurídica, o que, por conseguinte, acarreta restrição

dos princípios do contraditório e da ampla argumentação, implementadores do

discurso e legitimadores das decisões.

Por isso acesso aos órgãos jurisdicionais, em um Estado Democrático de

Direito, deve ser entendido como direito a um processo como “constitutivo de direitos

fundamentais” (BARROS, 2009, p. 337). Não como acesso à justiça no sentido de

acesso à ordem jurídica justa (CAPPELLETTI; GARTH, 1988).

Assim, num modelo constitucional de processo, o “duplo grau de jurisdição” é

uma ampliação do contraditório e da ampla argumentação que, como princípios

desse modelo, são indispensáveis para o controle de legitimidade das decisões. Só

assim, seria possível compreender o sistema recursal (independente se recursos

ordinários ou extraordinários) como uma ampliação do espaço argumentativo afeto

ao contraditório e à ampla argumentação.

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133

5 AS LIMITAÇÕES IMPOSTAS PELO INSTITUTO DA REPERCUSSÃO GERAL

AO DIREITO CONSTITUCIONAL AO RECURSO NO PROCESSO PENAL

Com fundamento na revisão do conceito do instituto do recurso realizada

no capítulo anterior, com apropriação das idéias de Nunes (2006), pretende-se

agora pontuar como o direito constitucional ao recurso é ferido no processo

penal, caso se aplique, indiscriminadamente, a repercussão geral das questões

constitucionais nesse microssistema.

A verificação acerca das bases em que ocorreram a (re)introdução da

repercussão geral das questões constitucionais para interposição do recurso

extraordinário no Direito brasileiro, a partir da teoria do processo como

procedimento em contraditório, no contraponto crítico com o modelo

constitucional de processo107, demonstram como aquele instituto, como filtro

recursal, afeta o direito constitucional ao recurso e diverge do paradigma

democrático.

O raciocínio da “Reforma do Judiciário” não se choca com a concepção de

processo adotada majoritariamente no Brasil (instrumentalidade do processo), e, ao

contrário, apresenta nela grande aporte. Permissível, portanto, o estabelecimento de

limitações recursais, verdadeiros impeditivos de análise de argumentos de

revisibilidade, tolhendo-se do cidadão o direito constitucional ao recurso e a análise

de questões constitucionais no último espaço possível para tal no controle difuso de

constitucionalidade.

Os reflexos dessa questão na teoria do processo são desastrosos, e

afetam os direitos fundamentais relativos às garantias processuais, dentre as

quais, o contraditório e a ampla argumentação, inviabilizando o espaço recursal

nesse microssistema. Em matéria penal a questão é mais grave, vez que o

instituto da repercussão geral das questões constitucionais acarreta o

desaparecimento da via argumentativa de revisibilidade no recurso extraordinário,

naquelas matérias que não possuírem repercussão geral, o que inviabiliza o

controle difuso de constitucionalidade. Em outras palavras, aplicando a

107

Utilizamos o modelo constitucional de processo como um sistema, configurando o processo penal um de seus

microssistemas, a partir das características essenciais da expansividade, variabilidade e perfectibilidade

(ANDOLINA; VIGNERA, 1990, p. 14-15).

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134

repercussão geral ao processo penal, é de difícil demonstração, em matéria de

liberdade individual, uma repercussão geral no âmbito do microssistema

mencionado, tendo em vista a definição dessas questões pelo legislador

infraconstitucional, na Lei n.° 11.418/06. Outro problema é que essa análise de

questões afetas à liberdade individual, no juízo de admissibilidade, como

demonstrado, fica ao critério subjetivo e solitário do magistrado, postura essa que

tem como base teórica a Teoria Instrumentalista do processo.

Como explanado no item 3.2, o modelo constitucional de processo é um

“modelo único de tipologia plúrima” (ANDOLINA; VIGNERA, 1990, p. 15, tradução

nossa)108. Da relação entre Constituição e processo tem-se que esse modelo se

adapta à noção de que é na Constituição que se encontra a base uníssona de

princípios que permite definir o processo como garantia de implementação de

direitos fundamentais (BARROS; ALMEIDA, 2007, p. 1963).

Para além de um modelo único, o modelo constitucional de processo se

expande, se aperfeiçoa e se especializa109, permitindo plúrimas tipologias, de

forma que cada uma delas possui suas respectivas especificidades. Uma teoria

geral do processo110, com um modelo único, se traduz em um macrossistema, do

qual o processo penal constitui uma de suas tipologias, portanto, um

microssistema, cujas garantias específicas e próprias são o estado de inocência,

as garantias de liberdades individuais, e o princípio do in dubio pro reo (BARROS;

ALMEIDA, 2007, p. 1962)111.

As especificidades do microssistema do processo penal estão impressas

na própria Constituição, que também o considera como uma das plúrimas

tipologias do modelo constitucional de processo (BARROS, 2008a, p. 16). As

especificidades desse microssistema consistem nas garantias relacionadas à

liberdade individual dos cidadãos (como os incisos X, XI, XII, XLI, LXI, LXII, LXIII,

LXIV, LXV, LXVI, LXVII do art. 5° da CR/88) e nos princípios do estado de

inocência ou da não-culpabilidade e do in dubio pro reo, “em razão do próprio

direito fundamental que se pretende amparar: o direito de liberdade” (BARROS,

2009, p. 336).

108

A modello unico ed a tipologia plurima. 109

Com base nas características de expansividade, variabilidade e perfectibilidade do modelo constitucional de processo (ANDOLINA; VIGNERA, 1990, p. 14). 110

Mas não a teoria geral do processo proposta pelos instrumentalistas, que se funda na tríade jurisdição – ação –processo. 111

No mesmo sentido, ver também (BARROS, 2008a, p. 15), (BARROS, 2009, p. 335).

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135

Portanto, apesar da diferença entre as tipologias processuais, seja em

razão do provimento pretendido ou dos direitos fundamentais a serem garantidos,

essas especificidades não excluem ou restringem a base principiológica uníssona

do processo (BARROS, 2008a, p. 16). Nessa esteira, pensar o microssistema do

processo penal com bases democráticas, especificadas a partir de garantias

constitucionais únicas para o referido microssistema, significa entender que essa

tipologia se presta à reconstrução fática e à garantia do direito à liberdade do

acusado, e não simplesmente à aplicação da sanção penal (ALMEIDA, 2008, p.

117).

Nesse microssistema do processo penal tem-se um contraditório e uma ampla

argumentação mais amplos e dilatados, tendo em vista a especificidade da não-

culpabilidade. Dessa forma, no processo penal, muito cuidado há que se ter com a

restrição recursal, pois, enquanto não transitada em julgado a decisão, presume-se

inocente o acusado. Nesse contexto, restrição ao espaço recursal implica em

divergência com a tipologia do processo penal. Exemplo disto nesse microssistema

é que a Lei n.° 11.719/08 revogou a exigência de recolhimento à prisão como

requisito de admissibilidade do recurso de apelação, cuja previsão constava do texto

do art. 594 do CPP. Segundo BARROS (2008a, p. 96), mencionada alteração

proporcionou uma “interpretação constitucionalmente adequada do duplo grau de

jurisdição”.

“Isso porque o duplo grau de jurisdição é uma extensão do contraditório e da

ampla argumentação, que não pode ser vinculado ao conformismo do acusado em

se ver encarcerado para que seu recurso seja conhecido” (BARROS, 2008a, p. 96).

Especificamente no que tange ao recurso extraordinário, apesar de não ser

admitido seu efeito suspensivo (Lei n.° 8.038/90, art. 27, §2°), não há imposição de

recolhimento à prisão para que seu procedimento seja deflagrado, o que denota

também, no microssistema do processo penal, que restrições recursais com ele não

se compatibilizam.

Em resumo, seja na justificação ou na aplicação do Direito, os institutos do

processo penal não podem ser excluídos de uma interpretação conforme o

modelo constitucional de processo. Entretanto, em confrontando o microssistema

do processo penal com o instituto da repercussão geral, não é isso que se

constata, senão vejamos.

Como visto, a regulamentação da repercussão geral ocorreu com a edição da

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Lei n.° 11.418, de 19 de dezembro de 2006, que implementou a regulamentação do

instituto por alteração no CPC/73, incluindo nele os arts. 543-A e 543-B. Mais um

instituto processual que foi pensado somente para o processo civil.

Constata-se novamente como as reformas são sempre pensadas, no Brasil,

em termos de processo civil, sem atentar para o processo penal. Uma teoria do

processo “sempre acaba tendo os postulados do Direito Processual Civil aplicados

ao Direito Processual Penal”, o que acarreta a aplicação, ao segundo microssistema

mencionado, de uma lógica “patrimonial e privatística” (COUTINHO, 2009, p. 229),

com ele incompatível.

Esse é mais um dos problemas que se infere da repercussão geral: um

instituto que impede a revisibilidade das decisões, em matéria constitucional,

inserido em nível constitucional, pensado para o processo civil, estendendo seus

efeitos ao processo penal. Pior que isso, desatento ao modelo constitucional de

processo, o STF, aquele que seria o responsável por “guardar a Constituição”,

ratifica o instituto e entende que “a existência da repercussão geral da questão

constitucional suscitada é pressuposto de admissibilidade de todos os recursos

extraordinários, inclusive em matéria penal” (BRASIL, 2008). Mas não se pensou na

viabilidade do instituto da repercussão geral para o processo penal. O filtro recursal

foi pensado visando somente solucionar o problema do abarrotamento dos tribunais

por processos, em uma alteração que, além de pontual em termos de teoria do

processo, somente aconteceu para se adequar ao processo civil, na realidade fática

do Estado paulista.

Daí, certamente, falar-se tanto em reformas em prol da “celeridade”, como se a questão do tempo, aqui, fosse equivalente, por exemplo, ao perecimento de um bem. Assim, se tem diferenças estruturais, há que se optar, sem meias-palavras, por um processo penal de defesa social, típico dos regimes autoritários, ou por um processo penal constitucionalizado, garantidor dos direitos do acusado, limitador da violência do Estado; e este último, como é evidente, é incompatível com anseios de “celeridade” no sentido de se condenar mais rápido ou se “acalmar a sociedade”, exatamente porque seu escopo é garantir que só se puna por meio de um processo legal devido, com a observação do contraditório e dos direitos da defesa. E, para tanto, não cabe pressa (COUTINHO, 2009, p. 229).

Aproveitando a idéia lançada por Coutinho (2009, p. 229) importante

lembrar, especificamente no processo penal, como é mais grave se pensar a

repercussão geral em uma perspectiva instrumentalista. Ou seja, para além dos

problemas de se pensar o instituto no contexto de uma teoria geral do processo

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civil, sua própria base, a teoria do processo como relação jurídica, se mostra

totalmente inadequada, ou inaplicável ao processo penal, como visto no item 3.2.

Não há como explicar um vínculo entre vontades no processo penal em virtude da

extinção da possibilidade de exercício da vingança privada. Nesse sentido, o

processo penal é necessário para aplicação do próprio direito penal, não

dependendo da vontade dos sujeitos processuais. Conclui-se com Coutinho

(2009, p. 229) que só existe sanção penal aplicada mediante um processo

jurisdicional que leve em consideração o modelo constitucional de processo e as

especificidades do microssistema do processo penal.

Recapitulando o procedimento de averiguação da repercussão geral

esboçado no item 2.3.3, tem-se, em resumo, o seguinte: em sendo positivo o

juízo de admissibilidade do requisito da repercussão geral (reconhecida) pelo

STF, o recurso extraordinário individual será admitido, para, posteriormente, ter

analisado seu “mérito”.

Da mesma forma, reconhecida a repercussão geral, em se tratando de

recursos extraordinários múltiplos, também o recurso representativo da

controvérsia será admitido e, por conseqüência, terá seu mérito em julgamento.

Nesse sentido, reconhecendo a repercussão geral, mas negando provimento ao

recurso extraordinário múltiplo, julgando-o improcedente, a decisão equivale à

manutenção da decisão dos Tribunais de origem pelo STF. Esses Tribunais de

origem, por sua vez, deverão declarar prejudicados os recursos extraordinários com

a mesma controvérsia, que, na origem, permaneceram suspensos até que o STF se

manifestasse sobre a repercussão geral. Por outro lado, ocorrendo o

reconhecimento da repercussão geral, mas se, ao revés, o STF decidir pela

procedência do recurso extraordinário representativo da controvérsia, devem os

Tribunais de origem adotar uma dentre duas posturas. A primeira delas seria a

retratação de sua própria decisão (art. 543-B, §3° do CPC), vez que o STF, no

julgamento do recurso extraordinário representativo da controvérsia, julgou em

sentido contrário ao decidido pelo Tribunal de origem. Assim, o Tribunal de origem

se retrataria, reformando sua própria decisão. A segunda postura a ser adotada pelo

Tribunal de origem é a manutenção da decisão recorrida. Nesse caso o Tribunal de

origem determinará o envio do recurso extraordinário sobrestado ao STF (art. 543-B,

§4° do CPC), oportunidade em que poderá o Supremo cassar ou reformar

liminarmente essa decisão da origem, de ofício, por decisão monocrática do relator

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sorteado, nos termos do art. 21, §1° do RISTF.

Caso seja negativo o juízo de admissibilidade do requisito da repercussão

geral (não reconhecida) pelo STF, o recurso extraordinário individual será

inadmitido, sendo irrecorrível essa decisão.

No caso de negativa do instituto para recurso extraordinário múltiplo, o

mesmo terá efeito vinculante para todos os demais Tribunais do país e,

transcendendo o caso representativo da controvérsia, atingirá todos os outros

recursos que tratem da mesma questão constitucional, sobrestados naqueles

Tribunais de origem, que serão “automaticamente” inadmitidos. Também é

irrecorrível essa decisão de não reconhecimento de repercussão geral no recurso

paradigma pelo STF.

A partir das questões esboçadas sobre o direito constitucional ao recurso

(NUNES, 2006), pensar em uma decisão positiva sobre repercussão geral,

admitindo o recurso extraordinário, não fere o modelo constitucional de processo

nem as especificidades da tipologia do processo penal. Isso significa dizer que

reconhecer a repercussão geral das questões penais discutidas no caso concreto,

é uma constatação de aplicação de direitos fundamentais, o que se compatibiliza

com os princípios do estado de inocência e do in dubio pro reo, desde que

reconheça um direito fundamental do acusado. Dessa forma, reconhecer que um

recurso extraordinário, que reforma uma decisão para alterar o regime de

cumprimento de pena do fechado para o inicialmente fechado, possui repercussão

geral. A decisão positiva sobre repercussão geral, em recursos múltiplos, apesar dos

problemas já apontados na teoria do processo, com o microssistema do processo

penal se compatibiliza, por respeito à defesa dos direitos do acusado.

Entretanto, problema grave é constatado quando uma decisão nega acesso

aos órgãos jurisdicionais por desconhecer repercussão geral das questões penais

discutidas no caso. Nessa hipótese, no microssistema do processo penal, restringe-

se o direito à liberdade do acusado, chocando-se o instituto da repercussão geral

das questões constitucionais com as especificidades desse microssistema e

desconsiderando sua própria razão de ser, qual seja, o resguardo do direito à

liberdade individual.

Portanto, em se tratando de decisão de negativa de repercussão geral em

determinado recurso extraordinário, flagrante sua inconstitucionalidade, por ferir o

modelo constitucional de processo, com suas especificidades no microssistema do

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processo penal (não-culpabilidade). Só assim seria permissível pensar a

repercussão geral em uma interpretação conforme a Constituição no processo penal.

É o que aconteceria, por exemplo, em recurso extraordinário que não venha ser

admitido por falta de repercussão geral, em questão relacionada ao interrogatório on

line, em que a defesa técnica não tem contato com o acusado.

Diante disso, não se sustenta a repercussão geral no contraponto com o

Estado Democrático de Direito. Qualquer questão de Direito Processual ou de

Direito Penal, no microssistema do processo penal, deve ter reconhecida sua

repercussão geral, sob pena de, novamente, se esmagar a autonomia privada,

como aconteceu no Estado Social, em nome da supremacia do interesse público

sobre o privado.

Pelo raciocínio daqueles que enaltecem a repercussão geral, no sentido de

ratificação da supremacia do interesse público sobre o privado, mais motivos

existem para se entender o instituto como inaplicável ao processo penal. Isso

porque é contraditória a defesa da supremacia do interesse público sobre o

privado em face do processo penal, em que as questões tratadas também são

afetas à autonomia pública, tendo em vista que não existe sanção penal sem

esse microssistema. Daí a contradição em que incorrem os instrumentalistas.

As questões tratadas no processo penal, apesar de interessarem à

liberdade individual desse ou daquele acusado, têm uma amplitude maior. Isso

porque todos e quaisquer cidadãos podem figurar como acusados no processo

penal e, entendendo o processo como garantia, nesse microssistema, as

questões ali discutidas se entrelaçam com a autonomia pública.

Como se não bastasse, outro grande problema é conceber a repercussão

geral no processo penal: como demonstrar repercussão geral, nos termos da Lei

n.° 11.418/06, em questões que, em princípio, tratariam de liberdade individual?

Temas que restringem a liberdade de um único cidadão não ultrapassariam os

“interesses subjetivos da causa”. Nenhuma questão penal, assim, se adéqua à

definição do instituto da repercussão geral trazida pela Lei n.° 11.418/06, a não

ser pelo viés de um julgador solipsista e subjetivista. Significa dizer que as

questões discutidas no processo penal visam a defesa do direito fundamental de

liberdade do acusado e não podem ter negado recurso extraordinário que nelas

tivesse seu argumento, por respeito ao modelo constitucional de processo.

Pensamento diverso só teria fundamento no protagonismo judicial, em que o juiz

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140

decide buscando os escopos metajurídicos do processo.

No Estado Democrático de Direito, as tipologias se submetem aos

princípios-bases do modelo constitucional de processo (contraditório, ampla

argumentação, fundamentação das decisões e participação de um terceiro

imparcial) e às características próprias do respectivo microssistema, no caso em

análise, do processo penal, exigindo do intérprete essa compreensão sobre suas

especificidades (BARROS, 2009, p. 335).

O STF por sua vez, da entrada em vigor da Emenda Regimental n.°

21/07112, que adequou o RISTF à Lei n.° 11.418/06, até agora, tem reconhecido

repercussão geral em casos penais, demonstrando que as questões relevantes

no processo penal sempre devem ser admitidas, em uma interpretação

constitucionalmente adequada. Ainda que reconheça que “a existência da

repercussão geral da questão constitucional suscitada é pressuposto de

admissibilidade de todos os recursos extraordinários, inclusive em matéria penal”

(BRASIL, 2008), o STF tem dado uma interpretação adequada ao microssistema do

processo penal, pois tem reconhecido repercussão geral nos temas penais que lhe

foram submetidos até agora.

No processo penal militar113 o STF reconheceu a transcendência de

questões relevantes do ponto de vista jurídico, em virtude de falta de publicação de

acórdão pelo STM, reconhecendo-se a repercussão geral nessa hipótese

(BRASÍLIA, STF. RE. 575.144, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 2008d). Nesse caso,

discutia-se sobre a interpretação constitucionalmente adequada do art. 118, §3° do

RISTM, que permite que o resultado do julgamento do recurso de agravo seja

apenas certificado nos autos pela Secretaria do Tribunal Pleno do STM, sem a

devida publicação. O STF entendeu haver repercussão geral do tema constitucional

aduzido por constatar questões relevantes do ponto de vista jurídico, ao passo que o

dispositivo do RISTM impossibilita o conhecimento do fundamento da decisão pelas

partes. A transcendência, segundo o STF, é evidenciada no fato de existir restrição

indevida às partes sobre o conhecimento quanto aos limites da decisão que aplicou

o art. 118, §3° do RISTM, conseqüentemente a questão afetando todos os acusados

em processos penais pelo país.

112

Nesse sentido ver nota 47 do presente trabalho. 113

No que tange à dicotomia processo penal militar e processo penal comum, ver Barros e Almeida (2007) no sentido de que a mesma não se sustenta em um processo de bases principiológicas uníssonas.

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Apesar dos argumentos utilizados pelo STF serem tímidos em virtude de

tratar-se de julgamento de preliminar de admissibilidade, nesse caso, o paradigma

democrático sustentaria a admissibilidade do recurso extraordinário, pois um

percurso argumentativo demonstrando o modelo constitucional de processo, com

seus princípios-base, bem como de que forma uma fundamentação deficiente afeta

o contraditório e a ampla argumentação já mostram a necessidade de

admissibilidade do recurso. Assim, com fundamento no paradigma do Estado

Democrático de Direito, sequer teria que se perquirir sobre admissibilidade ou não

de recurso extraordinário em matéria afeta ao microssistema do processo penal.

Apesar disso, compatível foi a decisão do STF com o paradigma do Estado

Democrático de Direito, que se embasou no princípio da fundamentação das

decisões e admitiu o recurso extraordinário, reconhecendo a repercussão geral.

Em outro julgamento, em matéria de direito penal, foi reconhecida

repercussão geral de questões referentes à possibilidade de processos em curso

serem considerados maus antecedentes para a dosimetria da pena no contraponto

com o princípio da não-culpabilidade (BRASÍLIA, STF. RE. 591.054, Rel. Min. Marco

Aurélio, 2008e). Nesse caso, discutia-se sobre a amplitude do princípio

constitucional do estado de inocência. Para o STF, a possibilidade ou não de o juiz,

na fixação da pena-base, com fundamento no art. 59 do CP, se valer de processos

em curso como antecedentes para majorar a pena-base além do mínimo legal, é

tese constitucional que apresenta repercussão geral por constatar questões

relevantes do ponto de vista jurídico, uma vez que as decisões sobre a questão nos

juízos do país vêm oscilando, necessitando de pacificação pelo STF.

Essa decisão vem afirmar o defendido no presente trabalho, primeiramente no

sentido de que toda questão penal é dotada de repercussão geral, pela própria

estrutura do microssistema do processo penal. No processo penal as questões

sempre são transcendentes aos “interesses subjetivos da causa”. Também ratifica o

exposto no presente texto por afirmar a necessidade do controle difuso de

constitucionalidade, como último espaço argumentativo, sobre o princípio da não-

culpabilidade e da pessoalidade da pena. Apesar de não reconhecer isso

expressamente, compatível foi a decisão do STF, no caso mencionado, pois se

compatibiliza com o paradigma democrático e a tipologia do processo penal, ao se

embasar no princípio do estado de inocência e admitir o recurso extraordinário,

reconhecendo repercussão geral.

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Também foi reconhecida repercussão geral de problemas relacionados à

aplicação da Lei n.° 11.464/07, no que tange à aplicabilidade do requisito temporal

para progressão de regime a casos anteriores a sua vigência (BRASÍLIA, STF, RE.

579.167, Rel. Min. Menezes Direito, 2008f). Nesse caso, se discutia questões de

Direito intertemporal atinentes à progressão de regime em crimes hediondos

cometidos antes da Lei n.° 11.464/07, no contraponto com os princípios da

retroatividade da lei penal benéfica em favor do acusado. O prazo de cumprimento

de pena para ter direito à progressão de regime, em crimes hediondos, era de 2/3,

conforme art. 2°, §1° da Lei n.° 8072/90. Em sede de controle difuso, o art. 2°, §1° da

Lei n.° 8072/90 foi declarado inconstitucional, voltando a viger o disposto na LEP,

cujo prazo era de 1/6 para obtenção do mencionado direito. Após a Lei n.° 11.464/07

esse prazo passou, respectivamente, para 2/5 e 3/5, exigindo maior tempo de

cumprimento de pena para ter direito à progressão de regime. A transcendência,

segundo o STF, é evidenciada no fato de existir reflexo da questão a todos os

recuperandos em processos de execução penal pelo país. Interessante ressaltar

que, nesse caso, tratava-se de recurso extraordinário múltiplo, servindo o caso ora

em comento como paradigma para julgamento dos demais recursos extraordinários

que versavam sobre idêntica questão.

Mais uma vez decide o STF por ter uma questão penal repercussão geral,

corroborando o entendimento segundo o qual toda questão penal é dotada de

repercussão geral, pela própria estrutura do microssistema do processo penal.

Entretanto, a decisão em um recurso extraordinário com efeito vinculativo dos

demais que “versem sobre a mesma questão” não se compatibiliza com o paradigma

democrático, conforme ressaltado no item 2.2.

Outra questão relevante que teve reconhecida repercussão geral, e que

demonstra que toda questão penal é dotada de repercussão geral, se refere à

discussão sobre constitucionalidade da agravante do art. 61, I do CP, no contraponto

com o princípio da proporcionalidade, por se constituir em bis in idem e ferir a

individualização da pena (BRASÍLIA, STF, RE. 591.563, Rel. Min. Cezar Peluso,

2008g). Nesse caso, o STF julgou, em juízo de admissibilidade, se haveria

repercussão geral na análise de uma interpretação conforme a Constituição do art.

61, I do CP. Coube ao STF julgar se a norma do agravamento de pena por

reincidência não significa autorização de dupla punição pelo mesmo fato, ou seja, a

primeira condenação, além de sua sanção, ainda permite a incidência de

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circunstância que agravará a situação do acusado em outro processo penal, ao

mesmo fundamento.

Interessante observar que o Ministro Marco Aurélio, ao final de seu voto,

assim se manifestou:

No mais, consoante ressaltado pelo relator – ministro Cezar Peluso –, não fosse inclusive a declaração de inconstitucionalidade do inciso I do artigo 61 do Código Penal, está-se diante de situação concreta a exigir o crivo do Supremo. Incumbe definir se a agravante da reincidência coabita, ou não, o mesmo teto da vedação à duplicidade, considerada circunstância de, no tocante a desvio de conduta anterior, já haver sido o agente apenado (BRASÍLIA, STF, RE. 591.563, Rel. Min. Cezar Peluso, 2008g).

Nesse caso, o Ministro Marco Aurélio, no final de seu voto pelo

reconhecimento da repercussão geral, deixa claro que o instituto da repercussão

geral, principalmente em matéria penal, não pode debater apenas teses, mas sim

casos, pois, segundo ele, independente da discussão sobre constitucionalidade ou

não do art. 61, I do CP, “está-se diante de situação concreta a exigir o crivo do STF”

(BRASÍLIA, STF, RE. 591.563, Rel. Min. Cezar Peluso, 2008g).

Por fim, reconheceu o STF repercussão geral em questões referentes à

discussão acerca da constitucionalidade do art. 25 da LCP, para análise de sua

compatibilidade em relação à igualdade, ao estado de inocência e aos limites dos

crimes de perigo abstrato (BRASÍLIA, STF, RE. 585.523, Rel. Min.Cezar Peluso,

2008h). Mais uma vez o STF reforça o entendimento defendido no presente trabalho

no sentido de que os temas penais, pela própria estrutura do microssistema, já

possuem repercussão geral por si só.

A definição legal do instituto da repercussão geral exclui a possibilidade de

discussão de questões penais, pois não há como reconhecer repercussão geral

em questões que tratam de liberdade individual, seria um contra-senso. Não dá

para se pensar em questões relevantes do ponto de vista econômico, político,

social ou jurídico que vão além dos interesses subjetivos do caso quando se fala

em liberdade do indivíduo. Por isso, fica-se ao sabor da discricionariedade do

judiciário.

Como mencionado, diante de decisões que reconhecem haver repercussão

geral não existe problema, pois se trata de uma interpretação extensiva em relação

a direitos fundamentais, o que se compatibiliza com o princípio do estado de

inocência, especificidade do microssistema do processo penal. O problema seria

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constatado com a recusa de repercussão geral em questões que envolvam

situações penais, o que ainda não aconteceu no STF, conforme mencionado.

Assim, uma aplicação constitucionalmente adequada da repercussão geral

no processo penal não permite seja a mesma reconhecida para vedar a análise

de recurso extraordinário por falta de requisito de admissibilidade. Importante

insistir que a negativa de repercussão geral em determinado recurso extraordinário,

se denota flagrantemente inconstitucional, por ferir o modelo constitucional de

processo, com suas especificidades no microssistema do processo penal (não-

culpabilidade).

Essa é a interpretação conforme a Constituição no processo penal para o

instituto da repercussão geral das questões constitucionais, como vem fazendo o

STF. Portanto, inadmissível conceber o instituto da repercussão geral das

questões constitucionais no processo penal, para negar seguimento a recurso

extraordinário. Eventual reconhecimento, pelo STF, da ausência de repercussão

geral em questões penais, se vincularia ao conceito jurídico indeterminado que o

instituto carrega, que carece do ativismo judicial para seu preenchimento.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A concepção instrumentalista sobre o duplo grau de jurisdição e sobre o

protagonismo judicial influenciaram a “Reforma do Judiciário” implementada pela

EC n.° 45/04, bem como deram embasamento para a regulamentação do instituto

da repercussão geral das questões constitucionais pela Lei n.° 11.418/06 e pela

Emenda Regimental n.° 21/07, ao RISTF.

Canalizando institutos jurídicos contra o sistema recursal (duração razoável

do processo, súmula vinculante e repercussão geral) essas concepções são

predominantes na jurisprudência e entre os estudos jurídicos no país, entretanto,

ainda estão embasadas no paradigma do Estado Social. Assim, as reformas

processuais vêm atacando direitos e garantias fundamentais consolidados na

Constituição, contribuindo para um Estado Democrático de Direito demagógico e

mentiroso.

A concepção de processo adotada pela maioria dos processualistas

brasileiros, atrelada à compreensão do duplo grau que trazem consigo, só faz

ratificar o instituto da repercussão geral das questões constitucionais no Direito

brasileiro.

Por sua vez, com base em uma perspectiva crítica da concepção de

processo, do duplo grau e dos recursos, ficou evidente que a repercussão geral

das questões constitucionais é um instituto incompatível com o paradigma do

Estado Democrático de Direito. Ao argumento ideológico de imprimir celeridade

aos procedimentos, a repercussão geral é implementada no Direito brasileiro com

o objetivo de impedir a interposição de recursos extraordinários, para reduzir o

número de processos enviados ao STF e, assim, segundo os reformistas, atingir

mais rapidamente o trânsito em julgado das decisões. Entretanto, a insistente

restrição do espaço argumentativo, pelas reformas, encontra óbice na

procedimentalidade do paradigma democrático.

Quando essas questões são transportadas para o microssistema do

processo penal, em um viés democrático, mais problemas podem ser

enumerados no sentido de evidenciar a incompatibilidade da repercussão geral

com o paradigma do Estado Democrático de Direito, não só no que tange ao

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modelo constitucional de processo, mas também às especificidades do próprio

microssistema.

As questões que ratificam a incompatibilidade da repercussão geral com o

paradigma democrático no Direito brasileiro, como evidenciado em todo o

trabalho, podem ser apontadas, no que tange à teoria geral do processo e ao

processo penal, da seguinte forma:

1) Segmentar e dicotomizar autonomia pública e autonomia privada não é

argumento que sirva para ratificar o instituto da repercussão geral das questões

constitucionais como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário, como

fazem os instrumentalistas. O argumento dos reformistas, no sentido de que o

STF deve se preocupar somente com questões mais relevantes, que ultrapassem

os interesses meramente subjetivos dos litigantes, ressaltando a supremacia do

interesse público sobre o privado, é antidemocrático. Dessa forma, o argumento

instrumentalista de celeridade e segurança jurídica não se adéqua ao paradigma

procedimental do Estado Democrático de Direito, pois autonomia pública e

autonomia privada são co-dependentes, de forma que ambas devem ter respaldo

e relevância. Na procedimentalidade democrática, a base da discussão política

pública pelos afetados é a participação dos atingidos. Por isso não deve se

admitir um instituto jurídico que permite a recusa de recursos extraordinários ao

argumento de que busca a defesa do interesse público, ao apreciar apenas

“questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que

ultrapassa os interesses subjetivos da causa”, em detrimento de “meros

interesses dos litigantes”;

2) Pelos argumentos esboçados pela maioria dos autores nacionais, a

repercussão geral permite ao STF exercitar sua função atribuída

constitucionalmente, a de “guarda da Constituição”. Essa possibilidade, segundo

eles, faz com que o STF tenha um número menor de casos para exame,

proporcionando celeridade aos processos, pois se incumbirá apenas do

julgamento de questões que envolvam os “valores mais caros à sociedade”.

Ocorre que os “valores” e concepções de “bem comum” não se definem a priori

no Estado Democrático de Direito. A repercussão geral, assim, funciona como um

standard que determina, a priori, a definição dos casos, pelo empecilho ao

recurso extraordinário.

3) Em se tratando de recursos extraordinários múltiplos, o instituto ainda se

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comporta como solução pré-definida para “casos idênticos”. A inadequabilidade

do instituto da repercussão geral se evidencia também nesse particular, porque,

ao limitar o recurso extraordinário à questão que repercuta na esfera (pública)

econômica, social, política, ou jurídica de outros sujeitos, o legislador deixa de

perceber que casos pontuais, individuais e únicos, que tenham como base

fundamentos constitucionais, simplesmente por não terem extensão para além do

caso concreto, deixem de ser analisados. A construção participada dos provimentos

permite um processo construtivo de interpretação do caso, não havendo

possibilidade, no paradigma democrático, da resposta definitiva dada a um caso

servir como solução de outro.

4) Pior é pensar na repercussão geral como argumento para que o STF se

furte à apreciação de casos que não tenham interesse público, interesse social ou

que não atinjam a sociedade como um todo. O STF passa agora a apreciar somente

teses, em detrimento do caso concreto. Essa questão é evidenciada, seja no art.

543-A do CPC, seja no art. 543-B do CPC, em que há efeito vinculante a todos os

casos, presentes ou futuros, que discutam a mesma tese. Decisão com aplicação

automática é um contra-senso em uma democracia.

5) Com assento nessa questão, constata-se como são paradoxais os

argumentos esboçados pelos reformistas. O STF, pela repercussão geral, não se

torna Corte Constitucional como anunciado. Ao contrário, o instituto da repercussão

geral retira do STF a competência para análise de matéria constitucional, atribuindo-

a ao STJ, quando se tratar da análise de “questões que não ultrapassam os

interesses subjetivos da causa”. Corte Constitucional que se preze é responsável por

proferir a última palavra em matéria constitucional, entretanto, não é o que acontece

no Brasil, apesar do anunciado com a “Reforma do Judiciário” em relação à

repercussão geral. Esse paradoxo expõe como o instituto da repercussão geral

inviabiliza o controle difuso de constitucionalidade no Direito brasileiro, pois retira a

possibilidade de discussão de questão constitucional do último espaço

argumentativo possível para implementação discursiva dessa questão, o recurso

extraordinário. Portanto, forçosa a conclusão de que o art. 102, §3° da CR/88

configura norma constitucional inconstitucional.

6) No contexto da busca por uma teoria do processo adequada ao Estado

Democrático de Direito, a crítica ao protagonismo judicial permite novos argumentos

que evidenciam a incompatibilidade da repercussão geral das questões

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constitucionais com o paradigma do Estado Democrático de Direito.

7) A relação entre processo e Constituição permite compreender o processo

como garantia constitucional, cuja base principiológica uníssona está no próprio

Texto Constitucional, de forma que todas as normas processuais específicas devem

se adequar ao modelo constitucional de processo. Todo processo tem como base os

princípios do contraditório, da ampla argumentação, da imparcialidade e da

fundamentação das decisões.

8) Nesse contexto, é necessária a reconstrução do papel do juiz no processo

jurisdicional. O juiz não é mais o responsável solitário pela resposta correta ao caso

concreto, como acontece na instrumentalidade, embasada na teoria do processo

como relação jurídica, ainda atrelada ao paradigma do Estado Social. O

protagonismo judicial defendido no Direito brasileiro, atualmente, tem como

fundamento a busca por escopos metajurídicos, em uma relação substitutiva frente

às partes. Entretanto, no Estado Democrático de Direito, a participação das partes é

que atribuirá legitimidade às decisões, uma vez que a função estatal é

desempenhada pelo Estado com a participação das partes, ou seja, a decisão é

construída participadamente pelo juiz e os afetados pela decisão.

9) O instituto da repercussão geral das questões constitucionais é fomentado

pela visão instrumentalista do processo, que tem o juiz como protagonista da relação

processual, que defende o aumento dos poderes judiciais no processo pelo excesso

de subjetividade do instituto. A repercussão geral, que restringe recursos, possui

conceito jurídico indeterminado, dotando o STF de discricionariedade para escolher

as questões que têm ou não repercussão geral. Trata-se de forma de restrição de

recursos (direito fundamental) mediante conceito que permite valorações subjetivas

pelo juiz instrumentalista.

10) Ademais, os estudos acerca do instituto no Direito brasileiro ainda estão

vinculados à jurisprudência dos valores, ao processo como relação jurídica e

fortificados pela condução autoritária (convicções pessoais) do julgador no processo,

questões já superadas no Estado Democrático de Direito. O próprio texto da Lei n.°

11.418/06 ressalta a busca pelos escopos metajurídicos do processo através do

instituto da repercussão geral das questões constitucionais, que se chocam com o

paradigma democrático.

11) Pela defesa dos escopos metajurídicos, a repercussão ratifica a visão de

resultados buscada pelo Estado, que cumpre seus objetivos se valendo da jurisdição

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para perseguir valores pré-definidos em lei. Dessa forma, o STF tem

discricionariedade, pelo filtro da repercussão geral, para selecionar matérias

constitucionais das quais se absterá em analisar. Assim, incompatível se revela o

instituto da repercussão geral com a constitucionalidade democrática por ferir o

modelo constitucional de processo, ao permitir a construção solitária das decisões,

sem atenção aos argumentos das partes, o que pode ser constatado com mais

evidência nos recursos extraordinários múltiplos.

12) Trata-se de um retorno à filosofia da consciência, ao subjetivismo dos

julgadores e à arbitrariedade das decisões. O protagonismo judicial no processo só

pode ser combatido por uma decisão construída argumentativamente em

contraditório entre as partes, que vincule a própria fundamentação da decisão,

vedando concepções subjetivas do julgador que possam nela exercer influência.

13) O instituto da repercussão geral das questões constitucionais é natimorto

se contraposto ao modelo constitucional do processo. Pois o juiz do Estado

Democrático de Direito deve submeter a temática do requisito de admissibilidade

(repercussão geral) às partes (contraditório), que oferecem (ou podem fornecer)

argumentos para a construção da decisão (ampla argumentação), e se vincula aos

argumentos por elas despendidos, o que não acontece na repercussão geral.

14) Pragmaticamente, no que se refere ao processo para apreciação da

repercussão geral sua manutenção, ao argumento de que imprime celeridade nos

procedimentos, por permitir o rápido trânsito em julgado das decisões, incorre em

um paradoxo. Se os Ministros do STF já analisam o caso para saber se há ou não

repercussão geral, já se encontram em condição de julgá-lo. A celeridade não

acontece nesse caso.

15) Outro paradoxo incompatível com o Estado Democrático de Direito é

aferido no que tange ao fato do Tribunal de origem selecionar os casos que servirão

de paradigma para o julgamento de recursos extraordinários múltiplos. Entretanto,

esse Tribunal é que terá sua decisão reapreciada. O Tribunal de origem é que

escolherá o recurso representativo da controvérsia, que ataca sua própria decisão, e

que servirá de paradigma para todos os demais que lá na origem permaneceram

suspensos. O STF somente apreciará um recurso paradigmático, cuja argumentação

foi escolhida pelo Tribunal que tem sua decisão refutada. Na tentativa da “Reforma”

de retirar competência em questões constitucionais dos Tribunais inferiores,

terminaram por atribuírem mais competência a eles, pois eles terão, ainda, que

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selecionarem o recurso paradigma.

16) Além disso, infere-se que o contra-senso é maior ao se pensar na

argumentação jurídica, uma vez que a questão, em caso de recursos múltiplos, de

acontecer a eleição do recurso paradigma pelo Tribunal a quo, termina por limitar a

própria capacidade e exigibilidade interpretativa do próprio STF, “guarda da

Constituição”. Isso porque a interpretação do STF limitar-se-á ao recurso paradigma

que a ele foi encaminhado.

17) Outro paradoxo é percebido aqui, e chega a ser cômico pensar na

seguinte questão. Julgadores nunca deixam de interpretar e decidir. Nas instâncias

inferiores, os juízes ou os desembargadores, pra dizer que determinado recurso

extraordinário não apresenta repercussão geral, têm que decidir e analisar o

processo, o que aumenta a complexidade do trabalho do judiciário, aumentando o

serviço judicial, ao invés de diminuí-lo como anunciado pela “Reforma”.

18) Pior é se constatar que a redução da competência constitucional do STF

foi alterada, o que denota, ainda que via Emenda Constitucional, norma

constitucional inconstitucional, pois altera cláusula pétrea. Diante disso, a

inaplicabilidade da repercussão geral se impõe, vez que o Direito brasileiro não

consagra a teoria das normas constitucionais inconstitucionais.

19) Como se não bastasse, o conceito jurídico indeterminado utilizado para

definir a repercussão geral foi utilizado na via da infraconstitucionalidade, via Lei

Ordinária e não via Emenda Constitucional. Alteração indireta do art. 5° da CR/88,

no que tange ao contraditório e à ampla argumentação. Mais uma vez constata-se a

incompatibilidade da repercussão geral das questões constitucionais com o

paradigma do Estado Democrático de Direito.

20) Trata-se, portanto, de um instituto que veda o direito constitucional ao

recurso, criado por Emenda Constitucional, cujo conceito para ser aplicado como

requisito de admissibilidade do recurso extraordinário é juridicamente indeterminado

(subjetivo), e ainda visa a busca dos escopos metajurídicos do Estado.

21) O instituto da repercussão geral desrespeita o modelo constitucional de

processo e é leviano com sua “Reforma do Judiciário” totalmente desvinculada do

paradigma democrático, desconsiderando o caso concreto, tratando todas as

questões constitucionais como idênticas, e inviabilizando às partes a construção

participada da decisão.

22) No contexto dessas discussões é possível identificar que, apesar do

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discurso da socialização processual dominar as reformas processuais no Brasil, elas

têm, na verdade, como pano de fundo, uma concepção neoliberal da celeridade

processual. Constatam-se, portanto, argumentos demagógicos e ideológicos nessas

reformas que ganham base doutrinária na instrumentalidade do processo. Dessa

forma, os argumentos liberais vêm para o Direito brasileiro por meio de um processo

de produção capitalista, calcado em uma análise econômica do Direito, num viés

consumeirista do exercício da jurisdição. A preocupação dos reformistas é com a

quantidade das decisões, e não com a qualidade delas. Nesse sentido, com base

em estudos do Banco Mundial, as reformas aderem às propostas de defesa de um

judiciário fundado na aplicação previsível da lei (segurança jurídica), de forma

eficiente (celeridade), cuja finalidade é a proteção da propriedade privada. A

demagogia, na defesa desses argumentos no Direito brasileiro, é constatada por

dizerem os reformistas que essa celeridade geraria mais “acesso à justiça”,

distorcendo a socialização processual, pois vinculam-se a argumentos do liberalismo

processual, por isso ideológicos. Nesse contexto, a defesa da repercussão geral se

torna mais fácil, pois associam-se os seguintes argumentos: redução de espaços

argumentativos no processo jurisdicional (recursos), diminuição neoliberal do papel

do cidadão no processo (segurança), posição ativista e superior do juiz no processo.

23) Portanto, o novo requisito de admissibilidade do recurso extraordinário

retira (filtra) a possibilidade de interposição desses recursos com base em

argumentos metajurídicos (Lei 11.418/06, art. 543-A, §1° do CPC) e, em

conseqüência, reduz o espaço argumentativo reservado à ampla argumentação

num Estado Democrático de Direito, consequentemente restringindo o acesso

aos órgãos jurisdicionais. Tudo para priorizar uma sedenta e inconseqüente

celeridade, que proporcionaria mais “acesso à justiça” para os cidadãos.

24) Como se não bastasse, o instituto da repercussão geral das questões

constitucionais ressuscita o instituto da argüição de relevância da questão

federal, que vigorou na Constituição de 1969. À época, inseria-se a argüição de

relevância no paradigma do Estado Social. Apesar disso, o instituto não

funcionou para o objetivo que foi criado, qual seja, diminuição do trabalho do

STF. Entretanto, as reformas ressuscitam o instituto, entretanto, agora, em um

paradigma democrático, o que é um contra-senso. Se no paradigma adequado o

instituto não atingiu seu objetivo, agora, de forma incompatível com o Estado

Democrático de Direito, também não galgará seu intento.

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25) O princípio do duplo grau de jurisdição deve se adequar ao modelo

constitucional do processo. Não é possível concebê-lo como fazem os

instrumentalistas, como possibilidade de apenas um reexame do processo por

outro órgão jurisdicional. Portanto, não ampliam o duplo grau aos recursos

destinados aos Tribunais superiores. Somando esse raciocínio com o solipsismo

do juiz posicionado como eixo da teoria geral do processo, os instrumentalistas

pensam o recurso de forma pragmática, o que possibilita a insistente mitigação

do instituto dos recursos pelo legislador na busca da razoável duração do

processo, para que o juiz consiga satisfazer os escopos metajurídicos. Para

adequar o instituto do duplo grau ao modelo constitucional de processo, deve ser

ele compreendido como ampliação do espaço argumentativo, afetos ao

contraditório e à ampla defesa. Portanto, em sua releitura, o duplo grau deve ser

entendido como princípio da revisibilidade das decisões. Dessa forma, as

constatáveis, a muito tempo, mitigações ao princípio do duplo grau, que se

intensificaram com a Emenda Constitucional n.° 45/04 e a edição da Lei n.°

11.418/06, não se amoldam ao paradigma do Estado Democrático de Direito.

26) Na concepção democrática do Estado é necessário pensar no princípio

da discursividade dos processos de tomada de decisão e formação da vontade. A

discursividade é que fomenta a argumentação jurídica nos recursos, de forma que

possibilita o entendimento do espaço recursal como possibilidade de garantia e

manutenção dos princípios do contraditório e da ampla argumentação, para

manter a atenção ao modelo constitucional de processo. Contraditório entendido

como possibilidade dos afetados construírem participadamente a decisão, cujos

efeitos lhes afetarão. Ampla argumentação no sentido dos argumentos aduzidos

pelas partes serem considerados no provimento final. Assim, alcança-se pelo

contraditório e pela ampla defesa a legitimidade dos processos democráticos de

tomada de decisão, cujo controle de adequação ao modelo constitucional de

processo se dá pela fundamentação das decisões. Por isso não se pode tolher,

como acontece na repercussão geral, a oportunidade de interposição de recursos

somente tendo em vista a compreensão do duplo grau de jurisdição como apenas

um reexame.

27) O recurso, em uma acepção democrática, deve ser entendido como um

meio voluntário de impugnação das decisões (instrumentalistas) que provoca a

revisibilidade de seu respectivo conteúdo, garantindo aos afetados por ela, a

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possibilidade de construção participada (contraditório) e de refutação de

argumentos (ampla argumentação). Funciona como um espaço de correção da

decisão (revisibilidade) e como espaço onde há possibilidade de exposição dos

argumentos desprezados ou interpretados equivocadamente na decisão.

Portanto, o que fundamenta o princípio do duplo grau não é a revisibilidade tão

somente, mas também por se traduzir na possibilidade do afetado,

voluntariamente, se insurgir contra a decisão, buscando que os seus argumentos

sejam levados em consideração.

28) Assim sendo, atento a um modelo constitucional de processo, no

Estado Democrático de Direito, o duplo grau de jurisdição (como princípio da

revisibilidade das decisões) atinge também o recurso extraordinário, como

garantia fundamental ancorada no contraditório e na ampla argumentação. Pois a

dicotomia recurso ordinário e extraordinário não mais se sustenta na perspectiva

de um direito constitucional ao recurso. Ademais, se o STF é o “guarda da

Constituição”, responsável pela última palavra em matéria constitucional, não há

que se falar em extraordinariedade do recurso dirigido a ele dirigido, uma vez que

trata-se do órgão responsável por decidir definitivamente temas constitucionais,

ou seja, por ser o último a se manifestar em sede de controle difuso de

constitucionalidade. Portanto, não se defende uma revisibilidade ao infinito, mas

um mínimo que possa garantir aos órgãos responsáveis por determinadas

tomadas de decisão assumam seu respectivo papel, com respeito ao modelo

constitucional de processo, que legitima suas respectivas decisões. É o que

acontece com o STF que, apesar de ser o “guarda da Constituição”, se exime da

análise de questões constitucionais que não ultrapassem os “interesses

subjetivos da causa”, pela aplicação do instituto da repercussão geral.

29) Diante disso, conclui-se que as atividades legislativa, administrativa e

jurisdicional, comprometidas com a democracia, devem se preocupar com a

legitimidade de suas construções, em uma compreensão participativa. Qualquer

desconsideração em relação aos princípios que integram o modelo constitucional de

processo, fere o devido processo legal, ainda que em busca de uma pretensa “paz

social” por meio de procedimentos céleres, mesmo que implementada via emenda

constitucional, como aconteceu com o instituto da repercussão geral.

30) A repercussão geral restringe o espaço recursal inviabilizando a

argumentação jurídica o que, em um Estado Democrático de Direito, acarreta a

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restrição do princípios do contraditório e da ampla argumentação, implementadores

do discurso e legitimadores das decisões.

31) Os instrumentalistas sustentam que qualquer restrição ao duplo grau de

jurisdição no processo penal se configuraria inconstitucional. Entretanto, admitem a

repercussão geral no microssistema do processo penal, o que se traduz em um

verdadeiro paradoxo.

32) O modelo constitucional de processo consiste em um modelo único de

tipologia plúrima, com especificidades em função das suas características da

expansividade, variabilidade e perfectibilidade. O processo penal, portanto, é uma

dessas plúrimas tipologias, de maneira que as reformas processuais que atinjam o

microssistema do processo penal devem se compatibilizar com o modelo

constitucional de processo. Entretanto, não acontece tal compatibilização com o

instituto da repercussão geral, que, caso aplicado indiscriminadamente no processo

penal, termina por ferir o direito constitucional ao recurso nesse microssistema.

33) O microssistema do processo penal visa amparar o direito fundamental à

liberdade, para isso instituindo especificidades, que consistem nas garantias

relacionadas à liberdade individual, ao princípio do estado de inocência e ao

princípio do in dubio pro reo. Dessa forma, em um viés democrático, o microssistema

do processo penal visa não simplesmente a aplicação da sanção penal, mas a

reconstrução fática e a garantia do direito de liberdade do acusado.

34) No processo penal, contraditório e ampla argumentação são mais amplos

e dilatados, para viabilizarem a especificidade da não-culpabilidade. Isso permite

concluir que restrição recursal no processo penal fere o modelo constitucional do

microssistema, pois, enquanto não transitada em julgado a decisão, presume-se

inocente o acusado.

35) A restrição recursal imposta pelo instituto da repercussão geral das

questões constitucionais fere o microssistema do processo penal. O instituto foi

pensado para o processo civil, tanto que procedeu à inclusão, pela Lei n.° 11.418/06,

dos arts. 543-A e 543-B no CPC. Para fazer frente ao problema do abarrotamento de

processos, principalmente na faticidade paulista, ressuscitou-se o filtro recursal da

repercussão geral e o aplicou irrestritamente a todos os microssistemas processuais.

36) O juízo de admissibilidade positivo quanto ao instituto da repercussão

geral não fere o modelo constitucional de processo, nem tampouco as

especificidades do microssistema do processo penal.

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37) Problema grave é constatado quando uma decisão nega acesso aos

órgãos jurisdicionais por desconhecer repercussão geral das questões

constitucionais penais discutidas no caso. O não reconhecimento da repercussão

geral das questões penais discutidas no caso concreto se traduz em inaplicabilidade

de direitos fundamentais, vez que despreza o direito à liberdade do acusado,

ultrajando as especificidades do processo penal (princípio do estado de inocência e

princípio do in dubio pro reo), bem como desconsiderando a própria razão de

existência desse microssistema, qual seja, o resguardo à liberdade individual. A

decisão que nega seguimento a recurso extraordinário por ausência de repercussão

geral é manifestamente inconstitucional, pois agride o modelo constitucional de

processo.

38) No Direito Processual ou no Direito Penal, qualquer questão deve ter

reconhecida sua repercussão geral para que haja respeito ao modelo constitucional

de processo e para que não se repita o esmagamento da autonomia privada em

nome da supremacia do interesse público, como aconteceu no Estado Social. Os

defensores da repercussão geral são contraditórios ao sustentar o instituto pela

supremacia do interesse público sobre o privado, uma vez que qualquer sanção

penal só se aplica pelo processo penal, o que faz com que as questões discutidas

no microssistema sejam também afetas à autonomia pública.

39) Outra incompatibilidade da repercussão geral com o Estado Democrático

de Direito, no que tange ao microssistema do processo penal, é aferível pela análise

do próprio texto da Lei n.° 11.418/06. Não há possibilidade de se demonstrar

repercussão geral em questões que, em princípio, tratam de liberdade individual.

Somente com fundamento na inadequada teoria do processo como relação jurídica

poderia o juiz, de forma solipsista e subjetivista, entender que temas que restringem

a liberdade de um cidadão ultrapassam os “interesses subjetivos da causa”. Apesar

do STF, até o presente momento, ainda não ter negado seguimento a qualquer

recurso extraordinário por ausência de repercussão geral, em um Estado

Democrático de Direito a decisão não pode depender da atitude solipsista do juiz,

que deve completar o conteúdo do texto legal, pois conceito jurídico indeterminado

define o instituto.

40) Pensar um leitura adequada do instituto da repercussão geral das

questões constitucionais significa não compactuar com sua aplicabilidade no

microssistema do processo penal, quando servir para obstar recurso extraordinário.

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Permitir a aplicação constitucionalmente adequada do instituto da repercussão geral

no processo penal é conceber a possibilidade de vilipêndio ao modelo constitucional

de processo.

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