representaçao pitkin

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    R E PR E SE N TA C AO : PA lAV RA S , IN S T IT U IC O E S

    E ID E IA S *

    H a nn a F e n ic h e l P itk in

    As palavras e 0 mundo mudam juntos, mas nao em sim-

    ples correlacao direta. Quando imaginamos a introducao

    de uma palavra nova, tendemos a pensar em exemplos

    tais como 0 explorador dando nome a urn local recern-descoberto, ou 0 qufmico preparando uma substancia

    recern-descoberta ou recern-criada. Mas esses exemplos

    sao profundamente enganosos, pois a maio ria das palavras

    nao sao nomes; e os seres humanos podem, com a mesma

    facilidade, discursar sobre 0 que existe e 0 que nao existe.

    No campo dos fenomenos sociais, culturais e politicos, a

    relacao entre as palavras e 0 mundo e ainda mais com-plexa, pois esses fenomenos sao constituidos pela conduta

    humana, que e profundamente formada pelo que as pesso-as pensam e dizem, por palavras. Entao, para compreender

    * Originalmente "Representation", publicado em Terence Ball;James Farr; RussellHanson (orgs.). Political innovation and conceptual change. Cambridge, CambridgeUniversity Press, 1989. Agradecemos a autora pela gentil permissao de publicar estetexto em Lua Nova, e Cambridge University Press pela cessao dos direitos. E somosgratos a generosa disposicao de Wagner Pralon Mancuso e Pablo Ortellado, profes-sores da Escola de Artes e Humanidades da USP,de traduzir 0 original.

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    como as palavras e 0 mundo mudam juntos, deve-se olhar ever casos particulares, para tomar emprestada uma famosaexpressao de Wittgenstein (1968: 66).

    o conceito de representacao e urn caso instrutivo por-que seu significado e altamente complexo e, desde muitocedo na hist6ria dessa familia de palavras, tern sido alta-

    mente abstrato. E, assim, urn corretivo util para nossas fan-tasias sobre exploradores e qufmicos. A representacao e,

    em grande medida, urn fenomeno cultural e politico, urn

    fenomeno humano. Desse modo, 0 "mapa semantico" das

    palavras inglesas da familia "represent-" nao correspondebern ao "mapa semantico" de termos cognatos ate mesmo

    em outros idiomas muito pr6ximos ao Ingles. Por exemplo,a lingua alema tern tres palavras - ver treten, da rs te llene reprd:sen tieren - que geralmente sao traduzidas pela palavra ingle-sa "rep resen t". Darstellensignifica "retratar" ou "colocar algono lugar de"; vertreten significa "atuar como urn agente para

    16 alguem". 0 significado de reprdsentieren e pr6ximo ao de ver-treten, mas e mais formal e possui conotacoes mais elevadas(te6ricos alernaes da politic a, as vezes, argumentam que

    meros interesses privados egofstas podem ser vertreten, maso bern comum ou 0 bern do Estado devem ser rep ra sen tierts .Entretanto, 0 significado de reprdsentieren nao e, de formaalguma, pr6ximo aquele de darstellen. Entao, para quem falaem ingles 0 modo pelo qual uma pintura, urn pintor ou urn

    ator de palco representam, e 0 modo pelo qual urn agen-te ou urn legislador eleito representam, obviamente, estao

    ligados ao mesmo conceito. 0 mesmo nao acontece para

    quem fala em alemao. A hist6ria da representacao legal,

    artistica, politic a e de outros tip os de representacao entre

    1. Esse exemplo e retirado de meu livro Wittgenstein and Justice (Pitkin, 1972).Grande parte do restante deste ensaio e retirada, com pequenas revisoes, de meulivro The Concept of Representation (Pitkin, 1967).

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    povos que falam alernao tambem difere, e claro, da hist6-

    ria correspondente entre povos que falam Ingles, mas naode uma maneira que corresponda de forma pura e simples

    aquelas diferencas semanticas.Contar toda a hist6ria do conceito de representacao exi-

    giria detalhados relatos paralelos de hist6ria verbal e social,

    politica e cultural, tarefa que em muito ultrapassa 0 escopo

    deste ensaio. Seu foco e limitado principalmente a hist6riaetimo16gica, com incursoes ocasionais na hist6ria sociopo-

    lftica; e seu interesse primario esta na representacao polfti-

    ca, embora aquele foco seja tratado em relacao aos muitosoutros campos de significado dessa familia de palavras.

    Embora os gregos antigos tivessem varias instituicoese praticas as quais aplicarfamos a palavra "representacao",

    eles nao tinham palavra ou conceito correspondente. 0

    termo e de origem latina, embora tambern em latim seu

    significado original nao tivesse a ver com agencia, governo,

    ou quaisquer instituicoes da vida roman a que poderfamos 17considerar como exemplos de representacao. A palavra

    latina repraesentare significa "tornar presente ou manifes-to; ou apresentar novamente", e, no latim classico, seu uso

    e quase inteiramente reservado para objetos inanimados(Lagarde, 1937; Hauck, 1907: 479). Pode significar torna-los literalmente presentes, traze-los a presen

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    Na Idade Media, a palavra e estendida na literatura daCristandade a urn tipo de encarnacao mfstica, "aplicada acomunidade crista em seus aspectos mais incorporeos'". Massua real expansao comeca no seculo XIII e no infcio do secu-10 XIV, quando se diz com frequencia que 0 papa e os car-deais representam a pessoa de Cristo e dos apostolos", A cono-tacao ainda nao e de delegacao, nem de agencia, os lfderesda Igreja sao vistos como a encarnacao e a imagem de Cristoe dos ap6stolos, e ocupam seus lugares por sucessao. Ao mes-mo tempo, juristas medievais comecam a usar 0 termo para

    a personificacao da vida coletiva. Uma comunidade, emboranao seja urn ser humano, deve ser vista como uma pessoa(persona repraesentata, repraesenta unam personam, unium perso-nae repraesentat vicem). A enfase esta na natureza ficticia daconexao: nao se trata de uma pessoa real, mas de uma pessoaapenas por representacao (persona non vera sed repraesentate).

    Enquanto isso, ha uma ideia presente entre os glosa-18 dores, derivada do direito romano, de que 0 principe ou 0

    imperador atua pelo povo romano, ocupa seu lugar, cuidade seu bem-estar. No seculo XIII, os canonistas comecam aado tar essa ideia, a aperfeicoa-la, desenvolve-la e aplica-Ia avida religiosa comunal. Todavia, nem os glosadores nem oscanonistas us am a palavra "representacao" ao desenvolveressas ideias presentes no direito romano. 0 paralelo com 0

    pensamento eclesiastico aleg6rico, porem, e suficientemen-

    te pr6ximo, de modo que em meados do seculo XIII, urnescritor familiarizado com as duas disciplinas podia argu-mentar que 0 magistrado representa a imagem de todo 0

    Estado". Aqui, a representacao de tipo aleg6rico ou imageti-co e aplicada a urn magistrado secular".

    2. Lagarde (1937: 429n.), traducao minha. Ver tambem Tierney (1955: 4, 34-36,45).

    3. Minha inforrnacao neste paragrafo, e no seguinte, vern de Lagarde (1937).

    4. Roffredus, Quaestiones Sabbathinae, citado por Lagarde (1937: 429n). Georges deLagarde descobriu uma passagem muito interessante nos escritos de urnjurista do

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    Urn desenvolvimento semelhante parece ter ocorrido

    no frances. Pelo menos de acordo com 0 Liitri, a palavrarepresenter era usada para imagens e objetos inanimados queencarnam abstracoes, muito antes de vir a significar algo

    como uma pessoa agindo por outras". Mas, no seculo XIII,

    pode-se falar de urn encarregado representando a pessoa

    de seu senhor.

    A mesma sequencia de desenvolvimento tambem ocorre

    na lingua inglesa, depois do aparecimento da palavra "repre-sent", provavelmente no final do seculo XI\Il. Naquele pon-

    to, de acordo com 0 Oxfo rd Eng lish D ictiona ry,a palavra signi-fica "trazer a pr6pria pessoa, ou outra pessoa, a presen

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    alguem"; "simbolizar ou encarnar concretamente"; "trazer

    a mente". 0 adjetivo "representativo" significa "que servepara representar, figurar, retratar ou simbolizar". Durante 0

    seculo XV, 0 verbo "representar" passa a significar tambem

    "retratar, figurar, ou delinear". Ele passa a ser aplicado a

    objetos inanimados que "ocupam 0 lugar de ou correspon-

    dem a" algo ou alguem. E tambem significa "produzir uma

    peca", aparentemente urn tipo de figuracao no palco. Ao

    mesmo tempo, surge 0 substantivo "representacao", que sig-

    nifica "imagem, figura ou pintura". Os seres humanos nao

    estao completamente ausentes desses primeiros usos; elesaparecem de duas maneiras. Em primeiro lugar, a represen-

    tacao pode ser urn objeto inanimado ou uma imagem subs-

    tituindo urn ser humano. Em segundo lugar, representar euma atividade humana, mas nao urn agir para outros; e aatividade de apresentar, de figurar, de pintar urn quadro ou

    encenar uma pe

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    quais pudesse ser empregado representar no sentido de

    "atuar para", nao tenham sido escritas em ingles ate esse

    momenta tardio, nem mesmo na Inglaterra. Em vez disso,

    tais escritos podem ter sido formulados em latim ou frances.

    Embora urn estatuto de 1362 determinasse que 0 ingles fos-

    se usado nas cortes judiciais, os registros das decisoes de tri-

    bunal ate 1500 ainda estao em frances". E os estatutos foramescritos em latim por todo 0 seculo XV lO A peticao escrita

    em ingles mais antiga que se conhece e de 1414 (Chrimes,1936: 132).

    Para compreender como 0 conceito de representacaoentrou no campo da agencia e da atividade politica, deve-

    se ter em mente 0 desenvolvimento hist6rico de institui-

    coes, 0 desenvolvimento correspondente no pensamento

    interpretativo sobre aquelas instituicoes e 0 desenvol-

    vimento etimol6gico dessa familia de palavras. Hoje em

    dia e amplamente aceito que a convocacao de cavaleirose burgueses para reunirem-se no Parlamento com 0 Rei 2 1e os lordes comecou como uma questao de conveniencia

    administrativa e politic a para 0 Rei!'. Os cavaleiros e os

    burgueses iam ao parlamento para dar consentimento a

    cobranca de tributos, para dar informacoes, para "trazer 0

    registro" dos tribunais locais em casos de disputa judicial,

    e para levar inforrnacoes de volta as suas comunidades

    (Cam, 1944, capitulo 15; MacIlwain, 1932: 669; Chrimes,

    1936: 142-145). Inicialmente, 0 ponto crucial era que elesfossem ao Parlamento com autoridade para obrigar suas

    9. Alei esta em Lodge e Thornton (1935: 268). Stanley Bertram Chrimes (1936) apre-

    senta excertos de Year Book Cases ao longo do seculo XV,todos ainda em frances.

    10. Por exemplo, aquelas citadas em Lodge e Thornton (1935).

    11. Para uma discussao clara das teorias alternativas, veja MacIlwain (1932) e Cam

    (1944, capitulo15). 0 ato e evidenciado pela relutancia de antigos cavaleiros eburgueses em servir no Parlamento: Pollard (1926: 109, 158-159); Beard e Lewis

    (1932: 230-233); Ford (1924: lOIn.); Hogan (1945: 142-143).

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    comunidades a pagar os tributos que seriam cobrados.

    Urn pouco mais tarde, eles comecaram a ser usados pelas

    comunidades como urn meio de apresentar queixas ao

    Rei, e houve tentativas de insistir na solucao dessas queixas

    antes de dar consentimento a impostos. Com esse desen-

    volvimento comecou urn reconhecimento gradual de que

    o membro poderia promover 0 interesse de sua comunida-

    de, alem de compromete-la com 0 pagamento dos tributos

    (Cam, 1944: cap. 15; Pollard, 1926: 158-159). Os cavalei-

    ros e os burgueses que iam ao Parlamento comecaram a

    ser vistos como servidores ou agentes de suas comunida-des. Eles eram pagos pelas comunidades e, quando retor-

    navam, podiam ser solicitados a pres tar contas do que

    haviam feito no Parlamento (Cam, 1944, capftulos 15 e 16,

    especialmente as paginas 230-232; McKisack, 1932: 82-99;

    Brown, 1939: 23-24; e Emden, 1956: 12). Eles iam ao Parla-

    mento com autoridade para comprometer suas comunida-

    2 2 des, mas com frequencia havia limites especfficos para essaautoridade, ou entao esta vinha acompanhada de instru-

    coes. E alguns membros tinham que consul tar suas comu-

    nidades antes de dar consentimento a urn tributo atfpico

    (McKisack, 1932: 130).

    Do seculo XIV ao seculo XVII, houve urn desenvolvi-

    mento gradual da acao unificada de cavaleiros e burgue-

    ses no Parlamento": Eles descobriram que tinham queixas

    comuns, e comecaram a apresentar peticoes comuns, emvez de apresentar apenas peticoes separadas. Eles passaram

    a ser chamados de "membros" do Parlamento. Essa acao

    conjunta avancou passo a passo com uma consciencia cres-

    cente de si mesmos como urn corpo unico. Os parlamentos

    duravam mais, os membros eram reeleitos e, assim, passa-

    12. Sobre este desenvolvimento, ver MacIlwain (1932: 671-673); Brown (1939: 25,

    32,36); De Grazia (1951: 14-18); Chrimes (1936: 131); Bailey (1835: 3); Leibholz

    (1929: 54-55); Pease (1916: 25-26); Hatschek (1905: 241).

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    yam a conhecer uns aos outros e a trabalharem juntos. Sua

    acao conjunta freqiientemente era em oposicao ao Rei, e,

    agindo como uma corporacao, eles encontravam forca para

    oporem-se ao Rei. Esse desenvolvimento culminou no peri-

    odo da Guerra Civil, do Protetorado e da Republica (Com-monwealth), quando nao havia Rei ao qual se opor ou com 0

    qual consentir. Repentinamente, havia apenas 0 Parlamento

    para governar a nacao e para escolher 0 lider do governo,

    em nome da nacao.

    o desenvolvimento da teoria politic a, de interpretacoesa respeito do que 0 Parlamento estava fazendo, acompa-nhou os desenvolvimentos que ocorriam na realidade. Ini-

    cialmente, os cavaleiros e os burgueses eram vistos como os

    servidores, ou delegados, ou procuradores de suas comuni-

    dades (Cam, 1944: caps. 15 e 16; Chrimes, 1936: 131-133;

    Luce, 1930: 434). Eles nao eram chamados de representan-

    tes porque a palavra ainda nao tinha aquele significado; dos

    advogados em tribunal tambem nao se dizia que represen- 2 3tavam. No seculo XV, a medida que os Comuns passaram aatuar como urn corpo unificado, os membros do Parlamen-

    to ocasionalmente eram mencionados como, em conjunto,

    "procuradores e delegados de todos os condados (... ) e de

    todas as pessoas do pais" (Chrimes, 1936: 131; a citacao ede 1407). Eles comecaram a se ver, e a serem vistos, como

    aqueles que "vinham pela comunidade do lugar" ("were com-

    men for the communalte of the Londe') (Chrimes, 1936: 132; acitacao e de cerca de 1470). Essa ideia ainda e compativelcom a visao segundo a qual cada membro fala por seu dis-

    trito particular; 0 grupo, assim, erige-se no equivalente de

    toda a nacao. A elaboracao adicional de que cada membro

    do Parlamento atua para a nacao como urn todo veio ain-

    da mais tarde. Esse principio foi reconhecido no inicio do

    seculo XVII, quando Coke escreveu nos Institutes: "observe-se que, embora [0 membro do parlamento] seja escolhidopor urn condado ou comunidade particular, quando ele e

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    enviado ao Parlamento, e nele obtem assento, ele serve ao

    pais como urn todo, pois a finalidade de sua ida para la egeral, como esta escrito no documento de sua eleicao"!".

    Essas visoes em mudanca sobre a funcao dos membros

    do Parlamento ligaram-se a duas outras tradicoes de pen-

    samento: a ideia de que todos os homens estao presentes

    no Parlamento, e a ideia de que 0 govern ante simboliza ou

    encarna 0 pais como urn todo. A primeira ideia e , essencial-mente, uma ficcao legal, que provavelmente se originou na

    doutrina medieval quod omnes tangit, vinda do direito roma-

    no, segundo a qual as partes que tern direitos legais emjogo numa acao judicial tern direito a estar presentes ou,

    ao menos, serem consultadas na decisao da acao (Pitkin,

    1967: cap. 4, especialmente nota de rodape n. 89). Assim, a

    suposicao era que 0 Parlamento, considerado urn tribunal

    e nao uma agencia legislativa, tinha 0 consentimento e a

    participacao de todos os contribuintes. No seculo XIV, urn

    24 juiz poderia argumentar que nao ha desculpas para a igno-rancia da lei, posto que todos sao considerados presentes

    quando 0 Parlamento atua (ibid.). E claro que essa nao euma doutrina democratica da epoca.

    A outra ideia que vern para enriquecer a tradicao de

    pensamento sobre 0 Parlamento e a ideia de que toda a

    13. Sir Edward Coke (1809, capitulo 1: 14). Hi (compreensivelmente) muito de-sacordo a respeito de quando, exatamente, surgiu essa doutrina. Hatschek (1905:238) apresenta uma passagem da historia parlamentar de 1415 que parece arti-cular a doutrina. Hallam (1871: 265) data a doutrina de urn debate parlamentarde 1571. Nao obstante, entre os escritores que nao citam urn unico exemplo es-pecifico, existe uma variacao consideravcl no que se refere ao periodo em que osmembros do Parlamento pensaram em si mesmos, pela primeira vez, atuando portoda a nacao. Chrimes (1936: 131) sugere 0 seculo XV;Brown (1939: 24-25) 0 se-culo XVII; Emden (1956: 5) 0 seculo XVIII.A idcia deve ter surgido gradualmen-te, e poderiamos esperar encontrar exemplos dela quando ela nao era, de formaalguma, a principal doutrina constitucional. Os primeiros exemplos de Hatscheke Hallam parecem limitados porque cada urn deles ocorre em urn contexto muitoespecifico. 0 exemplo de Coke e 0 primeiro que encontrei em que a doutrina earticulada de forma clara e ampla como principio constitucional.

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    nacao esta, de alguma forma, encarnada em seu governante,

    assim como a Igreja esta encarnada em Cristo ou no Papa,

    depois Dele. Esta e uma concepcao medieval e mfstica: 0Rei nao e apenas a cabeca do corpo da nacao, nem ape-nas 0 proprietario de todo 0 reino; ele Ii a coroa, 0 reino, a

    nacao!'. A ideia vai alem da representacao ou da simboliza-

    cao como n6s agora as concebemos e envolve uma unidade

    mfstica que "a analise te6rica dificilmente po de separar"15.

    A palavra latina repraesentare passa gradualmente a ser uti-lizada em conexao com esse conjunto de ideias. Entao, amedida que a autoridade do Parlamento cresce, e seu papelem declarar a lei e reconhecido mais amplamente, essaposicao simb6lica e atribuida conjuntamente ao Rei-no-Par-lamento, como urn corpo ou corporacao unicos (Wilkin-

    son, 1949: 502-509; Brown, 1939: 29; Hatschek, 1905: 239).Assim, 0 Rei-no-Parlamento que governa 0 reino tambem e

    visto como seu equivalente mfstico, ou encarnacao.Essas ideias e doutrinas variadas convergem de forma 2 5

    muito natural. 0 Rei-no-Parlamento e 0 equivalente misti-co ou a encarnacao de todo 0 reino, e todos que vivem no

    reino devem ser considerados presentes no Parlamento. Os

    Lordes, os bispos e 0 pr6prio Rei estao presentes em pessoa;

    os Comuns como urn todo (como uma ordem, por certo tem-po) estao presentes por meio de seu grupo de procuradores

    (Chrimes, 1936: 81-126). Finalmente, concebe-se que todo

    cavaleiro ou burgues atua para todas as pessoas comuns, epara 0 reino todo.

    Urn born resumo do estado a que essas ideias tinham

    chegado em 1583 pode ser encontrado no livro De repub lica

    14. Gierke (1913, parte 2, capitulo 4); ver tambem, de modo mais geral, Gierke(1881); Kern (1939, parte 1); Hauck (1907); Hintze (1929-1930: 230); Lagarde(1937); Lewis (1954, vol. I: 195, 242, 263-264; vol. II: 415); Kantorowicz (1957).

    15. Kern (1939: 141). Cf. Clarke (1936: 290), que diz que a idcia "resistc a analise";e Wolff (1934: 13-16).

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    Anglorum, de Sir Thomas Smith, publicado naquele ano".A obra de Smith tambern e uma das primeiras aplicacoes

    conhecidas da palavra inglesa "represent' ao Parlamento.Smith utiliza a palavra uma vez s6, mas a utiliza num ponto

    crucial, ao escrever sobre "0 Parlamento da Inglaterra, que

    representa e tern 0 poder de todo 0 reino, tanto a cabe-

    ca quanto 0 corpo. Pois, entende-se que todo ingles esta

    presente ali, seja em pessoa, seja por procuracao ou por

    meio de delegados (... ) eo consentimento do Parlamento

    e considerado como 0 consentimento de todos os homens"

    (Smith, 1906: 49). Smith afirma que 0 Parlamento represen-ta todo 0 reino (ou representa 0 poder de todo 0 reino?),

    mas ele nao aplica a palavra aos membros do Parlamento,

    ou aqueles membros em particular que estao no Parlamen-

    to como procuradores e delegados para os Comuns. Este

    parece ser 0 padrao em todas as primeiras aplicacoes da

    palavra as instituicoes parlamentares da Inglaterra; e 0 Par-26 lamento como urn todo (freqiientemente incluindo 0 Rei)

    que representa 0 reino todo.

    Quase meio seculo se passa, depois da obra de Smith,

    ate que se diga novamente que 0 Parlamento "representa",

    mas nesse interim comeca urn florescimento notavel de sig-

    nificados e formas nessa familia de termos. Particularmen-

    te, no segundo quartil do seculo XVII, a familia "represent"

    ganha conotacao politica, sem duvida sob 0 estfrnulo da

    panfletagem e do debate politico que precedeu, acompa-nhou e sucedeu a Guerra Civil. Mas 0 florescimento nao

    e, de forma alguma, confinado a politica. No periodo que

    vai da obra de Smith ate a Revolucao Gloriosa, 0 ingles se

    enriquece com os termos "representatoi" (1607), "representant'(1622), "representee" (1624), "representance" (1633), "representa-tory" (1674), "representativer" (1676), "representamen" (1677),

    16. 0 trabalho foi concluido, de fato, em 1565.

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    alern de muitos significados novos para as palavras dessa

    familia que ja existiam. Obviamente, muitas dessas inova-

    coes nao foram mantidas no ingles moderno, e algumas

    delas nao perduraram alem do seculo XVII. Nao obstante,

    a politizacao da ideia de representacao parece ter ocorrido

    contra 0 pano de fundo de uma expansao geral e da fluidez

    nessa regiao conceitual.

    A evidencia etimol6gica nao e inteiramente clara, mas

    sugere que toda a familia de termos parece ter sido apli-

    cada primeiramente ao Parlamento como urn todo, ou aos

    Comuns como urn grupo". E os significados estao obvia-mente em transicao, do antigo "por-se em lugar de outros",pela via da substituicao, para algo como "atuar para outros".

    Os termos parecem ser utilizados, primeiramente, como

    uma expressao de - e como uma demanda por - autori-

    dade, poder e prestfgio. Que os Lordes fiquem cientes: os

    Comuns representam 0 reino todo. Que 0 Rei fique ciente:

    o Parlamento representa 0 reino. Em nenhum momenta 2 7durante esse perfodo tais palavras sao usadas para expressara relacao de urn membro individual dos Comuns com sua

    base particular, seu dever de obedecer aos desejos daquelesque representa, seu poder de compromete-los com decisoes

    tomadas, ou qualquer coisa do tipo. Existe, e claro, a ideiade que os membros do Parlamento sao delegados ou agen-

    tes de suas comunidades, mas ela nao e expressa pelo termo"representacao" .

    A mais antiga aplicacao que conheco do substantivo"representante" a urn membra do Parlamento ocorre em

    17. Chisholm (1910-1911: 109); Hintze (1929-1930: 235). Alguns escritores, en-tretanto, argumentam que 0 termo "representacao" foi aplicado em primeiro lu-gar as atividades de delegados e agentes; em seguida aos membros individuais doPariamento, a medida que eram concebidos como agentes; e apenas de formaderivada ao Pariamento como urn todo. Ver especialmente Hermens (1941: 5);Lewis (1877: 97-98). Talvez essas visoes se baseiem em certa confusao entre 0 usada palavra latina e da palavra inglesa nesse periodo.

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    1651, quando Isaac Pennington, 0 Jovem, escreve: "0 direi-

    to fundamental, seguran

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    H a n n a F e n ic h e l P i tk in

    "Diz-seque uma Republica (Commonwealth) se instituiu

    quando uma multidao de homens concorda e pactua, cada

    urn com 0 outro, que determinado homem, ou assembleia de

    homens, deve receber da maior parte 0 direito de apresentar

    a pessoa de todos eles, isto e , de ser seu representante; todos[...] devem autorizar todas as acoes ejulgamentos daquele

    homem, ou assernbleia de homens, como se fossem seus

    pr6prios." (Hobbes, 1839-1845,vol. III: 159-160)

    Essa acao solda a multidao de indivfduos em urn unico e

    duradouro todo, "a pessoa de todos". 0 soberano represen-ta aquela pessoa singular, publica; na verdade, e porque elea representa que ela po de ser considerada uma unidade.

    Pela definicao formalista de Hobbes, ao ser autorizado,

    o representante adquire novos direitos e poderes; 0 repre-

    sentado adquire apenas novas obrigacoes. Mas a medidaque 0 termo se aplicava a agencia individual, no uso comumdaquele tempo, ele certamente ja inclufa implicacoes 2 9de algumas obrigacoes ou padroes, restringindo 0 que 0

    representante como tal deveria fazer e como a atividade de

    representar deveria ser conduzida. Na verdade, apesar de sua

    definicao formalista, 0 pr6prio Hobbes ocasionalmente usa-

    va a palavra nessa acepcao comum. Assim, a despeito do fato

    de conscientemente pretender esse efeito, seu argumento

    politico sobre a soberania explora a discrepancia entre sua

    definicao formal e 0 uso comum. Ao chamar 0 soberano derepresentante, Hobbes constantemente sugere que 0 sobe-

    rano fara 0 que se espera que os representantes facam, nao

    apenas 0 que the satisfaz. No entanto, a definicao formal

    assegura que essa expectativa nunca pode ser invocada para

    criticar 0 soberano ou resistir a ele por nao representar seus

    suditos como deveria. Na verdade, na definicao explicita,

    nao existe algo como urn (nao) representar como se deoeria .Embora 0 desenvolvimento etimol6gico do conceito

    moderno de representacao, ao menos em seus aspectos politi-

    L ua N o va ,S ao P aulo , 67: 15-47 , 2006

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    camente significativos, estivesse essencialmente acabado antesdo final do seculo XVII, seu desenvolvimento na teoria poli-tica mal tinha comecado. Na teoria politic a, sua elaboracaocontinuou contra 0 pano de fundo das gran des revolucoesdemocraticas do final do seculo XVIII e depois das prolonga-das lutas politicas e institucionais do seculo XIX: 0 sufragio, adivisao em distritos e a proporcionalidade, os partidos politi-cos e os interesses e politicas, a relacao entre as funcoes legis-lativas e executivas e as instituicoes legislativas e executivas.Essas lutas politicas precipitaram urn corpo consideravel de

    literatura, sistematizada de tempos em tempos, enriquecidae redirecionada pela teoria politica. Desse material colossal,apenas duas questoes conceituais inter-relacionadas podemser discutidas aqui: a "polemic a sobre 0 mandato e a indepen-dencia" e a relacao entre a representacao e a democracia.

    A "polemic a sobre 0 mandato e a independencia" e urndaqueles debates te6ricos infindaveis que nunca parecem

    3 0 se resolver, nao importa quantos pensadores tomem posi-cao em urn lado ou no outro. Ele pode ser sintetizado nessaescolha dicot6mica: urn representante deve fazer 0 que seuseleitores querem ou 0 que ele acha melhor? A discussao nas-ce do paradoxo inerente ao pr6prio significado da repre-sentacao: tomar presente de alguma forma 0 que apesar dis-so ruio esta literalmente presente. Mas, na teoria politica, 0

    paradoxo e recoberto por varias preocupacoes substantivas:

    a relacao entre os representantes na legislatura, 0 papel dospartidos politicos, a medida em que os interesses locais eparciais se encaixam no bern nacional, a forma pela qual adeliberacao se relaciona com 0 voto e ambas se relacionamcom 0 exercfcio do governo etc.

    Sem duvida, 0 mais famoso porta-voz te6rico daquelesque, na polemic a, defendem a "independencia", e EdmundBurke, cujas perspectivas complexas e as vezes inconsisten-tes sao resumidas no discurso para seus pr6prios eleitoresem Bristol, aos quais disse:

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    H a n n a F e n ic h e l P i tk in

    "0 Parlamento nao e urn congresso formado porembaixadores de interesses diferentes e hostis, que cada

    urn deve susten tar como agente e advogado contra outros

    agentes e advogados. 0 Parlamento e uma assernbleiadeliberativa da nacao, com urn interesse, 0 interesse do todo

    - onde os preconceitos locais nao devem servir de guia,

    mas sim 0 bern geral, que resulta do juizo geral do todo. : I t

    verdade que os senhores escolhem urn membro; mas ele,

    uma vez escolhido, nao e urn membro de Bristol, e urnmembro do Parlamento". (Burke, 1949c [1774]: 116)

    Uma vez que a relacao de cada parlamentar e com anacao como urn todo, ele nao se encontra numa relacao

    especial com seu eleitorado; ele representa a nacao, nao

    aqueles que 0 elegeram.Esta posicao esta de acordo com 0 entendimento

    mais geral de Burke de que 0 governo e urn fiduciario

    (trusteeship): 3 1

    "0 Rei e urn representante do Povo; assim tambem sao oslordes; assim sao osjuizes. Eles sao todos fiduciaries do

    Povo, assim como os Comuns; pois nenhum poder e dadopara 0 bern exclusivo daquele que 0 recebe". (Burke, 1949b

    [1770]: 27-28)

    A consideracao mais importante e que os governantesdevem ser virtuosos e sabios, independente da forma como

    sao escolhidos. Mas a unica forma confiavel de produzir tal

    lideranca, acredita Burke, e 0 complexo sistema tradicio-nal de formacao, educacao e desenvolvimento de carater

    que ele associa com uma "aristocracia natural'

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    sentacao - a eleicao, a pr6pria existencia da Camara dos

    Comuns - nao parecem ter lugar.

    Mas essa nao e de forma alguma a totalidade da teoriade Burke sobre a representacao. Ele, apesar de tudo, atri-

    bui a Camara dos Comuns urn papel especial, defende par-lamentares eleitos, defende (em certa medida) a reforma

    parlamentar e a extensao do sufragio, e ap6ia a queixa das

    col6nias americanas de que eram oprimidas porque eram

    exclufdas da representacao. "Avirtude, 0 espfrito e a essen-

    cia da Camara dos Comuns", diz Burke, "consiste em ser

    capaz de ser a clara imagem dos sentimentos da nacao." Suatarefa nao e tanto a de governar quanto a de controlar 0governo em nome do Povo. "Ela nao foi criada para ser urn

    controle sabre 0 Povo [... J, mas urn controle para 0 Povo."E ela nao pode exercer essa funcao controladora a nao ser

    que seus membros "sejam eles mesmos controlados por seus

    eleitores" (Burke, 1949b [1770]: 28)

    32 Burke distingue entre 0 que chama de representacao"virtual" e "efetiva". A representacao efetiva significa ter voz,

    de fato, na escolha do representante. A virtual significa:

    "uma comunhao de interesses e uma simpatia de

    sentimentos e desejos entre aqueles que agem em nome

    de uma imagem qualquer do Povo e 0 Povo em cujo nome

    eles atuam, ainda que os fiduciaries nao sejam efetivamente

    escolhidos por eles". (Burke, 1949f [1792]: 495)

    Embora a doutrina da representacao virtual possa ser

    utilizada para combater a reforma eleitoral ou ampliacoes

    do sufragio, 0 pr6prio Burke a utilizava da forma contraria:

    para apoiar a extensao do sufragio para os cat6licos irlande-

    ses que, segundo ele, nao eram representados nem virtual-

    mente nem efetivamente, uma vez que aqueles que diziam

    representa-los nao compartilhavam nem seus interesses nem

    seus sentimentos e desejos. Onde quer que visse queixas reais

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    e praticas sem atendimento, Burke apoiava a reforma eleito-

    ral, mas se opunha a extensoes do sufragio baseadas apenas

    em algum principio abstrato ou no "direito natural".

    Burke nao pensa em "interesses" como algo pessoal

    e mutavel, como uma questao de escolha individual. Ele

    pensa em interesses relativamente pouco numerosos, em

    interesses amplos, fixos e objetivos que, juntos, formam 0

    bem-estar do todo. Esses interesses sao em grande medida

    economicos e sao associados a localidades especificas cujos

    meios de vida eles caracterizam. Ele fala de urn interesse

    mercantil, de urn interesse agricola, de urn interesse pro-fissional (mas tambem reconhece urn claro interesse dos

    cat6licos irlandeses como grupo). Uma localidade "compar-

    tilha" ou "participa de" tal interesse; nenhuma localidade

    ou individuo "tern" urn interesse.

    o representante e , sem diivida, urn porta-voz do inte-resse do seu distrito, por exemplo, do interesse mercantil,

    se ele representa Bristol. Mas isso nao significa que ele pre- 3 3cisa consul tar 0 povo de Bristol, nem que seus votos pre-

    cisam favorecer Bristol em detrimento da Cra-Bretanha. A

    consulta nao e necessaria porque os interesses sao objetivose completamente diferentes das opinioes. 0 representante

    deve a seus eleitores "devocao aos seus interesses antes quea sua opiniao'?'. De modo geral, as pessoas sabem quando

    algo vai mal em suas vidas, de forma que as informacoes

    sobre suas queixas e necessidades devem ser transmitidaspor urn representante que seja simpatico aos seus proble-

    mas; no entanto, quanto as causas e solucoes, as pessoas sao

    irremediavelmente ignorantes.

    As criaturas mais pobres, ignorantes e desinformadas da

    terra sao os juizes de uma opressao pratica. E uma questao

    21. Canavan (1960: 155). Veja tambcm Parkin (1956: 43); e 0 discurso de Burke

    ("Speech at the Conclusion of the Poll") citado em Hogan (1945: 189).

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    de sentimento; e como essas pessoas geralmente sentiram a

    maior parte daquela opressao, e nao sao de uma sensibilida-

    de demasiado delicada, essas pessoas sao os melhores jufzes.

    Mas quanto it causa real, ou ao remedio adequado, elas nuncadevem ser consultadas".

    Tampouco 0 representante e urn agente do interesseparticular no qual seu distrito participa, uma vez que a tarefa

    real da legislatura e a deliberacao e nao 0 voto. Os grandese verdadeiros interesses da nacao em principio se encaixam;

    e papel dos estadistas sabios e virtuosos descobrir como se

    encaixam, como as questoes existentes podem ser mais bernresolvidas. Quando terminarem de deliberar, 0 resultado

    dificilmente exigira 0 voto. 0 governo e uma questao derazao, nao de vontade; de tarefas, e nao de aritmetica.

    Burke tambern reconhece a existencia de uma interpre-

    tacao completamente diferente da representacao, que ele

    chama de "representacao pessoal": a representacao de cada

    34 pessoa individual por meio do sufragio universal em distri-tos eleitorais com base na populacao (Burke, 1949d [1782]:

    229). Burke rejeita enfaticamente essa interpretacao, como

    uma criatura da especulacao filos6fica abstrata fundada na

    ideia de direitos naturais.

    Mas a ideia de representacao pessoal triunfaria sobre a

    ideia burke ana de representacao de interesses fixos; mesmo

    no tempo de Burke, os te6ricos do liberalismo nos dois lados

    do Atlantico estavam articulando uma teoria da representa-cao de pessoas que tern interesses. Na America, representa-

    cao era claramente representacao de pessoas, e os interesses

    tornaram-se urn mal inevitavel, que deveria ser domestic ado

    por urn governo bern construfdo. Na Inglaterra, 0 utilitaris-

    mo nao apenas favorecia a representacao de pessoas como

    fazia do interesse urn conceito cada vez mais pessoal.

    22. Burke (1949f: 492-493). Veja tambcm Burke (1949b: 8; 1949g: 119; 194ge;393). Tambem Burkc (1963 [1763]:213); Gibbons (1914: 36); Parkin (1956: 39).

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    Alexander Hamilton,JohnJay eJames Madison, nos Arti-gas Federalis tas , apresentam 0 governo representativo comourn dispositivo adotado no lugar da democracia direta, por-

    que seria impossivel reunir urn grande mimero de pessoas

    em urn unico lugar. A representacao e assim urn "substitutopara 0 encontro pessoal dos cidadaos'?". Mas eles nao a con-sideram urn substituto men or; na verdade, ela promete pos-

    sibilidades sem precedentes para 0 governo da America.

    Para os autores de 0 Federalista, 0 conceito de interes-se e muito mais plural e instavel do que para Burke, e e

    essencialmente pejorativo. Interesses sao identificados com"faccao" e sao urn mal. Embora Madison reconhecesse urn"interesse agrario" e urn "interesse manufatureiro", eles

    poderiam ser subdivididos quase indefinidamente, e os

    agrupamentos economicos resultantes se entrecruzavam

    com outros agrupamentos "fundados em acidentais dife-

    rencas politicas, religiosas, de opiniao ou na ligacao pessoal

    com os lideres" (Madison, 1953 [1787]: 17, 42). Os interes- 35ses sao algo que as pessoas "sentem", e sao tao variaveis emutantes quanto 0 sentimento, que e fundamentalmentesubjetivo (Hamilton, Madison, eJay, 1948, n.> 10: 45).

    No entanto, 0 Federalista tambem admite a existenciade algo maior e mais objetivo, "0 bern publico" (Hamilton,

    Madison eJay, 1948, n.> 10: 45; veja tambem n.> 63: 324). Arepresentacao e superior a democracia direta precisamen-te porque pode assegurar 0 bern publico sem a distracaode varies interesses particulares conflitantes, ou "faccoes".Uma faccao e:

    "uma quantidade de cidadaos, que pode constituir a maioria

    ou a minoria do todo, que sao unidos e atuam por algum

    impulso comum de paixao, ou de interesse, contrario aos

    23. Hamilton, Madison e Jay (1948, n.? 52: 270). Os jornais apareceram original-

    mente em 1787 e 1788.

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    direitos dos outros cidadaos, ou ao interesse permanente e

    agregado da comunidade". (Hamilton, Madison eJay, 1948,

    n." 10: 42)

    Uma republica ou governo fundamentado na represen-

    tacao "promete a cura" para os males da faccao.

    Em primeiro lugar, a pr6pria representacao funciona

    como uma especie de filtro para refinar e amp liar as pers-

    pectivas do publico, ao passa-las por urn corpo eleito decidadaos, cuja sabedoria po de discemir melhor os verdadei-

    ros interesses de seu pais, e cujo patriotismo e amor pelajustica serao menos suscetiveis a sacrifica-la em nome deconsideracoes temporarias ou parciais. (Hamilton, Madison

    eJay, 1948, n.> 10: 45)Isso parece burkeano, mas Madison nao tern, na verda-

    de, muita confianca nesse mecanismo. "Nem sempre esta-

    distas esclarecidos estarao no comando" (Hamilton, Madi-

    3 6 son eJay, 1948, n.> 10: 44). Muito mais promissor eo fato darepresentacao tomar possivel uma republica grande. Numarepublica grande, os interesses serao multiples e diversos;portanto, sera menos provavel a combinacao de interessespara uma efetiva acao facciosa.

    Amplie a esfera e tera uma maior variedade de partidos

    e interesses; tornara menos provavel que a maio ria tenhaurn motivo comum para invadir os direitos dos outros cida-

    daos; ou, se urn tal motivo comum existir, sera mais diffcilpara aqueles que 0 sentem descobrir sua pr6pria forca e

    agir em concordancia".

    Para Madison, 0 perigo reside na acao politica, e a sal-

    vaguarda se encontra no empate de forcas. Os interesses

    24. Hamilton, Madison eJay (1948, n.? 10: 47). 0 mesmo argumento e feito nosn.OS51, 60 e 63, p. 267, 307, 323, e num discurso de Madison, em 6 de junho de

    1787, citado em Padover (1953: 18) e em Farrand (1927: 136,431). Cf. a interpre-tacao de Padover (1953: 17) e Riemer (1954: 37).

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    das faccoes devem ser "rompidos", "controlados" e "equi-

    librados" uns contra os outros para produzir "estabilidade"

    (Beer, 1957: 629; Padover, 1953: 17; De Grazia, 1951: 96, 99-

    100). Nos raros momentos em que se requer a acao publica,

    Madison admite que nao havera dificuldade em assegurar

    uma maioria substantiva para apoia-la, A representacao naoapenas torna possivel uma grande republica, mas e tam-bern urn meio de trazer conflitos sociais perigosos para urn

    f6rum central unico, no qual podem ser controlados e tor-

    nados inofensivos pelo equilfbrio. 0 equilfbrio necessario

    acontecera apenas se cada representante buscar de fato osinteresses dos seus eleitores.

    o conceito de interesse dos autores utilitaristas e ain-da mais subjetivo e, em ultima instancia, pessoal para cada

    individuo. De diversas maneiras, os utilitaristas argumen-

    tam que todo mundo sempre e, ou pelo menos a maior

    parte das pessoas normalmente e, motivada pelo interesse

    pr6prio, e que assim, segundo Bentham, "ninguem sabe 3 7o que e do seu interesse tao bern quanto voce mesmo'?".Segue disso que cada individuo e 0 melhor guardiao do seupr6prio interesse, seja porque os outros sao muito egoistas

    para defende-lo, seja porque nao podem conhece-lo.

    Isso parece tornar impossivel a representacao, mas essa

    nao e na verdade a conclusao a que chegam os utilitaris-tas. Todos eles reconhecem a existencia de urn interesse

    "comum", "universal" ou "geral", 0 bern de toda a socie-dade". As vezes Bentham diz que se trata simplesmenteda "uniao" ou da "soma de interesses dos varies membros

    que compoem" a sociedade; mas no contexto da legislacao,

    25. Bentham (1843g: 33; 1954: 438). Compare comJames Mill (1955: 69);John

    Stuart Mill (1947, capitulo 3: 208; 1947: 133; Bailey (1835: 68); Adam Smith (1937:497); Halevy (1955: 491); Stoke (1937: 80).

    26. Bentham (1843c: 2; 1843d: 269; 1843b: 446, 450-452); James Mill, citado em

    Ford (1924: 145);John Stuart Mill (1947, capitulo 6: 248, 255); Bailey (1835: 69,71,137); Halevy (1955: 15-17, 118-119,405,489-490). Cf. Ayer (1954: 255).

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    Bentham reconhece que cada pessoa tern tanto urn interes-

    se publico quanto privado, tanto urn interesse social quan-

    to urn auto-interesse". Os interesses public os ou sociais de

    cada urn resultam no "interesse universal"; os interesses

    privados ou os auto-interesses, nao. Infelizmente, a maior

    parte das pessoas prefere esses ultimos. As excecoes sao tao

    raras, diz Bentham numa comparacao reveladora, que "nao

    e razoavel esperar que haja tantos exemplos dessa excecaoquanto de loucura"?".

    Mas aqui intervem 0 legislador. Sua funcao e recompen-

    sar acoes socialmente desejaveis, mas nao atrativas do pontode vista individual, e punir as acoes socialmente indesejaveis

    e atrativas do ponto de vista individual, de forma que 0 inte-

    resse pr6prio se alinhe com 0 bern publico. 0 que motiva

    o legislador a fazer isso? Em seus primeiros escritos, Ben-

    tham parece imaginar urn legislador-mestre unico, hipote-

    tico (talvez ele mesmo), que seria urn daqueles raros indivi-

    38 duos genuinamente motivados pelo altrufsmo. Mas para 0Bentham dos ultimos escritos, e certamente para james e

    john Stuart Mill, 0 legislador e substituido pela legislaturaeleita e 0 altrufsmo deve ser substituido por mecanismos

    institucionais, em particular pela representacao.

    Uma vez que "a comunidade nao pode ter nenhum

    interesse em oposicao aos seus interesses",james Mill argu-

    menta que tudo 0 que e necessario e que "os interesses dosrepresentantes sejam identificados com os da sua comuni-dade'?". Mill acredita que isso po de ser conseguido, se hauma rotacao freqiiente nos cargos, de forma que os legis-

    ladores saibam que terao que viver sob as leis que formu-

    lam. Bentham acrescenta 0 "principio da deslocabilidade",

    27. Bentham (1843b: 453-455; 1843f: 6, 53, 60-62, 67; 1843e: 475; 1954: 428-433).

    Cf.John Stuart Mill (1947, capitulo 6: 248-255); Bailey (1835: 137).

    28. Bentham (1843f: 61). Veja tambem Bentham (1954: 432).

    29. Citado em Ford (1924: 146);James Mill (1955: 69).

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    a conhecida nocao de que os legisladores farao 0 que os

    eleitores querem, porque os legisladores querem ser reelei-

    tos (Bentham, 1843f: 63, 103, 118, 155). E, nesse contexto,

    Bentham afirma que os eleitores querem 0 interesse publi-

    co. Bentham estava impressionado com 0 exemplo da Ame-rica e 0 utilizou para provar, com base na experiencia, que

    "da parte dos eleitores - pelo rnenos, da parte da rnaioria

    deles - existe a disposicao de contribuir para a promocao do

    interesse universal, na rnedida em que seus votos podern

    contribuir" 30.

    Mas este e 0 mesmo Bentham que pensava que a loucu-ra era mais freqiiente que a disposicao de sacrificar 0 ego is -mo pelo interesse publico!

    John Stuart Mill debate-se com 0 mesmo dilema. Ele

    tambem acredita ser urn "fato universalmente observavel"

    que urn individuo ira preferir seus "interesses egoistas aque- 3 9les que compartilha com os outros, e ira preferir seu inte-

    resse imediato e direto aqueles indiretos e remotos" (John

    Stuart Mill, 1947, capitulo 6: 252). Na verdade, por esse

    mesmo motivo, Mill defendeu 0 governo representativo, 0

    sufragio universal e a representacao proporcional:

    "E irnportante que todos os governados tenharn voz nogoverno, porque e dificil esperar que aqueles que nao ternvoz nao sejarn injustarnente preteridos por aqueles que

    tern". (John Stuart Mill, 1874: 21)

    Ao mesmo tempo, Mill reconhece que urn governo

    representativo falhara em condicoes nas quais ninguem,

    ou apenas uma pequena fracao, sinta 0 grau de interesse

    30. Bentham (1843b: 455). Sobre os Estados Unidos, Bentham (1843b: 437, 445,

    447) e Halevy (1955: 412).

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    R e pre se n ta ga o: p a la vra s, in st itu ig oe s e id e ia s

    nos assuntos gerais do Estado necessario para a formacao

    de uma opiniao publica, [nas quais] os eleitores raramente

    farao qualquer uso do direito de sufragio senao para servir

    seu interesse privado, ou 0 interesse da sua localidade".

    As vezes, John Stuart Mill acredita que mesmo uma

    minoria de cidadaos com espirito publico seria suficiente se

    o sistema representativo fosse organizado de forma que os

    interesses egoistas fossem equilibrados igualmente, uns con-

    tra os outros, cada urn anulando 0 outro como nas faccoes

    de Madison. Mill define "classe" quase exatamente como

    Madison define faccao:

    4 0

    "Se consideramos como dasse, no sentido politico, uma

    quantidade qualquer de pessoas que tern urn mesmo

    interesse malefico - ou seja, cujo interesse dire to e aparente

    aponte para 0 mesmo genero de mas medidas; 0 objetivo

    desejavel seria que nenhuma dasse, ou combinacao

    provavel de dasses, fosse capaz de exercer uma influencia

    preponderante sobre 0 governo" 32.

    Entao, pode surgir uma minoria em cada classe cujo

    interesse de classe "esteja subordinado a razao, a justica eao bern do todo" e essas minorias juntas podem prevalecer

    sobre os interesses de classe empatados (John Stuart Mill

    1947, capitulo 6: 255).

    Assim, para todas as formas de liberalismo existe, nofinal, algo como urn interesse publico objetivo, que deve

    de alguma maneira incluir e abarcar 0 verdadeiro interesse

    pr6prio de longo alcance de cada urn. Dessa forma, apesar

    das alegacoes em contrario dos utilitaristas, cada individuo

    31.John Stuart Mill (1947, capitulo 4: 219). Novamente, em oposicao a Burke, os

    utilitaristas consideram 0 interesse como algo que as pessoas "sentcm".

    32. John Stuart Mill (1947, capitulo 6: 254-255). Cf. os "intcrcsscs maleficos" deBentham (1843b: 446, 450-451).

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    nao e 0 melhor juiz do seu pr6prio interesse. Na verdade, seo julgamento do interesse fosse verdadeiramente subjetivo

    e pessoal a cada individuo, uma representacao significativa

    seria impossivel.

    Essa e a posicao adotada por J ean-] acques Rousseau.Rousseau nao argumenta em termos de interesse, mas de

    vontade, e a vontade e verdadeiramente pessoal. Uma pes-soa po de ter vontade no lugar de outras, mas nao ha garan-

    tia de que essa vontade de urn coincidira com as vontades

    dos outros. Assim, as pessoas sao livres apenas quando se

    autogovernam; as pessoas sao obrigadas de forma legitim aapenas pelas leis que elas "ratificaram pessoalmente", pelas

    leis aprovadas por sua pr6pria vontade expressa em partici-

    pacao direta (Rousseau, 1974: 260).

    Evidentemente, 0 publico tern que ter varies magistra-

    dos que 0 "representam" exercendo tarefas administrativas,

    judiciais e executivas, mas "0 Povo, em sua funcao legislati-

    va, nao pode ser representado" (Rousseau, 1974: 261). Logo 4 1que 0 povo introduz a representacao legislativa, ele deixa

    de ser livre. Assim,

    "0 povo ingles pensa ser livre e muito se engana, pois so 0

    e durante a eleicao dos membros do Parlamento; uma vezestes eleitos, ele e escravo, nao e nada. Durante os brevesmomentos da sua liberdade, 0 usa que dela faz, mostra que

    merece perde-la." (Rousseau, 1974: 260)33

    De modo geral, pensadores posteriores ignoraram a

    perspectiva de Rousseau, considerando-a bizarra e idiossin-

    cratica. Quase ninguem que apoiava a democracia duvidava

    que a representacao era a sua forma moderna, seu equiva-

    33. Nota do tradutor: a passagem citada do livro Do contra to socialfoi diretamenteextraida da traducao brasileira de Lourdes Santos Machado (1973: 108).

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    lente indireto. Se 0 governo representativo tinha defeitos,

    esses defeitos eram atribufdos ao sistema eleitoral particu-

    lar, ao sistema partidario ou a exclusao de algum grupo dosufragio. Mesmo a maior parte dos crfticos socialistas da

    democracia liberal nao questionou a representacao em si,

    mas a sua autenticidade sob 0 capitalismo.

    Apenas em decadas recentes alguns pensadores nova-

    mente comecaram a questionar esses pressupostos, reani-

    maram aquelas poucas e debeis vozes - algumas socialistas,

    outras anarquistas, todas mais ou menos bizarras e desvian-

    tes - que continuavam a desafiar a pr6pria ideia de represen-tacao, a desafiar nao apenas sua superioridade em relacao ademocracia participativa direta, mas mesmo sua capacidade

    de substituir 0 velho ideal. Esses pensadores tern sugerido

    que a participacao no poder publico e a responsabilidade

    podem ter urn valor intrfnseco e nao apenas instrumental,

    necessario, portanto, ao bern da vida e ao pleno desenvol-

    42 vimento dos seres humanos. Eles tern sugerido que apenasurn povo ativo e com envolvimento politico e livre e queas instituicoes representativas, inicialmente projetadas para

    abrir 0 dominio publico para 0 povo comum anteriormente

    exclufdo, tern, de fato, servido para desencorajar a cidada-

    nia ativa.

    Enquanto a politic a e igualada ao governo e 0 governo evisto como urn meio para a realizacao de fins privados e para

    a conciliacao de reivindicacoes privadas conflitantes numaforma geral aceitavel, as instituicoes representativas correta-

    mente elaboradas podem servir muito bern a esses prop6si-

    tos. Mas se sua funcao real e a de dirigir nossa vida publicacompartilhada e se seu valor real reside na oportunidade de

    dividir poder e responsabilidade sobre aquilo que estamos

    fazendo conjuntamente como sociedade, entao ninguem

    mais pode fazer minha polftica "por" mim e a representacao

    pode significar apenas, na maior parte das vezes, a exclusao

    da maioria das pessoas dos beneffcios da politica.

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    Assim, Hannah Arendt (1965: 239) argumentou que a

    questao da representacao, uma das questoes cruciais e mais

    problematicas da politica moderna desde as revolucoes [do

    seculo XVIII], na verdade implica nada menos que uma

    decisao sobre a dignidade do pr6prio dominio politico.

    Apenas a participacao democratic a direta proporciona

    uma alternativa real para 0 dilema entre mandato ou inde-

    pendencia, no qual 0 representante ou e urn mero agen-

    te de interesses privados ou e urn usurpador da liberdadepopular periodicamente eleito. No primeiro caso, absolu-

    tamente ninguem tern acesso a vida publica, ja que nao hanenhuma. No segundo, a antiga distincao entre govern ante

    e govern ado [...] venceu outra vez; uma vez mais 0 povo naoe admitido no domfnio publico, uma vez mais os assuntosde governo se tornaram 0 privilegio de poucos [... ] Como

    resultado, 0 Povo ou deve afundar numa "letargia, precur-

    sora da morte da liberdade publica" ou deve "preservar 0

    espfrito de resistencia" diante de qualquer governo que 43tenha eleito.ja que 0 unico poder que conserva e "0 poderreserva da revolucao". (Arendt, 1965: 240)

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    )REPRESENTACAo: PALAVRAS , IN STITU ICOES E IDEIA S

    H A N N A FE N IC H E L P IT K IN

    Em argumento reconstrutivo, baseado em abordagem pr6-

    pria a filosofia da linguagem, a autora lanca mao das trans-formacoes seculares nos usos da fala, nas cristalizacoes ideo-

    16gicas no plano da filosofia polftica e nas praticas hist6ricas

    de representacao polftica para mostrar a emergencia das

    feicoes distintivas da representacao mode rna.

    Palavras-chave: Parlamento; Representacao moderna; Demo-

    cracia; Liberalismo.

    REPRE SENTAT ION : WORDS , IN ST ITUT IONS AND IDEAS

    In a reconstructive analysis, based upon thephilosophy of language,the author handles the secular transformations in speech, ideologicalcrystallizations within the tradition of political philosophy and thehistorical practices of political representation in order to show thecoming up of the distinctive features of modern representation.

    Keywords : Parliament; Modern representation; Democracy;Liberalism.

    2 6 5