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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X REPRESENTAÇÕES DE FEMINILIDADE NAS EXPOSIÇÕES “SARAU NO PALÁCIO SÃO FRANCISCO” (2016) E “MEMÓRIAS INESQUECÍVEIS” (2012) Caroline Müller 1 Anna Lucia da Silva Araújo Vörös 2 Resumo: Neste trabalho apresentamos uma discussão sobre as representações de feminilidade presentes nas exposições “Sarau no Palácio São Francisco” (2016), realizada no Museu Paranaense e “Memórias Inesquecíveis” (2012), mostra permanente do Museu da Indumentária e da Moda. A temática que as une é a apresentação de eventos sociais a partir de uma perspectiva histórica e o uso de peças do vestuário feminino e de fotografias para compor sua narrativa. Para estabelecer a análise, descrevemos as exposições por meio de fragmentos textuais e imagéticos coletados nos sites das instituições, e trechos de relatos de suas/eus curadora/es. A partir dessas fontes, problematizamos sobre as representações de feminilidade presentes nas narrativas expográficas e o modo como foram articuladas. Para tanto, construímos um diálogo entre as abordagens de Carvalho (2008), Miller (2013), Ribeiro (2010) e Scott (1998; 2000) a fim de abordar aspectos envolvidos na questão tais como a curadoria, o recorte temporal e geográfico das mostras, os artefatos que as compõem, bem como as categorias de geração, classe social e raça/etnia das mulheres representadas. Compreendemos que as narrativas expográficas estabelecem, por meio de documentos, argumentos que evidenciam, reproduzem e/ou afirmam modelos de feminilidade. Por fim, o trabalho abre espaço para um debate sobre como as duas instituições trataram as relações entre moda, indumentária e gênero. Palavras-chave: Museus. Exposições. Representações de feminilidade. Indumentária. Fotografia. Introdução Escrevendo em 1994, o historiador Ulpiano Toledo Bezerra de Menezes, defendeu que uma exposição é uma organização de objetos para produção de sentidos. Para o autor, ela é um enunciado sobre certos problemas humanos, desenvolvido com o suporte das coisas materiais. Em diálogo com Menezes, o também historiador Francisco Régis Lopes Ramos (2004) afirmou que a exposição é um ato comunicativo. Segundo Ramos (2004), o objetivo dos museus e instituições culturais não é promover a celebração de personagens ou uma classificação enciclopédica da natureza, mas sim buscar uma reflexão crítica. Em outras palavras, estes lugares não assumem a postura de contemplação e de uma suposta neutralidade científica, mas assumem um argumento crítico motivado por escolhas, tais como a coleta, o arranjo e disposição que tecem a exposição. 1 Doutoranda em Design pelo Programa de Pós-Graduação em Design (PPGDesign) na Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, Paraná Brasil.. 2 Doutoranda em Design pelo Programa de Pós-Graduação em Design (PPGDesign) na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professora do Departamento Acadêmico de Desenho Industrial da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Curitiba, Paraná Brasil..

REPRESENTAÇÕES DE FEMINILIDADE NAS EXPOSIÇÕES … · história do Paraná. ... croquis e vídeos). Como argumento, pontuamos que as exposições marcam representações de gênero

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

REPRESENTAÇÕES DE FEMINILIDADE NAS EXPOSIÇÕES “SARAU NO

PALÁCIO SÃO FRANCISCO” (2016) E “MEMÓRIAS INESQUECÍVEIS”

(2012)

Caroline Müller 1

Anna Lucia da Silva Araújo Vörös 2

Resumo: Neste trabalho apresentamos uma discussão sobre as representações de feminilidade

presentes nas exposições “Sarau no Palácio São Francisco” (2016), realizada no Museu Paranaense

e “Memórias Inesquecíveis” (2012), mostra permanente do Museu da Indumentária e da Moda. A

temática que as une é a apresentação de eventos sociais a partir de uma perspectiva histórica e o uso

de peças do vestuário feminino e de fotografias para compor sua narrativa. Para estabelecer a

análise, descrevemos as exposições por meio de fragmentos textuais e imagéticos coletados nos

sites das instituições, e trechos de relatos de suas/eus curadora/es. A partir dessas fontes,

problematizamos sobre as representações de feminilidade presentes nas narrativas expográficas e o

modo como foram articuladas. Para tanto, construímos um diálogo entre as abordagens de Carvalho

(2008), Miller (2013), Ribeiro (2010) e Scott (1998; 2000) a fim de abordar aspectos envolvidos na

questão tais como a curadoria, o recorte temporal e geográfico das mostras, os artefatos que as

compõem, bem como as categorias de geração, classe social e raça/etnia das mulheres

representadas. Compreendemos que as narrativas expográficas estabelecem, por meio de

documentos, argumentos que evidenciam, reproduzem e/ou afirmam modelos de feminilidade. Por

fim, o trabalho abre espaço para um debate sobre como as duas instituições trataram as relações

entre moda, indumentária e gênero.

Palavras-chave: Museus. Exposições. Representações de feminilidade. Indumentária. Fotografia.

Introdução

Escrevendo em 1994, o historiador Ulpiano Toledo Bezerra de Menezes, defendeu que uma

exposição é uma organização de objetos para produção de sentidos. Para o autor, ela é um

enunciado sobre certos problemas humanos, desenvolvido com o suporte das coisas materiais. Em

diálogo com Menezes, o também historiador Francisco Régis Lopes Ramos (2004) afirmou que a

exposição é um ato comunicativo. Segundo Ramos (2004), o objetivo dos museus e instituições

culturais não é promover a celebração de personagens ou uma classificação enciclopédica da

natureza, mas sim buscar uma reflexão crítica. Em outras palavras, estes lugares não assumem a

postura de contemplação e de uma suposta neutralidade científica, mas assumem um argumento

crítico motivado por escolhas, tais como a coleta, o arranjo e disposição que tecem a exposição.

1 Doutoranda em Design pelo Programa de Pós-Graduação em Design (PPGDesign) na Universidade Federal do Paraná

(UFPR), Curitiba, Paraná – Brasil.. 2 Doutoranda em Design pelo Programa de Pós-Graduação em Design (PPGDesign) na Universidade Federal do Paraná

(UFPR) e professora do Departamento Acadêmico de Desenho Industrial da Universidade Tecnológica Federal do

Paraná (UTFPR), Curitiba, Paraná – Brasil..

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Neste artigo, nosso interesse está em apresentar uma discussão inicial sobre as

representações de feminilidade registradas nas exposições “Sarau no Palácio São Francisco” (2016),

realizada no Museu Paranaense e “Memórias Inesquecíveis” (2012-atual), do Museu da

Indumentária e da Moda (MIMo). O Museu Paranaense3 é uma instituição estadual que foi

inaugurada em 1876 e tem como objetivo receber, organizar, guardar e divulgar artefatos relativos à

história do Paraná. Mantém um acervo de aproximadamente 400 mil itens, do qual a indumentária

faz parte e tem sido motivo para estudo e debate na instituição. O MIMo, por sua vez, é um museu

digital4 que foi criado em 2012 com o objetivo de disponibilizar conteúdos sobre a história da

indumentária investigada sob a perspectiva da Moda. Seu trabalho prioriza o estudo da produção e

dos usos atribuídos à indumentária em diferentes cidades brasileiras nos séculos XX e XXI. Seus

conteúdos são apresentados em seu website por meio de documentos textuais e imagéticos

(fotografias, desenhos, croquis e vídeos).

Como argumento, pontuamos que as exposições marcam representações de gênero

materializadas nos artefatos, utilizando como estratégia para problematizar, cronologicamente,

temas como mulher, corpo e família. Compreendemos ainda que as narrativas expositivas

estabelecem, por meio de diferentes tipos de documentos, argumentos que evidenciam, reproduzem

e/ou afirmam modelos de feminilidade. Para isso, nos filiamos a autoras como Vânia Carneiro de

Carvalho (2008), Joan W. Scott (1998; 2000) e Marinês Ribeiro dos Santos (2015).

Procuramos, num primeiro momento, reconstruir e identificar ações que marcaram os

eventos, tais como as fontes utilizadas e as divisões das mostras. Ainda, para a exposição "Sarau no

Palácio São Francisco” (2016) tomamos como referência reportagens que foram veiculadas no

website e no canal do Youtube da instituição.

Em seguida, analisamos o discurso verbal e visual proposto pelas duas exposições. Nossa

intenção foi, com esse conjunto de fontes, problematizar os argumentos presentes nas narrativas

expositivas e as representações de feminilidade nelas apresentadas, dialogando com autoras que

conduziram suas discussões sobre representações de feminilidades. Em diálogo com Vânia Carneiro

3 O endereço de seu website é: <http://www.museuparanaense.pr.gov.br/>. 4 O MIMo utiliza a denominação de museu digital para descrever suas características de funcionamento. A partir de

Rosali Henriques (2004), compreendemos o termo museu digital como sinônimo de museu virtual, e esta caracterização

está ligada a dois motivos: primeiro porque não há um espaço físico do museu que possa ser visitado por seu público e

porque a maior parte de suas ações é realizada em uma plataforma digital, acessada por meio do endereço de seu

website: <http://www.mimo.org.br>. Além disso, vale observar que o MIMo é vinculado ao grupo de pesquisa Museu

da Indumentária e da Moda: pesquisa e desenvolvimento de um museu digital. Desse modo, compreendemos que ele

também atua como um espaço para a divulgação do trabalho do grupo de pesquisa (Márcia Merlo, entrevista, 2015).

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de Carvalho (2008), adotamos as imagens inscritas nas fontes não apenas como ilustrações, mas sim

como discursos visuais produzidos em determinados contextos.

A discussão destas questões abre espaço para pensarmos sobre como as relações de gênero

estão sendo debatidas e explicitadas em museus e instituições culturais. A seguir, apresentamos

algumas ações que marcaram os eventos.

Reconstruindo alguns momentos das exposições

Entre os dias 12 de maio e 12 de junho de 2016, o Museu Paranaense – Curitiba (PR), em

parceria com a Universidade Federal do Paraná (UFPR) e outras instituições culturais5, realizou a

exposição “Sarau no Palácio São Francisco”. A mostra teve o Grupo de Trabalho de Moda do

Museu Paranaense6 como responsável pela curadoria, que encontrou na atividade uma maneira de

retomar as discussões sobre o Acervo de Indumentária da instituição. Responsável por organizar e

dirigir a exposição, o grupo é quem apresentou o objetivo e o argumento da mostra, por meio de

texto, objetos e imagens.

De acordo com uma reportagem do dia 09 de maio de 2016 compartilhada no site do museu,

a mostra apresenta uma sala de música no Palácio São Francisco, atual sede do MP,

retratando os saraus em ambientes particulares de Curitiba nas primeiras três décadas do

século XX. O objetivo é resgatar os momentos de sociabilidade que envolviam música,

dança, poesia, literatura e política, além de remeter aos trajes e acessórios usados nesses

eventos (MUSEU PARANAENSE, 2016a).

Nesse sentido, com a intenção de reconstruir fragmentos sobre os costumes e as práticas

sociais que contemplavam a elite curitibana no início do século XX, trabalhou-se com uma

narrativa expositiva pautada em fotografias, indumentária, textos de jornais e revistas da época7

como evidências e indícios históricos (BURKE, 2004). Ainda, ao propor a reconstrução de uma sala

de música do início do século XX em Curitiba, a organização da exposição alinhou-se à proposta de

5 Instituições como o Clube Curitibano, a Sociedade de Amigos do Museu Paranaense (SAMP) e alunos(as) da

Universidade Federal do Paraná contribuíram com a pesquisa, processo de curadoria e montagem da exposição. 6 Este grupo deu início às suas atividades no ano de 2014 em parceria com o Programa de Educação Tutorial da História

(PET) UFPR. Em 2015, contudo, suspendeu seus trabalhos, retornando em 2016. Ao retomar os trabalhos, o grupo,

majoritariamente feminino, passou a ser composto por Carolina Damrat (Historiadora do Centro de Memória do Clube

Curitibano), Caroline Muller (doutoranda em design – PPGDesign UFPR), Claudio Luis Ogliari (Setor de Educação

Patrimonial do museu), Maria Luiza de Almeida Scheleder (colaboradora do museu), Tatiana Takatuzi (responsável

pelo Setor de História do museu) e o Programa de Educação Tutorial da História (PET) UFPR. 7 Foram utilizados jornais e revistas que circulavam por Curitiba no início do século XX para compor a narrativa da

exposição: “Jornal O Estado do Paraná” (1926), “Jornal Correio do Paraná” (1932; 1933), “Jornal O Estado” (1936),

“Revista da Semana” (1925), “Revista Ilustração Paranaense” (1929), “Jornal Gazeta do Povo” (1921).

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reproduzir um cenário com um repertório de coisas materiais que eram produzidas, circuladas e

utilizadas por uma camada social específica na cidade.

Pensando no percurso expográfico, no ambiente anterior à sala, ao lado direito, foi

posicionado um chapeleiro e, ao lado esquerdo, um painel de apresentação da exposição, como é

possível observar na Figura 1A.

Figura 1 - A: Ambiente que antecede a sala de exposição. B: Lado esquerdo da sala de exposição. C: Panorama ao

entrar na sala de exposição. C: Lado direito da sala de exposição. Fotografia: Caroline Müller (10 de maio de 2016).

Ao entrar na sala, no lado esquerdo, foram posicionados dois painéis. O primeiro deles,

nomeado “Mundanidades ecos da moda: Chapéus, Luvas e Leques”, apresentava imagens e trechos

de reportagens de jornais e revistas sobre manuais de etiqueta que circulavam na cidade. O segundo,

“Usos e prescrições”, oferecia uma leitura sobre o uso de trajes femininos e masculinos em ocasiões

festivas e suas prescrições. Estes painéis contribuíam para a contextualização das fontes

tridimensionais, na medida em que chapéus, carteiras, manequins com vestidos, um casaco de pele,

luva e outros acessórios foram expostos próximos a eles (Figura 1B). Outro aspecto importante é

com relação ao circuito expositivo, em que a organização dos painéis direcionou a escolha dos

artefatos para compor a narrativa da exposição.

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Já ao fundo da sala, um piano, um violino e um gramofone foram selecionados para

representar o cenário dos saraus no início do século XX. Ao lado esquerdo da Figura 1C é possível

observar um conjunto de cinco leques e, ao lado direito, a representação de um homem e uma

mulher contemplando o evento. No dia de abertura da exposição, o público pode apreciar uma

apresentação de instrumentistas tocando músicas dos anos 1920 e 1930, além da declamação de

uma poesia.

Por fim, a parede ao lado direito contemplou o painel “Sarau Musical”, que evidenciou

músicos, lojas de instrumentos e trechos de reportagens veiculados em jornais e revistas sobre esse

tipo de evento cultural. Aliado à narrativa do painel, chapéus, carteiras, lenços, um relógio de

parede, uma cadeira, um banco e um rádio ajudavam a construir sentido, valores e ações para o

local.

Grande parte dos artefatos, das imagens e das citações utilizadas na mostra pertencem ao

acervo do Museu Paranaense. Algumas bolsas, lenços e chapéus foram emprestados pela artista

plástica Maria Luiza de Almeida Scheleder, umas das principais doadoras de indumentária da

instituição. Além de propor debates e reflexões sobre esta tipologia de acervo, a exposição foi

idealizada no período que ocorreu o evento Moda Documenta8, momento que concedeu visibilidade

à instituição no circuito de museus brasileiros que contemplam acervos de indumentária, atraindo

pesquisadores e pesquisadoras de diferentes estados do país que estudam e se interessam pelo tema

registrado.

Diferente da exposição "Sarau no Palácio São Francisco", a mostra "Momentos

Inesquecíveis" do Museu da Indumentária e da Moda (MIMo) está em um museu digital, e, por isso

não apresenta um percurso de visitação explícito ou linear. Sua lógica de apresentação funciona

como um website e cada história desvelada é apresentada em um formato de página da web, por

meio de um link a ser acessado. Trata-se de uma mostra de longa duração9 realizada desde o ano de

8 O Moda Documenta é um evento de caráter técnico-científico que promove reflexões que privilegiam os aspectos

relativos à memória, à cultura material, à museologia e à moda, sobretudo, volta-se à reflexão dos modos de vestir em

suas múltiplas perspectivas e possibilidades analíticas, considerando que o vestir abrange o fazer, o saber, o ser, o estar,

o sacralizar e o descartar. Em 2016, durante os dias 12 e 14 de maio, teve sua edição na cidade de Curitiba e foi

realizada pelo Departamento de Design da Universidade Federal do Paraná, no Centro Histórico da cidade, em que

algumas atividades foram realizadas no Museu Paranaense. Disponível em: <http://www.modadocumenta.com.br/>.

Acesso em: 10 mar. 2017. 9 Na falta de outro termo, emprestamos essa terminologia a partir do que é estabelecido para denominar as exposições

de longa duração realizadas no âmbito dos museus físicos. No entanto, cabe observar que houveram algumas mudanças

de conteúdo e adaptações de layout no ano de 2015, inclusive a mudança do nome da exposição de Histórias

Desveladas para Momentos Inesquecíveis.

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2012 pelo MIMo, no entanto nosso recorte é composto pelo conjunto de 18 histórias desveladas,

publicadas entre 2012 e 2015.

A mostra é fruto da curadoria das fotografias pertencentes ao "Acervo Imagens

Fotográficas" do MIMo e apresenta histórias sobre a indumentária no contexto brasileiro, narradas

por meio de histórias desveladas10 (MIMo, 2017a). As histórias desveladas são compostas por

fotografias, depoimentos sobre as famílias e a história da cena registrada e uma interpretação da

circulação e uso da indumentária nos contextos sociais e históricos da época do registro.

O conjunto das 18 histórias desveladas apresentam fotografias nas quais foram registradas

mulheres, sozinhas ou acompanhadas. Observamos também que 15 depoimentos foram cedidos por

mulheres e os outros 3 foram cedidos por casais. Outro dado que gostaríamos de ressaltar é o

número de pessoas que fizeram as interpretações: 17 foram feitas por 08 mulheres e 1 por um

homem.

Nesse sentido, propomos a investigação das duas exposições, "Sarau no Palácio São

Francisco" e "Momentos Inesquecíveis" a partir de uma leitura crítica das suas narrativas

expositivas e do modo como os documentos que as compõem foram nelas articulados. No caso da

mostra "Momentos Inesquecíveis" também fizemos um outro recorte, qual seja, analisar uma

história desveladas ligadas ao período da década de 1920, visto que é o mesmo contexto temporal

retratado na mostra "Sarau no Palácio São Francisco", intituladas como "Família Sayeg, Traços de

uma vida e de uma cidade – São Paulo"11.

Visamos com esta análise identificar representações de feminilidade presentes nos discursos

verbais e imagéticos veiculados pelos documentos que compõem as exposições. Ainda, nossa

intenção foi compreender o modo como os corpos, os comportamentos e os eventos sociais foram

articulados com ideias sobre as identidades sociais das mulheres e dos homens retratados.

Diálogos possíveis sobre as representações de feminilidade nas exposições

Dantes, uma senhora, mesmo muito chic, usava meias de algodão, sapatos e luvas simples;

actualmente não há mais nenhuma que não use meias de seda, sapatos e luvas (MUSEU

PARANAENSE, 2016b).

A residência do casal na Rua Frei Caneca, na primeira quadra da Avenida Paulista, era

organizada por Genny, que ficava em casa e era uma ótima anfitriã. Leão tinha por hábito

encher a casa de amigos e promover confraternizações (MIMo, 2017b).

10 Adotamos o recurso do itálico para identificar que o termo foi cunhado pelo MIMo, diferenciando-o da escrita do

nosso texto. 11 Disponível em: <http://mimo.org.br/historias-desveladas/familiasayeg/>. Acesso em: 02 jul. 2017.

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Descrições como estas podem ser recorrentes nas falas sobre as mulheres no início do século

XX, segundo os quais o ideal de beleza feminino era construído via prescrições. No entanto, é

importante problematizar sobre quais mulheres as exposições discorrem. Na exposição “Sarau no

Palácio São Francisco”, por exemplo, houve uma preocupação em caracterizar a mulher que

circulava pelos saraus na cidade de Curitiba entre 1900 e 1930. Ela utilizava roupas inspiradas na

moda francesa e usava chapéus, luvas e leques para a noite. A mulher é aqui caracterizada como

burguesa, branca, urbana e jovem. Nas histórias da exposição "Momentos Inesquecíveis" são

retratadas eventos ocorridos entre a década de 1920 e 2000 em diferentes cidades brasileiras. A

mostra não tem uma temática única, mas todas apresentam histórias sobre mulheres: ora sozinha,

ora acompanhadas de seus maridos e demais familiares. Outra questão evidente na exposição diz

respeito à ideia de família, nela descrita por um núcleo familiar heterossexual. Cabe ainda comentar

que, em algumas histórias, existe uma breve contextualização da época. No entanto, as informações

são pouco problematizadas.

No contexto do movimento feminista, Joan W. Scott (1998) problematiza a categoria

gênero, afirmando que é uma percepção sobre as diferenças sexuais. Para ela, o que interessa são as

formas como se constroem significados culturais para essas diferenças. Nas palavras da autora,

“existe uma subjetividade criada para as mulheres, em um contexto específico da história, da

cultura, da política” (SCOTT, 1998).

Nesse texto, propomos pensar a categoria mulher apresentada nas exposições como ideais

femininos do início do século XX. Compreendemos que esses ideais foram construídos a partir de

prescrições que circulavam socialmente e que foram estabelecidas como normas. Para um exercício

de análise, problematizamos sobre o modo como as representações de feminilidade foram

articuladas em cada exposição e, na sequência, estabelecemos comparações entre as duas narrativas

expositivas para delinear algumas similaridades.

Em parte, as fontes utilizadas nas exposições “Sarau no Palácio São Francisco” e

“Momentos Inesquecíveis” para a elaboração do argumento, fotografia, anúncios, artefatos, são

meios para a construção de tipos ideais em relação ao gênero, por exemplo (CARVALHO, 2008).

Na exposição “Sarau no Palácio São Francisco”, por exemplo, é apresentada uma série de imagens

e anúncios publicitários como testemunho sobre as feminilidades curitibanas do início do século

XX. O Museu Paranaense teve um cuidado em demonstrar os assuntos por meio das fontes

primárias, caracterizando-as no tempo e espaço, por meio da informação sobre as datas e locais de

produção. No entanto, observamos que os artefatos expostos não são referenciados diretamente nos

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textos e não contêm legenda, dificultando sua localização temporal e espacial (Figura 2). Ainda, o

fato da organização dos painéis ter direcionado a escolha dos artefatos contribuiu para que eles

operassem como uma extensão das narrativas já construídas e defendidas nos jornais e revistas.

Figura 2 - Painel "Usos e prescrições" e dois manequins femininos da exposição "Sarau no Palácio São Francisco".

Fotografia: Caroline Müller (10 de maio de 2016).

Na exposição do MIMo, tomando como recorte a história “Família Sayeg, Traços de uma

vida e de uma cidade – São Paulo”, são apresentadas imagens e textos, a saber: 4 fotografias e 01

pintura da família Sayeg, 19 imagens de outras fontes, 01 depoimento e 01 interpretação. A

estrutura visual foi composta de modo a criar duas divisões, informando a seus leitores e leitoras a

existência de um depoimento e de uma parte de interpretação. Esta estrutura torna-se visível pelo

uso de dois títulos, de diferentes fontes e tamanhos; pela informação a respeito da origem das

imagens e da autoria das narrativas e, ainda, pela posição e tamanho das imagens e textos. Outro

detalhe desta composição foi o posicionamento alternado entre as imagens e os textos.

Pensando nos jornais, revistas e imagens que foram apresentadas nas duas exposições,

entendemos, em diálogo com Santos (2015), que elas operam como “veículos de representações que

contribuem para a reiteração das normas hegemônicas na vida social” (SANTOS, 2015, p.65). Para

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a autora, as representações nos regulam por meio de normas, padrões e valores, contribuindo na

nossa compreensão do mundo e nos processos de constituição de identidades.

No que se refere aos atributos reconhecidos como femininos, no painel “Usos e prescrições”

(Figura 2) há um trecho da Revista Ilustração Paranaense de 1929 que evidencia as diferenças entre

as formas de constituição da individualidade feminina e da masculina: “Vestidos, sedas, cores, a

moda enfim concorre para desenvolver na mulher o sentimento esthetico, a intuição das cores,

enquanto o homem, absorvido pelo trabalho quotidiano, atenta mais às cousas práticas, eficientes,

econômicas” (MUSEU PARANAENSE, 2016c). Aqui é possível identificar que, enquanto a

valorização de elementos da indumentária e da moda são características do universo feminino, ao

homem é atribuído o espaço da ordem e o universo do trabalho.

Já na exposição “Momentos Inesquecíveis” do MIMo, quando enfocamos a análise de uma

história desvelada notamos que a narrativa da depoente foi construída a partir da centralidade de um

homem. Na história intitulada “Família Sayeg, Traços de uma vida e de uma cidade – São Paulo”,

Genny Abdelmalack, neta dos retratados, evidencia trechos da trajetória de seu avô Leão Sayeg,

como seu casamento e sua trajetória profissional. A narrativa é permeada por fatos históricos da

cidade de São Paulo e evidencia os esforços do trabalho de Leão Sayeg, imigrante sírio que se

estabeleceu em São Paulo no ano de 1912. O fim do depoimento coincide com sua morte,

provavelmente pelo fato de sua trajetória de vida ter sido importante na configuração desta família e

por Sayeg ocupar a figura do personagem principal. Ele é retratado como aquele que “trouxe no

nome o ofício dos seus antepassados” (MIMo, 2017b), ao passo que sua esposa, Genny Abdo Jorge,

figura como a jovem companheira responsável por organizar a casa, sendo “uma ótima anfitriã”

(MIMo, 2017b).

Na segunda parte da história desvelada, é apresentada uma interpretação sobre a fotografia

do casamento do casal Leão (figura 3) e que é também escrita por Genny Abdelmalack. Nesta

seção, a neta dedica-se a descrever o traje dos noivos, associando os detalhes da vestimenta da

noiva a atributos simbólicos, tais como luxo, rainha, riqueza e delicadeza. Carvalho (2008) discute

sobre o assunto e afirma que “a demonstração de posição social se realiza na pose pretensamente

artística, na interferência pictórica, na fotografia, na beleza do corpo e do rosto e nos detalhes dos

vestidos” (CARVALHO, 2008, p.231).

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Figura 3 - Fotografias do casamento de Leão Sayeg e Genny Abdo Jorge, presente na história "Família Sayeg, Traços

de uma vida e de uma cidade – São Paulo" (década de 1920). Fonte: MIMo, 2017b.

Ao construir esses argumentos nas exposições, pensamos que as peças de vestuário, imagens

e textos organizados perdem o valor de uso e transfiguram-se em objeto narrado (RAMOS, 2004).

Os artefatos ali expostos não são neutros, aliás, é um ilusão, porque incidem neles “múltiplas

malhas de mediações internas e externas que o envolvem, no museu, desde os processos, sistemas e

motivos de seleção (na coleta, nas diversificadas utilizações), passando pelas classificações,

arranjos, combinações e disposições que tecem a exposição” (MENESES, 1994, p.20).

Logo, as formas pelas quais as exposições foram pensadas e organizadas são leituras

possíveis sobre os tipos de feminilidade do início do século XX. Nas palavras da museóloga Maria

Cecília França Lourenço (2015) “memória e patrimônio sempre abrangeram conflitos, fusões,

articulações e perdas” (LOURENÇO, 2015, p.25). Objetos classificados, inventariados e

sistematizados representam escolhas e tentam comunicar narrativas fundadas no conhecimento de

cada sujeito que participou do evento.

Considerações Finais

Nesse texto, nosso objetivo foi apresentar uma discussão inicial e problematizar as

representações de feminilidade apresentadas nas exposições “Sarau no Palácio São Francisco”, do

Museu Paranaense e “Memórias Inesquecíveis”, do MIMo. Para isso, nos filiamos a autores(as)

como Vânia Carneiro de Carvalho (2008), Joan W. Scott (1998; 2000), Ulpiano Toledo Bezerra de

Meneses (1994) e Francisco Régis Lopes Ramos (2004). Como recurso metodológico, utilizamos

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fragmentos textuais e imagéticos apresentados nas exposições via seus websites. E, por meio deles,

reconstruímos momentos das mostras e analisamos seus discursos verbais e visuais, tendo em vista

problematizar as representações de feminilidade nelas apresentadas.

A partir de Santos e Pedro (2010) entendemos as exposições como espaços de mediação

cultural que, a partir de uma posição de autoridade, assumem a construção de uma versão da

história. Nesse sentido entendemos que as representações abordadas pelas mostras sobre as

mulheres do início do século XX reforçam ideais de feminilidade com base na existência de um

binarismo universal, delimitando feminino e masculino de modo hierárquico e assimétrico.

Embora as pessoas envolvidas nas curadorias não colaborem diretamente com a escrita da

história da moda no Brasil, seus trabalhos dialogam com a área, visto que esses artefatos são objetos

de análise da moda. Outro ponto que vale comentar diz respeito ao modo como os museus

articularam a relação da indumentária e da moda como algo diretamente conectado com o universo

feminino. Seria essa a única maneira de entender a moda ou de entender a história das mulheres?

Será que eles(as) pensaram nas histórias dessas mulheres? Assinalamos estes questionamentos

como uma extensão possível da pesquisa, certas de que mais poderão ser trilhadas.

Referências

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Representations of femininity in the exhibitions “Sarau no Palácio São Francisco” (2016) and

“Memórias Inesquecíveis” (2012)

Astract: In this paper we present a discussion about the representations of femininity in the

exhibitions "Sarau no Palácio São Francisco" (2016), held at the Museu Paranaense and "Memórias

Inesquecíveis" (2012), a permanent exhibition of the Museu da Indumentária e da Moda. The theme

that unites them is the presentation of social events from a historical perspective and the use of

pieces of women's clothing and photographs to compose their narrative. In order to establish the

analysis, we describe the exhibitions through textual and imaginary fragments collected on the

institutions' websites, as well as excerpts from the reports of their curators. By using these sources,

we discuss the representations of femininity presented in the expographic narratives and the way in

which they were articulated. We constructed a dialogue between the approaches of Carvalho

(2008), Miller (2013), Ribeiro (2010) and Scott (1998, 2000) in order to address aspects involved in

the issue such as curation, temporal and geographical context, the artifacts that compose them, as

well as the categories of generation, social class and race/ethnicity of the women represented. We

understand that the expographic narratives establish, through documents, arguments that highlight,

reproduce and/or reinforce models of femininity. Finally, the paper contributes to bring a debate on

how the two institutions dealt with the relationship between fashion, clothing and gender.

Keywords: Museums. Exhibitions. Representations of femininity. Clothing. Photography