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1 REPRESENTAÇÕES DE TECNOLOGIA E SOCIEDADE NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS DA SÉRIE TRANSMETROPOLITAN FABIO AUGUSTO VENÂNCIO DOS ANJOS 1 MARILDA LOPES PINHEIRO QUELUZ 2 Resumo: Transmetropolitan é uma série em quadrinhos, publicada pela DC Comics, entre 1997 e 2002. O protagonista é o jornalista “gonzo” Spider Jerusalém, que atua questionando e lutando contra a corrupção e o abuso de poder em um futuro distópico. Entre os temas abordados estão: liberdade de expressão, criogenia, nanotecnologia, mutações físicas e vida alienígena. Colocar um jornalista como personagem principal parece ser uma estratégia de reflexão sobre o papel das mídias e os processos de recepção e interação das pessoas com os artefatos científicos e tecnológicos e as diversas interpretações veiculadas na imprensa. O mundo imaginado e as experiências vividas em Transmetropolitan permitem problematizar a inserção maciça da tecnologia como único caminho para o desenvolvimento e o bem estar humano. Através de críticas aos modos de vida provocados pelos usos da ciência e da tecnologia em grandes centros urbanos, constrói-se, de forma irônica, um futuro desumano, no qual a tecnologia influencia e altera profundamente as relações sociais. Este trabalho objetiva estudar as disputas de representações da ciência e da tecnologia presentes na série, considerando que elas não são apenas um reflexo, mas também constituem realidades. A fundamentação teórica baseia-se nos estudos de Andrew Feenberg, Thomas P. Hughes e Michel Callon. Palavras-chave: Transmetropolitan; história em quadrinhos; ficção científica; ciência; tecnologia; sociedade. INTRODUÇÃO A história em quadrinhos (HQ) Transmetropolitan (1997-2002) apresenta um futuro em que a ciência e a tecnologia são as bases de uma sociedade fria e desumana, para a qual um jornalista retorna após um auto imposto exílio e decide combater a conjuntura instaurada. O objetivo deste trabalho é o de investigar as relações entre ciência e tecnologia representadas nesta ficção científica, considerando os usos dos artefatos, a agência das pessoas e os valores sociais constituídos entre as imagens e os diálogos. O que se observa na leitura desta série em quadrinhos é um retrato irônico, cínico e brutal da sociedade moderna, com muitas referências históricas e culturais do final do século XX e início do século XXI, abordando questões científicas e tecnológicas que até hoje estão sendo problematizadas. 1 UTFPR, PPGTE, Brasil. E-mail: [email protected]. 2 UTFPR, PPGTE, Brasil. E-mail: [email protected].

REPRESENTAÇÕES DE TECNOLOGIA E SOCIEDADE NAS … · confunde a compreensão do passado e sufoca a imaginação de um futuro ... segundo o Taylorismo, ... atores sociais e do dinamismo

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REPRESENTAÇÕES DE TECNOLOGIA E SOCIEDADE

NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS DA

SÉRIE TRANSMETROPOLITAN

FABIO AUGUSTO VENÂNCIO DOS ANJOS 1

MARILDA LOPES PINHEIRO QUELUZ 2

Resumo: Transmetropolitan é uma série em quadrinhos, publicada pela DC Comics, entre 1997

e 2002. O protagonista é o jornalista “gonzo” Spider Jerusalém, que atua questionando e lutando

contra a corrupção e o abuso de poder em um futuro distópico. Entre os temas abordados estão:

liberdade de expressão, criogenia, nanotecnologia, mutações físicas e vida alienígena. Colocar

um jornalista como personagem principal parece ser uma estratégia de reflexão sobre o papel

das mídias e os processos de recepção e interação das pessoas com os artefatos científicos e

tecnológicos e as diversas interpretações veiculadas na imprensa. O mundo imaginado e as

experiências vividas em Transmetropolitan permitem problematizar a inserção maciça da

tecnologia como único caminho para o desenvolvimento e o bem estar humano. Através de

críticas aos modos de vida provocados pelos usos da ciência e da tecnologia em grandes centros

urbanos, constrói-se, de forma irônica, um futuro desumano, no qual a tecnologia influencia e

altera profundamente as relações sociais. Este trabalho objetiva estudar as disputas de

representações da ciência e da tecnologia presentes na série, considerando que elas não são

apenas um reflexo, mas também constituem realidades. A fundamentação teórica baseia-se nos

estudos de Andrew Feenberg, Thomas P. Hughes e Michel Callon.

Palavras-chave: Transmetropolitan; história em quadrinhos; ficção científica; ciência;

tecnologia; sociedade.

INTRODUÇÃO

A história em quadrinhos (HQ) Transmetropolitan (1997-2002) apresenta um futuro em

que a ciência e a tecnologia são as bases de uma sociedade fria e desumana, para a qual um jornalista

retorna após um auto imposto exílio e decide combater a conjuntura instaurada. O objetivo deste

trabalho é o de investigar as relações entre ciência e tecnologia representadas nesta ficção

científica, considerando os usos dos artefatos, a agência das pessoas e os valores sociais

constituídos entre as imagens e os diálogos.

O que se observa na leitura desta série em quadrinhos é um retrato irônico, cínico e

brutal da sociedade moderna, com muitas referências históricas e culturais do final do século

XX e início do século XXI, abordando questões científicas e tecnológicas que até hoje estão

sendo problematizadas.

1UTFPR, PPGTE, Brasil. E-mail: [email protected]. 2UTFPR, PPGTE, Brasil. E-mail: [email protected].

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A análise desta obra foi feita a partir das teorias CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade),

especialmente os estudos de Andrew Feenberg, Thomas P. Hughes e Michel Callon.

REFERENCIAL TEÓRICO

Os estudos de Andrew Feenberg, conforme apresentados em seu artigo “Racionalização

Subversiva: Tecnologia, Poder e Democracia” (1995), propõem uma quebra de paradigmas a

partir de avanços tecnológicos que se oponham à tecnologia dominante, levando em consideração

os contextos humanos e naturais. Justamente por teorizar uma mudança que perturbaria a ordem

atual, é que ele a chama de subversiva. Embora sua intenção não seja renegar os avanços

tecnológicos já conquistados, sua proposta é de racionalizar a sociedade em busca da democracia,

de modos alternativos de organização sociotécnica e de participação coletiva.

Segundo o autor, a tecnologia é uma das maiores fontes de poder em nossa sociedade, o

que pode ser percebido até pelas tomadas de decisão, em que os “senhores dos sistemas técnicos”

têm mais controle e poder de escolha do que todas as instituições governamentais. A democracia

deveria ser estendida do domínio político para o mundo do trabalho e as pessoas deveriam ter voz

ativa no processo das decisões industriais, para que construíssem uma verdadeira cidadania.

O senso comum considera a tecnologia moderna incompatível com a democracia no

mercado de trabalho; por outro lado, alguns teóricos afirmam que a tecnologia não é a

responsável pela concentração de poder industrial. Ela contribui para uma administração

autoritária, mas poderia ser operacionalizada democraticamente, se houvesse interesse. Na

opinião de Feenberg, uma mudança como essa requer não apenas alterações técnicas radicais,

mas também mudanças políticas. Ele considera esta posição bastante controversa pois, a seu

ver, a democracia vai se perder se não for estendida para dentro dos domínios tecnicamente

mediados e se limitar ao poder do estado.

Com o intuito de respaldar a possibilidade de uma busca por outro modo de racionalizar

a democracia, Feenberg se propõe a desafiar as premissas da teoria determinista, sendo elas:

o progresso técnico parece ser uma evolução natural de avanços;

o determinismo tecnológico afirma que as instituições sociais devem se adaptar às

alterações tecnológicas e suas necessidades.

A teoria construtivista defende que geralmente há diversas soluções possíveis para um

problema, e os atores sociais fazem a escolha final entre um grupo de opções viáveis; além

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disso, ela defende que a definição do problema muda frequentemente durante o curso de sua

solução. O determinismo, com sua teoria de que o fim da história é inevitável desde o seu início,

confunde a compreensão do passado e sufoca a imaginação de um futuro diferente.

Para entender o significado da tecnologia, não se pode excluir o fator social, como prega

o determinismo, visto que a sociedade molda o seu desenvolvimento. O uso é que vai definir o

objeto e garantir seu futuro, aplicações e melhorias. Assim, para se entender o desenvolvimento

tecnológico, é necessário o estudo da situação sócio-política dos grupos envolvidos.

Mudanças geralmente causam conflitos, especialmente se afetarem a tecnologia. Para

evitar que isso aconteça, o avanço técnico tem como objetivo criar desenhos tecnológicos que

sirvam a uma multiplicidade de valores e grupos sociais, sem sacrificar a eficiência. Durante o

processo, os padrões são controversos, mas uma vez definido o código técnico, ninguém olha

para trás ou retoma um código antigo, pois o novo é “melhor”. Este código deve incluir fatores

sociais, ambientais e econômicos, e ele é moldado frente a crises que a tecnologia enfrenta.

(FEENBERG, 1995)

A teoria do autor sugere a possibilidade de alterar a hegemonia atual, na qual o desenho

técnico é de forma não usual, descontextualizado e destrutivo. Esta hegemonia incorporou-se

na tecnologia de tal modo, que hoje os meios técnicos formam uma crescente ameaça ao nosso

meio ambiente. Ele cita Heidegger, dizendo que este estava certo ao afirmar que os meios não

são neutros e que seu conteúdo afeta a sociedade. Mas isto é uma questão de desenho e inserção

social, os conteúdos não são essencialmente destrutivos. (FEENBERG, 1995)

Thomas P. Hughes, com seu texto La evolución de los grandes sistemas tecnológicos

(2008), afirma que os sistemas tecnológicos contêm componentes destinados a resolver

problemas complexos e são construídos pela sociedade, ao mesmo tempo em que a moldam.

Incluem artefatos técnicos, organizações, componentes científicos, leis e até recursos naturais.

Todos estes elementos interagem, contribuindo direta ou indiretamente em busca de uma meta

comum. Se um elemento é alterado, os outros devem se adaptar de acordo à nova realidade.

Os seres humanos também são componentes de um sistema tecnológico, mas não

artefatos dele, pois não foram criados para ele e possuem liberdade.

A partir do século XX, o trabalho foi organizado segundo o Taylorismo, o que se refletiu

nos sistemas tecnológicos. Estes são preferencialmente organizados em hierarquias, contendo

subsistemas que podem ser considerados sistemas em si mesmos, para fins de análises. Um

sistema possui, ainda, insumos e produtos, através dos quais, é possível acompanhar e controlar

o seu rendimento.

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Com sua crescente complexidade, a quantidade de componentes e de problemas

aumentou, e os computadores oferecem uma resposta apenas parcial. As fases da evolução de

um sistema são: invenção – desenvolvimento – inovação – transferência – crescimento –

competência – consolidação. Mas isso não significa que o processo é linear e sequencial, pode

haver retrocesso ou sobreposições pelo caminho. (HUGHES, 2008)

Esta teoria de Hughes acerca dos sistemas tecnológicos se correlaciona com o que

Feenberg propõe, visto que ambos rejeitam o determinismo tecnológico, incluindo fatores

sociais como elementos decisivos na evolução e consolidação de tecnologias. Os dois autores

afirmam que a tecnologia e as inovações são adaptadas aos seus usuários e não o contrário,

como prega o determinismo.

Michel Callon, com seu artigo Society in the making: the study of technology as a tool

for sociological analysis (1987), propõe o uso do estudo da tecnologia como ferramenta de

análise sociológica, ao invés de usar as ciências sociais para examinar o desenvolvimento da

tecnologia. Ele argumenta que, para criar e desenvolver uma tecnologia, os profissionais

envolvidos constroem hipóteses que os inserem no campo das análises sociais, por isso os

chama de “engenheiros-sociólogos”.

Seu questionamento principal trata sobre a distinção de fases do processo de inovação,

no qual se crê que o procedimento se inicia com a resolução de problemas técnicos apenas,

deixando os econômicos, sociais, políticos e culturais para estágios futuros. Todos estes

aspectos estão interligados, desde o início, como vem sendo provado por vários estudos.

Callon propõe o uso do que chama “rede de atores”, que é formada pela união de vários

componentes, sejam humanos ou não, o que já vai contra as teorias sociológicas usuais. Os

engenheiros, ao desenvolver um novo projeto, por exemplo, levam em consideração não

apenas as questões técnicas, os aspectos não humanos, como fontes de energia, matérias-

primas, entre outros; eles se preocupam também com questões políticas e movimentos sociais,

ou seja, o fator humano.

A rede atua com mudanças, não é estática, pois a qualquer momento um elemento pode

ser alterado e ela deve ser adaptada para se manter em funcionamento. A modificação de um

elemento influi em todos os outros e, definir qual deve ser alterado em determinado momento,

é o resultado de um teste da resistência de cada um. (CALLON, 1987)

Percebe-se que a proposta da rede de atores foi uma das influências de Feenberg para o

desenvolvimento de suas teorias, pois ele também trata da função dos atores sociais e do

dinamismo presente em todo o processo de desenvolvimento de inovações tecnológicas. Os três

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autores aqui inseridos apresentam hipóteses que se interligam e dialogam, contribuindo para

uma visão mais ampla das questões de ciência e tecnologia e de como elas se relacionam com

a sociedade e as disputas de poder. Estas questões são exacerbadas na HQ objeto deste estudo,

visto que a própria noção filosófica de futuro “distópico” sugere um mundo no qual as

condições atuais são elevadas a extremos, principalmente no que diz respeito à opressão,

corrupção e ao totalitarismo.

TRANSMETROPOLITAN

A série em quadrinhos Transmetropolitan foi publicada pela editora norte-americana

DC Comics entre 1997 e 2002, em um total de 60 edições mensais e mais algumas especiais.

Inicialmente, foi lançada sob o selo Helix, voltado à histórias de ficção científica, mas após um

ano o selo foi abandonado e a série passou para o selo Vertigo, melhor estabelecido no mercado

e reconhecido pela publicação de quadrinhos adultos. A série foi criada e produzida pelo

escritor britânico Warren Ellis e o desenhista norte-americano Darick Robertson, sendo que

todas as histórias foram escritas por Ellis e, com exceção de dois especiais – Transmetropolitan:

I hate it here (2000) e Transmetropolitan: Filth of the City (2001), que foram ilustrados por

vários artistas – todas as outras edições foram desenhadas por Robertson.

O protagonista da história é o jornalista Spider Jerusalém e sua trajetória na série se

inicia conforme a sinopse oficial disponível no hotsite Vertigo, da editora Panini, atual

responsável pela publicação da série no Brasil:

Chineses, mexicanos, coreanos, transientes, pansexuais, androides, gatos de 3 olhos,

cachorros falantes, cristãos, vikings, humanos transformados em nuvens holográficas

ou indigentes do século XX ressuscitados pela tecnologia do XXIII. Essa é A Cidade.

Isso é tudo do que o jornalista gonzo Spider Jerusalém tentou fugir, mas é o único lugar

onde sabe escrever. Ele está devendo dois livros, impacientemente cobrados por seu

editor. É hora de voltar e encarar esse mundo futurista.

O conto pós-cyberpunk de Warren Ellis e Darick Robertson, um dos marcos na história

da Vertigo, revela um jornalista em conflito constante entre A Verdade e A Cidade – e

as duas estão sempre tentando matá-lo. Mas Spider Jerusalém, à sua própria maneira

excêntrica, insiste em viver mais um dia para revelar o que nos aguarda no futuro.

Spider Jerusalém é um jornalista que não mede esforços em sua busca, como bem

pontua Lielson Zeni: “(...) a verdadeira obsessão desse personagem é encontrar a verdade e

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entregá-la ao público.” (2013). Neste quesito, vale destacar a maneira como Molly Crabapple

define a série em uma entrevista com Warren Ellis, em tradução livre: “Uma década antes da

expansão possibilitada pela Internet ao jornalismo independente, Transmet corrompeu uma

geração de jovens repórteres, dando-lhes a noção de que o jornalismo era a bala que poderia

"explodir uma patela para fora do mundo.’” (CRABAPPLE, 2013)

O modo agressivo com que Crabapple se refere ao jornalismo retratado na HQ, se dá pelo

próprio comportamento de Spider: autodestrutivo, violento e radical. No universo em que habita,

ele se vê à mercê de estranhas tecnologias, seres alienígenas e a corrupção pelo poder, que não é

um elemento de ficção e muito menos científica como os anteriores. Há momentos em que o

jornalista chega a ser impossibilitado de publicar a verdade sobre acontecimentos, pois estes têm

relação com a atuação incompetente do presidente eleito, que manipula tecnologias e a livre

circulação de informação. Em consequência de situações como esta, Spider praticamente declara

guerra ao presidente, apelidado de “O Sorridente” devido a seu sempre exposto sorriso falso, e se

dedica a derrubar seu antagonista utilizando as ferramentas que têm a mão. (ZENI, 2014)

Muitos dos acontecimentos noticiados por Jerusalém são causados pelo uso negligente

da ciência e de tecnologias, que no século XXIII estão à disposição apenas daqueles que podem

pagar por elas. A postura do jornalista cria um contraponto com os discursos hegemônicos e os

acontecimentos. Suas reflexões são ásperas e pungentes, pois ele odeia aquele mundo

tecnologicamente avançado e completamente dominado pelos poderes estabelecidos. Talvez as

únicas coisas que mais o irritem sejam a desatenção e o desinteresse de uma parcela da

população em relação à manipulação de suas vidas por parte das minorias que detêm o poder.

O protagonista busca, em vários momentos durante a série, abrir os olhos destas pessoas para

que elas também se manifestem e lutem por seus direitos e deveres dentro da sociedade, pois

uma pessoa sozinha talvez não tenha condições de mudar o status quo vigente, mas a força que

resulta da união de várias delas é capaz alterar toda uma conjuntura social. Spider não é o herói

fundamental que mudará tudo sozinho, mas com certeza, nestas narrativas, ele está dando o

primeiro passo para que isso aconteça, incitando as pessoas para que se organizem e enfrentem

a dominação e manipulação.

Durante a leitura da HQ foram destacadas situações que revelam conceitos de ciência e

tecnologia presentes para conceber o universo futurista opressivo em que ela é desenvolvida. A

representação visual do ambiente futurista e invadido por tecnologias é bastante detalhado de

uma forma muito negativa, sempre ressaltando os efeitos nocivos e a pobreza da população,

que se faz presente em toda a série, uma vez que o personagem principal, no papel de um

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jornalista, está regularmente perambulando pelas ruas da Cidade. Nas páginas desta HQ, é

comum o leitor se deparar com pessoas com membros mecânicos enxertados em seus corpos;

seres alienígenas e híbridos, principalmente nas regiões mais pobres (constituindo “minorias”

marginalizadas); a extrema sujeira nas ruas; veículos voadores, etc. (Ver figura 1)

Figura 1 – Capas e páginas originais da revista Transmetropolitan, exibindo o caos urbano da Cidade;

seres alienígenas e híbridos; a tecnologia presente, incluindo enxertos em membros e a possibilidade de

adquirir traços animais artificiais por períodos de tempo; a pobreza e sujeira das ruas e uma vista

do horizonte da cidade, com seus veículos voadores. Fonte: coleção particular do autor.

Além disso, há citações ao uso de nanotecnologia e criogenia, que são tecnologias já

exploradas no mundo real e que vêm sendo desenvolvidas desde meados do século XX, mas,

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com a diferença de que na série em quadrinhos, estas tecnologias são facilmente aplicadas ao

seres humanos – um reflexo do assim chamado progresso científico e tecnológico alcançado

em algumas centenas de anos (lembrando que a narrativa se passa no século XXIII).

O determinismo tecnológico se faz onipresente em toda a narrativa, a inexistência de

uma democracia é clara e o domínio de poucos permeia as páginas e as lutas de Spider.

Muitos dos aspectos teorizados por Feenberg, Hughes e Callon são observados na

narrativa de Transmetropolitan. Inicialmente, pode-se afirmar que o retorno de Spider

Jerusalém para a Cidade, por si só, já é uma alteração de elemento na rede de atores no universo

desta história em quadrinhos, influenciando todos os outros com seu jornalismo honesto e

brutal. Sua atuação propõe uma alternativa no modo de organizar e de se apropriar das

tecnologias da comunicação, na maneira de divulgar e utilizar os conhecimentos produzidos

pela ciência. Sugere-se a ideia de que o conhecimento deve ser produzido e compartilhado

coletivamente. Além disso, a presença do protagonista é, também, uma perturbação da ordem

estabelecida, sendo considerado subversivo por aqueles que detêm o poder, como “O

Sorridente”, por exemplo, e sendo combatido por isso.

Spider se vale das tecnologias à disposição para se comunicar, informar, denunciar,

lutar, sobreviver e até mesmo se entorpecer. Não há um desejo de destruir aquela sociedade,

mas uma tentativa de convencer as pessoas de que há outros caminhos possíveis de

desenvolvimento e de entretenimento. Para democratizar a verdade, é preciso abrir os olhos das

pessoas que são manipuladas e alterar o status quo vigente, acabando com o governo

totalitarista e estendendo a cidadania até mesmo para os mais excluídos, que vivem à margem

de uma coletividade que os isola e ignora.

Nesta HQ a maioria dos seres humanos são componentes de um sistema tecnológico e,

também, artefatos dele, pois apesar de não terem sido criados para ele, não possuem liberdade

nem consciência de seu poder de luta e negociação. Cansados e desiludidos, os seres buscam

acesso às distrações que os mantêm absortos da realidade desumana em que vivem.

Em diversos momentos, são os artefatos tecnológicos e/ou os avanços científicos que

desencadeiam situações nas quais os piores aspectos dos seres humanos são expostos, como em

uma sequência em que um menino é assassinado cruelmente por um grupo preconceituoso

extremista. O grupo em questão se vale de um dispositivo semelhante a um escâner portátil,

que lhes permite identificar pessoas com mutações genéticas. O simples fato de possuir uma

diferença é o suficiente para inflamar os ânimos e o conflito acontece, mesmo que a mutação

encontrada não fosse de escolha da vítima, mas uma herança genética herdada de sua família.

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Em um mundo em que vivem seres alienígenas, híbridos e alterados geneticamente, a xenofobia

pode ser apenas uma das consequências nocivas de grupos que disseminam a intolerância. Ao

mesmo tempo em que a ciência e a tecnologia evoluíram a ponto de permitir a já citada

transformação de um ser humano em uma nuvem holográfica, parece que a natureza humana

não conseguiu florescer e acompanhar o tal progresso científico. (Ver figura 2)

Figura 2 – O grupo extremista e seu artefato tecnológico capaz de identificar mutações genéticas em seres

humanos; e o resultado excessivamente brutal das ações deste grupo. Fonte: coleção particular do autor.

Aqui há uma característica muito comum nas distopias, de se utilizar um mundo distante

no tempo como forma de criticar a sociedade contemporânea. Trata-se de uma visão pessimista

e um tanto nostálgica, que imagina o futuro como uma evolução linear das máquinas e das

invenções e a centralização do poder nas mãos dos grandes empresários e industriais como

única ordem possível. No fundo, há uma exacerbação dos princípios neoliberais e um conceito

de democracia pautado no domínio norte americano. Os humanos são colocados como centro

das decisões, em detrimento do meio ambiente e dos demais seres que habitam o mesmo espaço.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Transmetropolitan, apesar de ter sido publicada originalmente há mais de uma década,

se faz muito atual pelos temas abordados, refletindo situações que ainda ocorrem nos dias de

hoje, como muito bem evidencia Lielson Zeni: “Qualquer leitor que acompanhe minimamente

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as notícias de 2014 sobre o que acontece no Brasil, na Ucrânia e na Venezuela vai encontrar

um eco disso tudo nesta HQ escrita 14 anos antes. Isso não é profecia, é trabalhar com situações

de base e argumentos de discussão.” (2014).

Vale mencionar, por fim, uma característica muito enraizada na cultura dos quadrinhos

norte-americanos (os chamados comics) – especialmente nos de super-heróis – que é a postura

individualista que os protagonistas assumem, do salvador, o escolhido, aquele que vai liderar o

povo em busca de um “bem maior”. Na prática, esta peculiaridade pode ser encontrada em outras

manifestações artísticas populares, como o cinema e a literatura, sendo o filme Matrix (produzido,

escrito e dirigido pelas irmãs Wachowski, 1999) ou o romance O Código Da Vinci (escrito por

Dan Brown, 2003), alguns exemplos. Percebe-se que este é um valor inserido nos costumes norte-

americanos, mais especificamente nos Estados Unidos, e que manifesta uma propaganda do

pensamento corrente naquele país, que desta forma se coloca também como um herói mundial

com seu “modo de vida americano” exportado para onde for possível, trazendo consigo o

progresso e a prosperidade baseados em ciência e tecnologias desenvolvidas no país. Esse

comportamento acaba por apresentar os protagonistas destas histórias, em sua maioria, como se

eles estivessem acima dos interesses e das relações de poder que ocorrem na sociedade.

No caso de Transmetropolitan, além de Spider personificar este protagonista herói

autocentrado, a série ainda se apropria de questões referentes à informação, os jogos de interesses

das mídias, as manipulações das mensagens, a censura e o papel do jornalismo, que aqui assume

uma posição de arauto da verdade (com Spider Jerusalém), ao mesmo tempo em que critica os

meios de comunicação concorrentes pelas manipulações em que estão envolvidos.

Esta série exibe com bastante ironia um futuro desumano, no qual as pessoas interagem

com uma vasta inserção tecnológica ao mesmo tempo integradora e excludente, pois integra

parte da população em ambientes tecnologicamente mediados, facilitando a comunicação e

compartilhamentos; mas descarta todos aqueles que não têm condições de pagar pelos avanços

científicos, acentuando as desigualdades e agravando a situação dos menos favorecidos.

O fato de apresentar a história pelos olhos de um jornalista resulta em uma estratégia

bastante interessante de reflexão, debatendo o papel das mídias e os processos de recepção e

interação das pessoas com os artefatos científicos e tecnológicos e as diversas interpretações

veiculadas pela imprensa. O futuro distópico representado na HQ Transmetropolitan e as

experiências vividas tanto pelo protagonista quanto pelas pessoas à sua volta, permitem

questionar abertamente a inserção da tecnologia como um caminho incontestável em busca do

desenvolvimento e do bem estar humano, conforme prega o determinismo tecnológico. A série

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oferece um retrato possível de como a tecnologia influencia e altera profundamente as relações

sociais, mas não de forma a criar um ambiente equilibrado e justo, muito pelo contrário. O que

se vê é uma sociedade ainda mais inclemente e desigual, que necessita de uma mobilização das

pessoas para que se transforme.

REFERÊNCIAS

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analysis. In: Wiebe E. Bijker; Thomas P. Hugues; Trevor J. Pinch. (eds.). The social

construction of technological systems: new directions in the sociology and history of

technology. Cambridge: The MIT Press, 1987, pp.83-103.

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with Warren Ellis. The Paris Review. 2013. Disponível em: <http://www.theparisreview.org/

blog/2013/08/15/one-murder-is-statistically-utterly-unimportant-a-conversation-with-warren-

ellis/ >. Acesso em: 15 mai. 2016.

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In: NEDER, Ricardo T. (org.) A teoria crítica de Andrew Feenberg: racionalização

democrática, poder e tecnologia/ Ricardo T. Neder (org.). –- Brasília: Observatório do

Movimento pela Tecnologia Social na América Latina / CDS / UnB / Capes, 2010, pp. 67-95.

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Vertigo. Hotsite Panini. Transmetropolitan. Disponível em: <http://hotsitepanini.com.br/

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Acesso em: 12 mai. 2016.

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____________. Transmetropolitan – Volume 4 – Cidade solitária. UniversoHQ. 2014.

Disponível em: <http://www.universohq.com/reviews/transmetropolitan-volume-4-cidade-

solitaria/>. Acesso em: 12 mai. 2016.