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Maria D’Alva Gil Kinzo Representação Política  e Sistema Eleitoral  no Brasil SÍMBOLO edições  símbolo

Represetação Política e Sistema Eleitoral No Brasil

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  • Maria DAlva Gil Kinzo

    Representao Poltica e Sistema Eleitoral no Brasil

    SMBOLO edies sm b o lo

  • NOTA DA AUTORA

    O presente ensaio foi apresentado ao Programa de Estudos de Ps- Graduao em Cincias Sociais da PUCSP para a obteno do ttulo de Mestre em Cincia Poltica. Compuseram a banca examinadora os Profs. Drs. Bolivar Lamounier, Jos Augusto Guillon de Albuquerque e Jos Murilo de Carvalho a quem agradeo os comentrios.

    Na elaborao deste trabalho contei com o apoio do Centro Brasileiro de Anlise e Planejamento CEBRAP, ao qual sou muito grata.

    Quero agradecer especialmente a Bolivar Lamounier, no apenas pela orientao dada a este estudo, mas principalmente pela confiana que me infundiu e pelo estmulo intelectual que tem sido nosso convvio no trabalho.

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  • Representao Poltica e Sistema Eleitoral no Brasil

  • APRESENTAO

    Este trabalho de Maria DAlva Gil Kinzo, apresentado como tese de mestrado ao programa de ps-graduao em Cincias Sociais da PUC-SP, pe em relevo e comea a preencher uma lacuna grave nos estudos brasileiros de Cincia Poltica. Refiro-me ao conceito de representao poltica e avaliao da experincia brasileira neste setor. A muitos poder parecer paradoxal esta afirmao, tendo-se em vista nossa longa tradio de estudos jurdico-normativos e o vasto acervo de monografias histricas que salientam as distores do regime representativo entre ns. Estou porm seguro de que, a partir deste e de outros trabalhos recentes, ir o leitor perceber a urgncia de um reexame, em nvel terico, do problema da representao poltica. Perceber tambm que essa urgncia no se prende apenas s distores acima referidas, mas sobretudo, necessidade de se repensar a democracia no mundo contemporneo. Sem desmerecer o cuidado com que a autora reconstitui a experincia brasileira de representao eleitoral, eu diria inclusive que o mrito maior deste trabalho a proposta que ele contm de se iniciar esse reexame em um nvel terico apropriado.

    Transplantado da Europa Ocidental e dos Estados Unidos para uma colnia mercantil-escravocrata, e posteriormente para uma repblica cuja vida econmica assentar-se-ia ainda por muitas dcadas no binmio latifndio-monocultura, o regime representativo entre ns iria evidentemente distanciar-se muito dos ideais normativos da teoria liberal-democrtica que o inspirou. Esta evidncia to cristalina, to denso o acordo que em torno deste ponto se formou no pensamento brasileiro, que s muito recentemente comeamos a perceber as limitaes deste argumento. Uma que, bem ou mal, deu-se entre ns uma considervel expanso da cidadania (recorrendo aqui expresso

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  • tornada clssica por T. H. Marshall). Embora persista a inqua excluso dos analfabetos, embora a legislao e as prticas administrativas da justia eleitoral contenham ainda muitos fatores que tornam demasiado elevados os custos da participao poltica por essa via; e embora a corrupo eleitoral esteja longe de ser erradicada nas regies menos urbanizadas e desenvolvidas, necessrio ter-se em conta que j no vivemos os tempos do voto de cabresto, do bico de pena e dos currais eleitorais. Mudanas de grande magnitude j se processaram, neste setor, e precisamente este o fato que confere conjuntura poltica ps-1974 a sua peculiar fecundidade como preldio de uma democratizao mais efetiva. Confrontado com a inviabilidade de uma institucionalizao duradoura, convencido de que no possui um discurso coerente, o regime autoritrio viu-se obrigado a jogar o jogo poltico-eleitoral, buscando na estratgia de normalizao democrtica uma renovao de sua legitimidade rapidamente declinante. Constatou, porm, e neste sentido as eleies de 1974 constituram um divisor de guas, que esse jogo, nas condies brasileiras atuais, no se pode reduzir a uma mera encenao. Uma vez iniciado, ele pe efetivamente em marcha um processo de democratizao. Diante destes fatos, tinha de atenuar-se, como de fato se vem atenuando, a viso tradicional segundo a qual o nosso regime representativo definitiva e irremediavelmente uma farsa de pas colonial.

    O que talvez no se pudesse.imaginar, durante o Imprio e a Primeira Repblica, que o distanciamento entre os ideais e a prtica teria entre ns conseqncias de longo alcance na vida intelectual, a ponto de ainda hoje desestimular, mantendo como irrelevantes e esotricas, quaisquer reflexes que procurem situar o problema da representao poltica num quadro terico mais amplo. Formou-se entre ns um discurso (para usar mais uma vez um termo da moda) no qual o problema da representao se v aprisionado a uma rgida (e pobre) dicotomia: ou bem ele enfocado sob o prisma juridico, atendo-se ao que dispe a lei positiva, especialmente a lei eleitoral; ou bem se refaz o percurso de sempre, procurando mostrar a distncia existente entre o ideal normativo e as prticas efetivas: entre as elites e as massas ; entre a cidadania abstrata e o voto de cabresto; entre a lei eleitoral e sua fraude; entre o Brasil legal e o Brasil real . No se pretende afirmar, claro, que a crtica social contida nesta ltima seqncia de contrastes tenha perdido sua razo de ser. Longe disso. Afirmamos, sim, que enquanto o debate sobre a representao for enfocado apenas nestes termos, sua concluso estar de certo modo pr- estabelecida. como se dissssemos: a representao entre ns ser sempre uma farsa, dado que nunca foi outra coisa.

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  • Neste sentido que o presente trabalho de Maria D Alva Gil Kin- zo consegue efetivamente dar dois passos adiante. O primeiro, como j foi dito, deve-se meticulosa preciso com que mostra as mudanas j ocorridas na estrutura scio-econmica, em particular as que se associam ao processo de urbanizao, e o conseqente deslocamento das tendncias eleitorais em direo a um plo, digamos, mais moderno , mais urbanizado, menos dependente de chefias clientelsticas. O segundo, e que a meu ver ainda mais importante, o de haver proposto um reexame do prprio conceito de representao.

    Que , afinal, representao? Como aferir sua presena ou ausncia num sistema poltico? Sua maior ou menor fidedignidade ? Tratar-se- de uma questo meramente subjetiva, devendo-se tomar como natural que nos consideremos sempre mais representativos que os nossos adversrios, e vice-versa?

    Baseando-se na obra clssica de Hanna Pitkin, The Concept o f Representation, mostra-nos a autora do presente livro que no existe um conceito nico ou unvoco de representao. Quase poderamos afirmar, estendendo seu pensamento, que a reduo da representao a uma quantidade inconscientemente praticada quando dizemos que uma assemblia menos (ou mais) representativa do que outra , obscurece em vez de trazer para o claro a questo principal. A verdade que a representao pode ser entendida de diversas maneiras, cada uma delas implicando diferentes supostos a respeito de quem e do que deve ser representado, e mesmo quanto natureza dos interesses , desejos ou sentimentos considerados passveis de representao . Esta investigao prvia, como se pode facilmente perceber, abre novos caminhos no s para o estudo dos sistemas eleitorais e de outros mecanismos formais de representao, mas at mesmo para a questo mais ampla das inmeras formas e pressupostos pelos quais alguns grupos representam outros na vida social, interpretando e delimitando seus interesses.

    O ponto central portanto o de que, subjacente a quaisquer debates sobre a menor ou maior representatividade de um corpo legislativo, de uma associao, ou de um regime, e subjacente mesmo s normas legais atravs das quais determinados indivduos se investem de uma funo representativa , existem diferentes imagens ou metforas que correspondem a diferentes entendimentos do verbo representar. Esta formulao do problema tem conseqncias bastante amplas, a principal sendo sem dvida a de que o conceito de representao no pode ser confinado ao mbito do indivduo histrico que habitualmente designamos como Estado burgus, ou Estado liberal-representativo. certo que nesse tipo de Estado a necessidade da representao ou, dizendo-o ao contrrio, a impossibilidade do

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  • governo direto pelas massas tomada como axiomtica, tornando- se em conseqncia fundamental a explicitao e a formalizao dos critrios de representao. A formulao de Hanna Pitkin, reproduzida c em alguns pontos ampliada pela autora deste livro, vem exatamente mostrar que o debate clssico dos sculos XVIII e XIX refere-se a um contraste demasiado forte, contrapondo de maneira radical a representao o-representao. Isto se deveu em grande parte ao excessivo intelectualismo da viso liberal, acreditando alcanar a integrao poltica pela via do debate parlamentar. Concebendo o mundo poltico, para usar uma frase famosa, imagem do mundo forense , bastava-lhe afirmar que o poder emana do povo e, em seguida, instituir condutos formais que representassem tudo o que fosse representvel . Mas quem define o que representvel? Esta a indagao que no se fez com suficiente clareza no debate clssico. Em vez de explorar os diversos matizes do conceito de representao, a oposio ao Estado liberal burgus tomou a forma radical da democracia direta, ou de vises de uma sociedade anrquica, inteiramente descentralizada, como que tomando ao p da letra a frase governo do povo pelo povo. Ora, o que a teoria contempornea nos est sugerindo que o contraste no se d propriamente entre a representao e a no-representao, mas sim entre diferentes conceitos de representao, ou entre diferentes metforas nas quais se corpo- rificam os diversos significados do verbo representar.

    Bem antes da teoria, contudo, a realidade histrica se havia incumbido de mostrar quo difcil sustentar na prtica o contraste clssico entre a representao e governo direto. Mostrou que, em sociedades de larga escala, a representao no sentido burgus clssico no substituda pelo governo direto pelo menos no na extenso pretendida por uma longa linhagem de tericos, de Rousseau a Lenin. substituda, sim, por outros conceitos de representao, e aqui, precisamente, onde se encontra uma das grandes tarefas da teoria poltica contempornea: explicitar esses outros conceitos, embutidos na prtica institucional dos diferentes regimes e das diferentes experincias de transformao poltica do mundo atual, e refletir sobre suas implicaes e conseqncias. Retoricamente, sabido que a supresso dos mecanismos clssicos, notadamente do pluripartidarismo e do voto, se faz com freqncia em nome de uma representao mais substantiva , mais justa , mais fidedigna , ou ainda em nome da eficincia ou da inevitvel transferncia de poder para as burocracias no mundo moderno. E efetivamente possvel que em muitos casos se esteja realmente tentando enriquecer a representao popular, na medida em que se procura torn-la mais direta, mais densa, mais gil, mais diferenciada. Mas tambm provvel que em muitos casos se esteja na realidade expropriando dos cidados a

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  • pequena parcela de poder que lhes cabia num sistema de representao previamente existente. Isto provavelmente o que ocorre quando mecanismos de autorizao formal so substitudos por manifestaes espontneas , vale dizer, simblico-plebiscitrias. Ou quando o conceito genrico do cidado substitudo pela idia de representao corporativa. Ou quando se aceita que um rgo burocrtico, em vez de ouvir diretamente os interessados, se erija em intrprete de seus desejos e interesses.

    Talvez seja esta uma das principais lies a se extrair da experincia histrica deste sculo: a inevitabilidade da representao e, conseqentemente, a necessidade de repens-la radicalmente, a fim de torn-la compatvel com o ideal democrtico. Esta a perspectiva que nos abre este livro de Maria DAlva Gil Kinzo, mostrando, tanto no plano terico quanto no reexame da experincia brasileira, que a pergunta o que representar? no comporta respostas simples e rpidas. Assinale-se, neste particular, a importncia do ltimo captulo, onde a autora analisa os pressupostos doutrinrios do sistema de voto proporcional introduzido por Assis Brasil. Sabe-se que a inteno do voto proporcional, em suas matrizes europias, era sobretudo a de refletir fielmente, como um espelho, os diversos matizes da opinio pblica, o que na prtica implicava em dar uma chance razovel de representao no parlamento a quaisquer minorias significativas. No deixa de ser paradoxal a introduo deste sistema no Brasil, se considerarmos o carter fortemente autoritrio e elitista de nossa tradio poltica e, sobretudo,'a reiterada insistncia de nossos tericos, no incio do sculo, quanto ao amorfismo do povo brasileiro, a in- diferenciao entre as esferas pblica e privada, o sentido invertebrado de nossa estrutura social. A autora deste livro demonstra que, pelo menos no tocante obra de Assis Brasil, o enigma no existe; sua defesa do voto proporcional baseia-se, ao contrrio do que se poderia esperar, na inteno de assegurar a estabilidade poltica e a autonomia do interesse nacional diante da diversidade dos interesses particulares . Baseava-se, portanto, numa argumentao que se pode considerar em grande parte contrria doutrina tradicional do voto proporcional, muito embora esta ltima tambm contemple a convenincia de quebrar o localismo da representao (que se supe inevitvel no voto distrital). Seja qual for o caso, mostra-nos Maria D Alva Gil Kinzo que a obra de Assis Brasil contm uma idia ntida do que deveria ser a representao, e um prognstico sobre como iria efetivamente funcionar entre ns o voto proporcional. Cinqenta anos depois, cumpre-nos indagar: No estaria ele certo em seu prognstico? Em vez de assegurar a representao diferenciada das correntes ideolgicas, no ter o voto proporcional entre ns contribudo para uma excessiva diluio do vnculo entre representantes e representa-

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  • dos? Tampouco podemos imaginar que esta pergunta comporte uma resposta simples e clara, mas o fato de suscit-la suficiente para indicar a atualidade e a importncia deste livro.

    Bolivar Lamounier

    So Paulo, 21 de maro de 1979

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  • INTRODUO

    Os estudos sobre a representao politica no Brasil tm trabalhado, na maior parte das vezes, com um conceito vago de represen- tatividade. Principalmente nas anlises sobre o perodo democrtico- representativo de 1946-1964, tem-se falado da representatividade do legislativo brasileiro no sentido de mostrar se ele refletia ou no os diferentes grupos ou classes sociais, se os partidos expressavam ou no os interesses das classes que compunham a sociedade, relegando-se a segundo plano, ou deixando implcitas, as questes relativas aos mecanismos da representao. Talvez por consider-los como pressupostos, ou como um fator elementar no merecedor de estudo, o fato que estes mecanismos da representao no se constituram em objeto de um estudo sistemtico. Nossa preocupao neste trabalho dar a devida importncia a esta problemtica. Com este objetivo, trataremos de examinar as seguintes questes: o que representao, quem so os representados, como se d a representao.

    Por outro lado, no momento em que surgem novas condies para que o pas caminhe para um sistema poltico mais aberto participao, nossa tentativa ser a de contribuir para uma reflexo a respeito da representao no Brasil, problema que hoje ganha espao no debate poltico.

    Este estudo se divide em duas partes: a primeira trata das perspectivas tericas da representao poltica, e a segunda a partir do segundo captulo, situa a questo da representao no quadro poltico brasileiro. *

    O primeiro captulo trata de discutir o conceito de representao em suas diferentes conotaes. Aqui trabalhamos com trs posturas que focalizam a representao, quais sejam, a concepo da autoridade, a concepo descritiva e aquela que define a representao

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  • pelo ngulo da atividade do representante. Este captulo, alm de fazer um exame do conceito de representao, tem por objetivo for- necer-nos elementos para podermos pensar a representao poltica no Brasil.

    No segundo captulo discutimos a questo da cidadania poltica no que se refere ao direito de voto, ou seja, como ocorreu no Brasil o processo de aquisio e ampliao do direito de participao no sistema representativo.

    No terceiro captulo trabalharemos com a questo da participao poltico-eleitoral, vale dizer, trataremos de mostrar como se tem dado a participao poltica dos representados no sistema eleitoral. Partindo do perodo monrquico, tratamos de estudar no apenas os mecanismos legais e prticos que influam na participao como tambm as condies scio-econmicas que determinavam, em grande medida, a histria da participao no processo eleitoral.

    Finalmente, o quarto captulo visa discutir a questo da representao poltica no Brasil do ngulo do sistema eleitoral. Trata-se aqui de delinear, atravs do estudo das reformas no sistema eleitoral que sofreu o pas desde o Imprio, alguns traos caractersticos das concepes ento correntes no Brasil sobre a representao poltica.

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  • P A R T E I

    PERSPECTIVAS TERICAS

  • I _ o CONCEITO DE REPRESENTAO POLTICA

    1 INTRODUO

    O conceito de representao poltica tem sido usado nos mais diferentes sentidos, assumindo to ampla conotao que tem servido para justificar o poder em regimes dos mais diferentes matizes. Desde estadistas que galgaram o poder pela via eleitoral at aqueles sustentados por regimes de fora, diziam-se (e dizem-se) representantes do povo de sua nao, de modo que o conceito e a prtica da representao poltica nem sempre tem sido relacionados com democracia e liberdade.

    Torna-se relevante, desta forma, discutir o conceito de representao, identificando os diferentes significados que o termo tem denotado e que justificam to amplo uso. Ser esta portanto nossa preocupao neste captulo.

    Para efeito de uma melhor sistematizao, trataremos de discutir os vrios sentidos que polticos e tericos polticos tm dado ao conceito de representao, atravs de trs modos de focalizar o problema, seguindo o caminho sugerido por Hanna P itkin1. O primeiro advm da viso da representao em Hobbes, e deu origem a uma concepo centrada na idia de autoridade. O segundo enfoque aquele que desenvolve a idia da representao como reflexo de alguma coisa ou algum. Finalmente, a terceira forma de abordar a questo, centraliza a discusso na prpria atividade de representar.

    1. Hanna F. PITKIN, The concept o f Representation (Berkeley: University o f California Press, 1972).

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  • 2 R E P R E SE N T A O E A U T O R ID A D E

    Thomas Hobbes, terico do absolutismo, foi talvez quem primeiro formulou uma discusso sistemtica sobre o conceito de representao poltica, embora o significado que ele deu ao termo esteja bem distante daquele que ns usualmente empregamos.

    A viso da representao em Hobbes est intimamente ligada idia de autoridade; mais precisamente, o prprio conceito de autoridade que faz possvel pensar em representao.

    Hobbes parte da noo de que, tendo um homem o direito de executar uma ao, ou seja, a propriedade da ao (o que ele denomina autor ), este homem pode execut-la ele mesmo, ou pode autorizar algum a faz-la por ele. A pessoa que age em nome de quem lhe passou o direito o que ele chama de ator tem autoridade para agir pelo autor da ao. Como ele afirma no captulo 16 do Leviat:

    E tal como o direito de posse se chama domnio, assim tambm o direito de fazer qualquer ao se chama autoridade. De m odo que por autoridade se entende sempre o direito de praticar qualquer ao, e feito por autoridade significa sempre fe ito por comisso ou licena daquele a quem pertence o direito 2.

    Se uma pessoa age em nome de outra e se essa ao feita por autoridade , ou seja, por licena daquele a quem pertence o direito , segue-se que esta pessoa personifica o outro. E personificar representar, seja a si mesmo ou a outro; e daquele que representa outro diz-se que portador de sua pessoa, ou que age em seu nome .3 Portanto, representar ter autoridade para agir, e ter autoridade ter recebido o direito do outro de agir em seu nome.

    Ao passar para o domnio da poltica, a questo se coloca da seguinte forma. Partindo da idia do estado de natureza onde a luta permanente de uns contra os outros por desejos conflitantes impossibilitaria a convivncia entre os homens, Hobbes deduz a necessidade de um pacto social a fim de criar uma unio duradoura entre eles. devido a essa necessidade que os homens criam um Estado, autorizando um entre eles a represent-los:

    2. Thomas HOBBES, Leviat ou, Matria, Forma e P oder de um E stado Eclesistico e Civil. (Traduo de Joo Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza de Silva, So Paulo: Abril Cultural, 1974), pg. 100.

    3. Ib id ., pg. 100.

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  • " Uma comunidade poltica pode dizer-se instituda, quando um grande nmero de homens pe-se de acordo, e pactua, entre si, que a maioria dar a qualquer homem, ou assemblia de homens, o direito de apresentar a pessoa de todos eles, isto , de ser seu representante; cada um autorizar todas as aes e julgamentos daquele homem, ou daquela assemblia de homens, da mesma maneira como se fossem as aes e julgamentos dele m esm o.4.

    Nota-se que na idia de representao como fica evidenciado na citao acima est implicito um consentimento que dado pela aclamao dos cidados que participam de uma comunidade poltica. Mas no se trata aqui de consentir uma determinada ao, mas de toda e qualquer ao. Os sditos, na medida em que aclamam um homem seu representante, autorizam todas as aes e julgamentos do soberano, de modo que sua autoridade ilimitada a ponto de no ter obrigaes de prestar contas sobre seus atos.

    Se se define a representao como a autoridade ilimitada atribuda a um homem para agir em lugar de outros, duas concluses podem ser depreendidas. Primeiro, o critrio definidor implcito nesta formulao do conceito externo e anterior prpria atividade de representar: o ter autoridade a condio prvia para a existncia da representao. Naquele sentido, no cabe falar em ato representativo, mas apenas em ao por autoridade ou ato autorizado. Segundo, o produto final desta definio a legitimao do poder de um soberano absoluto, de um regime de fora. Como salienta Pennock5, os principais argumentos dos quais ditadores e monarcas lanam mo na tentativa de provar sua legitimidade so, por um lado, a afirmao de que eles representam, do expresso e sustentam os interesses de seu povo, e por outro lado, o argumento de que eles esto, de algum modo, autorizados a agir em seu benefcio.

    Embora tenha sido Hobbes o primeiro a pensar a representao como uma questo de autoridade, no foi o nico a defender esta idia. Muitos tericos polticos modernos incorporaram esta definio, seja em sua verso original, seja dando origem a uma verso modificada, salientando o modo como a autoridade atribuda.

    O mais conhecido entre os tericos que desenvolveram concepo semelhante de Hobbes foi certamente Max Weber. Para ele, a representao tem lugar quando:

    4. English Works, ed. William Molesworth (London, 1839-1845), III, 159-160, citado em H annaF . PITKIN, op. cit., pg. 29.

    5. J. Roland PENNOCK, Political Representation , in PENNOCK and C H A P M AN (eds.), Representation (New York: Atherton Press, 1968).

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  • a ao de certos membros de um grupo atribuda ao resto; ou se supe, e de fa to ocorre, que o resto considera a ao como legtimapara eles prprios e assumindo para eles um carter de c o m p r o m is s o 6

    Representao implica autoridade de certos membros especficos para agir pelo grupo, e autoridade implica consentimento, legitimidade. Na medida em que a ao legitimada, quem consente compromete-se com a ao. neste sentido que Weber afirma que, se a ao de certos membros atribuda a todos, os benefcios resultam para todos e as conseqncias recaem sobre eles .7 Portanto o representado torna-se responsvel pelas conseqncias daquela ao, como se ele prprio a tivesse feito.

    Um outro problema que decorre deste modo de conceber a representao que nenhuma distino se faz entre cargos eletivos e no eletivos. Consideram-se representativos todos os rgos de Estado indistintamente, inclusive a burocracia governamental, ou seja, todo e qualquer indivduo ou rgo que execute uma funo pelo grupo, pois suas aes so atribudas a eles por se fundarem numa relao de autoridade. Desta forma, no existe nenhum mecanismo de controle sobre a ao dos representantes.

    Foi certamente em vista desta lacuna que, tambm partindo da idia de autoridade, alguns tericos da democracia representativa reformularam esta concepo. Para cientistas polticos como Tuss- man c Plamenatz8, o critrio crucial que d a autoridade para se agir em nome de algum so as eleies. As eleies so vistas como uma concesso de autoridade aos eleitos. Assim, a introduo do mecanismo eleitoral como forma de autorizar uma ao e a garantia de que este mecanismo se realize em perodos determinados, torna a autoridade limitada no tempo: em cada eleio os eleitores autorizam ou reau- torizam seus representantes.

    Mas tambm esta concepo nada nos diz da prtica da representao, do que acontece durante a atividade de um representante. No momento em que atravs de eleies se deu autoridade para agir em nome de outros, qualquer coisa que um representante faa ser legtima, ou seja, representativa .

    6. Max WEBER, Wirtschaft und Gesellschaft (Tbinger, 1956) I, 171, citado em PITKIN, op. cit., pg. 39.

    7. Ib id ., pg. 40.8. J .TU SSM A N , The Political Theory o f Thom as H obbes (1947); J. P.

    PI.AM ENATZ, Consent, Freedom and Political Obligation (London, 1938), citados por H .F. P1TKIN, op. cit.

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  • Criticando esta viso e tentando dar soluo a este problema que se desenvolveu a noo da responsabilidade dos representantes: a necessidade do representante prestar contas de seus atos aos representados. Se antes as eleies eram concebidas como um mecanismo de concesso de autoridade, agora elas so um mecanismo de colocar prova a responsabilidade do representante: um homem eleito um representante to-somente porque estar sujeito reeleio ou remoo no fim do seu mandato.

    Como afirma Sartori, ao criticar a construo formal que elaboraram certos juristas, baseada na noo de autoridade:

    O essencial na teoria elecionista pois garantir na efetividade e no tempo a obrigao dos governantes de prestar contas responsavelmente aos governados9 ... O erro (de Laband e daqueles que o repetem at Kelsen) fo i considerar as eleies como um ato de nomeao: enquanto so um poder, e um poder recorrente, de nomeao. E isto estabelece toda a diferena, porque quem detm o poder de confirmar ou no, em prazos determinados, um dirigente, mantm um poder contnuo sobre ele 10... Como valorizao do mrito e na medida em que atingem os mritos dos problemas, as eleies so uma ratificao ex post facto. A poltica de governo e a legislao dos parlamentares satisfaz ou no o eleitorado depois. O consentimento no dado em fu n o do que vem e sim em funo do que se passou . ' 1

    A idia de responsabilidade que Sartori e outros incorporaram teoria da representao nada mais do que um corretivo teoria da autorizao. Pois, na verdade, tambm a noo da responsabilidade cai na questo da autoridade, uma vez que a responsabilidade somente pe em xeque a reeleio de um representante: como fica esta questo quando se trata de um candidato em primeiro mandato? Na verdade esta viso apenas um complemento teoria da autorizao, um aspecto a ser levado em conta quando da reafirmao da autoridade ao representante.

    As vises do conceito de representao discutidas at aqui pecam por seu carter formalstico, uma vez que o critrio definidor do conceito encontra-se fora da relao representante-representado, no considerando o fato de que esta relao se d mediante um contedo

    9. Giovanni SARTORI, A Teoria da Representao no E stado Representativo M oderno (Belo Horizonte: Edies da Revista Brasileira de Estudos Polticos, 1962), pg. 53.

    10. Ib id ., pg. 78.11. Ibid ., pg. 107.

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  • substantivo. Se se deixa de lado o contedo da representao, est-se dando pouca importncia questo da existncia de interesses, desejos, seja individuais, seja de grupos ou classes sociais, dos quais os representantes podem ser portadores. Por este caminho, cai-se na idia genrica do interesse da nao , como se confirma nesta afirmao de Sartori, ao justificar o critrio da organizao territorial do eleitorado:

    A primeira [razo] que se os homens se devem unir, devero faz-lo em termos de princpios mais que de interesses p o r isso que a representao confiada aos indivduos como cidados, e no como membros de determinadas categorias, grupos ou sindicatos econmicos . 12

    A despeito das crticas atribudas a este tipo de abordagem, necessrio que nos ponhamos de acordo quanto ao fato de que esta teoria aponta um dos aspectos do conceito de representao. Supomos que todos concordariam que representao poltica de algum modo contm a idia de autoridade, no sentido de autoridade consentida. Mas representao poltica no se reduz a isso, como trataremos de mostrar atravs das outras formas de enfocar o problema.

    3 REPRE SE N TA O SIM BLICA E D E SC R IT IV A : DOIS EXTREM O S DA VIS O DO ESPELHO

    A segunda abordagem que trataremos de assinalar diz respeito identificao do significado da representao com o reflexo de alguma coisa ou algum. Se representar tornar presente alguma coisa que de fato no est presente, representar significa espelhar de algum modo o ausente. Pode-se partir da idia de um reflexo acurado daquilo que se quer trazer presente, e temos a representao descritiva. Ou, num outro extremo, pode-se pensar a representao como uma forma abstrata e/ou arbitrria de refletir, e temos a noo da representao simblica.

    Representao Simblica

    A teoria da representao simblica parte da premissa de que, do mesmo modo que uma bandeira um smbolo que representa a nao, pode-se pensar num smbolo que represente a totalidade dos cidados que compem uma nao. Mas um smbolo no espelha uma reali-

    12. Ibid., pg. 110-111.

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  • dade concreta; ao contrrio, ele uma pura abstrao dessa realidade. Uma bandeira, por exemplo, no estampa uma nao no sentido descritivo, ela simplesmente representa a nao porque se convencionou que ela seria seu smbolo. Assim, um smbolo representa to-somente porque ns dizemos que ele representa, o que equivale a dizer que a representao simblica s existe se algum nela acredita.

    Acreditar num smbolo como representando alguma coisa sem que haja nenhuma conexo entre smbolo e referente, acreditar numa conexo que puramente convencional e arbitrria. Representar torna-se ento uma questo de crena. E, de fato, os escritores que falam em representao simblica, acentuam o papel das reaes psicolgicas, emocionais e irracionais como sustentculos da condio de representante de um lder poltico definido nestes termos. Que justificao lgica, racional, pode haver para se acreditar numa conexo que puramente convencional e arbitrria? N enhum a.13

    Portanto, representar o povo, no caso de um lder poltico, nada mais do que simbolizar uma abstrao como a nao; e na medida em que o povo acredita, o lder poltico o representa por definio. Neste caso a representao poltica no concebida como uma atividade, a no ser no sentido estrito da prpria atividade (simblica) de fazer com que o povo aceite um lder poltico como seu representante. Esta atividade reduz-se portanto a buscar a aceitao dos seguidores atravs de tcnicas de liderana que explorem elementos de crena no racionais ou emotivos.

    desta natureza a teoria fascista da representao, que enfatiza o papel do lder poltico como smbolo da nao e se apia em elementos de crena irracional. Como bem assinala Pennock, referindo-se a Hitler, o poder ltimo e a responsabilidade era sua, dizia o Fher, porque atravs dele o esprito verdadeiro do povo germnico encontrava sua expresso . 14 A representao, portanto, um meio de assegurar o poder de um lder sobre seus seguidores. O consentimento destes ltimos em boa parte, o produto de tcnicas de liderana, de paradas e de uniformes.

    Representao Descritiva

    A viso que mais se adequa analogia do espelho aquela que ser denominada representao descritiva. A preocupao principal

    13. Este significado da representao poltica tem a ver com o conceito de liderana carismtica de Max Weber: um lder carismtico obtm autoridade para agir, para representar, pela crena irracional de seus seguidores. Ver Max W EBER, Econom ia y Sociedad (Mxico: Fondo de Cultura, 1969).

    14. J.R . PENNOCK, op. cit., pg. 7.

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  • com a correspondncia de caractersticas entre corpo representativo e representados, e conseqentemente os estudos de tericos que sustentam ial concepo voltam-se para a questo da composio de uma assemblia e na forma como so eleitos os representantes. Neste sentido, para que uma legislatura seja realmente um corpo representativo, requer-se que ela seja selecionada de tal modo que sua composio corresponda acuradamente totalidade da nao.

    Da mesma forma que uma amostra estatstica uma parcela representativa do universo, para os tericos da viso descritiva a representao poltica deve ser uma amostra representativa da totalidade da nao. Como argumentava John Adams, durante a Revoluo Americana, uma legislatura representativa, deveria ser um retrato exato, em miniatura, do povo em geral, de modo que ela deveria pensar, sentir, raciocinar e agir como ele . 15

    Na medida em que a representao significa um reflexo exato da comunidade, ou da opinio geral da nao, ou da variedade de interesses da sociedade, torna-se pertinente para esta teoria a preocupao com as caractersticas dos representantes; o que eles so e como eles so. Como produto desta preocupao, muitos estudos sobre o legislativo focalizam sua composio scio-econmica, partindo, na maior parte das vezes, do pressuposto de que esta composio determinar a atividade representativa.

    Se se enfatiza a composio de um corpo legislativo, assume importncia determinar se o sistema eleitoral garante ou no a correspondncia entre esse corpo e a nao como um todo. neste sentido que os tericos da representao descritiva so quase sempre aqueles que advogam a representao proporcional como mecanismo eleitoral. A representao proporcional uma tentativa de assegurar a representatividade de uma legislatura, na medida em que ela torna possvel que as vrias divises do eleitorado estejam l refletidas com exatido quase matemtica. E o fato de que os segmentos do eleitorado tenham porta-vozes proporcionalmente ao seu peso numrico garante a relao representante/representado, uma vez que se define como atividade dos representantes o trazer para o debate parlamentar as opinies dos seus constituintes.

    A concepo descritiva acrescenta um aspecto importante ao significado da representao poltica, qual seja o de estabelecer uma relao entre representante e representados: uma pessoa representa outras por ser semelhante a elas. portanto a correspondncia de

    15. John A D A M S, Letter to John Penn , Works (Boston, 1852-1865), IV, 205, citado em PITKIN, op. cit., pg. 60.

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  • caractersticas que assegura a representao e a relao representante- representados. Embora esta correspondncia de caractersticas entre base eleitoral e representante no necessariamente garanta que o segundo represente os interesses da sua base, a questo da composio de um corpo representativo relevante. Neste sentido, pode-se afirmar que o grande mrito da concepo descritiva estabelecer uma conexo bastante direta entre a reflexo terica e a prtica institucional, notadamente atravs do debate sobre diferentes sistemas eleitorais. Na discusso entre partidrios do voto proporcional e do voto distrital, por exemplo, evidente a presena de diferentes noes quanto fidelidade (descritiva) da representao e quanto importncia deste critrio em relao a outros valores polticos, tais como a estabilidade, o grau de fragmentao poltico-partidria, etc..

    4 REPRESEN TA O COMO A TI VIDA DE

    Situar o estudo do conceito de representao poltica no campo da atividade de um representante ou de um corpo de representantes, conduz-nos discusso de duas questes relevantes:

    7. Como e como se d a atividade representativa, ou seja, qual o papel de um representante num corpo legislativo. A discusso desta questo tem sido marcada pela controvrsia entre livre mandato ou representao independente versus mandato imperativo ou representao mandatria, delegada.

    2. O que orienta a atividade de um representante. Uma vez que uma atividade no se conduz no vcuo, falar da atividade de um representante implica levantar a questo da natureza dos interesses e/ou desejos, como eles so concebidos, de forma a nortear o ato de representar.

    O que trataremos de salientar nesta seo que estas duas questes esto intimamente relacionadas, uma vez que a posio assumida em um dos plos da controvrsia mandato livre-mandato imperativo depende do que se est entendendo por interesses e/ou desejos 16.

    A Controvrsia Mandato Livre-Mandato Imperativo

    No campo do debate terico duas posies tm sido assumidas quanto ao modo como se deve portar um representante no mbito de sua atuao.

    16. No queremos dizer com isso que as outras concepes antes discutidas no tragam implcitas estas questes; ao contrrio, elas esto presentes em todas. Justifica- se abordar tais temas apenas neste item pelo fato de nesta concepo eles constiturem os fundamentos explcitos da argumentao.

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  • Hilaire Belloc e G. K. Chesterton advogando o mandato imperativo afirmam:

    Ou o representante deve votar como seus constituintes votariam se consultados, ou ele deve votar no sentido oposto. N o ltimo caso, ele no um representante, mas meramente um oligarca; pois certamente ridculo dizer que um homem representa Bethnal Green se ele regularmente diz S IM quando o povo de Bethnal Green diria N O 17

    Na direo oposta segue a declarao de Lord Brougham:

    A essncia da representao que as pessoas desvinculam-se de seu poder, e o concedem, por um perodo limitado, ao deputado por elas escolhido, e que esse deputado deve desempenhar no governo aquele papel que, se no fosse esta transferncia, seria desempenhado pelas prprias pessoas. No h representao se os constituintes retm o controle a ponto de agirem por si mesmos. Eles podem comunicar-se com seu delegado... mas ele que deve agir no eles; ele deve agir por eles no eles por si mesm o s . 18

    Por um lado, defende-se o mandato imperativo porque no h representao se um homem no faz o que seus constituintes querem ; por outro lado, sustenta-se a independncia de um representante porque no h realmente representao se um homem no livre para decidir com base em seu prprio julgamento independente .

    Se ambos os argumentos nos parecem plausveis justamente porque so produto da prtica da representao que se desenvolveu historicamente. Especialistas no estudo da representao apontam como marco inicial para se falar em representao, o fim da Idade Mdia. Nesta poca a prtica da representao caracterizava-se pelo seu carter privatstico: os mandatrios eram delegados de um burgo, comunidade ou estrato especfico da populao. No eram dados poderes de deciso ao mandatrio; as decises deviam ter a aprovao expressa dos mandantes, e portanto deviam ser decididas previamente entre eles, sem o que o mandatrio poderia ser destitudo desta condio. Deste modo, o representante no tinha nenhum poder de ao

    17. H. BELLOC, and G . K. CH ESTERTO N, The P arty System (London: S. Swift, 1911) pg. 17 citado em PITKIN, Commentary: The Paradox o f Representation , in PENNOCK and C H A PM A N (eds.), op. cit., pg. 40.

    18. Lord BROUGHAM , Works, IX, 35-36, citado em PITKIN, ib id ., pg. 40.

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  • autnoma, era apenas o orador indicado para expor as reivindicaes de seu burgo, corporao, cidade ou classe social.

    Foi na segunda metade do sculo XVIII na Frana com a Constituio de 1791 e na Inglaterra por obra de um parlamentar conservador, Edmund Burke que esta noo de mandato imperativo foi questionada.

    Dizia a Constituio francesa: os representantes nomeados nos departamentos no sero representantes de um determinado departamento, mas da nao inteira , de modo que aos eleitos no poder ser-lhes dado nenhum mandato . 19

    Se a noo de que um representante no deve ser um delegado de sua base foi instituda com a Constituio francesa, a prtica da representao por mandato independente j vinha sendo defendida na Inglaterra por Edmund Burke. Em mensagem aos eleitores de Bristol, em 1774, criticando a idia da representao mandatria que tinha ainda muito suporte popular na metade do sculo XVIII, declarava Burke:

    "... Se governar fosse to-somente, em cada setor, uma questo de vontade, no h dvida de que a vossa deveria ser superior. Mas governar e fazer leis so questes de raciocnio e de julgamento; e que espcie de razo seria aquela na qual a deciso precede a discusso; aquela na qual um grupo de pessoas delibera e um outro decide...? Exprimir uma opinio o direito de todo homem; a dos eleitores uma opinio que pesa e que deve ser respeitada, que um representante deve estar sempre pronto a ouvir; e que ele dever sempre ponderar com grande ateno. Mas instrues imperativas; mandatos aos quais o membro {dos Comuns) deva expressa e cegamente obedecer, para os quais deve votar e em favor dos quais deve discutir...; essas so coisas totalmente desconhecidas pelas leis desta terra, e que derivam de um fu n damental erro sobre a inteira ordem e o teor da nossa constituio. O Parlamento no um congresso de embaixadores de interesses opostos e hostis; interesses estes que cada um deva tutelar, como agente e advogado, contra outros agentes e advogados; o Parlamento , ao contrrio, uma assemblia deliberante de uma nao, com um nico interesse, o de todos; onde no deveriam influir fin s e preconceitos locais, mas o bem comum... '20

    19. A p u d S A R T O R l, op. cit., pg. 19-20.20. Edmund BURKE, Speech to the Electors o f Bristol , in T. Lowi (ed.) Le

    gislative Politics USA (Boston, Little, Brown and Company, 1962), pg. 150-151.

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  • Paradoxalmente, como afirma Sartori, as instituies representativas nascem no momento em que se estabelece que o deputado no dever representar seus eleitores, esim a entidade nao .21

    Esta polmica que remonta ao sculo XVIII, tem sido alvo de debate no somente ao nvel terico, mas tambm nas constituies modernas.

    Em muitas constituies do mundo ocidental, o membro do parlamento definido como representante de toda a nao, sendo-lhe vedado agir sob presso do eleitorado. E no se trata apenas de uma formalidade jurdica; esta noo sustentada tambm na prtica constitucional. Na Repblica Federal Alem em 1958, a Corte declarou inconstitucional uma tentativa de organizar um plebiscito sobre a questo do armamento atmico, porque isto seria uma presso ilegal sobre o parlamento, cuja funo decidir livre e independentemente a poltica do pas. Na Frana, em 1960, o Presidente De Gaulle indeferiu o pedido de uma sesso extraordinria do parlamento, sob a alegao de que os deputados estavam agindo sob presso inconstitucional de algumas organizaes profissionais, quando eles eram obrigados pela constituio a agir independentemente.

    Se as constituies do mundo ocidental afirmam o princpio da independncia parlamentar, o inverso apontado nas constituies dos pases socialistas. Como assinala Sobolewsky,

    desde o tempo da Comuna de Paris o princpio da responsabilidade dos representantes para com seus eleitores, e o direito de remov-los do cargo, tm constitudo as bases da teoria socialista da representao, declaradas em todas as constituies dos pases socialistas.22

    Entretanto, do direito constitucional nem sempre se segue a prtica de seus princpios. Na prtica a idia do mandato livre no to simples quanto parece, pois existem os partidos polticos e grupos de interesse, que jogam um papel importante no comportamento parlamentar. A situao a mesma quando se trata das constituies de pases socialistas, que defendem o mandato imperativo. Sobolewsky, referindo-se ao princpio constitucional da Polnia do direito de remover os deputados da Dieta, afirma no entanto que,

    21. Giovanni SARTORI, op. cit., pg. 20.22. Marek SOBOLEW SKY, Electors and Representatives: A Contribution to the

    Theory o f Representation , /nPENNO CK and C H A P M A N (ed s.), op. cit., pg. 96.

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  • nos 14 anos de nossa Constituio, o parlamento no conseguiu legalizar os dispositivos detalhados quanto ao procedimento de remoo, e os deputados no podiam ser rem ovidos .23

    Portanto, seja no campo do debate terico, seja no campo da prtica da representao, as duas posies tm sido sustentadas com uma dose considervel de plausibilidade. Vejamos agora, quais so os pressupostos tericos que do suporte s duas posies. Reportamo- nos aqui sua relao com uma teoria do interesse: trataremos de discutir a teoria da representao de Edmund Burke, que defende o mandato independente, outra vertente do liberalismo, que no plo oposto sustenta a representao delegada, e a teoria marxista, que parece trabalhar com os dois plos dessa controvrsia em momentos diferentes.

    Burke e a Representao Poltica

    A representao poltica, para Burke, pode ser pensada por meio de duas questes fundamentais: o que deve fazer um representante e como deve ele agir?

    Uma resposta a estas questes poderia ser sintetizada nestas duas afirmativas: a) um representante deve representar um interesse determinado e um corpo de representantes representa o interesse da nao; b) um representante deve ser independente na sua atividade de representar. Vejamos qual o raciocnio de Burke para chegar a estes imperativos da representao.

    Para Burke, a representao poltica representao de interesses e estes interesses tm uma realidade objetiva. Mas ele trabalha em dois nveis, quando se refere a interesses que devem ser representados.

    Num primeiro nvel, trata-se de interesses fixos, poucos em nmero, claramente definidos, na maior parte econmicos, e esto associados a localidades particulares. Menciona, por exemplo o interesse mercantil, o interesse agrrio, o interesse profissional, concebendo- os como realidades independentes de seus portadores. Neste sentido, uma localidade faz parte de ou participa de tal interesse; a localidade no tem o interesse24. Num segundo nvel, interesse tambm objetivo, claramente definido, mas no se relaciona a um grupo ou localidade; trata-se aqui do interesse da nao.

    23. Marek SOBOLEWSKY, op. c it., pg. 97.24. Esta concepo de interesse semelhante ao sentido empregado na teoria mar

    xista, embora para esta teoria este conceito esteja ligado a classes sociais definidas. Em outra seo, ser discutida esta questo no marxismo.

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  • Contrapondo-se aos interesses objetivos, existem os desejos do povo, baseados em opinies, as quais, para Burke, so freqentemente erradas. E se os interesses verdadeiros tm uma realidade objetiva e so racionalmente perceptveis, no ser o homem comum com seus desejos baseados em opinies errneas que ir descobri-los. Somente o homem inteligente, bem informado, racional, estudando e discutindo cada questo, que poder conseguir detectar os interesses verdadeiros de um grupo ou localidade, e da nao.

    Desta maneira, um corpo representativo deve ser constitudo de homens de sabedoria e virtude, de uma elite seleta que, no processo de debate na assemblia, descobrir os interesses objetivos e verdadeiros. Portanto, representao nada tem a ver com mandato imperativo, com consulta s bases eleitorais; pois, como afirma Burke,

    que tipo de razo aquela em que a determinao precede a discusso, em que um conjunto de homens delibera e um outro decide, e onde aqueles que form am a concluso esto talvez a trezentas milhas distantes daqueles que ouvem os argumentos?. 25

    Dois problemas emergem das afirmativas aqui expostas: 1. Como resolve Burke a contradio aparente entre interesses locais e interesse nacional; 2. Como se coloca a questo das eleies para a escolha de representantes na teoria burkeana.

    Na verdade, para Burke no existe nenhuma contradio real entre um membro do parlamento representar, por exemplo, o interesse industrial, e ainda, todo membro do parlamento representar o interesse nacional. Pois o interesse industrial parte do interesse do todo, e o interesse nacional descoberto justamente num processo de deliberao onde esto presentes representantes de todos os interesses. Por outro lado, o fato de um deputado representar o interesse de uma localidade no quer dizer que ele o trouxe consigo para discusso no parlamento. Na verdade, os interesses agrrio, mercantil, industrial, etc., da mesma forma que o interesse nacional, emergem de uma deliberao racional, fruto dos debates que se travam no parlamento, entre homens de inteligncia e sabedoria, e no de um mandato ou presso vindo de baixo.

    No entanto, apesar deste extremado elitismo, Burke favorvel talvez por sua condio de representante eleito ao instrumento eleitoral como mecanismo de escolha dos representantes, ainda que

    25. Edmund BURKE, Speech to the Electors o f Bristol , in Theodore Lowi (ed.), op. c it., pg. 150-151.

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  • sua preferncia seja por um sufrgio restrito a um grupo mais seleto. Mas as eleies tm um papel especfico. Por um lado, elas so um meio eficiente de encontrar os membros de uma elite natural homens inteligentes, instrudos e capazes. Por outro, so o momento em que o representante se submete ao julgamento quanto ao seu desempenho no cargo. Aqui, admite Burke que pelo menos alguma capacidade tem o povo para saber se as coisas esto indo bem ou no para o seu lado. Alm do mais, o processo de descoberta dos interesses do parlamento requer um mnimo de informaes para que os representantes tenham com o que trabalhar: essas informaes so os sentimentos, as necessidades, os sintomas do povo.

    Em suma, a teoria de Burke conduz a identificar a representao com governo da sabedoria e da razo, com uma elite seleta que pensa pelo povo e conduz os destinos da nao: o Parlamento (...) uma assemblia deliberanre de uma nao, com um nico interesse, o de todos; onde no deveriam influir fins e preconceitos locais, mas o bem comum... 26

    Representao Poltica na Teoria Liberal

    Podemos partir das mesmas questes que nortearam a discusso da teoria de Burke para falarmos da representao segundo a tica do liberalismo. O que faz um representante? Aqui tambm trata-se de representao de interesses, mas num sentido diferente do concebido por Burke. Como deve agir um representante? Um representante deve perseguir os interesses de sua base eleitoral, falar por ela, em vez de pensar por ela como advoga Burke. Portanto, um representante no independente, mas o porta-voz dos representados.

    Tratemos de ver a que se est referindo a teoria liberal, quando fala em interesses, uma vez que desta concepo decorre, em parte pelo menos, a prtica da representao.

    Para a teoria liberal, na verso dos federalistas norte-americanos, e particularmente de Madison, uma distino se faz entre interesses de pessoas e de grupos, os quais se ligam sua teoria da faco, e interesses verdadeiros, permanentes e ampliados.

    Por um lado, ele afirma que na sociedade existe uma pluralidade de interesses, decorrentes de sua enorme fragmentao em grupos. Estes interesses so mltiplos, mutveis, amplamente subjetivos e freqentemente esto em antagonismo com o bem-estar da nao. Subjaz aqui uma viso negativa de interesses, na medida em que eles so identificados ao que Madison chama de faces , as quais so

    26. Ibid., pg. 151.

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  • um mal para a nao. Uma faco, para os federalistas, equivale a um interesse de grupo: um nmero de cidados, seja chegando a uma maioria ou a uma minoria do todo, que se unem e atuam por algum impulso comum de paixo, ou de interesse, adverso aos direitos de outros cidados, ou ao interesse permanente e agregado da comunidade .27

    Se esta multiplicidade de interesses decorre da fragmentao em grupos na sociedade, tambm fruto da premissa de que uma mesma pessoa tem muitos interesses a respeito de vrias necessidades e situaes, dependendo das circunstncias. Esta concepo de interesses equivale ao que Burke define por desejos e opinies do povo.

    Entretanto, esta idia de interesses como paixes momentneas ou uma avidez impaciente para o ganho imediato e imoderado , contrastada com a idia do real bem-estar da nao , com interesses verdadeiros ou interesse permanente e ampliado de algum.28 Surge aqui tambm a mo invisvel da razo, para que o segundo tenha lugar.

    Neste sentido, se os interesses das pessoas e grupos so facciosos e so um mal, eles devem ser desarmados e controlados, para que se mantenha a estabilidade e prevalea o bem-estar da nao. E justamente esta a funo do governo representativo: trazer para dentro do legislativo os diferentes e conflitantes interesses facciosos para que eles se equilibrem e se tornem inofensivos, de modo que possa prevalecer a moderada voz da razo o interesse racional, verdadeiro e ampliado da nao. Para isso, torna-se fundamental que cada representante leve legislatura os interesses facciosos de que o porta- voz, de modo que ela constitua o forum central onde o conflito social tenha lugar e possa assim ser controlado; pois para Madison o tempo cuidar de corrigir a paixo e o preconceito e impedir a ao baseada em interesses facciosos.

    Em sntese, a prtica da representao tal como a concebe o liberalismo dos federalistas consiste em trazer para a casa legislativa, por meio dos representantes, os diferentes interesses da sociedade, para que eles possam ser negociados e barganhados, a fim de evitar o domnio de uma faco em detrimento de outras. Desde que, para os federalistas, governo representativo um substituto para o encontro dos cidados em pessoa , deve-se supor que os interesses facciosos so, em algum grau, atendidos, seno tornar-se-ia impossvel admitir a presena dos cidados na legislatura e a utilizao do instrumento

    27. /tpw /P lT K lN , op. c i., pg. 193.28. Ver PITKIN, pg. 192.

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  • eleitoral como forma de controle do eleitorado sobre os representantes.

    A Representao Poltica na Teoria Marxista

    Para o marxismo, a questo da representao est tambm relacionada representao de interesses, e o modo como eles so concebidos aproxima-se da teoria de Burke.

    Na teoria marxista, falar de interesse falar de interesses de classe; e da mesma forma que Burke contrape os interesses objetivos fixos, definidos, a opinies e desejos do povo, tambm aqui uma distino semelhante faz-se presente. Por um lado, existem os interesses imediatos, espontneos; por outro existem os interesses permanentes, objetivos e estratgicos. Os primeiros no so interesses'de classe; so apenas desejos, aspiraes oriundas de problemas atuais, cotidianos, da existncia de uma determinada classe ou grupo social. Os ltimos constituem os interesses reais, objetivos, de uma classe determinada, na medida em que so identificveis na prpria estrutura das relaes que um determinado modo de produo engendra. Como afirma Marx em Misria da Filosofia:

    O domnio do capital criou para essa massa [de trabalhadores] uma situao comum, interesses comuns. Assim, pois, essa massa j uma classe relativamente ao capital, mas ainda no uma classe para si. Na luta, (...) essa massa se une, constituindo-se uma classe em si. Os interesses que defende convertem-se em interesses de classe .29

    Portanto, os interesses de uma classe no caso a classe trabalhadora tm uma realidade objetiva independente do fato de que a classe tenha ou no conhecimento deles, porque eles nascem com o capital; e embora esta classe no tenha a percepo imediata de seus verdadeiros interesses, a prtica poltica desta classe torna-a possvel, ou seja, enriquece a conscincia de cJasse. Neste ponto, a concepo marxista aponta um aspecto que no aparece na teoria de Burke sobre interesse, uma vez que esta ltima no contm nenhuma indicao no sentido de que o povo deixe de ter desejos e opinies erradas e passe a conhecer seus verdadeiros interesses.

    Mas, tomando como referncia a teoria marxista-leninista de partido, este processo que engendra a tomada de conscincia de seus

    29. Karl M ARX, Misria da Filosofia (Rio: Editora Leitura, 1965), pg. 164.

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  • interesses e, portanto, a luta para a realizao dos interesses da classe, no ocorre espontaneamente; pelo contrrio, ele necessita de uma direo. Segundo Lenin, o proletariado no consegue superar a fase sindicalista, ou seja, a luta por interesses econmicos, a menos que haja uma organizao que d uma direo a essa luta. Da surge a necessidade do partido poltico como expresso dos interesses da classe: Sem esta organizao, o proletariado no capaz de elevar-se ao nvel de uma luta consciente de classe; sem esta organizao o movimento operrio est condenado impotncia... 30.

    Na medida em que o partido quem d direo ao movimento da classe na luta por seus interesses verdadeiros, fica atribuda a ele a condio de conhecedor dos interesses da classe. Surge ento uma distino entre aqueles que no possuem conhecimento de seus interesses a massa , e aqueles que so portadores desse conhecimento. Lenin distingue o sujeito terico-histrico da revoluo a massa proletria e seu sujeito poltico-prtico a vanguarda , que representa o proletariado consciente do lugar que ocupa no processo de produo e consciente de seus prprios interesses de classe. E a representao desta conscincia provm dos intelectuais revolucionrios portadores do conhecimento e da compreenso global do processo de produo31 . Como afirma Lenin nenhuma classe conseguiu na histria instaurar seu domnio se no promoveu seus prprios chefes, seus representantes de vanguarda, capazes de organizar o movimento e dirigi-lo .32

    Criticando a corrente economicista na social democracia russa, que defendia uma estratgia de luta de apoio ao movimento operrio na sua fase tradeunionista , Lenin sustenta:

    A social democracia a unio do movimento operrio com o socialismo. Seu empreendimento no deve repousar em servir passivamente ao movimento operrio em cada uma de suas fases, mas em representar os interesses de todo o movimento em seu conjunto, designar a este movimento seu objetivo final, suas tarefas polticas, e salvaguardar sua independncia poltica e ideolgica .33

    30. V. I. LENIN, Tareas Urgentes de Nuestro M ovim iento , em Teoria M arxista dei P artido, Coleccin 70, (Mxico: Editorial Grijalbo, 1972), pg. 31.

    31. Ver D. BENSA1D, y Alain N AIR, A Propsito dei Problema de la Organi- zacin: Lenin y Rosa Luxemburgo , em Teoria M arxista dei P artido P oltico (Cordoba: Pasado y Presente, 1972).

    32. LE N IN , op. cit., pg. 31.33. V. 1. LENIN, op. cit., pg. 29, negrito nosso.

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  • Retomando a questo que nossa preocupao central, vale dizer, quanto atividade de representar, podemos chegar concluso seguinte, neste estgio da discusso.

    Em primeiro lugar, quando a teoria marxista est situando a questo dos interesses, est subentendido principalmente se apoiada na verso leninista uma atividade representativa, no como atividade num parlamento dentro do jogo poltico de um determinado regime, mas sobretudo como uma luta que, utilizando outros meios, se pretende transformadora da sociedade inteira e do prprio sistema poltico. Em segundo lugar, neste terreno e neste momento, define-se um determinado modo de exercer a atividade representativa. Cabe ao representante de uma classe, no caso o partido, conduzir a promoo dos interesses desta classe, mesmo que ela no tenha ainda conscincia de quais sejam seus interesses verdadeiros. Se isso est correto, segue-se que a atividade representativa assume um carter independente, na medida em que neste momento no h uma correspondncia entre representante e representado: a representao dos interesses no o produto das demandas dos representados, pois quem define o que deve ser representado so os prprios representantes. Neste momento as demandas dos representados nada mais so do que interesses imediatos, frutos de um desconhecimento de suas reais condies no processo de produo de uma dada sociedade. Decorre da o papel dos representantes, vanguarda provida de capacidade e conhecimento para levar avante a direo e organizao da luta pelos interesses da classe.34

    Mas a questo da representao poltica na teoria marxista no acaba a. Na medida em que se fala em interesses de classe no caso as classes dominadas e se a condio de realizao desses interesses est na extino de uma sociedade baseada na explorao do capital sobre o trabalho, o objetivo fundamental torna-se a construo de uma nova sociedade que garanta a no-vigncia da explorao e dominao. E quando o marxismo se refere a uma nova ordem, um outro contedo dado representao poltica. Numa viso idealizada do sistema sovitico de controle permanente dos eleitores sobre os eleitos, diz Gramsci:

    34. Poder-se-ia perguntar at que ponto esta concepo de representao, implcita na viso leninista de partido, no conduz ao mesmo elitism o que pode ser atribudo teoria de Burke. De certa forma a histria tem mostrado pelas experincias socialistas que houve uma crescente centralizao do poder e conseqente separao entre partido e massa. No nosso propsito, contudo, discutir aqui se isto foi fruto de uma prtica determinada ou se conseqncia da prpria teoria.

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  • Nestes outros regimes o consentimento no tem no m omento do voto uma fase final, ao contrrio. Supe-se o consentimento permanentemente ativo, at o ponto em que aqueles que consentem poderiam ser considerados como jfuncionrios do Estado e as eleies um modo de recrutamento voluntrio de funcionrios estatais de um determinado tipo, que em certo sentido poderia assemelhar-se {em diversos planos) ao selfgovernment. Baseando-se as eleies no em programas genricos e vagos, mas em programas de trabalho concreto imediato, quem consente empenha- se em fazer algo mais do que o cidado legal comum para realiz- los, isto , em ser uma vanguarda de trabalho ativo e responsvel 35

    Este significado que dado representao quando da construo do Estado socialista fica ainda mais explcito nestas afirmaes de Cerroni:

    "... A designao do representante resulta quase automaticamente de uma eleio programtica, na medida em que o partido poltico e o regime eleitoral registram os fenm enos novos. A independncia do representante eclipsada cada vez mais, no sentido de que j no pode ser uma independncia do programa poltico em funo do qual eleito. Em lugar de um ilustrado inventor da poltica, o representante se converte cada vez mo.s num porta-voz e num 'servidor da vontade popular. Por conseguinte o mandato assume um claro tom imperativo, enquanto que a tcnica poltica 'pura pe a nu sua no-autonomia, sua funcionalidade a respeito de interesses sociais determinados. A diviso dos poderes, fundam ental pura o velho Estado constitucional, socavada pela primazia dos corpos representativos nos quais se deposita uma vontade popular precisa da qua! eles so os porta-vozes.36

    primeira vista pareceria haver uma inconsistncia terica em pensar em mandato imperativo, quando se sustenta a existncia de interesses independentes, objetivos, e quando j se tenha defendido uma certa independncia dos representantes num processo de luta. Mas esta inconsistncia deixa de existir se se situa o conceito de representao no marco de uma teoria que se prope pensar e formular uma so

    35. A ntonio GRAM SCI, M aquiavel, A Poltica e o Estado M oderno (Rio: Civ. Brasileira. 1968), pg. 89.

    36. Umberto CERRONI, Para una Teoria dcl Partido Poltico , em Teoria M arxista dei Partido Poltico, Cadernos de Pasado y Presente/7 (Crdoba: Pasado y Presente, 1971), pg. 30.

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  • ciedade futura. Mandato imperativo est referido no a uma situao presente, mas a um futuro possvel. E a lgica talvez formal est em que, no momento em que uma classe tem conscincia de seus interesses verdadeiros, passa a haver uma correspondncia entre representantes e representados, o que leva os primeiros a se tornarem apenas porta-vozes da vontade popular. Se a classe conhece quais so seus interesses, deixa de fazer sentido falar em livre mandato, no cabe mais o papel de conduo de um processo por uma vanguarda, portadora exclusiva do conhecimento real e verdadeiro. Pode-se perceber que, para que isso ocorra, supe-se a possibilidade de um estgio social em que todos tenham a plena conscincia de seus verdadeiros interesses e uma completa homogeneidade de pensamento quanto a isso.

    Portanto, na teoria marxista a controvrsia livre mandato- mandato imperativo no resolvida pela opo por um dos plos, mas se ajusta a situaes diferentes. Mais explicitamente, a representao poltica pensada em dois momentos que dependem da conscincia de classe. Num primeiro momento, o representante o partido, a vanguarda assume o papel de condutor do processo que objetiva realizar os interesses de uma classe, com certa independncia, visto que a prpria classe que eles visam expressar no tem conscincia destes interesses. Num segundo momento, quando da emergncia da sociedade socialista, partincio da suposio de que a massa operria j atingiu o estgio da conscincia de classe, passa-se a defender a idia da representao delegada. Dado que se supe a existncia de uma correspondncia entre a vontade coletiva e a vontade dos representantes, ou ainda, que a primeira passa a determinar a ao representativa, ao representante cabe to-somente o papel dc porta-voz ou servidor da vontade coletiva .37 Em ltima instncia esta concepo conduziria vigncia de um self government, no tendo mais sentido falar em partido como representante, pois se um partido no mais que uma nomenclatura de classe, evidente que, para o partido que se prope anular a diviso de classes, a sua perfeio e acabamento consiste em no existir mais, porque j no existem classes e, portanto, a sua expresso .38 Neste sentido podemos concluir que, na teoria

    37. A idia do mandato imperativo na teoria marxista aproxima-se da viso rous- seauniana da representao. Entretanto Rousseau nega a representao na medida em que parte da idia de que a soberania, que o exerccio da vontade geral, no pode ser transferida: A soberania no pode ser representada pela mesma razo porque no pode ser alienada; consiste essencialmente na vontade geral e a vontade absolutamente no se representa... Os deputados do povo, no so nem podem ser seus representantes; no passam de comissrios seus, nada podendo concluir definitivamente . (J. J. Rousseau, D o C ontrato Social (So Paulo, Abril Cultural Ed., 1973, Traduo de Lourdes Santos Machado), Livro III, Cap. XV.

    38. A. GR AM SCI, op. cit., pg. 25.

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  • marxista, o limite da concepo sobre representao poltica est na negao do prprio conceito.

    Mandato Livre e Mandato Imperativo

    Se na teoria marxista a atividade representativa aparece tanto no seu carter independente como no seu carter mandatrio, situados em momentos diferentes, a base que determina a direo para um ou outro plo a mesma das teorias burkeana e liberal clssica: todas dependem do que deve ser representado, e se o que deve ser representado identifica-se ou no com o que se supe pensar e querer a base eleitoral, localidade, grupo ou classe social.

    Como tentamos mostrar ao longo desta seo, a literatura sobre representao poltica tendia at recentemente a considerar o agir independente e o mandato como duas formas excludentes. Se nos referirmos, no a uma sociedade futura onde a correspondncia entre representantes e representados pode por hiptese levar inutilidade do conceito, mas ao presente, nas democracias que ora conhecemos, cujo carter representativo advm do poder legislativo, e que tem sido objeto de estudo de trabalhos tericos e empricos, podemos questionar se este dilema na verdade existe.

    Atravs de um estudo com legisladores de alguns estados americanos, Eulau e outros preocuparam-se em investigar como este problema se apresentava a nivel emprico. Partiu-se, assim, para perguntar aos prprios representantes como eles viam sua atividade, o que eles deveriam fazer em seu cargo de legislador.

    O que os autores constataram foi a presena de ambos os modos de conceber a atividade legislativa, e, mais ainda, a existncia de uma viso que comporta as duas coisas. A concluso a que chegaram de que a dicotomia clssica do conceito de representao em termos de livre mandato e mandato imperativo no exaure o tipo de atividade representacional. Pode-se pensar a representao como um conti- nuum, com as orientaes de livre agente e delegado como plos, e um ponto mdio onde as orientaes tendem a se justapor e dar origem a um terceiro papel .39

    As constataes empricas que o trabalho mencionado indica sugere-nos a concluso de que os representantes, quando verbalizam

    39. Heinz EU LAU et at., The Role o f the Representative: Som e Empirical Observations on the Theory o f Edmund Burke , /T heodore LOWI and R. B. RIPLEY (eds.), Legislative P olitics U. S. A . (Boston: Little, Brown and Company, 3 .a ed., 1973), pg.75.

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  • suas atividades, esto reproduzindo as diferentes concepes sobre representao, e conseqentemente que esta polmica talvez no seja passvel de ser resolvida a nvel emprico. Ou ento podemos admitir, como sustenta Pitkin, que o prprio conceito de representao carrega em si esta ambigidade, o que torna esta controvrsia um falso problema:

    verdade que um homem no um representante se ele habitualmente fa z o oposto do que fariam seus constituintes. Mas tambm verdade que um homem no um representante se ele prprio nada faz, se seus constituintes agem diretamente. (...> Ser representante significa fazer-se presente em algum sentido, quando no se est de fa to presente literal e totalmente. Este requerimento paradoxal imposto pelo significado do conceito precisamente o que est refletido nos dois lados da controvrsia mandato-independncia . 40

    5 CONCLUSO

    Dispomos agora de elementos para concluir que todas as vises aludidas so corretas mas parciais, enfatizando apenas certos aspectos que o significado do termo envolve. Nenhuma delas em separado d conta da totalidade do que significa representar, mas talvez pudssemos dizer que representao um pouco de cada uma das vises aqui discutidas.

    Pois certo que representao implica autoridade, ou seja, implica uma autorizao dos representados no sentido de dar consentimento para que uma pessoa represente outras. Qualquer que seja a ligao entre representante e representado, a condio de representante est sustentada por um consentimento dos representados, consentimento este que lhe d autoridade para pensar, agir ou falar em nome dos outros. Portanto, algum tipo de relao de autoridade legitimada est contido na idia de representao.

    Da mesma forma, correto dizer que representar de algum modo refletir os representados. Em se tratando da concepo descritiva plausvel afirmar que uma das maneiras de assegurar a relao entre representantes e representados seja a presena num corpo legislativo de representantes de todos os segmentos da populao; ou ainda, se um grupo, classe social ou localidade tem alguns de seus

    40. PITKIN, op. cit., pg. 151 e 153.

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  • membros presentes na legislatura. Talvez a coincidncia de interesses entre cies preserve a representatividade.41

    Finalmente, igualmente correto focalizar a questo da representao pelo ngulo da atividade. Parece bvio que um dos requisitos bsicos da representao o modo como se d a atividade representativa, a postura assumida pelos representantes quando atuam na cena poltica, objetivando tornar efetiva uma poltica que v ao encontro dos interesses de seus constituintes.

    Assumimos aqui a representao poltica como um dado, e um dado necessrio que merece ser constitudo em objeto de estudo. Quando falamos em representao, estamos situando-a, no em um ideal de sociedade, onde possa viger uma democracia direta, na qual os cidados deixem de delegar o exerccio do poder a representantes para se autogovernarem. Pelo contrrio, estamos nos referindo representao como ela se apresenta nos dias de hoje, na forma como ela se tem configurado nas democracias indiretas, com todas as imperfeies que a elas podem ser imputadas.

    Neste marco, a questo fundamental que se coloca e que est no cerne do conceito de representao, : como compatibilizar a necessidade de que as demandas dos representados sejam ouvidas e cumpridas, com a certeza de que decises sobre questes cruciais da vida poltica sero efetivamente tomadas.

    sabido que a poltica envolve questes que devem ser decididas em determinado espao de tempo e que algumas vezes a consulta aos representados no a melhor forma de fazer brotar as mais acertadas deliberaes. Haja visto que nem sempre os representados compartilham da mesma opinio sobre um determinado assunto, e mais ainda, nem sempre eles possuem idia ou opinio formada sobre ele. bvio que esta falta de opinio est relacionada a uma srie de fatores

    41. Assinale-se que esta viso est presente em muitos estudos brasileiros que focalizaram a questo da representao poltica, com a finalidade de explicar a m atuao do legislativo no cenrio poltico pelo seu carter no representativo. E esta no-representatividade atribuda ao fato de o legislativo nunca ter sido o reflexo dos diferentes grupos e classes sociais, havendo por outro lado uma desigualdade na representao das diferentes regies do pas. Ver Glaucio A .D . SOARES, Sociedade e Poltica no Brasil (S. Paulo: Difuso Europia do Livro, 1973); Simon SCHW ARTZ- M AN, So Paulo e o Estado Nacional (S. Paulo: DIFEL, 1975); Fernando H. CA R DOSO, Partidos e Deputados em So Paulo: O Voto e a Representao poltica, in Bolivar LAMOUN1LR e t . H. CARDO SO , Os Partidos e as Eleies no Brasil (Rio: Cl. BR AP Paz e Terra, 1975); David A. FLE1SCHER, Bancada Federal Mineira: Trinta A n os de Recrutam ento Poltico, 1945-1975 (Braslia: Universidade de Braslia, 1977); T. A. BASTOS e T. W. W ALKER, "Partidos e Foras Polticas em Minas Gerais", in RBEP, n . 31 (m aiode 1971).

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  • como a carncia de informao, o baixo grau de participao em organizaes, ou mesmo, e com muita freqncia, o prprio desinteresse por poltica.42

    neste sentido que a atividade de representar implica certa autonomia, implica a tomada de decises sobre questes que, mesmo indo ao encontro dos interesses de grupos, classes ou da nao como um todo, muitas vezes no tiveram o aval dos representados, ou nem mesmo chegaram ao seu conhecimento. Por outro lado, a representao pressupe que as decises tomadas tenham suporte nos representados. nesta medida que se tornam necessrios mecanismos de controle que garantam que a relao se mantenha e mesmo se apresente em contnua expanso. As eleies peridicas e regulares so um meio; no so o nico, mas talvez sejam o meio mais vivel de controle sobre os representantes e de expresso dos representados em sociedades complexas. Como afirma Gramsci ao fazer uma crtica dos argumentos de que se valiam os fascistas italianos para descrer do sistema eleitoral:

    J

    Um dos lugares-comuns mais banais que se repetem contra o sistema eleitoral de formao dos rgos estatais o de que nele o nmero lei suprema e que as opinies de um imbecil qualquer que saiba escrever (e inclusive de um analfabeto, em determinados pases) vale, para efeito de determinar o curso poltico do Estado, tanto quanto as opinies de quem dedica nao as suas melhores fo ra s, etc.. Mas a verdade que, de modo nenhum, o nmero constitui a lei suprem a, nem o peso da opinio de cada eleitor exatamente igual. Os nmeros, mesmo neste caso, so um simples valor instrumental, que do uma medida e uma relao, e nada mais. E depois, o que que se mede? Mede-se exatamente a eficcia e a capacidade de expanso e de persuaso das opinies de alguns, das minorias ativas, das elites, das vanguardas, etc.. Isto , a sua racionalidade ou historicidade ou funcionalidade concreta. O que no quer dizer que

    42. bem verdade que nas democracias representativas os partidos polticos tm assumido um papel fundamental no processo de representao. A bibliografia a respeito demasiado ampla para ser incorporada de maneira sistemtica neste trabalho. Saliente-se, entretanto, que o papel dos partidos tem sido destacado at mesmo nos estudos referentes aos Estados U nidos, pas onde sabidamente os partidos no ostentam o grau de coeso caracterstico dos pases da Europa. Sobre este ponto, ver S.M .LIPSET, Party Systems and the Representation o f Social G roups , European Journal o f S ociology , 1 (1960); Donald E. STOKES, Political Parties in the Normative Theory o f Representation , in Roland Pennock (editor), R epresen ta tion (N. York: Atherton Press, 1968); e David W. ABBOT, Political Parlies: Leadership, Organization . Linkage (Chicago: Rand M cNally, 1971).

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  • o peso das opinies de cada um seja exatam ente igual. As idias e as opinies no nascem espontaneamente no crebro de cada indivduo: tiveram um centro de formao, de irradiao, de difuso, de persuaso, um grupo de homens ou inclusive uma individualidade que as elaborou e apresentou sob a form a poltica de atualidade. A numerao dos vo tos a manifestao fina l de um longo processo em que a maior influncia pertence exatamente queles que dedicam ao Estado e nao as suas melhores fo ra s (quando so tais). Se este pretenso grupo de grandes, apesar das foras materiais extraordinrias que possui, no obtm o consentimento da maioria, deve ser julgado ou inepto ou no-representante dos interesses nacionais que no podem deixar de prevalecer quando se trata de induzir a vontade nacional num sentido mais do que noutro. Desgraadamente, o indivduo levado a confundir o seu interesse particular com o interesse nacional, e, portanto, achar horrvel, etc., que a deciso caiba lei do nm ero; na verdade, melhor se tornar elite por decreto. Logo, no se trata cle quem tem m u ito intelectualmente sentir-se reduzido ao nvel do ltimo analfabeto, mas de quem presume ter muito e pretende arrebatar ao homem qualquer, inclusive aquela frao infinitesimal de poder que ele possui para decidir sobre o curso da vida estatal. 43

    Pensadas como um meio de expresso do eleitorado e de controle sobre o corpo representativo, eleies podem ser concebidas como elemento fundamental de um regime democrtico, regime que contm canais de representao como organizaes profissionais e de classe e partidos polticos que atuam no sentido de formar opinies e faz-las chegar s esferas do governo. Da a necessidade de um sistema partidrio que estabelea a intermediao entre a massa de eleitores e as arenas decisrias.

    Com base no quadro conceituai sobre a representao discutido neste captulo propomo-nos, na segunda parte deste estudo, examinar a questo da representao poltica no Brasil.

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    43. Antonio GRAMSCI, op. cit., pg. 88-89.

  • PARTE II

    A REPRESENTAO POLTICA NO BRASIL

  • INTRODUO

    A segunda parte deste estudo tem por objetivo discutir a questo da representao poltica no Brasil notadamente no que concerne aos pressupostos da representao. Ou seja, partimos da considerao de que antes de se falar sobre se um corpo de representantes representa ou no os representados, h que se indagar sobre as condies em que se forma esse corpo de representantes; e mais ainda, reconhecer que estas condies determinam de certa forma a sua representatividade. Neste sentido, as questes que so preocupao deste trabalho dizem respeito s pr-condies da representao: quem so os representados, como eles participam da escolha dos representantes e qual a forma de escolha desses representantes.

    O conceito de representao, como vimos no captulo anterior, pode ser decomposto em algumas vises parciais, mas igualmente necessrias. O estudo aqui desenvolvido tentar abarcar as vrias conotaes que o termo sugere. Estar implcita a concepo da autoridade na medida em que estudarmos o processo eleitoral como mecanismo de legitimao de um sistema representativo. Referir-nos- emos teoria descritiva na medida em que estivermos tratando da questo do direito de voto e dos sistemas de escolha dos representantes. Finalmente, trabalharemos com a concepo da atividade quando nos referirmos s concepes correntes no Brasil sobre a atividade de representar concepes que norteavam a discusso sobre a cidadania, sobre a participao e sobre o sistema eleitoral. Em suma, vale salientar que refletir sobre o problema da representao poltica implica refletir sobre todas as modalidades do conceito, pois elas so caractersticas intrnsecas a ele.

    central em qualquer teoria da representao a indagao sobre quem so os representados, ou ainda, em nome de quem se est representando. Falar em quem so eles, implica fazer referncia antes de mais nada, a duas questes que trataremos de desenvolver neste

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  • trabalho: 1. Qual a amplitude do corpo de representados: pretendem os representantes representar a totalidade ou apenas parte da nao? Quem participa no ato de dar autoridade aos representantes? 2. Como participam os representados: quais as condies que determinam o modo como iro exercer a parcela de poder que o sistema representativo lhes confere? Se representar tornar presente alguma coisa que de fato no est presente, a primeira questo que surge a de saber quem elege o representante. Nossa preocupao, num primeiro momento, ser portanto mostrar quem so os representados. Esta indagao no colocada no sentido de saber quais so as classes ou grupos sociais que existem na sociedade, mas sim ao nvel de uma questo mais elementar, qual seja a de mostrar a quem dado o direito de ser representado.

    Para desenvolver estas questes, dedicaremos os prximos dois captulos a um estudo: 1. do processo de ampliao da cidadania poltica no que se refere aquisio do direito de voto; 2. da participao dos representados no processo eleitoral.

    Sabemos que esta discusso no constitui novidade alguma. de conhecida evidncia o fato de que durante um largo perodo, para no dizer a maior parte de nossa histria, a marginalizao poltica a que se deixou a populao brasileira algo espantoso.

    Justifica-se retomar essa problemtica, j h muito e por muitos debatida, na medida em que ela possa contribuir para esclarecer a questo da representao poltica no Brasil e para situar em bases novas o debate que se travou sobre esta questo desde os primrdios da organizao poltica brasileira.

    Outro aspecto que nos cabe discutir o modo pelo qual se constitui um corpo de representantes. Nesta parte trataremos de abordar o fundamento primeiro que determina a composio de uma legislatura, ou seja, a forma de escolha dos representantes. Neste sentido, nosso objetivo no quarto captulo ser: 1. fazer um retrospecto dos sistemas eleitorais adotados no Brasil desde o Imprio; e 2. discutir as concepes sobre a representao poltica que davam fundamento aos dois principais sistemas eleitorais adotados no Brasil, o distrital e o proporcional. O que importar salientar nesse captulo que, no obstante os pesados obstculos que se antepunham prtica representativa, um debate sobre a questo da representao poltica se instalou no Brasil, desde o Imprio. certo que esse debate se traduzia em reformas no sistema eleitoral que pouco resultado produziam, sendo portanto limitado seu alcance prtico. Parece-nos, entretanto, que isto no lhe retira significao, na medida em que coloca questes relevantes para uma reflexo que hoje parece estar ganhando grande atualidade.

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  • II O DIREITO PARTICIPAO NO PROCESSO ELEITORAL

    1 0 IM PRIO

    O sistema representativo monrquico-parlamentar implantado com o advento de nossa organizao poltica aps a Independncia tinha como fundamento legitimador a eleio por sufrgio indireto, que vigorou at quase o final do Imprio1. A eleio dos deputados que formariam a Assemblia Geral Constituinte do Brasil, decorrente do decreto de convocao de D. Pedro em junho de 1822, regeu-se segundo as regras do sufrgio de dois graus. Com algumas modificaes, este foi o sistema adotado pela Constituio de 1824. O processo eleitoral consistia no seguinte: o votante dava pessoalmente os nomes das pessoas em quem queria votar, aos secretrios das mesas paroquiais (mesas de votao), os quais formavam com ele a cdula que, depois de lida, era assinada pelo votante com uma cruz2. Dessa eleio resultava a escolha dos eleitores que deveriam eleger os deputados e senadores, por procedimento semelhante.

    1. A eleio indireta j existia no Brasil, durante o perodo colonial, para a escolha dos representantes s cmaras municipais. O sistema era de dois turnos. (Ver Fvila RIBEIRO, D ireito E leitoral, Rio de Janeiro, Forense, 1976, Cap. II). Em 1821 foi introduzido por D. Joo VI o sistema indireto em quatro graus quando, pela primeira vez, realizaram-se eleies para deputados que deveriam representar o Brasil nas Cortes Constituintes de Portugal. Esse processo de eleio, no qual toda a populao participava em m omentos diferentes, era excessivamente com plicado. O povo em massa, reunido em Assem blia na parquia, nomeava compromissrios, que por sua vez designavam os eleitores de parquia. Reunidos na sede da comarca, estes eleitores de parquia escolhiam os eleitores de comarca que, na capital da provncia, deveriam eleger os deputados.

    2. Este procedimento do voto oral, a descoberto, advinha por um lado da noo corrente na poca de que o voto constitua um ato pblico e uma forma de o eleitor manter abertamente suas opinies, embora, na verdade, funcionasse com o uma forma de controlar o voto. Por outro lado, respondia a uma questo prtica na medida em que o direito de voto se estendia aos analfabetos.

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  • Este sistema compunha-se de duas entidades de eleitores: os votantes, aqueles que participavam da eleio de primeiro grau; e os eleitores, denominao que se reservava aos que elegiam os deputados e os senadores aqueles que participavam da eleio secundria". Assim prescrevia a Constituio de 1824: As nomeaes dos Deputados e Senadores para a Assemblia Geral, e dos membros dos Conselhos Gerais das Provncias, sero feitas por Eleies indiretas, elegendo a massa dos cidados ativos em Assemblias Paroquiais os Eleitores de Provncia, e estes os Representantes da Nao, e Provncia 4. Vejamos, no entanto, quem eram os cidados ativos , ou seja, quem tinha o direito de ser votante e eleitor.

    Segundo a Constituio, estavam qualificados para participar da eleio primria os indivduos do sexo masculino, maiores de 25 anos (incluindo, entretanto, os que mesmo no atingindo esta idade, j fossem bacharis ou oficiais), que atingissem renda lquida anual de 100 mil ris, por bens de raiz, indstria, comrcio ou empregos. Quanto ao direito de ser eleitoi no segundo escrutnio, exigia-se alm desses requisitos a renda de 200 mil ris.

    Alm da participao desigual no processo de escolha dos representantes s Cmaras, estava marginalizada do sistema representativo uma grande parcela da populao formada entre Outros, pelos escravos, os que no atingiam a renda exigida e as mulheres cuja excluso nern constava no texto constitucional5. Em se