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Resíduos: uma Oportunidade

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Resíduos: uma Oportunidade

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Título

Resíduos: uma Oportunidade – Portugal a caminho da sustentabilidade

Autor

Pedro Almeida Vieira

Edição e copyrightPrincípia, Parede

1.ª edição – junho de 2012

© Princípia Editora, Lda.

Design da capa Execução gráfica Publito

ISBN Depósito legal

Princípia

Rua Vasco da Gama, 60-C – 2775-297 Parede – PortugalTel. +351 214 678 710 Fax +351 214 678 719 [email protected] www.principia.pt

A cópia ilegal viola os direitos

dos autores. Os prejudicados

somos todos nós.

344740/12

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Resíduos: uma Oportunidade

Pedro Almeida Vieira

Portugal a caminho da sustentabilidade

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Prefácio

A civilização humana também se define pelos resíduos que produz, e pelo modo como os representa e integra

na sua vida económica, social e cultural. No período mais longo da nossa história coletiva, os resíduos confundiam-

-se com o metabolismo de uma espécie humana perfeitamente integrada nos ciclos naturais. Os fundamentos da

sustentabilidade eram respeitados, pelo menos a uma escala média, sem grandes problemas; o consumo de ma-

térias-primas, o uso de energia e a produção de resíduos integravam-se na respiração dos grandes ecossistemas

que suportavam o desenrolar dos dramas civilizacionais da humanidade. Os arqueólogos revelam-nos, não sem

comoção, os escassos resíduos que não foram assimilados completa e definitivamente no tecido sempre renovado

da natureza. Os concheiros de Muge, nas margens do Tejo, dão-nos conta dos hábitos alimentares das populações

mesolíticas. Os restos de barro nos acampamentos romanos, contam-nos a história de legionários que sabiam ler e

contar, inscrevendo o seu nome e o número da sua unidade militar nas peças individuais do seu equipamento.

As coisas mudaram radicalmente quando a modernidade se tornou industrial, tecnológica e urbana. De súbi-

to, analisando essa mudança acelerada na escala do tempo histórico, a expansão demográfica é acompanhada pelo

incremento exponencial do consumo de matérias-primas e energia, em correlação positiva com a escalada na pro-

dução de resíduos em quantidades cada vez maiores e com composições artificiais cada vez mais complexas, tóxicas

e resistentes à degradação natural. Os arqueólogos do futuro arriscam-se a desenterrar, nas ruínas da nossa civili-

zação, resíduos letais, como muitos subprodutos duradouros da indústria química ou, pior ainda, a estabelecerem um

indesejável encontro com os isótopos radioativos de qualquer lixeira nuclear cuja ação negativa sobre o ambiente se

prolonga numa duração temporal praticamente infinita. Por isso, podemos afirmar que a luta pela gestão sensata e ra-

cional de todos os tipos de resíduos, dos urbanos aos industriais, dos hospitalares e perigosos, aos radioativos, constitui

uma metáfora da luta da nossa civilização tecnológica pela sobrevivência, o mesmo é dizer pela edificação de um mo-

delo económico, social e produtivo ao qual, à falta de melhor vocábulo, designamos por desenvolvimento sustentável.

Portugal faz parte dessa grande epopeia, que se desenrola todos os dias em todos os setores e áreas geográfi-

cas do mundo e do país. O presente ensaio de Pedro Almeida Vieira é um notável contributo para a compreensão do

fenómeno dos resíduos, como problema cultural em sentido amplo, na sociedade portuguesa. Nesta obra, o leitor

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partilhará dos resultados de uma profunda, rigorosa e serena pesquisa, que percorre as alturas da história e as sub-

tilezas técnicas do problema. Os resíduos sólidos urbanos estão no centro desta investigação. O autor mostra-nos

os diferentes fios condutores, os múltiplos atores e a pluralidade de causas e casos que permitiram a Portugal sair de

uma longa apatia e de uma aparente indiferença para a formulação de políticas públicas mais adequadas e capazes

de enfrentar com decisão e visão estratégica o gigantesco problema dos resíduos.

Este livro não nos fala só de resultados, embora eles existam, mas indica-nos sobretudo as etapas percorridas

e a percorrer de um processo em curso. Uma tarefa em permanente ato de realização onde todos são chamados a

dar o seu melhor. Desde a administração pública, que não é apenas local e nacional, mas também europeia, dado

que parte determinante da legislação em vigor resulta de consensos europeus, passando pelas empresas e pelos

instrumentos de mercado, pelas organizações não-governamentais da área do ambiente e pelos consumidores fi-

nais que somos todos nós. São eles quem deve ser capaz de colocar a sua qualidade de cidadãos no posto de co-

mando quando se trata de dar o seu contributo indispensável tanto para diminuir o fluxo nacional de resíduos, como

dar um destino final adequado àqueles que, nas presentes circunstâncias, não podem deixar de ser produzidos.

Permita-me o leitor uma palavra final sobre o autor desta obra. Pedro Almeida Vieira, além de um notável

e reconhecido escritor, é também um dos grandes protagonistas desta história. No âmbito de uma Organização

não-Governamental conhecida de todos os portugueses, a Quercus, o autor, em meados dos anos 90, coordenou

um estudo que ajudaria a criar uma consciência nacional para a situação alarmante das lixeiras em Portugal. Só por

modéstia esse aspeto pessoal não é enfatizado na referência inevitável a esse trabalho que esta obra comporta. Na

verdade, este livro preenche uma lacuna na literatura ambiental portuguesa contemporânea. Estão de parabéns o

seu autor, por ter levado a bom termo este esforço, a Sociedade Ponto Verde, pelo apoio concedido a esta iniciativa e,

sobretudo, o leitor para quem este livro é, sem dúvida, também uma grande oportunidade. Nestas páginas o leitor

encontrará informação e estímulo para o aumento das suas competências ambientais. Um requisito indispensável

para qualquer cidadão responsável nas democracias do século XXI.

Lisboa, 23 de janeiro de 2012

Viriato Soromenho-Marques

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Umas Breves Palavras

Para introduzir o livro que assinala o 15.º aniversário da Sociedade Ponto Verde (SPV) escasseia-me o enge-

nho e a arte. E a única circunstância que o pode justificar é o facto de ter estado no núcleo fundador da SPV, ter sido o

primeiro Presidente da Comissão Executiva e ter hoje a honra de ser seu Presidente do Conselho de Administração.

Segundo Th. Weihl «o homem já traz consigo, ao nascer, um sentido de limpeza», mas o medo e a incerteza

quanto ao desconhecido podem ter levado o ser humano a olhar o lixo com insegurança, como sinal de precariedade.

O que poderá então ter motivado um conjunto de personalidades e entidades a dedicar o seu tempo e a sua

atenção ao «lixo»?

Se «Deus quer, o homem sonha e a obra nasce» sonhámos uma «alquimia» para um novo paradigma: da

lixeira à estação de confinamento técnico, do lixo aos resíduos e dos resíduos aos materiais com valor económico e

utilidade prática.

Partindo atrasados face à Europa pretendíamos chegar à frente do nosso tempo.

Assistiu-se a uma mobilização geral de vontades. Era preciso crer e querer.

Criou-se e desenvolveu-se uma nova fileira de atividade no âmbito dos resíduos de embalagem – recolha,

seleção e triagem, compactação, transporte a destino final e valorização.

Caminhámos caminhando, fizemos fazendo num processo contínuo de aprendizagem, melhoria e excelência.

Foi e é um compromisso da sociedade com a sociedade, ancorado numa visão de comunidades mais ricas nas

interações humanas e mais sustentáveis nas suas atividades e no seu desenvolvimento.

Ao atingir uma verdadeira idade adulta, a maturidade impõe-nos maior responsabilidade, tanto ambiental

como social, e é por isso que continuamos firmemente comprometidos a transcendermo-nos no presente para

conquistar o futuro.

Formulo votos para que o presente deste futuro possa ser partilhado com todos os leitores deste livro e com

todos os concidadãos ambiental e socialmente responsáveis.

Algés, outubro de 2011

António Barahona d’Almeida

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Os Imundos Tempos da Doença

Palavra ancestral mas de origem obscura, o lixo é uma criação humana, que ao longo da história esteve sem-

pre associado à sujidade, a algo sem valor ou utilidade, proveniente de trabalhos domésticos ou industriais. Por isso

se deitava fora. Em sentido figurado, teve também sempre aceções pejorativas. De um modo informal, conforme se

pode encontrar em qualquer dicionário, lixo significa coisa ordinária, malfeita ou feia, sendo expressão que se atri-

bui a pessoa sem qualquer dote moral, físico ou intelectual, ou integrando a camada mais baixa de uma sociedade.

Embora mais recentemente esta palavra tenha vindo a ser substituída por outras expressões – como resíduo,

desperdício ou detrito –, na verdade não se trata apenas da introdução de um eufemismo. Sendo certo que todas se

referem às partes remanescentes de algo que se usou ou consumiu parcialmente, o lixo diferencia-se daquelas por,

através da intervenção humana, se poder transformar, em tempo relativamente curto, num agente agressivo para o

ambiente e até para quem o produziu. Algo que não sucede com outros seres vivos.

De facto, em meio natural, qualquer animal produz desperdícios, detritos ou resíduos. Por exemplo, a carca-

ça de uma gazela que resta do manjar de leões pode ser vista como um desperdício, mas jamais se pode classificar

como lixo, porque rapidamente «desaparece», servindo de alimento a outros animais, micro-organismos, fungos e

plantas, seguindo a velha máxima de Lavoisier de que na natureza nada se perde, tudo se transforma.

Numa perspetiva simplista, um resíduo ou desperdício é assim um subproduto efémero; ao contrário do lixo,

que se pode tornar mais perene, porque o homem, intervindo na sua criação, lhe introduz determinadas caraterísti-

cas – volume, peso ou propriedades físico-químicas não comuns em meio natural – que desregulam os ecossiste-

mas, deixando a natureza de ter capacidade, em tempo normal, de o eliminar.

Porém, sendo uma criação humana, o lixo é mais «jovem» que o homem, pois somente «nasceu» com a se-

dentarização, há cerca de 10 000 anos. Antes desse período, as comunidades nómadas comportavam-se como os

demais animais: mesmo se com uma «pegada ecológica» maior, a transumância implicava uma produção reduzida

de detritos que, por via das constantes migrações, nunca se acumulavam – ou seja, numa perspetiva ecológica, não

eram muito distintos dos desperdícios de um leão. Não resultavam, portanto, em agentes poluentes.

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Com a descoberta da agricultura, as comunidades humanas puderam acomodar-se por períodos muito mais

longos num mesmo sítio, uma vez que deixaram de ser obrigadas a percorrer grandes extensões à procura de ali-

mentos. A domesticação dos animais – a pecuária – aumentaria ainda mais as possibilidades de fixação das popu-

lações humanas que, através do engenho, criaram condições artificiais para fazer face às intempéries, aos animais

selvagens e às variações sazonais. Eliminando uma parte importante dos transtornos e dos perigos inerentes ao no-

madismo, o homem proliferou. Há cerca de 5000 anos começaram a surgir os primeiros núcleos populacionais de

maior dimensão, já com uma estrutura social. E, com eles, «nasceram» o lixo e a poluição.

É certo que nos primórdios do sedentarismo praticamente todos os desperdícios produzidos, incluindo os ex-

crementos humanos, eram de origem biológica, logo biodegradáveis; mas a natureza circundante desses núcleos

urbanos reduziu a sua capacidade de os processar, eliminar e incorporar. Além disso, as crescentes necessidades

alimentares levaram à criação de armazenamentos temporários que atraíam animais oportunistas, sobretudo ratos

e ratazanas, acompanhados por parasitas, como pulgas e outros insetos transmissores de doenças. Efeito similar

registou-se aquando do aumento dos efetivos pecuários. Acresce a tudo isto a proximidade, dir-se-ia o «convívio»,

entre as comunidades humanas e os seus próprios detritos, num ambiente propiciador de doenças, por via dos pro-

cessos de decomposição e da proliferação de agentes patogénicos.

A troca de víveres e utensílios entre comunidades distantes – ou seja, a expansão do comércio – também au-

mentou o risco da transmissão de doenças associadas à insalubridade. Primeiro por via terrestre, depois por via ma-

rítima. De facto, ao longo da história, o comércio não levou nem trouxe apenas produtos úteis para uma determinada

comunidade; de igual modo, transportou animais, plantas, fungos, protozoários e muitos outros agentes causadores

de doenças infecto-contagiosas, que vieram afetar vastas zonas indemnes. Se antes do incremento do comércio, e

dos conflitos daí decorrentes como as guerras, as doenças contagiosas apenas atingiam zonas muito restritas, o au-

mento da troca de bens e produtos rapidamente as alastrou, tornando-as mais graves porque os agentes infeciosos

tinham «aliados» de peso: a aglomeração humana, as fracas condições sanitárias e o lixo.

A ignorância como peste

Durante vários milénios, as doenças e as epidemias não tiveram uma explicação científica. Somente a partir

da invenção do microscópio, no fim do século XVII, e sobretudo com o avanço dos conhecimentos na área da me-

dicina, se pôde relacionar certas doenças com determinados micro-organismos, e se conseguiu desvendar o pa-

pel determinante de vetores e hospedeiros, como os ratos e diversos insetos, na sua propagação. É certo que, desde

muito cedo, de modo mais empírico do que científico, se conhecia a evidência dos contágios, mas desconhecia-se

como se desencadeavam ou processavam, e quais as razões para que cessassem.

Ao longo da História muitas vezes os fenómenos cósmicos – como o surgimento de cometas e eclipses, ou

ainda a posição dos astros – eram olhados como causas, ou pelo menos como prenunciadores, de muitas catástro-

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fes ditas naturais, como secas, inundações, terramotos e epidemias, até mesmo pela comunidade dita científica. Por

exemplo, ainda na Idade Média, a Faculdade de Medicina de Paris concluiu ter sido a conjugação de Saturno, Júpiter

e Marte, ocorrida no signo Peixes a 24 de março de 1345, que esteve na origem da Peste Negra. Obviamente, essa

relação só foi estabelecida pelos médicos após a epidemia estar no seu auge. Nessas épocas remotas – embora

não muito, pois sucedeu até ao século XVIII, de uma forma quase generalizada –, estas causas eram consideradas

«cientificamente» indesmentíveis. Além disso, em muitos casos, o medo e a superstição, decorrentes dessa igno-

rância, levavam as religiões a atribuir a Deus, ou aos deuses, a origem dos flagelos naturais, incluindo as epidemias. E

em alguns países, e em certas ocasiões, sobretudo fações mais ortodoxas da todo-poderosa Igreja Católica até con-

sideravam ser uma profanação aplicar-se qualquer arcaico medicamento a um doente, porquanto essa ação poderia

ser vista como uma tentativa de obstaculizar um desígnio divino.

De facto, por mais absurdas que estas teses possam hoje parecer, até ao Iluminismo, no século XVIII, a vida e a

morte, a doença e a saúde eram vistas como estados determinados em exclusivo pela vontade divina. Mesmo no mais

desenvolvido Velho Continente, poucos eram os que contestavam abertamente as interpretações da Igreja em relação

aos mais comezinhos aspetos do quotidiano – em tudo, ou quase tudo, se seguiam as orientações da Bíblia, que era in-

terpretada de uma forma literal e inapelável.

E aí, com efeito, as epidemias causadas por vontade divina são abundantíssimas. Basta recordar os episódios bí-

blicos protagonizados por Moisés: as sucessivas pragas de rãs, moscas e gafanhotos, «as úlceras com erupções de pús-

tulas» e a morte dos primogénitos egípcios – tudo isto, segundo a Bíblia, foi causado apenas por determinação de Deus

para castigar a intransigência do faraó. Em termos de epidemias, no Livro de Samuel, integrado no Antigo Testamento,

salientam-se os «tumores pestíferos» que atingiram os filisteus. Apesar de, no relato bíblico, se inferir que esta pes-

te, que se espalhou por várias cidades, foi desencadeada por uma praga de ratos, a interpretação teológica não deixava

margem para dúvidas: os filisteus sofreram um castigo divino porque adoravam um deus pagão e roubaram a Arca do

Senhor aos israelitas. E muitos outros episódios similares surgem relatados na Bíblia, sobretudo no Antigo Testamento.

Por estes motivos, em tempos remotos, aquando da eclosão de epidemias, mais depressa se apelava à miseri-

córdia divina do que se tomavam medidas profiláticas ou sanitárias, apelando-se com rogativas a diversos santos, so-

bretudo a São Miguel Arcanjo, Santo Adriano, Santo Onofre, Santo Antão, Santa Bárbara e São Cristóvão. E os médicos,

se bem que ainda com parcos conhecimentos, eram muitas vezes preteridos, em favor das procissões e missas. Com

efeito, em Portugal, foram escassos os médicos que, até ao século XIX, tentaram remar contra esta maré de ignorância.

Destes, destacam-se Pedro Hispano, no século XIII – que até se tornaria o único papa português, sob o nome de João

XXI –, Amato Lusitano, no século XVI – embora tenha exercido a sua profissão no estrangeiro, por causa das persegui-

ções aos judeus –, e Ribeiro Sanches, no século XVIII – outro judeu que teve de fugir do Santo Ofício, vivendo parte da

vida no estrangeiro –, que, logo após o terramoto de Lisboa, escreveu a obra Tratado da Conservação da Saúde dos Povos.

Em suma, julgava-se que as doenças curavam-se mais depressa por milagre do que por um médico; e que uma

vida de fervor religioso tinha mais hipóteses de se manter do que outra que tinha cuidados de higiene. E isso era a opinião

da cúpula da Igreja, especialmente durante a Idade Média. Por exemplo, o papa Inocêncio III e muitos dos seus suces-

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sores chegaram a ordenar aos médicos, sob pena de aplicação de graves castigos, para que advertissem os enfermos da

necessidade de se confessarem; se isso não sucedesse ao fim de três dias, não poderiam continuar as visitas. Em pleno

Renascimento, essas orientações ainda estavam em vigor em Portugal. Nas Constituições do Bispado de Coimbra,

publicadas inicialmente em 1548, exigiu-se que os médicos, sob ameaça de excomunhão, obrigassem os doentes a

se confessarem. Se a confissão continuasse em falta até ao terceiro dia, o bispo era taxativo sobre a sorte do enfermo:

«Mandamos que o não curem, nem visitem.».

Esta surpreendente postura manter-se-ia, em Portugal, até meados do século XIX. Numa biografia pu-

blicada no ano 1830 em louvor de Santo António, são evocados de forma enfática, e como verídicos, os supostos

milagres obrados, séculos antes, durante o enterro do taumaturgo português: «Neste próprio dia, sem esperarem

outro, foram trazidos ao jazigo do Santo cópia de enfermos atacados de várias moléstias, que pelos méritos de Santo

António foram restituídos em continente à sua antiga saúde. Tão depressa qualquer enfermo tocasse no féretro ou

caixão, como era o folgar imediatamente de se ver são de toda e qualquer moléstia que padecesse. Aqueles porém

que, em razão do excessivo concurso, não podiam avizinhar-se do caixão, sendo conduzidos para fora do pórtico da

Igreja, aí mesmo à vista de todos eram curados; aí com efeito é que realmente foram abertos os olhos dos cegos; aí

se desembaraçou o ouvir aos surdos; aí o coxo saltava, como se fosse um gamo; aí soltando-se a língua dos mudos,

entoavam com toda a clareza e velocidade os Divinos louvores; aí os membros, defecados de paralisia, se tornavam

assaz vigorosos para encherem as suas antigas funções; aí as corcovas, a gota, a febre e outras várias pestes de en-

fermidades desaparecem milagrosamente, e os favores do Céu são outorgados aos fiéis a pedir de boca; aí todas as

pessoas de ambos os sexos, que concorrem das diversas partes do mundo, conseguem o despacho favorável de

suas rogativas.».

Neste contexto histórico, em que a vida tinha um valor muito relativo, a ação dos médicos esteve sempre

bastante condicionada quer pelos atrasos nos conhecimentos de epidemiologia e profilaxia, quer pela postura da

Igreja. Por exemplo, em 1858, no rescaldo de um surto de febre-amarela, o padre José de Sousa Amado, professor no

Liceu Nacional de Lisboa, publicou uma obra sugestivamente intitulada Cautela com os Médicos, zurzindo contra

aqueles que tentaram curar sem requerer, desde a primeira visita, os sacramentos religiosos para os enfermos. «As

notícias que até hoje temos podido obter a respeito dos sete ou oito mil mortos da febre», escreveu ele, «são todas

em sentido desfavorável aos direitos da Igreja: isto é, que a maior parte deles morreram sem sacramentos. Sendo as-

sim, como é de crer que fosse, de quem é a culpa senão dos médicos ateus, imorais e materialistas? Destes algozes

das almas que não quiseram, sequer por decência e para honra da sua classe, aconselhar-lhes os deveres religiosos,

e por este meio concorrer para livrá-las da infelicidade eterna!».

Sendo matéria polémica, e que foge a este âmbito, discutir qual o papel que a religião teve no condicionamen-

to dos avanços científicos, certo é que a medicina estagnou, séculos sem fim, desde os tempos da Grécia Antiga.

Na Idade Média ainda se mantinham muito enraizados os ensinamentos de Galeno e de Hipócrates, que conside-

ravam que na origem das doenças estavam simples desequilíbrios entre as qualidades primárias (quente, frio, seco

e húmido), os quatro elementos (ar, água, terra e fogo) e os quatro humores (sangue, bílis, muco nasal e bílis negra).

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13 | Os imundos tempos da doença

Ou seja, estava longe de se imaginar que a esmagadora maioria das doenças provinha apenas de causas naturais,

muitas das quais invisíveis ao olho humano. E, por regra, nunca se associavam as maleitas aos ambientes insalubres.

Durante séculos, para todo e qualquer tipo de doença, os arcaicos médicos aplicavam, geralmente, sangrias

aos enfermos – que mais os debilitavam – ou davam-lhes purgas, xaropes e mistelas diversas, que tantas vezes cau-

savam piores males e nenhum bem. Aquando das epidemias, para contrariar as supostas emanações pestilentas no

ar ambiente – que se considerava estar na origem dos contágios e que, em certa medida, podemos associar à de-

composição do lixo –, usavam-se meios de duvidosa eficácia, como soluções de vinagre, perfumes, ervas odoríferas

queimadas e até tiros de pólvora. É certo que ao longo dos tempos houve médicos que tentaram, embora de forma

empírica, tomar medidas de saúde preventiva através da criação de lazaretos, do isolamento dos doentes ou do entai-

pamento das casas dos pestosos. Porém, eram casos pontuais e de fraca eficácia. Na verdade, somente na segunda

metade do século XIX se desvendaria que, em grande medida, muitas das doenças infecto-contagiosas proliferavam

por causa das péssimas condições sanitárias, com o lixo à cabeça, e da inexistência de medidas profiláticas.

O inferno das epidemias

Mesmo nas sociedades mais civilizadas da Antiguidade, e até ao século XX em grande parte das regiões do

mundo, as ruas não primavam pela limpeza. A pavimentação das vias públicas só muito tardiamente se foi genera-

lizando, mesmo nas principais cidades europeias. Os esgotos – embora em pequeno volume, pois a água disponível

para consumo era bastante reduzida – acabavam despejados nas ruas, com exceção de alguns edifícios que pos-

suíam latrinas. O lixo, os excrementos e os cadáveres de animais eram, por regra, depositados em esterqueiras, em

lugares ermos, mas por vezes demasiados próximos dos aglomerados populacionais, nas praias ou nos rios, trans-

portados por escravos ou em carroças. Em muitos casos eram simplesmente despejados nas vias públicas ou em

zonas contíguas das habitações, que só eram «limpas» pela chuva, acabando por se amontoarem nas zonas mais

baixas. Nas casas, os víveres «conviviam», muitas vezes, com animais nocivos, como ratos e pulgas, e os armazéns

e as zonas portuárias eram locais onde abundava uma imensidão de lixo.

Neste cenário, compreende-se assim que as doenças, em geral, e as epidemias, em particular – tanto como

as guerras, e mesmo mais do que as catástrofes naturais –, tenham causado profundas convulsões sociais em sé-

culos passados. Perante os parcos conhecimentos médicos e a proliferação de lixo, excrementos e animais nocivos,

a doença e a morte pairavam a cada esquina. Se se atender à esperança média de vida ao longo dos tempos, fica-se

com a noção perfeita desses impactos: até ao século XVII era de apenas 30 anos na Europa, e em Portugal foi ne-

cessário chegar-se ao século XX para se ultrapassar a fasquia dos 40 anos. É certo que são conhecidas pessoas que

chegavam a provectas idades, mas a esmagadora maioria morria bastante cedo ou era afetada, ao longo da vida, por

maleitas que hoje necessitariam apenas de um simples e eficaz medicamento, ou nem sequer ocorreriam caso se

aplicassem elementares medidas de política sanitária.

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Em grande medida, a baixa esperança média de vida era então fortemente influenciada pela elevadíssima

taxa de mortalidade infantil. De acordo com diversos estudos, estima-se que, no século XVIII, apenas metade das

crianças atingiam os 15 anos e cerca de 30% morriam antes de completar o primeiro ano. Além da inépcia das par-

teiras, os recém-nascidos ficavam à mercê de um vasto conjunto de doenças que lhes eram, na generalidade, fatais,

como a disenteria, a varíola, a difteria, a tosse convulsa, a varicela, a papeira e o sarampo. Em séculos mais remotos,

esta situação ainda era pior, atingindo mesmo as classes mais favorecidas. Por exemplo, no século XVI, dos 10 filhos

do rei D. João III, quatro morreram com menos de um ano, outros três não chegaram aos 10 anos e nenhum ultra-

passou os 22 anos.

Embora não haja muitos registos sobre as pestes na Antiguidade, anteriores à era cristã, sabe-se que a pri-

meira que atingiu uma vasta população ocorreu em Atenas, entre os anos 430 e 425 a.C. Descrita por Tucídides na

História da Guerra do Peloponeso, esta epidemia registou os seus primeiros focos na Etiópia, disseminando-se de-

pois para o Egito até atingir gravemente a zona de Porto Pireu. Julga-se que Hipócrates, considerado o pai da me-

dicina, terá intervindo nesta epidemia, por estar a viver em Tessália. Há dúvidas sobre que doença terá atingido os

atenienses, mas pela descrição dos sintomas não seria peste bubónica, havendo historiadores que se inclinam para

a hipótese de tifo, dengue ou varíola, ou outra que tenha entretanto desaparecido. Por causa desta peste terá perecido

cerca de um terço da população ateniense, incluindo Péricles, um dos grandes estadistas da Grécia Antiga. A doen-

ça, segundo os relatos de Tucídedes, «atacava repentinamente em plena saúde», tendo este cronista acrescentado

que «o flagelo grassava numa desordem completa; no momento da morte, corpos jaziam uns sobre os outros; ou-

tros havia que se revolviam sobre a terra, meio mortos, em todos os caminhos e em direcção a todos as fontes, mo-

vidos pelo desejo de água. Os lugares sagrados onde se acampava estavam juncados de cadáveres, pois morria-se

no mesmo sítio». Com a morte a espreitar, a anarquia instalou-se, com pilhagens, assassínios e a completa corrup-

ção moral.

Menos de um século depois ficou célebre a peste de Siracusa, ocorrida no ano 396 a.C., trazida pelo exército

cartaginês que sitiou aquela região. A mortandade entre os invasores – atingidos por febres, tumefação do pescoço e

dores nas costas seguidas de disenteria e erupção pustulosa no corpo – foi de tal monta que os romanos venceram

essa batalha quase sem guerrear.

No seio do Império Romano, mesmo sabendo-se que eram tomadas algumas medidas em prol do sanea-

mento básico, há registos de diversas epidemias. No ano 166, Roma sofreu uma terrível peste, que se estendeu por

toda a península itálica, tendo apenas cessado em definitivo cerca de três décadas depois. Entre as vítimas mortais

estava o próprio imperador Marco Aurélio. Contemporânea de Galeno, esta peste foi descrita com detalhe por este

célebre médico. Os sintomas das vítimas iam do ardor inflamatório nos olhos e vermelhidão da cavidade bucal e da

língua até aversão pelos alimentos, sede inextinguível, ausência de febre mas com sensação de abrasamento in-

terior, tosse violenta e rouquidão, fetidez do hálito e erupção geral de pústulas. Seguiam-se ulcerações, vómitos e

diarreias, gangrenas parciais e separação espontânea dos órgãos mortificados e perturbações mentais. Regra geral,

a morte sucedia entre o sétimo e o nono dia.

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15 | Os imundos tempos da doença

No século seguinte, o Império Romano foi novamente fustigado por nova peste, oriunda do Egito. Tendo-se

espalhado rapidamente pela Grécia, norte da África e península itálica, consta que em Roma e em diversas cidades

da Grécia morreram cerca de 5000 pessoas por dia, no auge da epidemia.

A primeira grande pandemia europeia, já bastante bem documentada, surgiu no século VI, durante o império

de Justiniano. Identificada como peste bubónica, teve início no ano 542 na antiga cidade egípcia de Pelusia, junto às

margens do Nilo, e prolongar-se-ia por mais de cinco décadas, com vários surtos e focos de disseminação. Através

de viajantes, atingiu a cidade de Alexandria e vastas zonas do norte de África, transpondo depois o Mediterrâneo até

assolar a Europa. Estima-se que tenha causado cerca de 100 milhões de mortes. Alguns focos dariam ainda origem,

décadas mais tarde, a mortandades na Grã-Bretanha, entre os anos 664 e 684, e em Roma, no ano 690.

Durante cerca de sete séculos, os cronistas deixaram de registar novas epidemias, embora obviamente as

doenças infecto-contagiosas continuassem a prevalecer em pequenos núcleos. Esse longo período de «hiberna-

ção» transmitiu assim uma enganadora sensação de segurança e, com isso, se descuraram as questões relaciona-

das com o lixo e a salubridade. Um erro que sairia caro.

Em 1322, na região da bacia do Yamuna, um tributário do grande rio Ganges, entre Deli e Agra, surgiria um

foco epidémico de peste bubónica, por via de contágios aquando de uma peregrinação religiosa. Da zona de Mu-

tra, caravanas de mercadores foram depois disseminando a doença por terra ao longo da Ásia. No fim dos anos

30 desse século, os focos da peste atingiram a Ásia central soviética e uma década depois chegaram à região da

península da Crimeia e do mar Negro. A partir daí, por terra e mar, a doença foi evoluindo em área afetada. E, atra-

vés destas duas vias, a peste estava, nos finais de 1346, às portas da Europa.

Tudo indica que os genoveses que defendiam um entreposto comercial junto ao mar Negro, em Caffa, na

Crimeira, foram os primeiros europeus a serem flagelados pela Peste Negra. Dizimados pela doença, as tropas

tártaras que assediavam o entreposto viram-se obrigadas levantar o cerco, mas antes catapultaram por cima

das muralhas alguns cadáveres de pestíferos. Foi esta «guerra biológica» que originaria a primeira contamina-

ção de europeus, que culminaria na invasão da epidemia no Velho Continente. Em finais de 1347 já Constantino-

pla tinha sido tragicamente afetada; pouco depois, navios genoveses, com parte da tripulação morta e a restante

em estado lastimoso, contaminaram Messina e a Sicília, bem como muitos outros portos gregos e da península

itálica. Num ápice, todas as zonas costeiras europeias ficaram infetadas: em abril de 1348 a doença entrou nas

Baleares, no mês seguinte em Valência e Barcelona, e em julho, através do porto francês de Calais, alcançou a

Inglaterra.

Ao território português, a Peste Negra chegaria em meados de 1348 e manter-se-ia a ceifar vidas na Eu-

ropa até 1352, embora nas décadas seguintes tenham continuado a eclodir pequenos surtos. As estimativas mais

precisas sobre a mortandade desta terrível pandemia apontam para cerca de 30 milhões de vítimas mortais na

Europa e 25 milhões na Ásia.

Apesar de trazida por humanos, da Índia até à Europa, a propagação inicial da Peste Negra esteve associada

sobretudo aos ratos selvagens e ratazanas, que invadiram aglomerados urbanos. As pulgas desses roedores, que

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16 | Resíduos: uma Oportunidade

encontraram comida abundante no lixo e nos alimentos, serviam de hospedeiros ao bacilo Yersinia pestis1. Apesar

de essas pulgas serem de uma espécie distinta das que geralmente parasitam os ratos domésticos e o homem, aca-

baram por os atacar quando os ratos-hospedeiros morriam contaminados pelas bactérias.

De roedor para roedor, de homem para homem, a Peste Negra tornou-se ainda mais contagiosa por via dos

fracos hábitos de higiene e das deploráveis condições de salubridade da época, além das graves carências alimenta-

res que afetavam a Europa por essa altura. A agravar, surgiram duas variantes desta doença – sanguínea e pulmonar

–, que a tornaram mais letal. Nestes casos, o contágio processava-se através da saliva, causando mortes fulminan-

tes, em parte devido a incorretas práticas médicas. Por exemplo, nos hospitais era bastante comum misturarem-

-se, na mesma cama, doentes pestíferos com pessoas sofrendo de outras maleitas. Durante a Peste Negra, muitos

dos moribundos, bem como cadáveres, mantiveram-se insepultos nas ruas durante dias, incrementando o risco de

outras doenças. Mais, a fuga de pessoas de zonas afetadas, que ainda não apresentavam sintomas mas já estavam

contaminadas, para outros locais ainda imunes, desencadearam uma maior e mais rápida disseminação.

No entanto, naquela época, os ratos e as pulgas, bem como a proliferação de lixo, não foram apontados como

a causa da epidemia nem dos contágios. No caso dos ratos, é certo que surgem representados na iconografia –

como os gatos ao lado dos doentes –, mas mais por razões simbólicas: no primeiro caso por se considerar serem

prenunciadores da epidemia; e, em relação aos gatos, por se julgar que eram protetores da vida. De facto, além de se

acreditar que o contágio provinha das emanações do ar, de origem desconhecida, considerava-se que a transmissão

se fazia através dos olhos dos enfermos – e não a partir da saliva, ou de outras excreções corporais, e muito menos

das picadas de pulgas. Nessa época, a «convivência» dos humanos com ectoparasitas – como as pulgas e os pio-

lhos – e com endoparasitas – como as lombrigas e a ténias – era banal, mesmo entre as classes mais abastadas.

Por estes motivos, durante a Peste Negra, tal como ocorrera noutros casos de epidemias, a intervenção da

medicina mostrou-se bastante ineficaz e as medidas públicas de controlo dos contágios não resultaram, porquanto

se optou por soluções ineficazes, como as fogueiras nas ruas e até salvas de artilharia ou música, pois julgava-se que

as vibrações afastariam o ar corrupto. Foram usados ainda outros métodos de «protecção», entre os quais peque-

nas caixas pendentes no nariz com soluções de vinagre. Alguns médicos utilizavam, quando visitavam os pestífe-

ros, máscaras especiais, mas mais imbuídas de simbolismo místico – tendo um longo bico, como o dos corvos – do

que por serem protetoras de contágios. Era também usual colocarem-se bodes nos quartos dos doentes, julgando

que assim afastariam os ares pestíferos. Deste uso adveio um fator não intencional: estes animais atraíam, para si,

as pulgas transmissoras da peste.

Um outro efeito social marcante da Peste Negra, para além de incrementar ainda mais o caos sanitário – foi o

exacerbamento do fervor religioso, que atingiu níveis de irracional fanatismo. De início, promoveram-se procissões e

1 Este bacilo só viria a ser identificado em finais do século XIX, pelo franco-suíço Alexandre Yersin. Note-se que a denominação Peste

Negra não proveio da elevada mortalidade causada nem da localização do primeiro contágio aos europeus, mas sim dos sintomas que afetavam as

vítimas. A zona picada pela pulga ficava com uma marca negra e surgiam depois bubões – inflamações dos gânglios, daí advindo a denominação

de peste bubónica –, a que se sucediam outras afeções com grande grau mortífero.

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17 | Os imundos tempos da doença

orações públicas, rogando misericórdia divina, por intercessão dos santos. Organizaram-se depois comitivas que ci-

randavam pelos povoados exortando ao arrependimento. Os mais conhecidos destes grupos foram os flagelantes, que

em peregrinação, nus da cintura para cima, se disciplinavam com cordas e chicotes durante 33 dias, entoando cânticos

religiosos e práticas diversas. Segundo consta, estes fanáticos peregrinos foram, ironicamente, um dos veículos mais

importantes da difusão da epidemia em muitas regiões, até que uma bula papal, em 1349, proibiu as suas atividades.

Pior sorte teve a comunidade judaica que, em algumas regiões, foi acusada de ser causadora das mortanda-

des nos povos cristãos, supostamente por andarem a confecionar venenos pestíferos, à base de aranhas e outros

animais peçonhentos, que lançariam para os poços e rios. As consequentes perseguições – mescladas de interes-

ses económicos – atingiram o seu auge na região de Languedoc, no sul da França, na Alemanha e no reino de Ara-

gão – que se estendia pela península itálica –, levando à fogueira milhares de judeus e lançando tanto terror na Eu-

ropa como a doença. Somente na Polónia, Inglaterra e em Portugal não se registaram execuções de judeus durante

a Peste Negra.

As pestes lusitanas

A inexistência de relatos fidedignos não permite apurar, com rigor, os efeitos da Peste Negra em Portugal, que

grassou durante poucos meses do ano 1348. Em todo o caso, o seu impacto demográfico deve ter sido semelhante

ao que ocorreu na Europa – ou seja, sacrificou pelo menos um terço da população –, desencadeando mesmo uma

grave crise social, não apenas pela mortandade mas porque os sobreviventes, herdando muito bens, abandonaram

os seus ofícios. Sabe-se que o rei D. Afonso IV se viu mesmo obrigado a decretar penas severas para quem optasse

pela ociosidade, perante o abandono da agricultura e de muitas outras tarefas essenciais ao reino.

Em Portugal, como noutras regiões do mundo, as epidemias continuaram a ocorrer, embora sem atingir as

dimensões catastróficas da Peste Negra, conforme se constata na obra Memórias de Epidemiologia Portuguesa,

publicada pelo médico António Vieira de Meireles em 1866. Após a grande peste do século XIV, registou-se uma

epidemia durante o cerco de Lisboa pelas tropas castelhanas em 1385, que contribuiu muito para refrear os ânimos

dos inimigos do Mestre de Avis. Outra também muito grave ocorreu em vésperas da expedição a Ceuta, em 1415,

durante o reinado de D. João I, tendo vitimado mesmo a rainha D. Filipa de Lencastre. Consta que esta epidemia,

também de peste bubónica, terá chegado através dos navios que vinham auxiliar os portugueses na conquista da

costa africana.

Um século e meio mais tarde, já durante o curto reinado de D. Sebastião, Lisboa foi atingida por outro sur-

to epidémico, que registou o seu auge em 1569, obrigando mesmo a corte a refugiar-se em Sintra. A mortandade

foi tão elevada na capital que, para se sepultar as vítimas, foi necessário sagrar olivais e praias, pois as mortes, em

certos dias, ultrapassaram mais de meio milhar. Na obra Memórias para a História de Portugal, Diogo de Barbosa

Machado escreveu que, nessa época, Lisboa ficou «reduzida a deserto, estava coberta de ervas, e se em toda ela se

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18 | Resíduos: uma Oportunidade

encontravam duas ou três pessoas pareciam, pelos seus semblantes pálidos, mortas, e não vivas». E acrescentaria

ainda que «nesta formidável tormenta igualmente naufragaram a robustez dos mancebos como a delicadeza das

donzelas, sendo ambos os sexos, e todas as idades violentamente consumidas pelo contágio».

Para lutar contra esta epidemia foram contratados dois famosos médicos castelhanos, que se fartaram de re-

comendar medidas. No meio de tantas, quase todas empíricas, muitas estavam condenadas ao insucesso – como

as habituais queimas de plantas em fogueiras pela cidade, a proibição de fazer exercício ou o encerramento das ca-

sas de mancebia. Outras, indiretamente, até trouxeram alguns benefícios, como a desobstrução de ruas, inundadas

de lixo, a proibição de os barbeiros terem em casa ou deitarem na rua o sangue «espadanado» das sangrias, e a in-

terdição de «danças, bailes e ajuntamentos de negros». Neste último caso estava subjacente um motivo erróneo:

entendia-se que os escravos eram mais propensos a serem agentes de contaminação, por causa do odor natural

que exalavam. Em outras medidas, que até trariam benefícios mais efetivos de controlo sanitário, acabou por se ficar

aquém do desejável. Por exemplo, foi determinada a queima da roupa dos pestíferos, mas os médicos concordaram

que apenas se eliminasse a de menor valor, podendo a outra ser reutilizada, se lavada em água do mar, e depois em

água doce e, por fim, em água avinagrada. Aplicaram-se ainda outras medidas que hoje se mostram ridículas, como

a recomendação de «trazer pedras preciosas, principalmente esmeraldas e jacintos», de comer uma mistura de fi-

gos passados, nozes, folha de arruda e sal. Foi, além disso, proibida a «conversação entre mulheres».

Esta peste disseminar-se-ia tanto para norte como para sul, atingindo com gravidade Santarém e Coimbra

e ficando às portas de Évora, supostamente por via da milagrosa proteção da Nossa Senhora da Boa-Fé, segundo

os cronistas. Contudo, na verdade, a cidade alentejana foi poupada por causa da interdição da entrada de forasteiros

para dentro das muralhas e à expulsão dos mendigos. Os surtos apenas cessaram na primavera de 1570, deixando

um saldo de mortos superior a 60 000 pessoas apenas em Lisboa; ou seja, uma mortandade superior à causada pelo

terramoto de 1755.

Menos de uma década depois, em 1579, uma nova epidemia assolou Portugal, vinda de outros países euro-

peus, onde eclodira com gravidade alguns anos antes. Suspeita-se que tenha surgido na cidade de Trento, através da

venda de roupas de pestíferos, tendo proliferado por via de peregrinos que se deslocaram a Roma por causa do Ju-

bileu. Só na cidade siciliana de Messina terão perecido, segundo as crónicas, 60 000 pessoas, e em Veneza quase

100 000. Num período conturbado da história de Portugal, que culminou na perda da independência em 1580, esta

peste constituiu também um importante flagelo demográfico. Em Lisboa terão morrido 40 000 pessoas e mais

25 000 em Évora, atingindo também muitos milhares noutras regiões do país.

Nos últimos anos do século XVI, nova epidemia se declarou em Lisboa, propagando-se rapidamente para

norte. Referida por frei Luís de Sousa, esta peste matou, só em Lisboa, mais de 10 000 pessoas, tendo apenas cessa-

do em definitivo em 1602. Tal como noutras epidemias, os portos foram a porta de entrada e, segundo os cronistas,

foi importada do norte de África, onde no auge da doença morreram mais de quatro mil pessoas por dia.

Ao longo do século XVII foram-se sucedendo novos surtos epidémicos, tendo um dos mais letais atingido o

Algarve entre 1645 e 1651. Com o aumento da navegação para o Brasil, por causa da descoberta das jazidas de ouro e

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19 | Os imundos tempos da doença

diamantes, Portugal começou também a ser afetado por doenças de origem tropical. Em 1725, Lisboa seria atingida

por um grave surto de febre-amarela, que os historiadores daquela época batizaram de cólera ou vómito negro. A

doença terá entrado pela zona portuária, disseminando-se depois pelas ruas «aonde as imundícies eram mais con-

tínuas, e delas se levantavam vapores continuados», conforme relataram as crónicas. Ignorando-se, nessa época, a

verdadeira forma de transmissão desta doença – sabendo-se hoje que provavelmente, devido a condições meteo-

rológicas particulares, um mosquito português terá «alojado» o vírus –, esta epidemia foi supostamente controla-

da com um medicamento à base de leite de burra, por recomendação do médico francês Isaac Eliot2. Mesmo assim

morreram, só em Lisboa, cerca de seis mil pessoas.

As epidemias associadas a condições de insalubridade estenderam-se pelas décadas seguintes e, curiosa-

mente, aumentaram de frequência à medida que se reforçaram as disponibilidades hídricas, uma vez que estas re-

sultavam depois numa maior quantidade de esgotos, que se misturavam com o lixo nas ruas3. Segundo os relatos

históricos, a cólera e a febre-amarela – doenças que não terão sido muito comuns em séculos anteriores – começa-

ram a causar epidemias ainda durante o século XVIII, atingindo contornos de grande gravidade sobretudo entre as

décadas de 30 e 60 do século XIX. O surto de cólera em 1833 causou cerca de 40 000 mortes em todo o país, um

terço das quais em Lisboa. Em 1855, uma nova epidemia causou quase nove mil vítimas mortais e, dois anos mais

tarde, a febre-amarela afetaria cerca de 17 000 lisboetas, isto é, 5% da população na época, causando quase cinco mil

mortes, sobretudo nos bairros populares de Alfama.

Além da cólera e da febre-amarela, passaram a ser frequentes as crises de malária, sobretudo em zonas de

arrozais ou com águas estagnadas, e surtos de difteria, febre tifoide e tuberculose. Embora atingissem em particu-

lar os habitantes mais pobres, estas doenças chegaram também a causar mortes entre as pessoas das classes mais

favorecidas, como foram os casos do rei D. Pedro V – que sucumbiu de febre tifoide, em 1861 – e da sua mulher D.

Estefânia – que faleceu de difteria, dois anos antes.

Algumas melhorias profiláticas que foram sendo implementadas, nomeadamente pelos avanços da medi-

cina, com a descoberta dos agentes patogénicos e das vacinas sobretudo a partir de finais do século XIX, fizeram

diminuir de forma significativa as taxas de mortalidade dos surtos epidémicos. Todavia em 1899 ainda surgiu uma

grave crise de peste bubónica – que então somente afetava países muito subdesenvolvidos – na cidade do Porto,

tendo causado 37 mortos, incluindo o célebre higienista Câmara Pestana.

Ao longo do século XX, as epidemias relacionadas com as más condições de saneamento praticamente de-

sapareceram em Portugal, embora até há cerca de quatro décadas ocorressem ainda episodicamente alguns casos

clínicos de cólera em zonas mais desfavorecidas das grandes cidades.

2 Este médico recebeu, por esta suposta cura, uma comenda da Ordem de Cristo pelo rei D. João V. Mas mais tarde, em 1738, seria enfor-

cado por ter assassinado a mulher e um padre.3 Em Lisboa, antes da construção do Aqueduto das Águas Livres, estima-se que a capitação média diária fornecida pelos poucos chafa-

rizes fosse de apenas um litro por habitante.

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20 | Resíduos: uma Oportunidade

A formosa estrebaria

Esta elevada frequência de epidemias no nosso país revela que, em séculos passados, a situação sanitária, so-

bretudo nos centros urbanos, era lastimável, contrastando assim, em certa medida, com o imaginário português de

termos sido sempre um jardim à beira-mar plantado. Nega também aqueles adágios seculares de que «cheira bem,

cheira a Lisboa» ou que «quem não viu Lisboa, não viu coisa boa».

Na verdade, pelo menos até ao século XX, olhando para os relatos de muitos viajantes estrangeiros, a limpe-

za urbana não era um apanágio lusitano. Se é certo que alguns se mostraram maravilhados com muitos aspetos da

paisagem portuguesa, também se escandalizaram, e muito, com a sujidade das principais cidades, em especial da

capital. Lorde Byron, que na primeira década do século XIX glorificou Sintra, chamando-lhe Glorioso Éden, confes-

saria numa carta, enviada para Inglaterra, ter decidido refugiar-se naquela zona «para fugir das imundices de Lisboa

e dos seus ainda mais imundos habitantes».

Esta apreciação não difere muito das críticas de outros viajantes que, desde o século XVIII, não cessaram de

aludir à deplorável falta de limpeza em Lisboa. O francês Pierre Humberte, num livro publicado em 1730, referiu que

«as ruas próximas do rio são íngremes, estão bem calçadas, e são de largura variável, mas muito imundas, não as

varrendo senão de três em três, ou de quatro em quatro dias». O célebre viajante e escritor William Beckford ficou

também estupefacto com as matilhas de cães que enxameavam a capital, no meio da imundice. Numa carta escrita

em julho de 1787, disse que «Lisboa é infestada, como nenhuma das capitais que tenho habitado, por bandos daque-

les animais semifamélicos, que contudo são de alguma importância e utilidade, limpando as ruas de alguma parte,

ao menos, de seus fétidos entulhos».

Pouco depois, no pino do verão desse ano, o viajante inglês faria um retrato ainda menos abonatório dos por-

tugueses e da sua capital: «É peçonha para uns, o que para outros é manjar – não há coisa mais certa. Estes dias e

noites de temperatura ardente, que me oprimem sem alívio, são o deleite e ufania dos habitantes desta capital. O

calor não somente parece ter avenenado os ferrões das moscas e mosquitos, mas também arrojou para a rua, por

noites inteiras, todos os abelhões humanos, que pulam e bailam e arranham bandurras desde o sol-posto até à al-

vorada. Junte-se-lhes os cães em abundância, latindo e uivando sem interrupção; a vozearia das ladainhas, dos ter-

ços; os estalidos do fogo-de-artifício, que os devotos deitam sem cessar em louvor de algum membro da celestial

hierarquia; a bulha suja da vadiagem insolente, que percorre as ruas em busca de aventuras; ver-se-á que não há

pilhar uma piscadela de sono».

Mais tarde, já no século XIX, durante as invasões napoleónicas, Laure Permon, mulher do general Junot,

mostrou o seu espanto perante o deplorável estado da parte central da capital portuguesa. «Uma particularidade

notável», escreveu, «é que em 1806, cinquenta anos depois da catástrofe, viam-se ainda nas ruas de Lisboa não

somente sinais do terramoto de 1755, mas até os entulhos, tais como os deixara aquele ano maldito. Várias ruas de

Lisboa, pequenas praças continham ainda esses corpos da cólera do céu. Imundícies, esqueletos de cães, cabras e

jumentos, até de machos, jaziam por cima das ruínas, e a cidade, ameaçada da peste pelas exalações mefíticas des-

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21 | Os imundos tempos da doença

ses montões de materiais, algumas vezes em putrefacção, não devia sua salvação mais que ao ar activo e salubre,

que purifica com o seu sopro, e dá saúde a uma cidade que deveria, como se vê, perecer com a morte comum aos

povos do Oriente».

Ainda mais cáustico, o jornalista espanhol Calvo Asensio, que ocupou o cargo de secretário da embaixada

espanhola em Portugal, escreveu em 1870 que «todas as ruas, a Áurea, da Prata, Augusta e da Rainha, não se dis-

tinguem pela limpeza, porque este ramo da polícia é bem descurado», descrevendo depois algumas partes da cida-

de em tom pouco agradável: «O passeio da Estrela, além de ser irregular, e não de muito grandes dimensões, causa

lástima e nojo pela falta de asseio em que se encontra», acrescentando ser uma «lástima» a subida para o real pa-

lácio da Ajuda, por se mostrar «asquerosamente imunda».

Os portugueses destas épocas foram muito mais comedidos, embora se destaquem as sibilinas palavras

de Francisco Xavier de Oliveira, o famoso cavaleiro de Oliveira, que em meados do século XVIII apelidou Lis-

boa de «formosa estrebaria». Ou também, cerca de um século depois, o médico e escritor português Guilherme

Centazzi que, no romance A Alma do Justo, publicado em 1861, escreveu: «Lisboa, que todos nós estamos ven-

do, e que os estrangeiros e os vindouros hão-de julgar pelo que lerem… Lisboa (não se faça do preto branco, nem

se queira embutir gato por lebre), examinada em globo é uma coisa; em detalhe, é outra. Em globo, ninguém lhe

negará aparato, beleza, opulência, grandeza, etc., etc. Em detalhe, de fora para dentro, é tal e qual como esse fami-

gerado siciliano que, no domingo, se paramentava com luzentes vestiduras, sem despir a camisa com que tinha

andado a mariscar os anzóis durante a semana. Lisboa, em síntese, é majestosa; em análise, é um covil lastimoso

de miséria e lama.».

Posturas para inglês ver

Por estas descrições pode supor-se que Portugal – sobretudo Lisboa, que então abarcava cerca de 10% da po-

pulação do país – muito tarde acordou para os problemas da limpeza urbana. Porém, na verdade, até nem foi assim.

Desde meados da Idade Média até ao século XVIII, foram sendo criados inúmeros regulamentos e posturas com o

intuito de impor regras de recolha do lixo nas principais cidades, embora não por razões estritamente de saúde pú-

blica, mas sobretudo por razões estéticas ou de decoro4.

No caso concreto de Lisboa, desde tempos ancestrais, encontram-se diversas disposições e proibições no

sentido de evitar a acumulação de dejetos e de esgotos domésticos nas ruas. Entre 1485 e 1495, o rei D. João II ema-

nou diversas cartas régias e alvarás, ordenando a limpeza da cidade e dos canos das habitações, proibindo também o

4 Muitas destas provisões foram adaptadas de outras mais antigas, algumas das quais da Idade Média, impostas em datas incertas. Foram

compiladas e transcritas na obra Livro das Posturas Antigas, editada pela Câmara Municipal de Lisboa em 1974. Em muitos casos não se consegue

identificar o ano em que se implementaram.

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22 | Resíduos: uma Oportunidade

abandono de lixo nos quintais descobertos e fixando o seu local de lançamento, quase sempre junto às praias ou em

buracos abertos para o efeito. Nesse período, o monarca também determinou, por carta régia de 1486, que nas fre-

guesias da capital fossem contratadas pessoas, pagas pelos moradores, para a limpeza das ruas. Ao longo dos sé-

culos, os encargos da limpeza eram suportados por impostos, através de fintas (imposto em função dos rendimen-

tos) ou aplicados a determinados víveres. Durante algum tempo, sobretudo no período filipino, aproveitou-se, para

os custos da limpeza, parte do real da água, um imposto, sobre a carne e o vinho, que estava destinado à construção

de um aqueduto (obra que continuaria a ser adiada até ao século XVIII). Mais tarde, já no século XVIII, foi criado um

imposto especial – o realete da limpeza –, que incidia sobre a carne e o vinho.

Durante as décadas seguintes, foram sendo aplicadas mais ordens para sanear as cidades, sobretudo quan-

do a zona portuária se foi estendendo por causa das Descobertas. No fim do reinado de D. Manuel I foi determi-

nado que os lixos deveriam ser despejados na zona de Santa Catarina, na praia de Santos ou atirados para herdades

dos arredores. Tudo se manteve quase como estava nas décadas seguintes. Durante o reinado de D. Sebastião, os

homens que andavam com carretões a transportar o lixo não eram mais de quatro, pelo que a cidade continuava

insalubre.

Durante a dominação castelhana, entre 1580 e 1640, este problema manteve-se. Após a Restauração, em

1661 o conde de Vale de Reis, presidente do Senado de Lisboa, ordenou que a cidade fosse dividida em bairros e que

aos respetivos ministros se acometesse a obrigação de executarem as ações de limpeza, atribuindo-lhes uma ver-

ba e indicando os locais dos monturos. Ainda no século XVII, na sequência de um empréstimo, o Senado de Lisboa

adquiriu seis carros de duas rodas para se recolher o lixo durante a noite, fixando um imposto por cada morador.

As diversas posturas que foram sendo decretadas continuaram em vigor durante as décadas seguintes. As-

sim, em pleno século XVIII, na capital portuguesa era interdito deitar lixo nas praças públicas, em travessas e be-

cos, bem como perto de cemitérios e de locais de culto. Também era interdito deixar-se porcos e patos à solta pelas

ruas, e impediu-se ainda que se prendessem bestas e cavalos nas ruas. Os animais mortos não podiam ser aban-

donados nas vias públicas. Para a retirada do lixo das casas ou para os despejos de águas, havia também normas.

Assim, apenas se poderiam despejar águas das janelas a partir de determinada hora, sinalizada pelos sinos das

igrejas, mas com a obrigatoriedade de se gritar, antecipadamente e por três vezes, «água vai».

A deposição do lixo estava interdita aos sábados e dias santos. Nos outros dias, os detritos poderiam ser

colocados junto à testada da respetiva habitação, de modo a serem depois transportados pelos ribeirinhos ou por

negras calhandreiras, até as praias ou outros locais convenientemente indicados. Não poderiam ser levados em

bacios ou ciscos; apenas em canastras ou carroças. Além disso, as frentes das portas tinham de ser limpas pelos

proprietários pelo menos duas vezes por semana.

Para os infratores estavam previstas fortes penalizações. Quem deitasse águas antes do toque do sino, pa-

garia uma pesada multa, agravada para um montante até 10 vezes superior se contivesse «água fedorenta, suja

de escamas do pescado, ou urina». Quem, por malícia, deitasse «bacio de sujidade ou caqueirada nas portas dos

vizinhos» poderia ser condenado a 20 dias de prisão e a uma multa de quatro mil reis, que seria reduzida em 200

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23 | Os imundos tempos da doença

réis se provasse ter sido «por desastre». Quem fizesse os «seus feitos» – ou seja, urinasse ou defecasse – debaixo

dos arcos do Rossio ou nas ruas e travessas, podia apanhar alguns dias de prisão, para além de uma multa. Quem

aproveitasse as enxurradas, aquando das chuvas, para despejos ilegais, estava sujeito a uma coima de mil réis. No-

te-se que os denunciantes beneficiavam sempre de metade do valor das coimas aplicadas.

A par dos relatos de estrangeiros, diversos documentos oficiais demonstram que, apesar de tudo isto, as

disposições municipais foram quase sempre ineficazes, sendo inumeráveis as sucessivas queixas e alertas do Se-

nado de Lisboa, durante os reinados de D. Pedro II e D. João V. No início do século XVIII, numa exposição ao rei, a

Câmara de Lisboa considerava que a limpeza da cidade era «o negócio da maior importância que há na república,

pelas prejudiciais consequências que do contrário resultam ao bem comum».

Como facilmente se depreende das posturas referidas, atribuir a responsabilidade exclusiva da limpeza das

vias públicas aos seus habitantes estava botada ao insucesso. Por mais fiscalização e vigilância, através dos cha-

mados almotacés, os despejos de águas residuais e de lixo, para as vias públicas, sempre foram muito frequentes.

Por um lado, porque uma parte considerável da população, pela pobreza em que vivia, não tinha condições para

contratar ribeirinhos ou negras calhandreiras para lhe levar os despejos até ao estuário ou locais ermos. Por outro,

era relativamente mais fácil aguardar pela noite, sem qualquer iluminação, para fazer os despejos. Além disso, em

muitas situações, os despejos nas praias do estuário do Tejo não só causavam profundo fedor e poluição, mas tam-

bém conflituavam com algumas atividades portuárias e de navegação.

A aplicação de impostos para a limpeza, por bairro, que incidia de modo proporcional aos rendimentos dos

habitantes, acabou também por não solucionar o problema. Por um lado, na época das chuvas, as enxurradas tra-

ziam as imundícies das cotas mais elevadas para as zonas mais baixas, promovendo-se assim conflitos sobre a

que bairro deveria ser atribuído o custo dessas limpezas. Por outro lado, as classes mais endinheiradas – a nobreza,

parte da burguesia e os clérigos –, muitas vezes recusavam pagar os impostos, arranjando subterfúgios diversos.

No início do século XVIII, os vereadores de Lisboa chegaram até a dirigir-se ao rei, dizendo-lhe que, «querendo o

Senado de algum modo remediar esta desordem», tinham contactado as «pessoas poderosas, para que mandas-

sem pagar o que lhes tocava para a limpeza»; porém, acrescentaram, «eles não só não satisfizeram o que estavam

devendo, mas nem resposta lhes mandaram». Tendo o Senado visto «que era infrutuosa essa diligência», relata-

ram os vereadores, e também nada alcançado quando remeteram «róis dos tais poderosos» à Secretaria de Estado

para os «obrigar ao pagamento», lamentavam, por fim, que «se não falara nesta matéria mais». Resultado desta

falta de dinheiro: formaram-se «grandes lodos que se viam quotidianamente sem se limparem, com escândalo

universal desta cidade».

Em vária documentação respeitante a Lisboa durante o reinado de D. João V – que abrangeu um período de

larga riqueza, pelo ouro e diamantes chegados do Brasil –, destacam-se inúmeros problemas de sujidade das vias

públicas, que resultavam sobretudo do desleixo da população. O Senado da Câmara de Lisboa, em meados da dé-

cada de 30, referiu que «ao mesmo tempo que os ribeirinhos iam limpando [a rua], podendo lançar o lixo seco para

se levar, [os habitantes] os deixavam em casa e depois o lançavam na rua, de maneira que, vindo daí a tempos, lhes

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fosse mais penoso levar-se [o lixo], em razão de que, com as águas das janelas [os despejos de águas sujas], se

fazia tudo em lodo que, para o poderem levar, era necessários aos ribeirinhos andar buscando esterco pelas estre-

barias para o misturarem, e nesta diligência gastavam dois tempos, padecendo a república o que se experimenta-

va na falta da limpeza». Mesmo com esta explanação em português antigo, se percebe bem como Lisboa não era

nenhum modelo de asseio naqueles tempos.

Esta situação não se alterou muito ao longo das décadas seguintes. Em 1780, sob supervisão de Pina Mani-

que, a Intendência-Geral da Polícia passou a administrar e arrecadar dois impostos municipais – o real e o realete

da carne –, que se destinavam às despesas de reedificação da cidade após o terramoto de 1755, ao conserto das vias

públicas, das fontes e também da limpeza da cidade. Desse modo, as funções relativas ao saneamento de Lisboa

foram retiradas à administração autárquica.

Os solavancos de uma limpeza

Em 1823, após a experiência com a Intendência-Geral da Polícia, que não resultou em melhorias significa-

tivas, e com o regresso do rei D. João VI a Portugal, vindo do Brasil, o serviço da limpeza da cidade de Lisboa vol-

taria à esfera da autarquia, tendo o governo destinado um montante de 24 contos de réis por ano para essa função.

A remoção do lixo era efetuada através de carroças numeradas, puxadas por burros ou mulas, que pelo toque da

campainha anunciavam aos moradores a sua passagem.

Este serviço era assegurado por um grupo de serventuários, onde se incluíam também varredores, que ti-

nham a incumbência de transportar o lixo urbano e o estrume das cavalariças, bem como tornar as ruas mini-

mamente asseadas. Apesar destas tentativas, os problemas de limpeza agudizaram-se, tanto mais que a capital

registara um crescimento populacional significativo: se depois do terramoto de 1755 teria pouco mais de 70 000

habitantes, em meados do século XIX já contava cerca de 350 000.

Num ensaio do médico Francisco José da Cunha Viana, professor catedrático da Escola Médico-Cirúrgica

de Lisboa, escrito em 1854 no rescaldo de mais uma epidemia de cólera, surgem tenebrosas descrições sobre o

péssimo estado de salubridade da capital portuguesa: «A maior parte dos saguões, sobretudo na cidade baixa de

Lisboa, além de estreitos e pouco claros, são ainda obstruídos com janelas de rótulas, que muito dificultam a ven-

tilação nestes lugares. São, de mais a mais, divididos em pequenas secções, com muros mais ou menos altos; e,

servindo de despejos às lojas com que comunicam, estão, quase todos, cheios de lixo, de vegetais e detritos animais

em putrefacção que neles lançam das janelas os vizinhos de todos os andares. Há alguns que têm pombos, gali-

nheiros, coelheiras e até chiqueiros para porcos.».

Mais adiante, o médico acrescentou que um «outro mau costume que há, especialmente em Lisboa, é

estarem os barris de lixo muito tempo nas escadas, sem serem despejados nas carroças de limpeza da cidade, e

daqui provir o grande inconveniente de, podendo ser despejados pelos cães ou pelos pobres, ficar o lixo espalha-

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25 | Os imundos tempos da doença

do por muito tempo nas casas de entrada, lançando de si um péssimo cheiro, e infectando, por isso, o ar de toda

a escada».

Em dezembro de 1855, como consequência desse surto de cólera, seria aprovado o Regulamento da Ad-

ministração da Limpeza de Lisboa e, dois anos depois, o governo lançou uma operação para ajardinar as praças

que estavam quase transformadas em lixeiras. Entretanto, o parlamento destinaria 800 contos para a construção

de um aterro na zona da Boavista, onde durante anos foi depositado o lixo, o qual veio dar origem à Avenida 24 de

Julho.

Contudo, apesar de, em finais do século XIX, a autarquia ter acabado por atribuir a concessão da limpeza

urbana a um privado, a situação da limpeza urbana continuou deplorável. De acordo com os registos da exposição

O Povo de Lisboa, a capital era, naquela época, «uma cidade suja, desordenada e malcheirosa. Encantava pela sua

beleza e pitoresco, mas decepcionava pelo aspecto caótico das suas ruas e o atraso em que vivia a população. As

ruas estreitas e tortuosas dos bairros populares, para onde se lançavam detritos de toda a espécie, formando au-

tênticas lixeiras, apresentavam-se esburacadas, com poças de água suja».

Em 1907, a autarquia lisboeta acabou com a concessão e retomou a gestão direta do serviço de limpeza ur-

bana. A recolha do lixo passou a ser feita a partir de caixas e barris, com aspeto muito pouco higiénico, colocadas

junto às portas das casas, e as ruas eram regadas antes da varredura com água, à qual se adicionavam substâncias

químicas. Essa operação era feita depois da meia-noite. Em 1909 ainda foi proposto o uso de caixas de zinco tapa-

das, com fecho hermético, que deveriam ser recolhidas por carroças entre as 11 horas e a uma da manhã, mas isso

não se concretizou.

Nas primeiras décadas do século XX, com a expansão urbana de Lisboa, o lixo começou a ser transporta-

do por batelão até à Margem Sul, para servirem de fertilizante, sendo este o destino principal até aos anos 60. Em

1938 ainda foram iniciadas experiências para a produção de fertilizantes a partir do lixo lisboeta numa instalação em

Belém, com a colaboração do Ministério da Agricultura. O adubo fabricado foi aplicado pela Escola Profissional da

Paiã, na zona de Odivelas, mas as quantidades foram sempre pequenas.

As operações de envio dos lixos de Lisboa para a outra margem do Tejo eram, contudo, intermitentes, por

causa de situações de mau tempo ou de problemas de assoreamento do estuário junto aos cais de embarque.

Como solução escorreita, foram sendo criados diversos vazadouros de emergência, nomeadamente na Quinta da

Musgueira (em 1939), na Quinta das Areias, junto à atual Rotunda do Aeroporto (em 1960) e na Quinta da Lobeira,

no Lumiar (em 1962). Com a interrupção do envio do lixo para a Margem Sul, em finais de 1962, esta última lixeira

passaria a ser o único local de despejos durante os primeiros meses de 1963, tendo depois sido criado um vazadou-

ro no Casal da Boba, na Amadora.

Somente nos anos 20 foi concretizada a mecanização parcial da limpeza urbana, através da aquisição de 10

veículos automóveis, com caixa basculante e com capacidade de sete metros cúbicos. Nessa altura também se

procedeu à organização da limpeza, através de um sistema inglês também conhecido por pagefield, que reservava

a utilização de carros de tração animal (hipomóveis) para remoções num raio de ação não superior a três quilóme-

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tros, e de veículos automóveis para distâncias superiores. Em meados dos anos 30, a autarquia de Lisboa dispunha

de 30 veículos automóveis e 439 hipomóveis. Os hipomóveis continuaram a ser utilizados comummente até finais

dos anos 50, embora na última fase mais adstritos à limpeza de ruas. O último deixou de funcionar em 1966. Nos

anos da Segunda Guerra Mundial, devido às restrições de combustíveis e de peças, parte das viaturas motorizadas

ficou imobilizada, sendo necessário recorrer ao gasogénio e à reativação de hipomóveis. Nalguns casos, atrelados

a tração mecânica foram transformados em hipomóveis, puxados por três cavalos.

Em 1951, com a melhoria do parque de veículos e para normalizar os procedimentos de deposição do lixo, foi

adotado o uso obrigatório de recipientes metálicos, todos numerados e registados. Por outro lado, foram impos-

tas normas de higiene e de saúde pública, como a proibição de cuspir para o chão, sacudir o tapete à janela e deixar

o lixo ao abandono. No fim dos anos 50, os serviços de limpeza de Lisboa possuíam quatro estações centrais de

apoio, 12 postos de limpeza e cerca de 1430 funcionários de recolha de lixo e varredura das ruas.

Nos anos 60 seriam introduzidos os primeiros veículos de recolha de lixo do tipo rotativo e caixa de carga,

bem como a primeira viatura equipada com elevador de contentores. O esforço de modernização da frota de apoio

à limpeza urbana prolongar-se-ia nas décadas seguintes, mas somente em meados dos anos 70 se procedeu à

instalação de contentores especiais, terminando com a proliferação de lixo nas vias públicas.

Porém, se a limpeza urbana melhorou substancialmente ao longo das primeiras oito décadas do século XX

– e as doenças associadas ao lixo e à contaminação das águas foram diminuindo5 –, o destino final nem tanto. Com

o intuito de produzir adubos, em 1963 a autarquia passou a vender o lixo à Federação dos Grémios da Lavoura da

Província da Estremadura, tendo sido pensada a criação de uma unidade de compostagem associada a um vaza-

douro na Quinta da Barroca, em Odivelas. Todavia, como a autarquia de Loures – que então administrava aque-

la freguesia – se opôs, o projeto seria abandonado. O município de Lisboa voltaria a reassumir a posse do lixo em

1965 – que continuaram, entretanto, a ser despejados em Casal da Boba, na Amadora – e decidiu construir, por

sua iniciativa, uma estação de compostagem em Beirolas, na zona oriental da capital. As obras seriam iniciadas em

1969 e a unidade seria inaugurada quatro anos mais tarde, juntamente com um aterro sanitário para receção dos

rejeitados.

Embora a capacidade de tratamento da unidade de compostagem tenha sido aumentada em 1986 – pas-

sando de 600 toneladas por dia para 1050 toneladas –, foram surgindo diversos problemas. Além dos maus odo-

res, a qualidade do composto foi-se deteriorando e, devido à cada vez maior heterogeneidade do lixo, as avarias

técnicas sucediam-se, obrigando a cada vez maiores despejos no aterro em Beirolas e também no vazadouro de

5 Ao longo das primeiras décadas do século XX, as doenças infecto-contagiosas mais comuns em Portugal foram a tuberculose e a sí-

filis. As doenças que causaram epidemias até ao século XIX, relacionadas com as más condições de higiene, foram desaparecendo quer por via

das políticas sanitaristas, quer pelo uso de medicamentos que antes não existiam. Até aos anos 70 do século XX sucederam surtos episódicos de

cólera em Portugal. Nas últimas décadas, essas epidemias desapareceram do nosso país, embora continuem a surgir casos de doenças graves re-

lacionadas com a falta de higiene ou devidas ao contacto com lixo ou águas contaminadas, tais como as febres tifoide e paratifoide, a leptospirose,

o tétano e certas hepatites.

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27 | Os imundos tempos da doença

Casal da Boba. Uma situação que só teria resolução definitiva muitos anos mais tarde. Com efeito, já depois de se

ter criado outro aterro em Vale do Forno, no Lumiar, que também funcionava mal, se viria a encerrar a unidade de

compostagem de Beirolas, em meados dos anos 90, mas mais por causa da necessidade de se montar a Exposição

Mundial dos Oceanos em 1998, avançou-se para a construção de uma central de incineração, que também pas-

sou a tratar os resíduos de Loures, Amadora e Vila Franca de Xira. Só a partir de então, Lisboa se livrou – em sentido

figurado e literal – do seu lixo urbano.

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A Montanha que pariu o Lixo

Consta que o general francês Foy, durante as invasões napoleónicas na primeira década do século XIX, terá

dito que «Portugal é Lisboa e o resto é paisagem». Esta frase, que ainda hoje surge como um lugar-comum, em-

bora sem correspondência com a realidade, pode aplicar-se ao mundo do lixo até grande parte do século XX. Com

efeito, ao longo da história de Portugal, em documentos oficiais, relatos e testemunhos diversos, quase só se desta-

cam os problemas sanitários da cidade de Lisboa e, em menor grau, do Porto ou de Évora. Aliás, o anterior capítulo

é um exemplo paradigmático. Mas não é por acaso, por preguiça ou negligência dos historiadores que isso sucede.

De facto, durante séculos, Portugal esteve muito longe de ser um país populoso e ainda menos urbano: era, de facto,

Lisboa e pouco mais. Desse modo, o lixo em Portugal foi, durante séculos e até a um passado muitíssimo recente,

um problema quase exclusivamente alfacinha.

Aquando da fundação, os portugueses deveriam ser cerca de um milhão. Ao longo dos primeiros reinados e

com a progressão territorial para sul até ao Algarve, a população cresceu razoavelmente, embora não haja dados quan-

titativos fiáveis, porque os apuramentos demográficos eram feitos por inquirições sem grande rigor. Vários historiadores

foram apresentando estimativas, que variam bastante embora coincidindo nas constantes flutuações. Assim, no início

do século XV, poucas décadas após a Peste Negra, a população lusitana deveria ultrapassar pouco mais de um milhão

de habitantes. Curiosamente, nesta época, o Alentejo era a região mais populosa, com cerca de um terço do total. A

Estremadura, incluindo Lisboa, rondaria os 20%, a Beira (correspondente à região Centro) cerca de 25%, Entre Douro e

Minho (incluindo o Porto) não chegava aos 10%, tal como Trás-os-Montes, e o Algarve não alcançava os 5%.

Uma resenha do reino mandada fazer por D. João III, já na primeira metade do século XVI, indicou nesse

tempo a existência de perto de 1,5 milhões de habitantes, um número que já estava em decréscimo em relação às

décadas anteriores, por causa da emigração para os novos territórios conquistados por Portugal. A Estremadura re-

presentava quase 30% do total, sendo assim a região mais populosa, Entre Douro e Minho agrupava 23%, o Alentejo

rondava os 22%, a Beira 13%, Trás-os-Montes 7% e o Algarve 5%. Estima-se que, em 1580, quando se iniciou o do-

mínio espanhol, os portugueses contavam pouco mais de um milhão – em parte devido à emigração e às epidemias

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30 | Resíduos: uma Oportunidade

dos anos anteriores. Em 1640, ano em que ocorreu a Restauração, a população rondava 1,1 milhões de indivíduos,

tendo Lisboa cerca de 160 000.

Nos séculos seguintes, o país registou um incremento demográfico significativo, embora apenas tenha su-

perado os dois milhões de habitantes em meados do século XVIII. Em 1800, estima-se que deveriam existir entre

2,6 e 3,0 milhões de portugueses. No primeiro recenseamento em 1864 – processo em que, pela primeira vez, se fez

a contagem individualizada da população –, já atingia os 3,8 milhões.

Apenas com este primeiro recenseamento se estabeleceu com rigor a distribuição populacional ao longo do

território e a verdadeira dimensão das principais cidades. Agregando milhares de pequenas núcleos, Portugal era

um país marcadamente rural e a maioria das cidades era pouco populosa. Lisboa rondava os 200 000 habitantes e o

Porto apenas 86 000. Somente Braga, Setúbal, Coimbra, Évora, Elvas e Tavira ultrapassavam também a fasquia dos

10 000 habitantes, mas nenhuma excedendo os 20 000. A população que vivia em cidades e vilas – ou seja, nas se-

des de concelho – totalizava somente 1,15 milhões de habitantes, enquanto nas freguesias rurais se contabilizavam

2,78 milhões de habitantes, ou seja, quase 71% do total.

Nas décadas finais do século XIX, o aumento populacional ainda foi mais marcante, apesar de se manter o

padrão rural. No ano 1900, para uma população no continente que chegara já aos cinco milhões de habitantes, ape-

nas 785 000 distribuíam-se por povoações com mais de 10 000 pessoas. Destas, cerca de 370 000 residiam em

Lisboa, tendo o Porto um pouco mais de 170 000. Aglomerados urbanos hoje bastante importantes eram no início do

século XX pouco povoados: Vila Nova de Gaia contava pouco mais de 14 000 pessoas, Braga apenas 24 000, Se-

túbal somente 22 000, Coimbra contava 18 000, Évora 16 000, Portalegre e Faro não chegavam às 12 000. Algumas

sedes de distrito nem sequer atingiam 10 000 habitantes, como Bragança, Castelo Branco, Guarda, Santarém, Viana

do Castelo, Vila Real, Viseu e Beja.

Em síntese, na passagem do século XIX para o XX, Portugal tinha somente dois aglomerados urbanos com

mais de 25 000 pessoas (Lisboa e Porto), 18 com uma população entre 10 000 e 25 000 habitantes, e mais 72 povo-

ações com uma população entre 5000 e 10 000 habitantes. Então, mais de três em cada quatro portugueses viviam

em povoados com menos de cinco mil habitantes. Discriminando por unidades administrativas, 25,4% da população

vivia em freguesias com menos de 500 habitantes, 66,3% em freguesias com um total compreendido entre 500 e

3000 habitantes, 5% entre 3000 e 5000 habitantes, e apenas 2,5% (92, em total absoluto) em freguesias entre 5000

e 10000 habitantes, e apenas 0,8% (30, em total absoluto) com mais de 10 000 habitantes. Contudo já se notava a

tendência de crescimento populacional em diversas zonas urbanas. Por exemplo, no ano de 1900, as 30 localidades

de Portugal continental com estatuto de cidade totalizavam pouco mais de 811 000 habitantes – mesmo assim um

número irrisório –, enquanto em 1864 não atingiam as 475 000 pessoas6.

6 A classificação de cidade, em tempos mais remotos, não era feita por critérios demográficos como agora (um mínimo de 10 000 habitan-

tes), mas sim por razões históricas, religiosas, políticas e estratégicas de defesa militar. Estão, neste caso, sobretudo as cidades de Pinhel e Miranda

do Douro, bastante antigas, que nunca foram muito povoadas.

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31 | A montanha que pariu o lixo

Quadro 1 – População das cidades de Portugal em 1900, 1878 e 1864

Cidades / Ano 1900 1878 1864

Lisboa 357 000 242 297 199 412

Porto 172 421 105 838 86 751

Braga 24 309 19 755 18 831

Setúbal 21 819 14 798 12 747

Coimbra 18 424 13 369 12 727

Évora 16 152 13 016 11 518

Covilhã 15 527 10 809 a)

Elvas 14 018 10 417 10 217

Tavira 12 178 11 459 10 529

Portalegre 11 893 7039 6433

Faro 11 835 8561 8014

Aveiro 10 012 6852 6395

Viana do Castelo 9851 8816 9263

Silves 9688 6913 5059

Lamego 9179 8124 7844

Beja 8895 7843 6874

Guimarães 8863 7980 7568

Santarém 8704 7001 6207

Lagos 8268 7279 7744

Viseu 8216 6956 6399

Figueira da Foz 7890 b) b)

Castelo Branco 7292 6928 6136

Tomar 6933 5105 4005

Vila Real 6736 5296 4836

Guarda 6092 4613 3761

Bragança 5476 5071 4754

Penafiel 5085 4488 4411

Leiria 4488 3570 2922

Pinhel 2936 2717 2238

Miranda do Douro 982 1036 868

a) Elevada à categoria de cidade em 1870.

b) Elevada à categoria de cidade em 1882.

Fonte: Censos (INE, 1864-1990).

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32 | Resíduos: uma Oportunidade

Tendo em consideração este cenário – bem diferente daquele que hoje conhecemos –, compreende-se me-

lhor a razão pela qual, durante muitos séculos, o problema do lixo fosse apenas uma realidade vivenciada por uma

faixa muito pequena da população portuguesa, ou seja, apenas os lisboetas e os portuenses, e pouco mais. É certo

que os habitantes rurais também produziam lixo, mas a existência de quintais e terrenos agrícolas nas imediações

das suas casas, a par dos animais que consumiam grande parte dos detritos orgânicos, não permitia grandes acu-

mulações de lixo. Com efeito, se os animais, sobretudo os cães ou os porcos, não deglutiam todos os restos orgâ-

nicos, havia sempre pequenas estrumeiras que até serviam para fertilização dos solos agrícolas. Os outros restos,

não biodegradáveis, em muito pequena quantidade, eram geralmente queimados. Portanto, nas zonas rurais, tudo

se consumia.

Nas cidades, por causa da aglomeração populacional, tudo já era diferente. Além de um estilo de vida mais

propiciador à produção de lixo, o dinamismo demográfico resultou numa expansão da malha urbana, que foi anexan-

do áreas adjacentes de caraterísticas rurais, isto é, quintas e quintais, onde se depositava grande parte do lixo orgânico.

Mais gentes e mais urbanos

Em finais do século XIX, o lixo em espaço urbano, em parceria com a ausência quase generalizada de hábitos

de higiene, continuava a constituir um grave risco para a saúde pública em Portugal. Todavia a dimensão deste pro-

blema ainda estava longe de assumir as proporções que alcançaria nas décadas seguintes.

De facto, embora a evolução da medicina tivesse contribuído fortemente para amenizar os impactos negati-

vos dos fracos índices de saneamento básico, Portugal assistiria, ao longo do século XX, a um inusitado boom de-

mográfico, sem paralelo na sua história, que agravaria os riscos sanitários relacionados com o lixo urbano. É certo que

entre 1864 e 1900 – isto é, em pouco menos de quatro décadas – já se registara um elevado aumento populacional,

da ordem dos 28%. No entanto, nas primeiras cinco décadas do século XX, o crescimento demográfico, quer em

termos absolutos quer relativos, seria estonteante. Mesmo com a gripe espanhola – que dizimou mais de 100 000

portugueses em 1918 e 1919 –, Portugal registou um crescimento populacional de quase 57% na primeira metade do

século XX. O aumento foi ainda mais substancial no período 1920-1950, tendo passado dos cerca de 5,7 milhões

para os 7,9 milhões de habitantes. Ou seja, mais 2,2 milhões de pessoas, tantas quanto o total da população do país

em meados do século XVIII.

Um maior número de pessoas implica sempre, obviamente, uma maior produção de lixo, mas a variação foi

mais que aritmética, porque em paralelo ocorreram intensas mudanças sociais, sobretudo por via de um forte fenó-

meno de litoralização demográfica acompanhado por uma maior concentração populacional nos principais conce-

lhos urbanos. De facto, na primeira metade do século XX, embora a generalidade dos distritos portugueses tenham

registado um significativo aumento demográfico, este não se verificou de forma uniforme nem linear. Nos distritos

do interior norte e centro (Vila Real, Bragança, Guarda e Viseu), bem como no de Coimbra, até houve uma retração

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do seu peso relativo. No conjunto, estes distritos passaram a deter apenas 22,5% da população nacional, quando em

1900 possuíam 28,5%.

Quadro 2 – Evolução da população por distrito entre 1900 e 1950

Distritos / Anos 1900 1910 1920 1930 1940 1950 Var. 1900-50 (%)

Aveiro 305 574 340 180 346 938 391 875 433 395 483 396 58,2

Beja 164 754 194 727 202 914 242 687 278 215 291 024 76,6

Braga 358 183 383 131 378 145 414 101 487 674 546 302 52,5

Bragança 184 662 192 081 170 188 186 984 213 679 228 358 23,7

Castelo Branco 217 179 243 585 241 574 262 285 304 592 324 577 49,5

Coimbra 339 264 368 106 360 361 377 289 415 827 438 688 29,3

Évora 128 842 150 020 155 918 179 036 209 956 221 881 72,2

Faro 257 378 276 074 270 592 295 660 319 625 328 231 27,5

Guarda 264 531 274 372 259 386 259 504 295 663 307 667 16,3

Leiria 242 471 270 273 283 428 309 575 358 021 395 990 63,3

Lisboa 565 560 681 521 743 496 903 460 1 054 731 1 222 471 116,2

Portalegre 126 326 143 823 150 962 165 101 189 044 200 430 58,7

Porto 598 574 680 665 706 629 805 595 940 870 1 053 522 76,0

Santarém 283 312 321 683 335 415 378 268 426 136 460 193 62,4

Setúbal 133 863 166 263 186 340 232 720 270 000 325 646 143,3

Viana do Castelo 218 525 231 668 230 122 232 827 261 133 279 486 27,9

Vila Real 240 515 245 699 234 940 255 961 291 297 319 423 32,8

Viseu 410 231 422 181 410 884 441 579 469 024 494 628 20,6

Nota: O distrito de Setúbal apenas foi criado em 1926, agregando municípios anteriormente pertencentes ao distrito de Lisboa. Por isso, a população indicada para estes dois

distritos entre 1900 e 1920 constitui o somatório dos habitantes dos municípios que atualmente os integram.

Fonte: Censos (INE, 1900-1950).

Estes valores mostram, assim, que o crescimento demográfico foi muito variável em termos territoriais, fru-

to das migrações, quer entre as diversas regiões, quer para o estrangeiro. Para além dos fortíssimos fenómenos de

emigração de portugueses, sobretudo para a América do Sul, neste período também se observou uma perda signi-

ficativa da população estrangeira que vivia em Portugal. Embora a emigração se tenha iniciado no fim do século XIX,

só para o Brasil seguiram 900 000 portugueses entre 1901 e 1930. Cerca de 60% dos emigrantes eram originários

dos distritos de Faro e Guarda.

No caso das migrações internas, as áreas de Lisboa e Porto constituíram os principais focos de atração, mas,

por estranho que possa agora parecer às gerações mais recentes, o Alentejo também foi um destino preferencial.

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Com efeito, sobretudo a partir do fim dos anos 30 e durante cerca de duas décadas, a célebre campanha do trigo,

promovida pelo Estado Novo – que pretendia transformar esta região no «celeiro de Portugal» –, atraiu uma quan-

tidade assinalável de pessoas.

Antes de se esfumar este sonho de Salazar e se inverter o balanço migratório, os três distritos alentejanos

(Portalegre, Évora e Beja) passaram de 420 000 habitantes, em 1900, para mais de 713 000 em 1950, isto é, um cres-

cimento de 70%, muito superior à média nacional que foi de 57% para o mesmo período.

Em todo o caso, os ganhos populacionais dos distritos do Porto e de Lisboa foram ainda maiores, quer em ter-

mos absolutos quer relativos. No caso do distrito do Porto, o aumento demográfico na primeira metade do século

XX atingiu quase 77%, chegando a ultrapassar, pela primeira vez, um milhão de habitantes. Embora se manifestasse

também na cidade Invicta – em 1950 tinha 281 000 habitantes, mais 70% do que em 1900 –, foi, porém, ainda mais

intenso na sua envolvência. O concelho de Vila Nova de Gaia quase duplicou a sua população, Gondomar e Maia

mais que duplicaram e Matosinhos quase triplicou.

No distrito de Lisboa – que, no início do século, abarcava menos população que o do Porto7 –, o crescimento

ainda foi mais intenso e incidiu sobretudo na capital. Entre 1900 e 1950, o distrito da capital portuguesa registou um

aumento de 657 000 habitantes – uma subida de 116% –, tendo quase dois terços ocorrido no município de Lisboa.

Enquanto no início do século XX a população alfacinha rondava os 350 000 habitantes, cinco décadas depois já

atingia os 783 000, isto é, um aumento de 123%. Nos concelhos das redondezas da capital, os crescimentos relativos

foram muito mais moderados: em 1950 ainda não se verificara o fenómeno de suburbanização, que só despontaria

a partir do final dos anos 60, quando por diversas causas sociológicas muitos lisboetas começaram a migrar para os

subúrbios, embora mantendo os empregos na capital.

Esta intensa migração para a capital – associada a elevadas taxas de natalidade – acarretou, de imediato,

profundas mudanças urbanísticas e de ocupação do espaço. Na segunda metade do século XIX, os alfacinhas

concentravam-se sobretudo no chamado 1.º Bairro, a zona histórica da cidade. Embora ocupando apenas 7,5% da

área do município, viviam aí cerca de dois terços da população da capital. O denominado 2.º Bairro – que agregava

a zona ocidental, das freguesias de Santos-o-Velho, Lapa e Santa Isabel até Belém e São Francisco Xavier – de-

tinha praticamente a restante população, pois o 3.º Bairro – que representava cerca de três quartos era constituído

pelas restantes freguesias, a norte (como Benfica, São Domingos de Benfica e Carnide) e na zona oriental (como

Marvila e Olivais, que formariam, mais tarde, o 4º Bairro) – era pouco povoado, sendo constituído sobretudo por

áreas rurais.

Nos anos 30 do século XX, o 1.º Bairro lisboeta apresentava já fortes sinais de saturação, atingindo mais

de 250 000 habitantes, ou seja, quase 40 000 habitantes por quilómetro quadrado. Por esse motivo, nas décadas

7 Em rigor, o distrito de Lisboa, nos censos de 1900, tinha um pouco menos de 700 000 habitantes, mas agregava os concelhos que ori-

ginaram, em 1926, o distrito de Setúbal. Por isso, se se descontar a população dos municípios agora integrados no distrito setubalense, teria uma

população de 565 000 habitantes no ano 1900, ou seja, menos 33 000 do que a população que vivia no distrito do Porto.

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seguintes a cidade viria a expandir-se, ocupando áreas de caraterísticas rurais. O 2.º Bairro, onde em 1900 viviam

110 000 habitantes, chegou aos 205 000 em 1950; e o 3.º Bairro, que em 1900 tinha apenas 24 000 habitantes, atin-

giu os 155 000 em 1950.

Em paralelo, a denominada margem sul do Tejo, na península de Setúbal, também iniciou uma tendência de

crescimento urbano, que viria a justificar a construção da atual Ponte 25 de Abril. Os municípios do distrito sadino,

que em 1900 contavam apenas 133 000 habitantes, atingiram, em 1950, um número próximo dos 325 000 habi-

tantes. Aliás, o crescimento demográfico desta região é um exemplo paradigmático das profundas alterações regis-

tadas em Portugal desde o início do século XX. Se já fosse distrito em 1900 – como atrás se referiu, os municípios

apenas se separaram do distrito de Lisboa em 1926 –, Setúbal seria então o terceiro menos povoado do país, apenas

à frente de Évora e Beja. Atualmente, de acordo com os censos de 2011, é o terceiro distrito mais povoado, tendo sex-

tuplicado a sua população em 11 décadas.

Quadro 3 – Evolução da população por distrito entre 1960 e 2011

Distritos / Anos 1960 1971 1981 1991 2001 2011 Var. 1960-2011 (%)

Aveiro 524 592 546 974 622 988 654 265 713 575 714 218 36,1

Beja 276 895 205 179 188 420 169 438 161 211 152 728 -44,8

Braga 596 768 612 748 708 924 748 192 831 366 848 165 42,1

Bragança 233 441 181 239 184 252 157 809 148 808 136 252 -41,6

Castelo Branco 316 536 255 753 234 230 214 853 208 063 196 262 -38,0

Coimbra 433 656 402 991 436 324 427 839 441 204 429 987 -0,8

Évora 219 916 179 744 180 277 173 654 173 401 166 706 -24,2

Faro 314 841 268 957 323 534 341 404 395 218 451 005 43,2

Guarda 282 606 212 287 205 631 188 165 179 961 160 925 -43,1

Leiria 404 500 378 968 420 229 426 152 459 426 470 895 16,4

Lisboa 1 382 959 1 581 062 2 069 467 2 048 180 2 136 013 2 250 382 62,7

Portalegre 188 482 146 668 142 905 134 169 127 018 118 448 -37,2

Porto 1 193 368 1 318 774 1 562 287 1 641 501 1 781 836 1 817 119 52,3

Santarém 461 707 430 386 454 123 444 880 454 527 453 633 -1,7

Setúbal 377 186 471 491 658 326 712 594 788 459 851 232 125,7

Viana do Castelo 277 748 251 640 256 814 250 059 250 275 244 836 -11,8

Vila Real 325 358 266 382 264 381 236 294 223 729 206 661 -36,5

Viseu 482 416 412 067 423 648 401 871 394 925 377 629 -21,7

Fonte: Censos (INE, 1960-2011).

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Estas alterações demográficas durante a primeira metade do século XX – e que aqui apenas se traçaram de

forma simplificada – resultaram assim num forte reforço da população urbana e numa consequente redução signifi-

cativa do peso das comunidades rurais. Desta forma, em meados do século XX, além das cidades do Porto e de Lis-

boa, Portugal apresentava já diversos núcleos de elevada densidade populacional, que se estendiam sobretudo, mas

não só, em redor das duas principais urbes. De acordo com os censos de 1960, todos os concelhos do litoral nortenho,

bem como os municípios do Vale do Ave até Braga, já apresentavam densidades populacionais superiores a 100 habi-

tantes por quilómetro quadrado. Na região centro, as cidades de Aveiro e de Coimbra passaram também a constituir

importantes núcleos urbanos. E na região da Grande Lisboa evidenciavam-se os primeiros sinais de densificação da

coroa urbana da capital, sobretudo em Oeiras, Cascais, Loures e Vila Franca de Xira, bem como nalguns concelhos

da margem sul do Tejo, especialmente em Almada, Barreiro e, em menor grau, na cidade de Setúbal. A construção da

Ponte 25 de Abril, inaugurada em 1966, abriria depois as portas a um desenfreado crescimento urbano da margem sul

do Tejo. O distrito de Setúbal teve um aumento populacional, entre 1971 e 2011, de quase 380 000 habitantes.

Figura 1 – Densidade populacional em 2001

hab/km2

35 000

1000

500

200

100

Média nacional: 112hab/km2

Média do Continente: 111hab/km2

Média dos Açores: 104hab/km2

Média da Madeira: 312hab/km2

Fonte: INE

Nas décadas seguintes, em especial a partir de finais dos anos 60, a população portuguesa refreou o inten-

so crescimento que se vinha registando nas décadas anteriores. Na verdade, nessa década até se registou um de-

créscimo, da ordem dos 170 000 habitantes, fruto da situação económica, que causou uma intensa emigração para

a Europa. De facto, apenas entre 1959 e 1969 emigraram quase um milhão de portugueses, tendo como destinos

preferenciais a França (35%), o Brasil (31%), os Estados Unidos (8%), a Venezuela (7%), o Canadá (6%) e a Alema-

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37 | A montanha que pariu o lixo

nha (5%). Todavia, a população da capital ainda engrossaria mais nessa década. O crescimento demográfico ao nível

nacional regressaria nos anos 70, aumentando cerca de 1,2 milhões de habitantes, em parte devido ao regresso de

meio milhão de pessoas das ex-colónias e a um relativo baby boom imediatamente nos anos seguintes à instaura-

ção da democracia, em 1974.

A partir de 1981, a população no continente praticamente estabilizou, atenuando o crescimento que se vinha

registando no primeiro quartel da segunda metade do século XX, mesmo em termos absolutos. De facto, enquanto

no período entre 1900 e 1950 o país aumentou cerca de 2,9 milhões de habitantes (+57,2%), entre 1950 e o ano 2001

apenas cresceu 1,9 milhões de habitantes (+24,6%). Em todo o caso, bastante relevante.

Se nas últimas três décadas se tem vindo a assistir a uma relativa retração no crescimento populacional – en-

tre 1981 e 2011, foi apenas de 7,4% –, os fenómenos de urbanização e suburbanização intensificaram-se, paralela-

mente ao êxodo rural muito pronunciado. Assim, embora as cidades de Lisboa e Porto estejam, há várias décadas, a

perder paulatinamente população, os municípios envolventes cresceram desmesuradamente.

Figura 2 – População urbana em 2001

Lisboa (cidade): 565 000 habitantes

Porto (cidade): 263 000 habitantes

Cidade

Outros lugares

565 000

263 000

101 06924 9182505

Fonte: INE

No início do século XXI, Portugal deixou mesmo de ser, estatisticamente, um país rural. Em 1991, de acor-

do com os censos desse ano, ainda uma ligeira maioria dos portugueses (cerca de 52%) vivia em aglomerados com

menos de dois mil habitantes, mas uma década depois representaram apenas 45% do total. Contas feitas, em ape-

nas 10 anos, cerca de um milhão de portugueses optou por abandonar as aldeias e rumar até às vilas e cidades. Um

fenómeno que foi generalizado, mesmo nos municípios do interior em perda populacional, uma vez que, por regra,

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38 | Resíduos: uma Oportunidade

as sedes de concelhos até ganharam população em detrimento das suas aldeias. Entre 1991 e 2001, os aglomerados

populacionais com mais de dois mil habitantes registaram um ritmo de crescimento quatro vezes superior ao verifi-

cado na globalidade da população nacional.

Em termos demográficos, as últimas décadas acentuaram uma certa macrocefalia bicéfala do país, mas já

não apenas circunscrita às cidades de Lisboa e Porto, mas sim às respetivas áreas metropolitanas, que passaram a

concentrar cerca de 60% da população portuguesa. Dos 23 municípios que em 2001 tinham mais de 100 000 habi-

tantes, só Coimbra, Feira e Leiria não pertenciam aos distritos de Lisboa, Porto, Braga e Setúbal. No conjunto, estes

municípios, que ocupam uma área inferior a 4% do país, abrangiam 40% da população nacional. De acordo com um

estudo do Instituto Nacional de Estatística, as 141 cidades portuguesas existente em finais de 2004 concentravam

aproximadamente quatro milhões de indivíduos, ou seja, quase 40% da população, embora ocupassem apenas 2%

do território nacional. A densidade populacional média destes aglomerados era de quase 2200 habitantes por qui-

lómetro quadrado, quase vinte vezes superior à média nacional.

Quadro 4 – População das 30 maiores cidades portuguesas

Pos. Cidades Hab. Pos.2 Cidades3 Hab.4

1 Lisboa 564 657 16 Viseu 47 250

2 Porto 263 131 17 Ponta Delgada 46 102

3 Vila Nova de Gaia 178 255 18 Matosinhos 45 703

4 Amadora 175 872 19 Amora (Seixal) 44 515

5 Braga 109 460 20 Leiria 42 745

6 Almada 101 500 21 Faro 41 934

7 Coimbra 101 069 22 Évora 41 159

8 Funchal 100 526 23 Barreiro 40 859

9 Setúbal 89 303 24 Póvoa do Varzim 38 643

10 Agualva-Cacém (Sintra) 81 845 25 Ermesinde (Valongo) 38 270

11 Queluz 78 040 26 Viana do Castelo 36 148

12 Aveiro 55 291 27 Maia 35 625

13 Guimarães 52 181 28 Covilhã 34 772

14 Odivelas 50 846 29 Portimão 32 433

15 Rio Tinto (Gondomar) 47 695 30 Castelo Branco 30 649

Fonte: Atlas das Cidades de Portugal (INE, 2002-2005).

Por tudo isto se entenderá, em grande parte, a razão por que o século XX foi o período histórico em que o lixo se glo-

balizou territorialmente, afetando a generalidade da população portuguesa. Mais gente, mais concentrada, mais citadina,

resultou numa muito maior produção de lixo. Mas o aspeto demográfico, apesar de bastante relevante, não explica tudo.

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39 | A montanha que pariu o lixo

A invasão dos inorgânicos

«Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades» – já dizia o poeta Luís de Camões. Se os tempos, ao longo

dos séculos, multiplicaram os portugueses, também as vontades humanas, ao ansiarem por melhores condições de

vida, trouxeram mudanças radicais nos hábitos e nas atitudes de consumo e, em consequência, nos subprodutos a

eles associados. Ou seja, trouxeram o lixo e a poluição. De facto, se as sociedades humanas têm, através da ciência

e da tecnologia, conseguido satisfazer os seus anseios, criando novos produtos, também criaram novo e mais lixo,

mais duradouro, por vezes artificial, e mais lesivo para a saúde pública e o ambiente.

Até meados do século XX, quer em meio urbano quer nas zonas rurais, praticamente todo o lixo doméstico

era orgânico: restos de alimentos, madeiras, têxteis e papel. Produtos não biodegradáveis, como o vidro e os metais,

ou de mais difícil decomposição, eram raros. E outros, hoje muito comuns, eram inexistentes.

Os plásticos, inventados no século XIX, só começaram a ter uso comercial pouco antes da Segunda Guer-

ra Mundial. E a sua difusão em larga escala ocorreu somente a partir dos anos 40 do século XX, e ainda mais tar-

diamente em Portugal. Os metais e os vidros, por sua vez, apesar de terem um uso mais ancestral, não assumiram

durante muito tempo um peso relevante como detrito. Muito menos ainda nas zonas rurais. Mesmo o papel e os

têxteis, até às primeiras décadas do século XX, eram produtos que raramente se transformavam em lixo. Antes

de o seu uso se generalizar, sobretudo com o surgimento das embalagens, o papel era principalmente utilizado em

folhas para escrita ou para a produção de jornais e livros, sendo assim produtos apenas acessíveis às classes mais

favorecidas. Quando deixavam de ter alguma utilidade, geralmente serviam, tal como os restos de madeira, como

combustível para queima ou para se fazer novamente papel. Quanto aos têxteis velhos, vulgarmente roupas, as

quantidades que surgiam como desperdício também eram diminutas até meados do século XX, não apenas por o

poder de compra da generalidade da população obrigar a um uso mais austero do vestuário, como pela quantidade

de recoletores – os denominados trapeiros – que os revendiam para remendos ou para outros fins. Até meados do

século XIX – antes da utilização industrial da celulose de pinheiro –, os trapos e outras fibras vegetais ainda consti-

tuíam a matéria-prima por excelência para a produção de papel8.

Estas considerações são genéricas para Portugal, pois a primeira caraterização física de lixo urbano apenas se

realizou em 1962, no município de Lisboa. Nessa altura, apurou-se que 75% do total era constituído por matérias

fermentáveis, enquanto o papel e o cartão representava 10,5%. Além de uma componente classificada como resídu-

os incombustíveis (9% do total) – possivelmente detritos de construção e materiais inertes, como areias e pedras –, a

parte restante era constituída por trapos (1,2%), vidro (1%), metais (1%), ossos (0,8%) e resíduos combustíveis (1,5%).

Esta última fração não surgia discriminada, mas admite-se que incluiria madeira e, eventualmente, uma parte muito

marginal de plástico.

8 A utilização do eucalipto para a produção de pasta de papel apenas se iniciou nos anos 50 do século XX.

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40 | Resíduos: uma Oportunidade

Gráfico 1 – Evolução da caracterização dos resíduos sólidos urbanos

Matérias fermentáveis

Resíduos incombustíveis

Papel e cartão

Trapos

Vidro

Metais

Ossos

Resíduos combustíveis

Lisboa (1962)

Lisboa (1978-1979) Matérias fermentáveis

Materiais finos

Papel e cartão

Plásticos

Metais

Vidro

Trapos

Ossos e peles

Resíduos combustíveis

Resíduos incombustíveis

Potugal (2009) Materiais finos

Bio resíduos

Papel e cartão

Plásticos

Vidro

Textêis

Metais

Madeira

Outros

Fonte: CML e APA

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41 | A montanha que pariu o lixo

Nas outras cidades, a tipologia do lixo não deveria ser muito diferente, embora nas pequenas vilas e aldeias

até fosse expectável que, por se aproveitarem quase todos os restos orgânicos para alimentar o gado e para a criação

de estrumeiras, a componente dos materiais fermentáveis no lixo indiferenciado atingisse valores percentuais mais

reduzidos. Porém, obviamente, as quantidades absolutas dos restantes materiais (vidro, papel, metais, etc.) também

seriam muito diminutas, pelo que não apresentariam um significativo problema ambiental e sanitário.

Somente pouco mais de uma década e meia após esta primeira caraterização foi feita uma nova avaliação,

mais detalhada, realizada em 17 zonas da capital portuguesa entre setembro de 1978 e julho de 1979. Os resultados

obtidos mostravam já uma radical alteração na tipologia do lixo urbano. Por um lado, a fração dos materiais fermen-

táveis representava apenas 39,5%, embora a parte orgânica fosse, na realidade, mais elevada, uma vez que, nessa

classificação, surgia uma nova componente – os materiais finos, com 27,4% – que eram constituídos, em grande

parte, por pequenos detritos orgânicos. A parte remanescente era constituída por papel e cartão (13%), plásticos

(5,7%), metais (2,4%), vidro (4,6%), trapos (2,3%), ossos e peles (1,3%), resíduos combustíveis (2,4%) – neste caso

deveriam ser essencialmente madeira – e resíduos incombustíveis (1,7%).

Ou seja, a forte diminuição do peso relativo da parte orgânica no lixo urbano de Lisboa, ocorrida apenas em

uma década, devia-se sobretudo ao surgimento dos plásticos, bem como aos aumentos muito significativos de me-

tais, têxteis, vidro e papel e cartão. A redução da componente dos materiais fermentáveis não significou, obviamente,

que se tivesse produzido uma menor quantidade absoluta de lixo de origem orgânica. O que sucedeu é que, sobre-

tudo a partir dos anos 70, com a introdução de novos produtos e o advento das embalagens descartáveis em Portu-

gal, a par da alteração de hábitos de consumo – que implicou o declínio do comércio a granel e a redução dos produ-

tos vendidos em embalagens reutilizáveis –, o lixo urbano passou a ser muito mais heterogéneo.

Nas décadas seguintes, a heterogeneidade no lixo urbano ainda aumentou mais, fruto de um maior incre-

mento no consumo de bens não perecíveis, pelo que as mais recentes caraterizações mostram que os materiais

fermentáveis são já hoje uma componente minoritária na generalidade dos resíduos sólidos urbanos em Portugal,

tendo a componente dos plásticos, vidros, metais e têxteis aumentado significativamente o seu peso relativo. De

facto, segundo os mais recentes dados da Agência Portuguesa do Ambiente, a constituição média em Portugal dos

resíduos sólidos urbanos, é a seguinte: materiais finos – 9%; biorresíduos – 43%; papel e cartão – 15%; plásticos –

10%; vidro – 6%; têxteis – 4%; metais – 2%; madeira – 1%; finos – 9%; e outros – 10%. Saliente-se que os materiais

fermentáveis são agora classificados como biorresíduos, uma denominação mais abrangente, porquanto incluem

também os resíduos biodegradáveis de espaços verdes, nomeadamente de jardins, parques e campos desportivos9.

9 Ao longo dos anos verificaram-se diversas alterações na caraterização dos resíduos sólidos urbanos em Portugal, no sentido de uma

gestão mais adequada. Atualmente, por via da Portaria n.º 851/2009, a caraterização é feita com base em 14 categorias e 32 subcategorias, a saber:

finos de dimensão inferior a 20 mm (sem subcategorias); biorresíduos (com três subcategorias: resíduos alimentares, resíduos de jardim e outros

resíduos putrescíveis); papel e cartão (com três subcategorias: resíduos de embalagens de papel e cartão; jornais e revistas; e outros resíduos de

papel e cartão); plásticos (com seis subcategorias: resíduos de embalagens em filme de PE; resíduos de embalagens rígidas em PET; resíduos de

embalagens rígidas em PEAD; resíduos de embalagens rígidas em EPS; outros resíduos de embalagens de plástico; e outros resíduos de plástico);

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42 | Resíduos: uma Oportunidade

A casa por varrer

Mais população, mais cidades, maior concentração humana, mais lixo e com maior heterogeneidade, foi nes-

te caldo social que, em poucas décadas, Portugal caiu. Num curto espaço de tempo, o «jardim à beira-mar planta-

do», glorificado pelo Estado Novo, foi sendo assolado pelo lixo produzido por uma população cada vez maior e mais

urbana. Daí que as autarquias, perante a repentina «avalanche», começaram a ter maiores dificuldades, não só em

manter os espaços públicos sem lixo, mas sobretudo em encontrar locais adequados para os meter.

Embora atualmente a simples recolha dos detritos domésticos das vias públicas seja vista como algo banal

– e tão banal que hoje a maioria da população apenas lhe dá importância quando sucede alguma anomalia nessa

operação –, este é um serviço que apenas se generalizou num passado muito recente. Com efeito, no início dos anos

80 do século passado, um inquérito realizado pela Comissão Nacional do Ambiente (CNA) apurou que apenas

64% da população portuguesa dispunha de serviço de recolha. Em grande parte das regiões menos densamente ur-

banizadas, todavia, a frequência de recolha era apenas semanal. E em vastas regiões, a qualidade deste serviço era

muito sofrível.

Numa escala regional, o estudo da CNA mostrava também que seis distritos tinham menos de 30% das

respetivas populações a beneficiarem de recolha municipal de lixo: Bragança (25%), Braga (20%), Coimbra (30%),

Viana do Castelo (21%), Vila Real (30%) e Viseu (31%). Somente nos distritos de Aveiro, Faro e Évora (todos com

67%), Portalegre (79%), Porto (78%), Santarém (70%), Setúbal (81%) e Lisboa (91%), mais de dois terços da população

usufruía deste serviço. Numa perspetiva municipal, evidenciavam-se ainda mais essas deficiências. Em 24 conce-

lhos, a taxa de recolha era inferior a 10%, e em mais 25 apenas beneficiavam desse serviço uma população entre 10%

e 20%.

Naquele tempo, as próprias autoridades estatais não consideravam demasiado preocupante tal situação, pois

num outro estudo, realizado também no início dos anos 80, pela Direção-Geral do Saneamento Básico (DGSB),

defendia-se ser apenas justificável disponibilizar a recolha nos aglomerados com mais de 350 habitantes. Em certa

medida esta decisão compreende-se, porque nas comunidades rurais os detritos continuavam a ser praticamente

de origem orgânica, para os quais as populações sempre encontravam soluções escorreitas, incluindo a alimentação

de gado, a produção de fertilizantes naturais e a queima.

vidro (com duas subcategorias: resíduos de embalagens de vidro; e outros resíduos de vidro); compósitos (com quatro subcategorias: resíduos de

embalagens de cartão para alimentos líquidos; outros resíduos de embalagens compósitas; pequenos aparelhos eletrodomésticos; e outros resí-

duos compósitos); têxteis (com duas subcategorias: resíduos de embalagens têxteis; e outros resíduos têxteis); têxteis sanitários (sem subcatego-

rias); metais (com quatro subcategorias: resíduos de embalagens ferrosas; resíduos de embalagens não ferrosas; outros resíduos ferrosos; e outros

resíduos metálicos); madeira (com duas subcategorias: resíduos de embalagens de madeira; e outros resíduos de madeira); resíduos perigosos

(com quatro subcategorias: produtos químicos; tubos fluorescentes e lâmpadas de baixo consumo; pilhas e acumuladores; e outros resíduos peri-

gosos); outros resíduos (com duas subcategorias: outros resíduos de embalagens; e outros resíduos de não embalagem); resíduos verdes recolhi-

dos em separado (sem subcategorias); e resíduos volumosos (sem subcategorias).

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43 | A montanha que pariu o lixo

Quadro 5 – Piores taxas de recolha de resíduos em 1980

Concelhos Taxa de recolha (%) Concelhos Taxa de recolha (%)

Arcos de Valdevez 1 Miranda do Douro 13

Cabeceiras de Basto 2 Oleiros 13

Paredes de Coura 2 Penacova 13

Ferreira do Zêzere 3 Mértola 14

Alcoutim 4 Vila de Rei 14

Cinfães 4 Ansião 15

Alvaiázere 6 Mondim de Basto 15

Castanheira de Pera 6 Pombal 15

Montalegre 6 Penedono 16

Carrazeda de Ansiães 7 Ponte de Lima 16

Mação 7 Torre de Moncorvo 16

Pampilhosa da Serra 7 Paredes 17

Ribeira de Pena 7 Almeida 18

Vagos 7 Felgueiras 18

Góis 8 Castelo de Paiva 19

Ponte da Barca 8 Celorico de Basto 19

Póvoa do Lanhoso 8 Amares 20

Mogadouro 9 Arouca 20

Monção 9 Baião 20

Montemor-o-Velho 9 Estarreja 20

São Pedro do Sul 9 Figueira de Castelo Rodrigo 20

Sertã 9 Sabugal 20

Vila Pouca de Aguiar 9 Vila Flor 20

Vouzela 9 Melgaço 21

Marco de Canavezes 10 Tábua 21

Miranda do Corvo 11 Albergaria-a-Velha 23

Oliveira de Frades 11 Redondo 23

Sabrosa 11 São João da Pesqueira 23

Vimioso 11 Mirandela 25

Proença-a-Nova 12 Mortágua 25

Vila Nova de Cerveira 12 Trancoso 25

Vila Verde 12 Valença 25

Armamar 13 Vila Franca de Xira 27

Figueiró dos Vinhos 13 Condeixa-a-nova 28

Nota: Não existem dados nos seguintes municípios: Águeda, Anadia, Feira e Murtosa (distrito de Aveiro), Castro Verde, Cuba, Moura e Odemira (distrito de Beja), Barcelos,

Braga, Esposende, Guimarães, Terras de Bouro, Vieira do Minho e Vila Nova de Famalicão (distrito de Braga), Alfândega da Fé, Macedo de Cavaleiros e Vinhais (distrito de

Bragança), Idanha-a-Nova (distrito de Castelo Branco), Coimbra, Penela, Soure e Vila Nova de Poiares (distrito de Coimbra), Arraiolos, Borba, Estremoz, Évora, Montemor-o-

-Novo, Portel, Reguengos de Monsaraz e Vendas Novas (distrito de Évora), Albufeira, Lagos, Loulé, Monchique e Vila Real de Santo António (distrito de Faro), Aguiar da Beira,

Fornos de Algodres, Meda, Pinhel, Seia e Vila Nova de Foz Coa (distrito da Guarda), Alcobaça e Caldas da Rainha (distrito de Leiria), Alenquer, Lisboa e Mafra (distrito de Lisboa),

Avis, Crato, Gavião, Monforte e Portalegre (distrito de Portalegre), Amarante, Paços de Ferreira e Póvoa do Varzim (distrito do Porto), Alpiarça, Constância, Golegã, Salvaterra de

Magos e Tomar (distrito de Santarém), Almada e Santiago do Cacém (distrito de Setúbal), Alijó, Boticas, Chaves, Murça, Peso da Régua e Valpaços (distrito de Vila Real), Car-

regal do Sal, Castro Daire, Lamego, Moimenta da Beira, Penalva do Castelo, Resende, Santa Comba Dão, Sernancelhe, Tabuaço, Tondela e Vila Nova de Paiva (distrito de Viseu).

Fonte: Comissão Nacional do Ambiente (1982).

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44 | Resíduos: uma Oportunidade

Quadro 6 – Melhores taxas de recolha de resíduos em 1980

Concelhos Taxa de recolha (%) Concelhos Taxa de recolha (%)

Alcanena 100 Torres Vedras 97

Barrancos 100 Viana do Alentejo 97

Cascais 100 Elvas 96

Entroncamento 100 Azambuja 95

Gouveia 100 Vila Nova da Barquinha 95

Ílhavo 100 Alter do Chão 94

Maia 100 Fronteira 94

Manteigas 100 Campo Maior 93

Marinha Grande 100 Oliveira de Azeméis 93

Nazaré 100 Vila Nova de Gaia 93

Oeiras 100 Aveiro 91

Oliveira do Bairro 100 Freixo de Espada à Cinta 91

Penamacor 100 Ferreira do Alentejo 90

Porto 100 Benavente 89

São Brás de Alportel 100 Torres Novas 89

Sesimbra 100 Alcochete 88

Setúbal 100 Nelas 88

Aljezur 99 Sines 88

Aljustrel 99 Vila Viçosa 88

Amadora 99 Cartaxo 86

Matosinhos 99 Sousel 86

Moita 99 Almeirim 85

Óbidos 99 Bombarral 85

Santa Marta de Penaguião 99 Coruche 85

Santo Tirso 99 Faro 84

São João da Madeira 99 Rio Maior 83

Cadaval 98 Lagoa 82

Loures 98 Montijo 82

Nisa 98 Arruda dos Vinhos 81

Peniche 98 Porto de Mós 81

Tarouca 98 Seixal 81

Espinho 97 Mora 80

Lourinhã 97 Vidigueira 80

Nota: Não existem dados nos seguintes municípios: Águeda, Anadia, Feira e Murtosa (distrito de Aveiro), Castro Verde, Cuba, Moura e Odemira (distrito de Beja), Barcelos,

Braga, Esposende, Guimarães, Terras de Bouro, Vieira do Minho e Vila Nova de Famalicão (distrito de Braga), Alfândega da Fé, Macedo de Cavaleiros e Vinhais (distrito de

Bragança), Idanha-a-Nova (distrito de Castelo Branco), Coimbra, Penela, Soure e Vila Nova de Poiares (distrito de Coimbra), Arraiolos, Borba, Estremoz, Évora, Montemor-o-

-Novo, Portel, Reguengos de Monsaraz e Vendas Novas (distrito de Évora), Albufeira, Lagos, Loulé, Monchique e Vila Real de Santo António (distrito de Faro), Aguiar da Beira,

Fornos de Algodres, Meda, Pinhel, Seia e Vila Nova de Foz Coa (distrito da Guarda), Alcobaça e Caldas da Rainha (distrito de Leiria), Alenquer, Lisboa e Mafra (distrito de Lisboa),

Avis, Crato, Gavião, Monforte e Portalegre (distrito de Portalegre), Amarante, Paços de Ferreira e Póvoa do Varzim (distrito do Porto), Alpiarça, Constância, Golegã, Salvaterra de

Magos e Tomar (distrito de Santarém), Almada e Santiago do Cacém (distrito de Setúbal), Alijó, Boticas, Chaves, Murça, Peso da Régua e Valpaços (distrito de Vila Real), Car-

regal do Sal, Castro Daire, Lamego, Moimenta da Beira, Penalva do Castelo, Resende, Santa Comba Dão, Sernancelhe, Tabuaço, Tondela e Vila Nova de Paiva (distrito de Viseu).

Fonte: Comissão Nacional do Ambiente (1982).

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45 | A montanha que pariu o lixo

De qualquer modo, mesmo nos concelhos com níveis mais elevados de recolha, os problemas de insalubri-

dade revelavam-se graves. No início dos anos 80, a CNA apurou que a esmagadora maioria das autarquias ainda

nem sequer dispunha de contentores específicos para a deposição do lixo na via pública, de modo a evitar que se es-

palhasse antes das operações de recolha.

Mesmo na capital portuguesa, a utilização de contentores especiais e de papeleiras nas vias públicas só se

generalizou em 1979, aquando da implementação do plano Operação Lisboa, Cidade Limpa. Um artigo no Diário

de Notícias, publicado na edição de 17 de fevereiro desse ano, referia que esta medida visava «evitar a proliferação

de ratos e moscas», bem como «a formação de poeiras perigosas para a saúde», uma vez que os novos contentores

não permitiriam, como até então, que «cães nem gatos espalhem o lixo à procura de alimentos».

Em paralelo, surgiu também um outro problema de cariz logístico. Como a tarefa de recolha de lixo nunca

fora vista com dignidade, nem sempre se mostrou fácil para as autarquias encontrar candidatos para essa função.

Esta sempre foi, aliás, uma questão ancestral. Até ao século XIX, o transporte de lixo era desempenhado sobretudo

por escravas – chamadas negras calhandreiras –, por criados desqualificados – denominados ribeirinhos – ou por

ex-presidiários. Após a abolição da escravatura em Portugal continental, houve mesmo dificuldades em recrutar

pessoas para essas tarefas. Em meados do século XIX era comum que as penas de prisão fossem comutadas por

serviços públicos, sendo a limpeza urbana um dos mais comuns. Eça de Queiroz até se insurgiu contra essa medi-

da nas páginas do Diário de Notícias, pois associava-se todos os cantoneiros de limpeza a pessoas de má índole.

No início dos anos 60, o município de Lisboa já sentia essa dificuldade de recrutamento, tendo sido obrigado a

recorrer a um expediente até então inédito: abrir vagas nos serviços de limpeza urbana para mulheres, uma vez que

havia poucas candidaturas de homens.

Certo é que, por via do rápido aumento populacional e da maior densidade demográfica nas zonas urbanas,

a quantidade de lixo aumentou e, em paralelo, também o esforço para o retirar da via pública. Ou seja, muitas au-

tarquias depararam-se, em pouco tempo, com um problema sempre em crescendo. Embora se ignorasse as pro-

duções de lixo ao longo das primeiras oito décadas do século XX, seria expectável que estas tivessem registado um

incremento substancialmente superior ao ritmo de crescimento demográfico atrás referido, tendo em conta o surgi-

mento de novas componentes (plásticos) e o reforço significativo do peso relativo de outras (sobretudo vidro, metais

e têxteis). Por isso, nos anos 80, muitas autarquias apresentavam já enormes dificuldades no quotidiano para con-

seguir não só alargar a recolha a zonas ainda não servidas, mas também para atingir níveis de qualidade aceitáveis,

mantendo as vias públicas asseadas.

De acordo com um estudo do CNA realizado em 1982, Portugal estava a produzir anualmente, no início des-

sa década, cerca de dois milhões de toneladas de lixo doméstico, em que cerca de um terço do total (32,4%) apenas

nos concelhos de Lisboa, Porto, Vila Nova de Gaia, Loures, Sintra, Amadora, Matosinhos, Gondomar e Coimbra.

Como sucedia com a população, também a produção de lixo se concentrava, de uma forma muito marcante, nas

faixas litorais. Com efeito, 72% do total da produção de lixos urbanos era oriundo dos sete distritos do litoral entre

Braga e Setúbal, que ocupavam apenas um terço do território nacional. De entre os 29 municípios com uma produ-

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46 | Resíduos: uma Oportunidade

ção superior a 15 000 toneladas em 1980, nove pertenciam ao distrito do Porto, sete ao de Lisboa, quatro ao de Braga

e outros quatro ao de Setúbal10.

Quadro 7 – Produção de resíduos urbanos por distrito em 1980 e estimativas para 1985

Distritos / Anos (ton) 1980 1985

Aveiro 137 674 161 141

Beja 32 500 38 758

Braga 134 636 158 584

Bragança 32 111 39 010

Castelo Branco 38 852 46 986

Coimbra 91 013 108 718

Évora 31 207 37 107

Faro 67 988 86 086

Guarda 38 305 51 028

Leiria 87 130 102 180

Lisboa 439 719 571 381

Portalegre 24 339 29 007

Porto 363 332 424 674

Santarém 101 840 119 269

Setúbal 135 329 158 689

Viana do Castelo 49 837 59 023

Vila Real 48 572 58 749

Viseu 76 028 98 844

Portugal Continental 1 930 412 2 349 234

Fonte: Comissão Nacional do Ambiente (1982).

Com estes volumes de lixo tornava-se já necessário, em diversos concelhos urbanos, uma certa organização

na recolha e sobretudo encontrar destinos finais adequados, algo que não sucedia. De facto, no início dos anos 80, se

a situação da recolha era ainda muito sofrível, o destino final estava bem pior. Apenas os municípios de Porto, Maia,

Valongo, Gondomar, Espinho e Lisboa não canalizavam a totalidade dos lixos urbanos para vazadouros. No caso de

Lisboa, como já foi referido no capítulo anterior, uma parte era tratada na unidade de compostagem de Beirolas, inau-

gurada em 1973. No caso dos concelhos nortenhos, era usada uma estação de compostagem, inaugurada em 1964,

que foi até a primeira unidade do género instalada na Península Ibérica. A sua construção foi, porém, uma iniciativa

10 Nos anos 80, a Direção-Geral do Saneamento Básico realizou também estimativas de produção, que resultaram em quantidades dis-

tintas dos apresentados pela Comissão Nacional do Ambiente. Tanto num caso como no outro, para os valores estimados usaram-se critérios de

produção per capita que merecem alguma desconfiança, e raramente se basearam em quantidades efetivamente pesadas.

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47 | A montanha que pariu o lixo

empresarial, dinamizada pela Sociedade Exportadora do Norte, que começou a comprar o lixo à autarquia do Porto

para produção de adubos orgânicos. Contudo, devido a diversos problemas técnicos e financeiros, esta estação seria

comprada pelo estado no início dos anos 80. Em 1982 foi criada a Lipor – uma associação dos municípios do Porto,

Maia, Valongo, Gondomar e Espinho – que ficaria a gerir a estação de compostagem. Anos mais tarde, os municí-

pios de Matosinhos e Vila do Conde (ambos em 1984) e Póvoa do Varzim (em 2000) integrariam a Lipor, passando

a encaminhar o lixo para esta unidade de compostagem, que continuou em funcionamento até 2001, sendo substi-

tuída por outra, mais moderna e noutro local, em 2005.

Quadro 8 – Concelhos com maiores produções de resíduos urbanos em 1980

Pos. Concelhos Produção (ton) Pos.2 Concelhos2 Produção (ton)2

1 Lisboa 262 506 16 Santo Tirso 21 058

2 Porto 77 731 17 Barreiro 20 278

3 Vila Nova de Gaia 51 836 18 Vila Nova de Famalicão 20 195

4 Loures 51 452 19 Barcelos 19 386

5 Sintra 37 580 20 Setúbal 19 236

6 Amadora 36 978 21 Maia 18 814

7 Almada 34 847 22 Vila Franca de Xira 18 764

8 Matosinhos 32 325 23 Leiria 17 749

9 Gondomar 31 726 24 Paredes 15 921

10 Coimbra 30 109 25 Oliveira de Azeméis 15 782

11 Guimarães 29 142 26 Póvoa do Varzim 15 755

12 Cascais 28 005 27 Santarém 15 537

13 Feira 25 848 28 Seixal 15 140

14 Braga 23 013 29 Viana do Castelo 15 098

15 Oeiras 22 364 30 Vila do Conde 14 810

Fonte: Comissão Nacional do Ambiente (1982).

Em suma, praticamente todos os municípios tinham lixeiras. «Quase sempre mal localizadas, quer do ponto

de vista geológico e hidrológico, quer do ponto de vista paisagístico» e sem disporem de qualquer «controlo sa-

nitário», conforme se salientava num relatório da CNA de 1982. Na mesma linha, a Direção-Geral Saneamento

Básico referiu que «o panorama geral neste domínio traduz uma imagem de descalabro total», destacando que

«grande parte das cidades e das vilas do continente continuam cercadas de lixeiras ao ar livre, que além do seu

cheiro pestilento, contribuem para a poluição do solo, dos cursos de água e contaminação das águas subterrâne-

as». Os técnicos na área do saneamento básico já estavam, diga-se, bem conscientes da gravidade das lixeiras,

pois alertavam «para as consequências negativas da situação actual» do ponto de vista ambiental e até econó-

mico, «com reflexos no absentismo no trabalho, turismo e sector comercial que, em conjunto e de uma forma

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48 | Resíduos: uma Oportunidade

indirecta, acabarão sempre por determinar um impacto nefasto no desenvolvimento económico e portanto numa

diminuição do produto interno».

Apesar de até aos meados dos anos 90 nunca se ter realizado qualquer inventariação exaustiva dos principais

vazadouros do país, o estudo da DGSB de 1982 elencou várias dezenas de locais de deposição, embora indicassem

apenas um valor genérico de volume, sem apontar o sítio exato nem tão-pouco a quantidade de lixo despejado por

ano. Assim, segundo este relatório, no início dos anos 80 havia, em Portugal continental, 24 lixeiras com um vo-

lume de detritos superiores a 5000 metros cúbicos, localizadas nos concelhos de Mirandela, Oliveira de Azeméis

(duas), Albergaria-a-Velha, Oliveira de Frades, Mangualde, Anadia, Penacova, Soure, Figueira da Foz, Oleiros, Porto

de Mós, Nisa, Peniche, Lourinhã, Azambuja, Sousel, Benavente, Loures, Amadora, Seixal, Sesimbra, Setúbal e Vila do

Bispo. Além destas, foram listadas várias dezenas de outras lixeiras municipais de menores dimensões.

Longe da vista, com o coração sujo

Em fevereiro de 1989, numa edição do Diário de Notícias, o jornalista Simões Ilharco relembrava um provérbio

chinês – «se cada um varrer o pedaço que está à frente da sua porta, a rua toda fica limpa» – como solução para os pro-

blemas do lixo urbano. «Nesta imagem feliz», escreveu, «reside, sem dúvida, a forma como fazer de Portugal um país

mais limpo. A velha sabedoria chinesa é ainda boa conselheira. As belas ruas e avenidas de Portugal não podem mais ficar

pejadas de sujidade… A tarefa é colectiva. Como todas, aliás, que se colocam a um país ou a um povo. A higiene urbana

é uma necessidade nacional. A limpeza do espaço rural é também reclamada por todos. Raras vezes o consenso foi tão

evidente. Só que o exemplo de cada um nem sempre é o exemplo melhor… Façamos de Portugal um país limpo, na cer-

teza que o futuro será também mais limpo. Não somos nós o tal jardim à beira-mar plantado, de que falava o poeta?».

Esta visão simplista – de para resolver o problema do lixo ser suficiente a limpeza das ruas e a retirada dos de-

tritos das vilas e cidades – tornou-se um objetivo exclusivo ao longo dos anos 80. Na lista das prioridades, políticas e

sociais, não estavam ainda as soluções adequadas para o destino final. Bem patente ficou essa postura no trabalho jor-

nalístico de Simões Ilharco, que era acompanhado por depoimentos de várias personalidades da sociedade portuguesa,

entre as quais até se contava o escritor José Saramago. Nove anos antes de receber o Prémio Nobel da Literatura, Sara-

mago zurzia, também e exclusivamente, a falta de limpeza urbana, opinando que «Portugal está sujo. Sujíssimo. É que

houve um tempo em que, sendo menos escrupulosos com a higiene pessoal, gostávamos de ver as fachadas limpas

e as ruas varridas. Hoje, a situação inverteu-se: saímos imaculadamente limpos de casa e mergulhamos no vazador

público em que o País se tomou. Soluções? Eu sei lá. Mas talvez ajudasse alguma coisa dotar as Juntas de Freguesia de

meios humanos, financeiros e materiais que lhes permitissem, com autonomia própria, varrer a casa colectiva de que

são o centro e a sede, competindo depois às Câmaras Municipais a recolha geral do lixo».

Esta linha de pensamento nortearia as autoridades municipais e estatais ao longo das primeiras duas décadas de

democracia. Fundamental era então a melhoria do serviço de recolha. Assim foi: contrastando com uma taxa de reco-

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49 | A montanha que pariu o lixo

lha de apenas 64% da população, que se verificava no início da década de 80, em 1990 conseguir-se-iam alcançar os

93%. Apenas nos distritos de Braga (79,3%) e Vila Real (73,7%) se mantinha a taxa abaixo dos 80%, embora apresentas-

sem uma evolução muito relevante em relação à década anterior. Numa escala territorial menor, somente 37 municí-

pios, com uma grande predominância de aldeias, continuavam a apresentar taxas de recolha mais reduzidas, abaixo dos

75%. No entanto, nenhum aglomerado importante se encontrava excluído deste serviço. Em suma, a recolha de lixo ur-

bano, que apresentava carências ainda graves no início dos anos 80, quase se generalizara em apenas uma década. Ofi-

cialmente, só em 1999 a recolha de resíduos sólidos urbanos passaria a abranger a totalidade da população portuguesa.

Mas houve um reverso da medalha, obviamente: com a melhoria da taxa de recolha e com o aumento da pro-

dução de lixo, ficou patente como era enganadora a ideia de ser suficiente «varrer» as cidades, as vilas e as aldeias,

de como era falacioso o chavão «longe da vista, longe do coração». De facto, sobretudo nas imediações de Lisboa, os

protestos de algumas comunidades por causa das lixeiras – e não apenas de detritos domésticos, mas também de

sucatas e lixo industrial – começaram a ganhar peso mediático. Um dos casos mais polémicos ocorreu no início de

1985, quando as populações que viviam perto da lixeira de Casal da Boba, no recém-criado concelho da Amadora,

se insurgiram contra os despejos feitos pela autarquia de Lisboa, que usava aquele local desde os anos 60. O confli-

to aberto, que envolveu cortes de estradas, foi agravado ainda mais pela momentânea paragem da estação de com-

postagem de Beirolas, que implicara uma maior quantidade de lixo orgânico que empestava ainda mais aquela zona.

Este episódio mediático mostraria também que, nessa altura, as lixeiras eram, além de focos de poluição e de

insalubridade, locais pouco recomendáveis em matéria civilizacional. Na edição de 3 de janeiro de 1985 do jornal Di-

ário de Notícias, uma reportagem revelava que a autarquia de Lisboa teria vedado recentemente aquele local, arras-

tando «consigo o afastamento de “candongueiros” que exploravam trabalho infantil, aproveitando a situação a “céu

aberto” da Boba para a recolha e posterior comercialização de restos de cartão, papel, trapo e mesmo de comida».

Apesar da entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia, em 1986, e a decorrente obrigatoriedade

em se proceder ao adequado tratamento dos diferentes resíduos, as autoridades municipais e estatais continuaram

alheadas destes problemas durante mais alguns anos. Tudo estava mal, mas pouco mais se fazia do que diagnós-

ticos, e pouco detalhados. Por exemplo, um estudo de 1989, realizado por um organismo ligado ao então Ministé-

rio do Plano e Administração do Território, considerava apenas que 10% do lixo urbano recolhido pelos municípios

portugueses eram encaminhados para compostagem, 28% eram depositados em locais classificados como aterros

sanitários e 62% acabavam lançados em vazadouros. Mas, mesmo pecando essa análise por defeito, o estudo nem

sequer discriminou as quantidades produzidas nem apresentou qualquer caraterização dos lixos, nem elencou os

locais de deposição. Absolutamente nada: e muito menos propostas concretas no sentido de alterar a situação.

Deste modo, à porta da última década do século XX, Portugal era um país à beira-mar plantado, infestado de

lixeiras nauseabundas e com uma produção anual de lixo urbano a ultrapassar já a fasquia dos três milhões de to-

neladas. Não demorou muito tempo até que o «tapete», onde se escondera décadas de desleixo e incúria, se levan-

tasse e revelasse, por fim, o drama ambiental e socioeconómico, generalizado a quase todo o território, que estava já

a custar muito caro; e que mais haveria de custar, se assim continuasse.

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O Pesadelo do Jardim das Lixeiras

Em 1974, o regime democrático herdara do Estado Novo um país rural e de forte pendor agrícola, com uma

indústria débil, um comércio pouco modernizado e voltado para os produtos nacionais e cerca de 40% da sua po-

pulação ativa a trabalhar no setor primário, com baixos hábitos consumistas. Com este atraso, Portugal aparentava

estar imune, ou quase livre, de problemas ambientais, contrariamente ao que sucedia na maioria das nações da Eu-

ropa ocidental e dos restantes países mundiais mais ricos, que, desde os anos 60, sofriam os danos colaterais de um

desregrado desenvolvimento industrial e económico.

Até aos anos 70, as marés negras, a poluição atmosférica, os rios poluídos por esgotos industriais, a contamina-

ção por pesticidas, a ameaça radioativa e muitos outros problemas ecológicos constituíam realidades quase desconhe-

cidas em Portugal. Durante o período do Estado Novo, através da televisão ou dos jornais, alguns casos mais dramáti-

cos no estrangeiro chegavam ao nosso país, mas eram geralmente usados pela ditadura como uma demonstração de

que Portugal era um paraíso em harmonia com a natureza, um jardim à beira-mar plantado.

Este cenário idílico estava longe de ser verdadeiro. Se, de facto, o atraso económico e industrial evitava a existên-

cia de muitos problemas ambientais típicos dos países mais desenvolvidos, Portugal não estava completamente imune.

Havia alguns pontos negros, mas a censura atuava e os protestos eram raros ou sufocados. Analisando as contestações

populares de cariz ambiental que ocorreram ao longo do Estado Novo, quase se resumem aos descontentamentos de

agricultores do Baixo Vouga no fim dos anos 40, aquando da instalação de uma celulose em Cacia, nessa zona, e aos

protestos da população de Pernes, anos mais tarde, contra a poluição da indústria de curtumes nas margens do Alviela.

Com a chegada ao poder de Marcelo Caetano – e sobretudo com a necessidade de preparar a representação

portuguesa na Conferência de Estocolmo11 –, surgiu uma abertura política que permitiu abordar alguns dos problemas

11 Realizada entre 5 e 16 de junho de 1972 na capital sueca, sob a designação formal de Conferência das Nações Unidas para o Ambiente

Humano, é considerada um marco da política ambiental internacional. Contou com a participação de 113 países, 19 agências intergovernamentais

e mais de quarto centenas de organizações não-governamentais de ambiente, tendo aí sido aprovada uma declaração conjunta com 26 princípios.

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52 | Resíduos: uma Oportunidade

ambientais do país. Nesse âmbito, destacar-se-ia o programa televisivo Há Só Uma Terra, transmitido pela RTP e

patrocinado pela recém-criada Comissão Nacional do Ambiente (CNA). Através de reportagens, algumas bastan-

te acutilantes, denunciaram-se graves carências de saneamento básico e de poluição hídrica e atmosférica, mas o seu

impacto público e político foi muito limitado.

Somente no rescaldo da Revolução do 25 de Abril, num contexto político bastante complexo, surgiram os pri-

meiros movimentos ecologistas em Portugal, bem como os pioneiros do jornalismo ambiental, possibilitando assim

uma discussão mais aberta sobre estas temáticas no seio da sociedade portuguesa. Nas fases iniciais do regime de-

mocrático, as clivagens ideológicas e uma certa imaturidade destas organizações – que mesmo assim tiveram um

papel determinante no recuo político para a construção de uma central nuclear em Ferrel – resultariam numa quase

ausência de reivindicação em prol das questões urbanas, em geral, e do saneamento básico, em particular.

Ao longo da década de 80, o papel dos movimentos organizados de cidadãos reforçar-se-ia, com o nasci-

mento de várias dezenas de movimentos ambientalistas. Embora a esmagadora maioria fosse de reduzida dimen-

são e de âmbito local, foi nesse período que se fundaram duas das mais importantes associações: a Quercus e o

Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA), tendo-se também verificado, nessa época,

uma reorientação estratégica da Liga para a Proteção da Natureza (LPN), criada em 1948, mas que durante décadas

teve uma intervenção marcadamente académica e virada em exclusivo para a conservação da natureza. Ainda com

recursos humanos, técnicos e financeiros muito limitados, nos seus primeiros anos as ações destes grupos ecolo-

gistas foram muito moderadas, até porque, com exceção da Quercus, a generalidade não excedia as poucas cente-

nas ou mesmo dezenas de sócios, sendo ainda mais pequeno o número de membros ativos.

A debilidade inicial dos movimentos ecologistas portugueses era também um reflexo da falta de mobilização

da população em geral. Com efeito, apesar de os problemas ambientais terem começado a surgir com maior evi-

dência ao longo da primeira década e meia do regime democrático, os portugueses mantiveram sempre uma atitude

algo passiva, que acabou por se refletir ou ser um reflexo da fraca atenção da imprensa sobre estas questões; e na

mesma linha, sobre assuntos relacionados com lixo. Por exemplo, entre 1974 e 1980, o Diário de Notícias – um dos

principais jornais daquela época – apenas publicou 25 artigos sobre resíduos ou limpeza urbana, tendo a esmaga-

dora maioria incidido na área de Lisboa e em problemas relacionados com os serviços de recolha. A maioria destes

artigos noticiosos foi publicada entre 1977 e 1980, totalizando 22. Em 1977, as notícias abordaram sobretudo os pro-

blemas causados por uma greve dos funcionários de limpeza em Lisboa, que obrigou mesmo a uma requisição civil

ordenada pelo governo. Nos dois anos seguintes, as notícias reportaram sobretudo o programa implementado pela

autarquia da capital para melhorar a limpeza urbana. A incidência mediática não se modificou muito ao longo dos

anos 80: nesta década contabilizam-se apenas cerca de meia centena de artigos publicados neste jornal sobre esta

temática, o que dá uma média inferior a uma notícia em cada dois meses.

Em Portugal, o efeito mais importante da Conferência de Estocolmo foi a fundação da Comissão Nacional do Ambiente e a criação da primeira área

protegida: o Parque Nacional da Peneda-Gerês, em 1971.

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53 | O pesadelo do jardim das lixeiras

Em todo o caso, a partir de meados dos anos 80, pouco a pouco foram aumentando as intervenções públicas

protagonizadas pelas associações ambientalistas, por organizações de defesa do consumidor – como a Deco – e até

mesmo por associações profissionais, científicas e técnicas – como a Associação Portuguesa de Recursos Hídricos

(APRH) e a Associação Portuguesa para Estudos de Saneamento Básico (APESB) – que foram alertando para os

problemas e para as carências nos setores do saneamento básico. Mas o seu impacto, no caso dos resíduos, só ga-

nharia maior eco a partir do início da década de 90.

O lento acordar da política de resíduos

Não se pode dizer que o Portugal democrático não tenha acordado logo para a importância das questões am-

bientais. Pelo menos em teoria, isso sucedeu quase de imediato após a Revolução do 25 de Abril, com o estado a

procurar estabelecer os primeiros pilares de uma política ambiental.

Antes mesmo das primeiras eleições legislativas, realizadas em 1976, cinco dos seis governos provisórios

mostraram uma postura ecológica, instituindo o Ministério do Equipamento Social e Ambiente. É certo que, nos anos

seguintes da década de 70, a tutela do ambiente ficou politicamente subalternizada, por estar integrada no Ministério

da Habitação e Obras Públicas, mas o I Governo Constitucional (1976-1978) deu ênfase ao ambiente urbano, atra-

vés da Secretaria de Estado dos Recursos Hídricos e Saneamento Básico12.

Em todo o caso, a Constituição da República de 1976 consagraria logo, através do seu artigo 66.º, o direito dos

cidadãos «a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender», estabe-

lecendo as obrigações genéricas do estado e das autarquias em prol da proteção ambiental e abrindo a porta, desse

modo, a diversas iniciativas legislativas.

Depois de um pequeno interregno, durante o curto governo liderado por Sá Carneiro, entre 1980 e início de

1981, sem que o ambiente estivesse tutelado diretamente por qualquer ministério ou secretaria de Estado, a primeira

metade da década de 80 veio reforçar politicamente esta área; não apenas por via da criação do Ministério da Quali-

dade de Vida, mas sobretudo pelo peso dos seus intervenientes principais, nomeadamente João Vaz Serra de Moura,

Gonçalo Ribeiro Telles, António Capucho e Francisco Sousa Tavares, que ocuparam sucessivamente o cargo de mi-

nistro, e ainda Eduardo Oliveira Fernandes e Carlos Pimenta, que foram secretários de Estado do Ambiente.

Embora tenha sido neste período que se verificou uma maior aposta institucional no ambiente, Portugal tam-

bém começou, por via de um maior ritmo de crescimento económico, a ficar assoberbado com novos problemas

ambientais. Além do passivo histórico – com carências básicas ainda por solucionar –, a expansão demográfica e ur-

12 Esta denominação vinha já do VI Governo Provisório (1975-1976), que manteve em funções o então secretário de Estado, Baltazar Mo-

rais Barroco. Nos quatro governos constitucionais seguintes, até ao fim da década de 80, esta denominação alterar-se-ia. No segundo governo

designou-se Secretaria de Estado do Ordenamento Físico e Ambiente, no terceiro e quarto passou a ser Secretaria de Estado do Ordenamento Fí-

sico, Recursos Hídricos e Ambiente, e no quinto denominou-se Secretaria de Estado do Urbanismo e Ambiente.

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54 | Resíduos: uma Oportunidade

bana, agravada pela proliferação das construções clandestinas, decorrentes do processo de descolonização, colocou

as prioridades políticas ambientais noutras esferas, como o ordenamento do território e a conservação da natureza.

Por isso, as intervenções ao nível do saneamento básico não passaram muito pelo tratamento do lixo, incidindo so-

bretudo na supressão de outras carências basilares, como o abastecimento de água e a limpeza urbana.

Neste cenário sociopolítico, as primeiras medidas legislativas específicas na área do lixo apenas surgiram em

Portugal no fim de 1985, numa fase de mudança do ciclo governativo, quando já surgiam os primeiros alertas sobre

a gravidade das deposições desregradas. Porém, o diploma aprovado era demasiado genérico, contendo apenas oito

artigos, e com melhores intenções do que imposições, objetivos ou metas13. De facto, como princípio geral, este di-

ploma começava por considerar que «o detentor de resíduos, qualquer que seja a sua natureza e origem, deve pro-

mover a sua recolha, armazenagem, transporte e eliminação ou utilização de tal forma que não ponham em perigo a

saúde humana nem causem prejuízo ao ambiente». No caso do lixo doméstico, referia a seguir que caberia ao mi-

nistério que tutelasse a área do ambiente – ouvindo o Ministério da Saúde quando estivessem em causa assuntos de

ordem sanitária – proceder aos investimentos para a construção de aterros sanitários e outras estações de tratamen-

to, em cuja instalação tivesse sido decidido promover ou apoiar a sua execução, bem como estabelecer as normas

e os regulamentos de gestão das diversas infraestruturas, tais como vias de acesso e estações de transferência e de

tratamento. Determinava ainda que as autarquias, de forma isolada ou em associações, deveriam estabelecer siste-

mas municipais com vista à remoção, ao tratamento e ao destino final do lixo, bem como promover a implementa-

ção dos projetos e as posturas de recolha e transporte. Essa tarefa incidia quer no lixo doméstico quer nos detritos e

desperdícios industriais e hospitalares que fossem passíveis dos mesmos processos de eliminação. Em paralelo, as

câmaras municipais deveriam também organizar e manter atualizado um inventário que indicasse, com adequada

referência temporal, as quantidades, natureza, origem e destino do lixo produzido ou recolhido, que deveria ser fa-

cultado às entidades com competência de fiscalização.

Dois anos mais tarde, a Lei de Bases do Ambiente reforçaria estes princípios, estabelecendo que os lixos de-

veriam «ser recolhidos, armazenados, transportados, eliminados ou reutilizados de tal forma que não constituam

perigo imediato ou potencial para a saúde humana nem causem prejuízo para o ambiente». Determinava também

que a deposição somente poderia «ser efectuada em locais determinados para o efeito pelas entidades competen-

tes e nas condições previstas na autorização concedida» e que «as autarquias locais, isoladamente ou em conjunto»

deveriam «proceder à constituição de planos reguladores» de deposição, incluindo a posterior recuperação paisa-

gística dos locais escolhidos.

Criados estes pilares legislativos e com a entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia em 1986

– que trouxe mais imposições legais, mas também financiamentos comunitários –, estariam, em teoria, reunidas as

13 Trata-se do Decreto-Lei n.º 488/85 de 25 de novembro. Embora tivesse entrado em vigor seis meses após a sua publicação, já em ple-

no governo PSD, liderado por Cavaco Silva, a sua aprovação ocorrera ainda durante o governo do Bloco Central (PS-PSD), cujo primeiro-ministro

era Mário Soares.

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55 | O pesadelo do jardim das lixeiras

condições para se começar a tratar adequadamente o lixo doméstico. Só que, entretanto, o ambiente perdeu nova-

mente peso político na segunda metade dos anos 80, ficando integrado na tutela do Ministério do Plano e da Admi-

nistração do Território. Os organismos estatais da área ambiental não tinham recursos humanos, técnicos e finan-

ceiros suficientes para implementar as medidas preconizadas, quer pelo diploma de 1985 quer pela Lei de Bases do

Ambiente, e deixaram a resolução dos problemas prementes para as autarquias que, sem soluções nem dinheiro e,

em geral, com fraca sensibilidade ambiental, foram optando, em regra, pela deposição do lixo urbano e industrial em

simples vazadouros.

Para agravar a situação, na segunda metade da década de 80, o lixo industrial ganhou protagonismo me-

diático e político, subalternizando a urgência de se encontrar soluções adequadas para o lixo urbano. Um pouco

por todo o país, devido à aposta no crescimento económico, as pequenas, médias e grandes empresas começaram

cada vez mais a produzir maior quantidade de detritos, de diversos géneros e perigosidade, despejando-os em lu-

gares ermos e lixeiras, em muitos casos municipais. Ou seja, neste setor, as situações ambientais graves deixaram

de ser um problema exclusivo das tradicionais regiões industrializadas, como Estarreja, Águeda, Barreiro, Setúbal

e Sines.

Nesta época, a prioridade política concedida ao lixo industrial acabou por ser compreensível: a terminologia

popular classificava estes detritos como tóxicos e perigosos, criando assim um maior temor popular em compara-

ção com o lixo urbano. Por outro lado, em 1987 sucedeu um escândalo ambiental que deu maior ênfase a este setor:

perto da Reserva Natural do Estuário do Sado, tinham sido depositadas cerca de 45 000 toneladas de escórias de

alumínio, importadas da Suíça, que continham dioxinas. Este caso – envolvendo a empresa portuguesa Metalimex,

que supostamente pretendia reciclar esse metal, mas nem sequer possuía tecnologia adequada – demorou uma

década até ser resolvido, com o reenvio das escórias contaminadas para a Suíça, e o seu início veio a coincidir com

diversas polémicas ao nível internacional relacionadas com lixos industriais. Nesse ano, vários países desenvolvidos

foram acusados de pactuar com práticas de dumping ambiental, através da exportação de lixo perigoso para países

do terceiro mundo, especialmente os do continente africano.

Ainda durante a segunda maioria absoluta de Cavaco Silva – que entretanto, em 1990, acabara por criar o Mi-

nistério do Ambiente e Recursos Naturais –, o governo decidiria, após um estudo da então Direção-Geral da Qua-

lidade do Ambiente (DGQA), encontrar uma solução imediata para o lixo industrial, através da construção de uma

central de incineração em Sines e de um aterro na zona de Estarreja. A subsequente polémica – com uma contes-

tação pública poucas vezes vista em Portugal – não só trouxe sucessivos atrasos na implementação deste projeto,

mas também fez estagnar quaisquer soluções globais na área do tratamento do lixo urbano. Enquanto isto, as lixei-

ras de detritos domésticos, que também recebiam lixo industrial, aumentaram cada vez mais, sem se ver solução à

vista. De facto, a única exceção, nesta área, fora a decisão de construir, ainda em 1993, uma central de incineração na

zona de Lisboa para tratar o lixo urbano da capital e dos municípios de Loures, Amadora e Vila Franca de Xira. Mas

tal deveu-se mais à necessidade de desativar a estação de compostagem de Beirolas, que se situava na zona abran-

gida pelo projeto da Expo 98.

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O lixo no palco mediático

A influência dos jornalistas, como esteios da mudança de mentalidades em regimes democráticos, só tardiamente

se evidenciou em relação às questões ambientais. De facto, até meados da década de 80, a comunicação social manteve

ainda uma postura pouco incisiva, remetendo-se ao papel de mero divulgador de informação. Neste período, a televisão

estatal (RTP), os jornais e as rádios continuaram a considerar secundárias as temáticas ambientais, em geral, e o lixo ur-

bano, em particular, não merecedores de grande espaço noticioso. Além disso, a área geográfica com interesse noticio-

so era pouco mais do que Lisboa e Porto, e as suas zonas urbanas envolventes. Tudo o resto era tratado como paisagem.

A grande mudança ocorreria sobretudo a partir de 1990, com a fundação do jornal Público, que desde cedo im-

primiu uma nova postura em relação às questões ambientais, destacando jornalistas específicos para o tratamento

dessas temáticas e obrigando também a concorrência a seguir caminho similar, como sucedeu com o tradicionalista

Diário de Notícias. Nessa época também é justo salientar o papel de semanários como o Expresso e O Independente,

este último fundado em 1988, e da revista Grande Reportagem que a partir de 1991, enquanto dirigida por Miguel Sou-

sa Tavares, passou a dar destaque especial aos temas ambientais. Em 1994 seria também criada uma revista mensal

exclusivamente de cariz ambiental, a Fórum Ambiente, que se extinguiria em 2003.

Em todo o caso, foi com a abertura do espaço televisivo aos privados – primeiro em 1992, com a SIC, e um ano

mais tarde com a TVI – que as temáticas ambientais deram um significativo salto mediático, entrando nos lares dos

portugueses. Com um tipo de jornalismo mais interventivo e de denúncia, apanágio dos primeiros anos das televi-

sões privadas, o poder do som e da imagem trouxe para a ribalta questões secundarizadas ou menosprezadas por

governantes, autarcas e população em geral. Onde antes uma mortandade de peixes era ignorada ou dava uma pe-

quena notícia num jornal, passou depois a ter uma cobertura televisiva com forte impacto mediático e político. Uma

indústria a poluir, um esgoto a drenar para um rio, uma lixeira a arder e tantos outros sinais de degradação ambiental

passaram assim a ser conhecidos em todo o país. Ouviam-se e viam-se as populações a protestar, as autoridades

a tentarem justificar-se e a fazer públicas promessas de resolução dos problemas. Com as imagens das televisões,

com reportagens mais elaboradas e incisivas nos jornais e nas revistas, Portugal viu assim desnudados muitos casos

de degradação ambiental que afetavam algumas franjas da população.

Nesta mudança mediática, contudo, não foi alheia a conjuntura internacional e o agravamento ou o surgi-

mento de novos problemas ambientais à escala planetária, como as chuvas ácidas e a rarefação da camada de ozono

estratosférica – vulgo, buraco de ozono –, a desflorestação das florestas tropicais ou a desertificação e ainda alguns

desastres antropogénicos, como o acidente nuclear de Chernobyl.

O incremento mediático acentuar-se-ia ainda mais no início dos anos 90, tendo atingido o auge em 1992, por

via da Conferência do Rio14, e em 1994, com a Presidência Aberta sobre o Ambiente, protagonizada pelo presidente

14 Conhecida por Cimeira da Terra, realizou-se entre 3 e 14 de junho de 1992, no Rio de Janeiro. Nesta reunião internacional consagrou-se

o conceito de desenvolvimento sustentável, tendo sido aprovados diversos documentos, entre os quais a Carta da Terra, as Convenções da Biodi-

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da República, Mário Soares. Além disso, a integração europeia de Portugal implicou também a transposição de mui-

tas diretivas comunitárias na área do ambiente, passando também a Comissão Europeia a deter um papel interven-

tivo e fiscalizador bastante ativo, sobretudo quando eram apresentadas queixas formais. Todos estes fatores, a par

da crescente sensibilização dos quadros dirigentes dos órgãos de comunicação social para as questões ambientais,

seriam particularmente aproveitados pelas associações ambientalistas, que foram ganhando palco mediático para

as suas ações e denúncias públicas.

Com maior maturidade e mais conhecimento, por via do recrutamento de técnicos e especialistas para as

causas que defendiam, as principais associações ambientalistas iniciaram, sobretudo no início dos anos 90, ações

concertadas que viriam, em muitos sectores, a contribuir fortemente para a mudança ou aceleração das políticas

públicas de ambiente. O caso do lixo urbano constitui um exemplo paradigmático tendo, neste setor, a Quercus

desempenhado um papel de charneira. De associação marcadamente conservacionista e vocacionada para a edu-

cação ambiental – a sua denominação inicial, aquando da fundação em 1985, era Quercus – Grupo para a Recupe-

ração da Floresta e Fauna Autóctone –, esta associação foi alargando a partir da década de 90 a sua ação para outras

temáticas mais urbanas, como os recursos hídricos, o ordenamento e os resíduos.

De facto, nos primeiros anos da década de 90, a Quercus viria a ter um papel de destaque através de dois

importantes e ambiciosos projetos na área dos resíduos. O primeiro intitulava-se «Reciclar é Desenvolver», tendo

sido financiado pelo Ministério do Ambiente no sentido de se obter um quadro da situação da reciclagem em Por-

tugal e das suas potencialidades como negócio empresarial. O segundo, feito de forma independente, consistiu na

realização de um diagnóstico detalhado sobre a produção de lixo urbano e a qualidade dos serviços de gestão por

parte das autarquias, bem como a inventariação criteriosa dos locais de deposição. Seria com este estudo, a par das

ações mediáticas e de denúncia, que se desvelaria o cenário caótico, quase dantesco no setor do lixo urbano em

Portugal.

A montanha revela-se

Nos primeiros anos da década de 90, quando a recolha dos lixos domésticos já abrangia quase a totalidade da

população portuguesa, poucos sabiam, ou se importavam em saber, para onde eram encaminhados. Quando muito,

era do conhecimento geral que o município de Lisboa se associara ao da Amadora para enviarem uma parte do lixo

para a estação de compostagem de Beirolas; e que em Trajouce havia também outra unidade de valorização orgânica

para onde ia o lixo de Oeiras, Sintra e Cascais. A norte sabia-se também que diversos municípios do Grande Porto –

Porto, Vila Nova de Gaia, Gondomar, Maia, Matosinhos, Valongo, Vila do Conde e Espinho – encaminhavam tam-

versidade, da Desertificação e das Alterações Climáticas, uma declaração de princípios sobre florestas, uma declaração sobre Ambiente e Desen-

volvimento e as bases para a implementação de planos de desenvolvimento de cariz local (Agenda 21).

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bém parte do lixo para uma unidade de compostagem em Ermesinde. E estavam em projeto de construção outras

duas unidades de compostagem: no Vale do Ave e na zona de Setúbal.

Além destas infraestruturas, a então Direção-Geral da Qualidade do Ambiente apontava a existência de

mais 33 locais classificados como aterros sanitários, onde se depositava o lixo de 64 municípios. Para o resto do ter-

ritório assumia-se que o destino final eram os vazadouros, mas as próprias autoridades estatais ignoravam a sua

localização, bem como a quantidade e o tipo de lixo aí depositado por ano, em total incumprimento do estipulado na

legislação de 1985 e na Lei de Bases do Ambiente.

O estudo da Quercus, iniciado em 1993 e concluído nos princípios de 1995, mostraria que a situação ainda

era mais dramática. De facto, com pouquíssimas exceções, a generalidade das autarquias não fazia qualquer gestão

do lixo urbano, limitando-se a retirá-lo das vias públicas e despejando-o em vazadouros sem controlo ambiental.

Apenas uma minoria se dava ao trabalho de proceder à simples pesagem e caraterização dos detritos, de acordo

com uma portaria publicada em finais de 1989. Com efeito, apurou-se que apenas 53 concelhos (19% do total de

Portugal continental) seguiam a metodologia imposta por uma portaria de 1988. Outros 46 municípios (17%) faziam

essa caraterização, mas usavam uma metodologia desadequada, e mais 116 autarquias (42%) não faziam qualquer

caraterização, desconhecendo-se a situação em outros 61 municípios (22%), sendo certo que grande parte destes

não a faria. Esta situação verificava-se mesmo em concelhos urbanos de grande dimensão. De entre os municípios

sede de distrito, apenas Faro, Porto, Setúbal e Vila Real usavam a metodologia oficial. Mais de metade das autar-

quias (51%, de entre as 206 que responderam ao inquérito da Quercus) até confessaram desconhecer a metodologia

oficial, ignorando assim a necessidade do envio anual para a administração pública de um mapa de registo. Além

disso, apenas 37 municípios tinham tido auxílio técnico e informativo dos organismos do Ministério do Ambiente e

somente cinco tinham recebido apoio financeiro externo para procederem à caraterização dos seus resíduos.

O incumprimento desta norma não era irrelevante nem apenas uma questão burocrática; constituía, sim,

uma carência grave num aspeto basilar para uma adequada e desejável estratégia de gestão de resíduos. Mas, nes-

sa altura, ficou patente que o lixo não era resíduo; era somente algo que se desprezava e que apenas se considerava

importante retirar dos aglomerados urbanos, sem pensar nas consequências.

Em resultado disto, nos primeiros anos da década de 90 os dados oficiais, quer da Direção-Geral da Qualida-

de do Ambiente, quer do Instituto Nacional de Estatística – que elaborava um relatório anual sobre estatísticas am-

bientais –, não tinham qualquer grau de fiabilidade, mesmo quando apresentavam valores de produção e de capita-

ção díspares e incongruentes. A título de exemplo, em pequenos concelhos do interior, com caraterísticas marcada-

mente rurais, indicavam-se capitações superiores às de Lisboa e às de outras grandes cidades do litoral. Estas situa-

ções já se verificavam nos estudos desenvolvidos, no início dos anos 80, pela Direção-Geral do Saneamento Básico.

Nesse sentido, uma das virtudes do estudo da Quercus foi permitir encontrar estimativas fiáveis sobre quan-

tidades de lixo doméstico então produzido em Portugal, por município, e em função da população de cada concelho.

Assim, com referência a 1993, este estudo estimou que a produção de lixo urbano atingira, nesse ano, os 3,14 mi-

lhões de toneladas, incluindo cerca de 200 000 toneladas provenientes da população (6,7% do total nacional) ainda

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59 | O pesadelo do jardim das lixeiras

sem recolha de lixo. A capitação média diária estimada situava-se então em 925 gramas por dia, com um máximo

de 1093 gramas no distrito de Faro – em virtude da concentração turística na época estival – e um mínimo de 734

gramas no distrito de Viseu. As maiores produções estavam concentradas nas regiões urbanas do litoral, designa-

damente nos distritos de Lisboa, Porto, Setúbal, Braga e Aveiro.

Quadro 9 – Produção e capitação média de resíduos urbanos em 1993

Distritos / Anos Produção (ton) Capitação diária (g / hab)

Aveiro 198 630 844

Beja 44 956 770

Braga 201 056 929

Bragança 38 491 786

Castelo Branco 53 596 748

Coimbra 111 245 803

Évora 44 884 767

Faro 118 758 1093

Guarda 48 709 737

Leiria 122 451 874

Lisboa 781 437 1049

Portalegre 36 948 759

Porto 573 799 1003

Santarém 116 423 756

Setúbal 250 871 984

Viana do Castelo 63 718 808

Vila Real 47 904 762

Viseu 95 432 734

Total 2 949 308 925

Total com população não servida 3 148 772 n. a.

Fonte: Vieira (estudo da Quercus, 1995)

Embora os valores apurados evidenciassem um reforço do peso dos distritos do litoral entre Braga e Setúbal

– em 1993 representavam 76% do total contra os 72% apurados pela Comissão Nacional do Ambiente (CNA) no

início dos anos 80 –, destacava-se sobretudo um incremento geral assombroso na ordem dos 50%, sobretudo de-

vido aos municípios urbanos. Com efeito, em 1980, a CNA identificara apenas 18 municípios com uma produção

anual superior a 20 000 toneladas, mas em 1993 já 35 superavam essa quantidade. Neste último ano existiam já 12

concelhos com produções acima das 50 000 toneladas, quando em 1980 apenas Lisboa, Porto, Vila Nova de Gaia

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60 | Resíduos: uma Oportunidade

e Loures ultrapassavam essa fasquia. Note-se que o crescimento mais moderado da produção de lixos em Lisboa

– que passou de 262 000 toneladas em 1980 para cerca de 290 000 em 1993 – se deveu sobretudo à perda demo-

gráfica registada na década de 80 acima das 100 000 pessoas.

Quadro 10 – Concelhos com maiores produções de resíduos urbanos em 1993

Pos. Concelhos Produção (ton) Pos Concelhos Produção (ton)

1 Lisboa 289 686 16 Santo Tirso 37 440

2 Porto 146 137 17 Maia 36 542

3 Loures 113 000 18 Seixal 34 675

4 Sintra 89 885 19 Barcelos 33 939

5 Vila Nova de Gaia 75 004 20 Vila Franca de Xira 31 748

6 Cascais 69 394 21 Leiria 30 828

7 Amadora 64 700 22 Viseu 29 200

8 Almada 63 920 23 Barreiro 28 131

9 Matosinhos 59 674 24 Viana do Castelo 26 982

10 Oeiras 56 036 25 Vila Nova de Famalicão 24 000

11 Gondomar 53 691 26 Aveiro 23 556

12 Guimarães 53 655 27 Valongo 23 330

13 Coimbra 47 451 28 Póvoa do Varzim 23 000

14 Braga 43 436 29 Portimão 23 000

15 Setúbal 39 497 30 Paredes 22 985

Fonte: Vieira (estudo da Quercus, 1995).

Este incremento repentino na produção de lixo em muitas destas autarquias teve dois tipos de efeitos: por um

lado, muitos serviços municipais de recolha e limpeza urbana registaram acréscimos inesperados nos custos; por

outro lado, aumentou o volume encaminhado para os vazadouros que, se antes eram pequenos monturos, se trans-

formaram em grandes lixeiras. Mais ainda porque, em muitas regiões, as autarquias se foram unindo para despe-

jarem o lixo num local comum. Além disso, com a expansão urbana repentina, esses locais de deposição passaram

a ficar mais próximos de aglomerados, aumentando os conflitos com as populações afetadas pelos maus odores e

contaminações diversas.

Como é compreensível, os casos mais graves de deposição em vazadouros sem controlo verificavam-se so-

bretudo nas regiões do litoral mais densamente povoadas. Contudo, em maior ou menor grau, todo o território foi

sendo atingido pela proliferação de vazadouros, tanto mais que, com a crescente industrialização e a intensa ativida-

de da construção civil, acabaram também por aí ser despejado muito lixo industrial, entulhos, pneus e uma miríade

de outros detritos.

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61 | O pesadelo do jardim das lixeiras

Um cenário dantesco

Perante o crescimento avassalador na produção de lixo urbano, da ordem dos 50% em apenas uma déca-

da, e a maior concentração populacional nas zonas urbanas, o cenário revelado em 1993 era, de facto, desolador.

Não contabilizando os detritos industriais e até hospitalares, o estudo da Quercus estimou então que, nesse ano, ti-

nham sido depositados em vazadouros cerca de 1,77 milhões de toneladas de lixo doméstico (60,2% do total), quase

405 000 toneladas (13,7%) em vazadouros controlados e apenas 771 000 toneladas (26,1%) tinham sido encami-

nhadas para compostagem e/ou depositadas em aterro controlado. Numa escala municipal, 234 autarquias (85,1%

do total) utilizavam exclusivamente vazadouros, 15 municípios (5,5%) usavam exclusivamente vazadouros con-

trolados, 14 municípios (5,1%) usavam exclusivamente aterros controlados, três municípios (1,1%), uma estação de

compostagem e um vazadouro, e dois municípios (0,7%), uma estação de compostagem e simultaneamente um

vazadouro e um vazadouro controlado.

Refira-se que neste estudo foi considerado que um aterro controlado teria obrigatoriamente de possuir ve-

dação total, cobertura diária dos resíduos, impermeabilização lateral e do fundo, drenagem de biogás e drenagem

e tratamento de águas lixiviantes, de acordo com as normas de descarga para o meio recetor. Mas como nenhuma

das infraestruturas existentes cumpria todas estas condições, considerou-se, como aterros controlados, os locais

que não cumprissem apenas uma das condições atrás mencionadas. No caso de um vazadouro controlado, esta

classificação exigia apenas, mas obrigatoriamente, vedação total da zona de deposição, a cobertura diária dos re-

síduos e pelo menos drenagem ou impermeabilização dos terrenos. Caso não cumprissem um destes critérios de

gestão, esses locais eram classificados simplesmente como vazadouros, ou seja, na terminologia popular, como

lixeiras.

Tendo em conta a distribuição de base regional, constatava-se que na esmagadora maioria dos distritos por-

tugueses apenas havia vazadouros ou vazadouros controlados, pois somente alguns concelhos dos distritos de

Aveiro (4), Faro (3), Lisboa (2), Porto (6) e Setúbal (2) usavam infraestruturas como aterros ou estações de compos-

tagem, com menor impacto ambiental negativo.

O estudo identificou ainda, com base em diversos critérios técnicos, a existência de 218 vazadouros, 13 va-

zadouros controlados e apenas seis aterros controlados, embora todos apresentando deficiências diversas. Foram

também identificados e inventariados outros 19 vazadouros que estavam inativos ou encerrados. Embora não ti-

vesse sido possível determinar, com rigor, a dimensão e o volume de lixo – sobretudo pela dificuldade em se apurar

o período de deposição e as quantidades de outros detritos aí despejados –, descobriu-se que em 28 locais tinham

sido despejados, só em 1993, mais de 20 000 toneladas, num total de 1,7 milhões de toneladas, sendo quatro aterros

controlados, cinco vazadouros controlados e 19 vazadouros.

Através de visitas de campo, a Quercus confirmou ainda que em 72 dos 256 locais inventariados se procedia à des-

carga de lixo industrial e que em 16 tinha havido deposição de lixo hospitalar. Estes números pecariam por defeito, dado

que em 188 locais de deposição não havia vedação total, permitindo assim o fácil acesso aos despejos indiferenciados.

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63 | O pesadelo do jardim das lixeiras

A ausência de medidas preventivas de contaminação dos solos, do ar e das águas superficiais e subterrâneas ficaram evi-

denciadas neste estudo, uma vez que apenas 24 dos 256 locais inventariados (9,4% do total) tinham impermeabilização

do fundo, baixando esse número para 16 em relação à impermeabilização lateral. Relativamente às águas lixiviantes, so-

mente em 12 locais (4,7%) havia infraestruturas específicas para o seu tratamento e apenas em 20 locais (7,8%) se fazia

drenagem de biogás. No que se refere à gestão quotidiana, em 207 locais de deposição (80,9%) não se procedia sequer à

cobertura diária do lixo despejado. Uma situação que, além de desenvolver maus odores, constituía um perigo bem real

de propagação de incêndios. Foram mesmo identificados 62 locais de deposição onde eram frequentes as queimadas, em

muitos casos feitas intencionalmente, noutros de origem espontânea.

Neste cenário de grande gravidade nem todas as autarquias mostravam então uma perceção correta da re-

alidade. Com efeito, das 169 autarquias que, em resposta ao inquérito da Quercus, se predispuseram a realizar uma

autoavaliação à qualidade do destino final do lixo doméstico, houve 17 que até a consideravam boa, 77 razoável e so-

mente 77 assumiam que era pouco satisfatória.

Queixas (quase) em saco roto

Em paralelo a este estudo, a Quercus mediatizou estes problemas, através de ações junto da comunicação

social, tendo atingido o auge num inédito pedido de intervenção da Procuradoria-Geral da República (PGR). Ale-

gando que, face à passividade do governo e das autarquias, estavam em curso graves danos ambientais e de saúde

pública, a associação ambientalista apresentou em junho de 1994 uma queixa formal pela alegada prática de crimes

de contaminação e envenenamento da água e de incêndio, previstos no Código Penal. Os locais de deposição se-

lecionados foram as lixeiras localizadas nos concelhos de Braga (Padim da Graça), Castelo Branco (Monte de São

Martinho), Coimbra (Taveiro), Penafiel (Canelas), Peso da Régua, Feira (Canedo), Santo Tirso (Covelas) e Torres Ve-

dras (Fonte Grada), envolvendo o total de 15 municípios.

Como critérios de seleção estiveram não só a dimensão dos vazadouros, mas sobretudo a gravidade das si-

tuações detetadas. Em Padim da Graça, a lixeira encontrava-se num local alugado pela autarquia de Braga a um

privado, havendo mesmo o compromisso estabelecido para serem feitas queimadas, de modo a diminuir o volume.

Além disso, o terreno servia de pasto para porcos e vacas. Em Taveiro, onde se localizava o maior vazadouro fora da

Grande Lisboa, além da proximidade a povoações, havia frequentemente queimadas e suspeitas de poços inqui-

nados. Nos restantes vazadouros, todos sem vedação, eram habituais os despejos de lixo industrial, bem como os

incêndios, havendo alguns que tinham a presença habitual de catadores de lixo. No caso particular do vazadouro

de Peso da Régua, localizado nas margens do Douro, estava-se perante um repelente cartão de visita, pouco reco-

mendável para os turistas desta região: os fumos da combustão enevoavam o rio, envolvendo todos os barcos que

entravam na cidade.

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64 | Resíduos: uma Oportunidade

Estas queixas viriam a ser arquivadas, segundo os diversos magistrados, por não se ter tipificado quaisquer

dos crimes constantes do Código Penal, alegando a Procuradoria Geral da República que «a incidência criminal

dos factos era reduzida e a sua imputação a pessoas determinadas quase impossível». Mesmo assim, de acordo

com o Boletim de Interesses Difusos da PGR, publicado em meados de 1995, «de alguns dos inquéritos foram,

entretanto, extraídas certidões para procedimento contra-ordenacional, da competência das autoridades adminis-

trativas, às quais foram remetidas».

Se, aparentemente, as queixas da Quercus não foram atendidas pelo Ministério Público, na verdade esta in-

tervenção dos ambientalistas teve frutos decisivos para a inversão do problema das lixeiras em Portugal. De facto,

enquanto decorria o inquérito judicial, foram realizadas profundas alterações na gestão desses vazadouros, que

atenuaram parte dos impactos ambientais e de saúde pública, sobretudo obrigaram as diversas entidades a emen-

darem a passividade então vigente. De facto, segundo a Procuradoria, além das intervenções do Ministério do Am-

biente, estiveram envolvidas as autoridades policiais e florestais, corporações de bombeiros e até docentes uni-

versitários, com vista à tomada de medidas urgentes. Essas diligências, ainda segundo a PGR, «passaram pelo

contacto directo com a realidade em causa, recolha de imagens, reuniões com os órgãos autárquicos envolvidos e

auscultação de diversas entidades», tendo-se realizado a vedação, cobertura e vigilância permanente desses va-

zadouros. Além disso, «noutros casos, iniciou-se a construção de diques para o encaminhamento das águas lixi-

viantes e protecção de propriedades confinantes, pôs-se termo à queima de resíduos e acelerou-se o processo de

substituição dos aterros».

Estas intervenções acabariam por ser minimalistas, pois as contaminações mantiveram-se, quer nestes,

quer noutros locais de despejos de lixo. Ou seja, os problemas mantiveram-se. Portugal estava, de facto, transfor-

mado num país de lixeiras e nem os projetos de construção de duas centrais de incineração – previstas para eliminar

o lixo urbano de alguns concelhos do Grande Porto e da Grande Lisboa – mostravam ser uma solução sustentável,

não apenas por abranger uma fatia minoritária do lixo urbano do país – nesse período, menos de 20% –, mas porque

a União Europeia começava a exigir a implementação de políticas de redução, reutilização e reciclagem, com desta-

que para o setor das embalagens15.

Contudo, essas pressões comunitárias, diga-se, continuaram ainda durante mais algum tempo a esbarrar na

habitual morosidade burocrática lusitana, bem patente na lentidão manifestada no processo de transposição da di-

retiva comunitária para o setor dos resíduos, aprovada pela Comissão Europeia em março de 1991. De facto, embora

o estado português tivesse, como prazo de transposição, o dia 1 de abril de 1993, somente em finais de novembro de

1995 isso sucedeu. Aliás, mais de seis meses depois de se ter esgotado outro prazo previsto: o do envio de um relató-

rio de execução à Comissão Europeia sobre essa mesma diretiva. A lentidão deste procedimento legislativo mostra-

-se no tempo que demorou a publicação do diploma no Diário da República após a sua aprovação em Conselho de

15 Esta questão será aprofundada no capítulo «Na senda da integração».

Page 65: Resíduos: uma Oportunidade · 10 | Resíduos: uma Oportunidade Com a descoberta da agricultura, as comunidades humanas puderam acomodar-se por períodos muito mais longos num mesmo

Ministros: três meses e meio16. Ou seja, isto mostra que, nessa época, tudo o que o estado português fazia em ma-

téria de lixo urbano era de forma lenta; exatamente em contraciclo com o aumento da quantidade de lixo despejado

em vazadouros.

16 Trata-se da Diretiva 91/156/CE de 18 de março de 1991, que revogou legislação comunitária de 1975 (Diretiva 75/442/CEE). Com esta

diretiva, os estados-membros estavam obrigados a elaborar planos de gestão de resíduos, bem como a tomarem as medidas adequadas para a

constituição de uma rede integrada e adequada de instalações de eliminação tendo em conta as melhores tecnologias disponíveis. Foi transposta

para o direito nacional pelo Decreto-Lei n.º 310/95 de 20 de novembro, aprovado no Conselho de Ministros de 4 de agosto, ainda no governo de

Cavaco Silva, tendo entrado em vigor apenas no governo liderado por António Guterres.

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A Limpeza da Casa

Pouco mais de dois meses após as eleições legislativas de 1995, o recém-empossado secretário de Estado

adjunto do Ministério do Ambiente, José Sócrates, convidou, para uma reunião que se realizaria em dezembro des-

se ano, um vasto conjunto de personalidades do mundo autárquico, universitário, industrial, comercial e ecologista,

bem como dirigentes de associações profissionais e de entidades responsáveis pela gestão de lixo doméstico. Na

agenda, uma promessa e um pedido: o Ministério do Ambiente pretendia definir uma estratégia para acabar de vez

com a caótica situação nacional do lixo doméstico e, para isso, apelava à participação ativa de todos os parceiros so-

ciais.

Se esta era uma iniciativa política inédita, porquanto jamais qualquer governo ousara assumir com clareza e

abertura a gravidade de um problema ambiental desta natureza, as expectativas não poderiam ser, convenhamos,

muito elevadas. Por um lado, porque o desafio era colossal perante o cenário vigente. Por outro lado, os meios téc-

nicos e financeiros disponibilizados pelo estado para este setor eram então ridículos: José Sócrates chegou mesmo

a confessar que, para 1996, o Orçamento do Estado apenas disponibilizava uma verba de 50 000 contos (250 000

euros).

É certo que Portugal estava preso aos compromissos impostos pela União Europeia em matéria de trata-

mento e reciclagem de resíduos, e entrara em vigor, em novembro desse ano, a nova legislação que impunha o fim

dos vazadouros – ou seja, passara a ser «proibido o abandono, a descarga e a eliminação não controlada dos resídu-

os, bem como o seu tratamento, valorização ou eliminação, em unidades não autorizadas». Mas era certo que es-

sas regras não eram assim tão distintas das que já estavam estabelecidas na legislação de 1985 e na Lei de Bases do

Ambiente de 1987. Em suma, desde há uma década sabia-se ser legalmente proibido depositar lixo em vazadouros,

mas isso não tinha sido suficiente para alterar a situação. Ao invés, assistira-se à degradação generalizada, confir-

mando-se que, em Portugal, nada muda por simples decreto.

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68 | Resíduos: uma Oportunidade

A iniciativa do então secretário de Estado de mandar elaborar um plano estratégico – que, em certa medida, ad-

vinha da nova legislação, que incumbira a Direção-Geral do Ambiente de elaborar um Programa Nacional de Gestão

de Resíduos – também não representava qualquer garantia. De facto, em Portugal, ao nível da política ambiental, era

já hábito ordenar a produção de planos e relatórios com vista a diagnosticar problemas e a encontrar soluções, mas

a inércia política ou as mudanças governamentais acabavam por abortar medidas concretas e estruturantes. Assim

fora o caso do Livro Branco sobre o Estado do Ambiente, cuja elaboração com caráter trienal, prevista pela Lei de Bases

do Ambiente, só conheceria uma edição em 1991, com poucos resultados posteriores no terreno. Igual sorte tivera o

relatório de Portugal preparado para a Cimeira do Rio, em 1992, que continha uma caraterização sumária do estado do

ambiente e, em paralelo, as propostas nacionais para as futuras estratégias de ambiente ao nível global, regional e na-

cional. Também o Plano Nacional da Política de Ambiente, aprovado em abril de 1995 pelo governo de Cavaco Silva,

que ficou esquecido aquando da entrada em funções do governo de António Guterres. De facto, aquele plano estabe-

lecia medidas e metas para todos os setores ambientais, determinando que deveria ser objeto de um processo anual

de avaliação e controlo de execução e impondo também uma revisão até ao fim de 1997. Mas isso nunca sucedeu.

Contrariando este desolador historial, a dinâmica encetada a partir dessa primeira reunião dinamizada por

José Sócrates demonstraria que novos rumos se anunciavam. Com efeito, logo no início de 1996, o Ministério do

Ambiente criaria um grupo de trabalho com a incumbência de elaborar as bases do que se tornaria o Plano Estraté-

gico para os Resíduos Sólidos Urbanos (PERSU), bem como uma comissão de acompanhamento integrando vá-

rias dezenas de personalidades.

Liderado por António Lobato Faria, conceituado professor da Escola Nacional de Saúde Pública Dr. Ricardo Jor-

ge, este grupo de trabalho começou por introduzir, desde logo, um novo paradigma: não esquecendo o grave passivo

ambiental – ou seja, os vazadouros existentes, que teriam de ser extintos –, pretendia-se preparar o futuro, através da

integração de políticas assentes na redução, na reutilização e na reciclagem, bem como no tratamento e encaminha-

mento adequado do lixo. Ou melhor dizendo, a pedra de toque desta nova filosofia passou pela modificação do conceito

e da forma de gestão dos desperdícios domésticos: estes deixaram de ser vistos como lixo, para passarem a ser enca-

rados como resíduos, como subprodutos do consumo humano que deviam ser rentabilizados ao máximo; não apenas

por razões ambientais e de saúde pública, mas sobretudo pelo seu valor intrínseco, como matéria-prima.

Esta nova e desafiante perspetiva – que, sendo inédita em Portugal, estava há muito em voga em diversos pa-

íses desenvolvidos – não era, face ao panorama vigente, de fácil execução, sobretudo tendo em conta as exigências

colocadas pela União Europeia. Além de questões técnicas e financeiras, havia a necessidade premente de alterar

mentalidades, porquanto não havia, conforme se salientou no PERSU, «uma tradição neste campo, em boa parte

devido à aparente falta de complexidade e ao ilusório baixo custo dos simples actos de despejar o caixote do lixo nas

viaturas apropriadas e varrer os detritos da rua».

Em termos práticos, numa primeira fase era necessário proceder ao encerramento dos vazadouros e corri-

gir, se possível, as deficiências de outras infraestruturas que ainda pudessem ser reabilitadas, e também encontrar

soluções alternativas adequadas e se implementar políticas para dar cumprimento às exigências comunitárias em

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69 | A limpeza da casa

matéria de resíduos. Uma das primeiras iniciativas do Ministério do Ambiente, enquanto ainda decorria o processo

de elaboração do PERSU, foi a realização de um levantamento mais rigoroso sobre o destino final dos resíduos do-

mésticos, atualizando os dados do estudo da Quercus, embora estes tenham sido a principal fonte de informação

nos capítulos dedicados ao diagnóstico.

Em meados de 1996, a Direção-Geral da Qualidade do Ambiente revelaria então que 60% dos resíduos ur-

banos estavam a ser depositados em vazadouros, 16% em vazadouros controlados e apenas 15% eram encami-

nhados para aterros controlados e 9% para estações de compostagem. As pequenas diferenças entre o estudo da

Quercus, referente a 1993, e o levantamento da Direção-Geral da Qualidade do Ambiente advinham sobretudo

da entrada em funcionamento das estações de compostagem de Riba d’Ave (servindo os concelhos de Guima-

rães, Vila Nova de Famalicão, Fafe e Santo Tirso) e de Setúbal (gerida pela empresa Koch). Além disso, os concelhos

de Almada e Seixal tinham passado a depositar os resíduos em aterro controlado, tendo-se verificado entretanto

uma degradação no aterro de Vale da Venda (que servia Faro, Loulé e Olhão), que foi «despromovido» a vazadouro

controlado. O estudo da DGQA teve também já em consideração a desativação, prevista para 1997, da estação de

compostagem de Beirolas, por causa da realização da Expo 98. Nessa altura, estavam já em curso os projetos para a

construção das centrais de incineração da Valorsul e da Lipor.

Em termos quantitativos, o estudo do Ministério do Ambiente identificou, com mais detalhe, os locais de de-

posição, apurando a existência, em todo o país, de 13 aterros controlados, nove vazadouros controlados e 302 vaza-

douros. Mais tarde, esse número seria retificado para 341 vazadouros.

Quadro 12 – Distribuição dos locais de deposição em 1996

Região Aterros Vazadouros controlados Vazadouros Total

Norte 4 1 77 82

Centro 1 2 88 91

Lisboa e Vale do Tejo 1 2 35 38

Alentejo 6 4 79 89

Algarve 1 0 23 24

Portugal continental 15 9 302 324

Fonte: PERSU (1997).

Numa análise qualitativa, segundo os autores do PERSU, o panorama era «ainda pior, pois a exploração dos

aterros e os produtos resultantes das compostagens não [eram] satisfatórios, salvo raras excepções». Como, em

muitos destes casos, a degradação dos locais de tratamento e deposição se devia a deficiências técnicas e de gestão,

a estratégia preconizada pelo PERSU, e aprovada pelo Ministério do Ambiente, foi sempre no sentido de se adotar

modelos de cariz empresarial, assentes em indicadores de desempenho, com programas de recolha e tratamento

seletivo de resíduos – incluindo o lixo industrial e hospitalar –, que tivessem em consideração um equilíbrio de custos

e uma contínua formação técnica dos meios humanos.

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70 | Resíduos: uma Oportunidade

Figura 3 – Sistemas de gestão de resíduos urbanos em 1997 e 2012

1 – SMM Vale do Minho (VALORMINHO)

2 – SMM Vale do Lima e Baixo Cávado (RESULIMA)

3 – SMM Cávaco Homem (RESCÁVADO)

4 – SMM Baixo Cávado (BRAVAL)

5 – AM Vale do Avó (Amave)

6 – Lipor

7 – AM Vale de Sousa

8 – SMM Gaia e Feira (SULDOURO)

9 – AM Alto Tâmega

10 – AM Vale do Douro Norte

11 – AM Terra Fria ao Nordeste Transmontano

12 – AM Terra Quente Transmontana

13 – AM Baixo Tâmega

14 – AM Douro Superior

15 – AM Vale do Douro Sul

16 – AM Terras de Santa Maria

17 – CM Arouca

18 – SMM Alta Estremadura (VALORUS)

19 – SMM Litoral Centro (ERSUC)

20 – AM Planalto Beirão

1997

21 – AM Cova da Beira

22 – AM Rala / Pinhal

23 – Ecomaia

24 – CM Viseu

25 – SMM Oeste (RESIOESTE)

26 – AM Leziria do Tejo 1

27 – AM Leziria do Tejo 2

28 – AM Médio Tejo 1

29 – AM Médio Tejo 2

30 – AM Cascais, Oeiras e Sintra para o Tratamento de RSU (Amtres)

31 – SMM Lisboa Norte (VALORSUL)

32 – SMM Margem Sul do Tejo (AMARSUL)

33 – CM Setúbal

34 – CM Mafra

35 – AM Distrito de Évora (Amade)

36 – AM Litoral Alentejano

37 – AM Cuba, Alvito e Vidigueira, Portel e Viana do Alentejo (Amcal)

38 – AM Norte Alentejano

39 – AM Baixo Alentejo

40 – SMM Algarve (ALGAR)

1 – VALORMINHO

2 – RESULIMA

3 – BRAVAL

4 – RESINORTE

5 – Lipor

6 – Valsousa (Ambisousa)

7 – SULDOURO

8 – Resíduos do Nordeste

9 – VALORUS

10 – ERSUC

11 – AMR do Planalto Beirão (Ecobeirão)

12 – RESIESTRELA

13 – VALNOR

14 – VALORSUL

15 – Ecolezíria

16 – Resitejo

17 – Amtres (Trato-lixo)

18 – AMARSUL

19 – Amde (Gesamb)

20 – Amagra (Ambilital)

21 – Amcal

22 – Amalga (Resialentejo)

23 – ALGAR

2012

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71 | A limpeza da casa

Esta nova filosofia de intervenção, em completa rutura com o passado, teve subjacente a retirada dos muni-

cípios da exclusividade da gestão dos resíduos urbanos, através de uma participação mais efetiva e ativa do estado,

quer em meios financeiros quer técnicos e humanos. Nessa medida, o governo gizou dois modelos: a criação de

empresas multimunicipais, com participação maioritária da Empresa Geral do Fomento (EGF) e minoritária das au-

tarquias aderentes, e a criação ou manutenção de sistemas controlados em exclusivo por associações de municípios

de cariz empresarial. Em paralelo, ficou previsto um reforço do papel de regulação, regulamentação e apoio técnico

por parte do Ministério do Ambiente, que veio a concretizar-se na criação do Instituto dos Resíduos e do Instituto

Regulador de Águas e Resíduos (IRAR), respetivamente em 1996 e 199717.

Os dois modelos de gestão preconizados pelo PERSU não eram, saliente-se, completamente inovadores. Na

realidade, desde 1982, os municípios de Espinho, Gondomar, Maia, Porto e Valongo tinham criado a Lipor, vocacionada

para a gestão conjunta dos resíduos urbanos, que mais tarde integraria também Matosinhos, Póvoa do Varzim e Vila

do Conde. De igual modo, em 1987 alguns municípios do Vale do Ave agruparam-se para criar a Amave, que a partir

de 1994 passou a gerir uma estação de compostagem18. Os municípios de Oeiras, Cascais e Sintra fundaram a Amtres

em 1988, com vista à constituição de uma sociedade empresarial, a Tratolixo, com as empresas privadas HLC e Koch

de Portugal, que passou a deter a responsabilidade de gestão da unidade de compostagem localizada em Trajouce19.

Além disso, desde outubro de 1993, por via de um diploma do governo de Cavaco Silva20, abrira-se a possibi-

lidade de implementar sistemas empresariais de saneamento, quer no setor das águas e esgotos quer no setor dos

resíduos, por via de concessões, a outorgar pelo estado, através de empresas que resultassem «da associação de

entidades do sector público, em posição obrigatoriamente maioritária no capital social da nova sociedade, com ou-

tras entidades privadas». A primeira empresa criada com base neste modelo foi a Valorsul, em novembro de 1994.

Com capitais dos municípios de Lisboa, Amadora, Loures e Vila Franca de Xira, bem como da Empresa Geral do Fo-

mento (EGF)21, da EDP e da Parque Expo, esta empresa foi a solução empresarial para se conseguir acelerar a rápida

17 O Instituto dos Resíduos foi entretanto integrado na Agência Portuguesa do Ambiente. O Instituto Regulador das Águas e Resíduos,

com similar intervenção nos sistemas de distribuição de água e de drenagem e tratamento de esgotos domésticos, tem a atual denominação de

Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos.18 Numa primeira fase, a Amave abrangeu apenas os concelhos de Vieira do Minho, Póvoa de Lanhoso, Fafe, Guimarães, Santo Tirso, Vila

Nova de Famalicão, Póvoa de Varzim e Vila de Conde, integrando depois os recém-criados municípios de Vizela e Trofa. No caso da gestão da

estação de compostagem, a Amave apenas procedeu ao tratamento dos resíduos orgânicos dos municípios de Fafe, Guimarães, Vila Nova de Fa-

malicão e Santo Tirso.19 A AMTRES incorporou, a partir do ano 2000, o município de Mafra. Na sua criação, a AMTRES detinha 51% do capital social da Tratoli-

xo, tendo as empresas privadas a restante parte, com a Koch a deter 29% e a já extinta HLC 20%. Atualmente, a AMTRES detém o capital integral

da Tratolixo.20 Decreto-Lei n.º 372/93 de 29 de outubro.21 A Empresa Geral do Fomento (EGF) foi criada em 1947, com um âmbito social muito vasto, mas que a partir de 1993 ficou incumbida, a

par da recém-criada IPE – Águas de Portugal, do processo de empresarialização dos serviços coletivos ambientais (água, saneamento e resíduos

sólidos). Em outubro de 2000, a EGF passou a integrar o Grupo Águas de Portugal, enquanto sub-holding para a área dos resíduos, continuando a

assumir a responsabilidade das atividades de gestão, manutenção e exploração de sistemas multimunicipais de recolha, tratamento e valorização

de resíduos sólidos urbanos, bem como alguns sistemas de tratamento e valorização de fluxos especiais de resíduos.

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72 | Resíduos: uma Oportunidade

desativação da estação de compostagem de Beirolas, em virtude da realização da Expo 98, e construir uma central

de incineração em São João da Talha. Um ano mais tarde, em maio de 1995, os municípios do Algarve criaram uma

empresa similar, a Algar, com capitais maioritários da EGF (51%) e uma pequena participação da IPE Capital de Ris-

co (5%).

Assim, sob o patrocínio do secretário de Estado José Sócrates, estes dois modelos generalizar-se-iam com

uma rapidez inusitada. Tendo o Ministério do Ambiente reforçado o papel da EGF neste processo, numa primeira

fase a maioria das autarquias acabou por optar pela gestão intermunicipal através de associações de municípios já

existentes ou criadas para o efeito. Na maior parte das regiões do litoral, mais urbanas e com maiores quantidades

de resíduos, as autarquias optaram por criar parcerias com a EGF, criando empresas multimunicipais. Nesta fase,

apenas quatro municípios (Arouca, Viseu, Mafra e Setúbal) mantiveram uma gestão autónoma.

Deste modo, em aproximadamente dois anos, passou-se de cerca de 200 entidades de gestão – grande

parte constituídas por autarquias isoladas ou agrupadas, com enormes carências técnicas e financeiras – para ape-

nas 44, todas de cariz empresarial, se se excluírem os quatro municípios que continuaram com gestão individual.

Em 1997, dos 39 sistemas de gestão empresarial, 11 eram multimunicipais, com participação estatal, e os restantes

eram sistemas intermunicipais, formados por associações de municípios. Nos anos seguintes, surgiriam diversos

rearranjos territoriais.

Em 1999, dois anos após a aprovação do PERSU, o número de sistemas de gestão já fora reduzido para 32,

sendo 11 sistemas multimunicipais com participação estatal, 20 sistemas detidos por associações de municípios e

apenas um sistema municipal (Mafra, pois só em 2001 entraria na AMTRES). Ao longo da primeira década do sé-

culo XXI, muitos sistemas geridos por associações de municípios integraram participações da EGF, adotando o mo-

delo de empresas multimunicipais ou transformando-se em empresas intermunicipais, de capitais exclusivamente

autárquicos. Nalguns casos, houve também entrada de empresas privadas em sistemas intermunicipais e proces-

sos de fusão em sistemas multimunicipais.

Assim, atualmente há apenas 23 entidades gestoras de resíduos sólidos urbanos, das quais 12 são empresas

multimunicipais, cinco são associações de municípios e outras seis são empresas intermunicipais, três delas com

capitais privados. Nalguns destes casos, a gestão operacional das infraestruturas foi entregue a empresas conces-

sionárias. Nesta altura, também se generalizou a concessão a empresas privadas ou municipais dos serviços de re-

colha de resíduos e de limpeza urbana.

Um plano ambicioso

O modelo empresarial adotado pelo Ministério do Ambiente para este setor – que seria semelhante ao que

se aplicaria para o abastecimento de água em alta e, em diversas regiões, para o tratamento de esgotos urbanos –

teve sobretudo em conta questões de eficiência e eficácia face à necessidade de se implementar o novo e desejado

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73 | A limpeza da casa

paradigma de gestão. Em causa já não estava apenas a recolha de lixo e encaminhá-lo para um qualquer local, para

o confinar num aterro sanitário ou queimá-lo numa central de incineração, mesmo que em condições ambiental-

mente seguras. Na verdade, aquilo que se pretendeu com o PERSU foi estabelecer uma metodologia operativa que

internalizasse e combatesse as disfunções decorrentes da produção de resíduos. Nesse âmbito, seguindo as orien-

tações e os compromissos estabelecidos no seio da União Europeia, considerou-se fundamental que os novos tec-

nossistemas, dentro de uma lógica hierarquizada, apostassem na prevenção, no tratamento e na reciclagem, através

de gestão e exploração criteriosas das diversas infraestruturas.

No caso da prevenção, o PERSU preconizava uma aposta em medidas que visassem a supressão, a elimi-

nação ou a redução de produtos que, pelas suas caraterísticas, pudessem aumentar a quantidade de resíduos ou

constituíssem, sem qualquer vantagem, um risco ambiental ou para a saúde pública ou mesmo um desperdício de

recursos económicos. Nessa linha, incentivou-se não apenas a participação ativa das populações e dos diversos or-

ganismos públicos, mas sobretudo das empresas manufaturadoras e distribuidoras de bens e produtos de consumo,

no sentido de reduzir o peso e a perigosidade dos bens de consumo que resultassem em resíduos. Numa outra linha,

o Ministério do Ambiente pretendia promover a reutilização de embalagens, sobretudo de bebidas, que se encon-

trava em franco declínio.

Numa mesma linha de prioridades, impôs-se, de acordo com o modelo empresarial adotado, a melhoria

significativa das condições de deposição «em infra-estruturas adequadas, evoluindo de aterros para estações de

confinamento, com erradicação das lixeiras a curto prazo». Porém, até por exigências comunitárias que já se sentiam

– e que viriam a ser, mais tarde, reforçadas com metas concretas –, o Ministério do Ambiente pretendia reduzir ao

máximo a deposição em aterro, sobretudo de resíduos biodegradáveis, privilegiando outras soluções.

Sancionando as decisões que já vinham no anterior governo para a queima de resíduos urbanos nas áreas de

influência da Valorsul e da Lipor, neste plano estratégico considerava-se, todavia, que a capacidade de incineração

deveria ser apenas «disponibilizada no apoio e na complementarização da capacidade de confinamento existente e a

estabelecer num futuro próximo». Contudo, admitia ser «do maior interesse procurar soluções válidas de aumento

da capacidade de incineração, no sentido de contribuir para a limpeza geral do País, mediante o uso de equipamen-

tos industriais alternativos». Ou seja, embora considerasse a incineração indispensável numa primeira fase, os au-

tores do PERSU sustentavam que não se antevia a necessidade de qualquer aumento da capacidade além do que

estava oficialmente comprometido nas duas grandes áreas metropolitanas. Apesar disso, na última década houve

intenções de construir uma central de incineração na região do litoral centro, na área da Ersuc, bem como implantar

uma quarta linha na central da Valorusl, de modo a receber os resíduos dos municípios da Amtres. A contestação

das populações e das associações ambientalistas acabou por levar o Ministério do Ambiente a não permitir o avanço

desses projetos. No entanto, uma parte dos resíduos da Amtres já são incinerados na central de São João da Talha, e

a recente integração da Resioeste na Valorusl, cuja atual capacidade de incineração é de cerca de 600 000 toneladas

– valor que nunca foi atingido por razões técnicas –, culminará previsivelmente numa expansão, isto é, na constru-

ção de uma quarta linha.

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74 | Resíduos: uma Oportunidade

Em todo o caso, o plano estratégico colocou a prioridade no incentivo à adoção de tecnologias de tratamento

para a componente orgânica, mas sem esquecer os graves problemas das unidades de compostagem já existen-

tes. Assim, uma vez que os autores do PERSU diziam ser impensável repetir os erros do passado, recomendaram

a adoção de especiais cuidados na apreciação dos novos projetos, privilegiando a digestão anaeróbia, bem como a

adequada recolha seletiva e triagem, de modo a evitar contaminações indesejáveis com implicações na qualidade

do produto final. Advogaram, por outro lado, a proliferação de pequenos projetos de compostagem em meio rural e

em zonas urbanas, sobretudo em bairros de vivendas com espaços verdes adjacentes.

Paralelamente, outra das grandes apostas do Ministério do Ambiente foi direcionada para a reciclagem mul-

timaterial, procurando incentivar, em articulação com as autarquias e os sistemas multimunicipais e intermunicipais,

as operações de recolha seletiva e triagem de diversos fluxos de resíduos, de modo a se cumprirem diversas exigên-

cias comunitárias e desviar dos aterros uma parte considerável de resíduos com potencial económico22.

Quadro 13 – Metas quantificadas estratégicas para os anos 2000 e 2005

1995 2000 (projeção) 2005 (projeção)

Elemento de gestão Quantidade (1000 ton) % Quantidade (1000 ton) % Quantidade (1000 ton) %

Redução 0 0,0 100 2,5 225 5,0

Compostagem 299 9,0 580 15,0 1123 25,0

Reciclagem 133 4,0 580 15,0 1123 25,0

Incineração 0 0,0 1000 26,0 1000 22,0

ECTRU 0 0,0 194 5,0 450 10,0

Aterro 471 14,0 1416 36,5 569 13,0

Vazadouro 2437 73,0 0 0,0 0 0,0

Valorização 432 13,0 2260 58,5 3471 77,0

Confinamento 2908 87,0 1610 41,5 1019 23,0

Total geral 3340 - 3870 - 4490 -

Fonte: PERSU (1997).

Definidas as grandes orientações e modelos de gestão, estabeleceu-se também, de forma bastante clara,

metas a alcançar a curto prazo (ano 2000), a médio prazo (2005) e a longo prazo (2010) relativamente ao destino dos

resíduos, embora somente com caráter quantitativo para os dois primeiros períodos.

Assim, para o ano 2000 colocou-se como objetivo, na componente de prevenção, a redução de 2,5% na pro-

dução de resíduos sólidos urbanos, o que representava um decréscimo global da ordem das 100 000 toneladas. Em

relação ao destino final, estabeleceu-se que 26% do total de resíduos (um milhão de toneladas) seriam valorizados

22 Esta parte será mais bem desenvolvida no capítulo «Na senda da integração».

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75 | A limpeza da casa

nas centrais de incineração da Valorsul e da Lipor, 41,5% (1,6 milhões de toneladas) seriam depositados no solo, uma

parte dos quais em novas Estações de Confinamento Técnico de Resíduos Urbanos (ECTRU) – ou seja, em aterros

controlados já construídos ou a construir, associados a unidades de triagem e valorização orgânica. Em termos de

reciclagem, o PERSU determinou que, no mesmo ano, deveriam ser encaminhados 15% do total de resíduos para

estações de compostagem e de digestão anaeróbica, enquanto a reciclagem multimaterial deveria atingir também

os 15%. Tudo isto enquanto se procedesse ao encerramento da totalidade dos vazadouros.

Para o ano 2005, o PERSU estabeleceu, como metas fundamentais, a redução da ordem dos 5% (menos

225 000 toneladas), devendo o recurso à incineração manter-se como tratamento para um milhão de toneladas

(22% do total, relativamente às estimativas da produção em Portugal continental), enquanto a deposição no solo

deveria ser o destino de 23%, quer em ECTRU (10%) quer em aterros sanitários (13%). Para a reciclagem aponta-

vam-se metas extremamente ambiciosas: metade (2,245 milhões de toneladas) dos resíduos sólidos urbanos de-

veria ser reciclada, repartida em partes iguais pela reciclagem orgânica e pela reciclagem multimaterial.

Porém, para os autores do PERSU, tendo em conta que se partia de um cenário muito desfavorável, estes

objetivos deveriam ser vistos como uma orientação, pois, como salientavam, «o mais importante num país, como o

nosso, que nunca teve metas com que se orientar» era «preparar um bom tableau de bord e segui-lo com a maior

atenção, modificando o que se revelar imperfeito ou viciado de erro de perspectiva».

Para a execução desta estratégia global e integrada, o Ministério do Ambiente conseguiu que o próprio go-

verno assumisse esta tarefa como uma das prioridades do país, sendo canalizados todos os esforços políticos para

a obtenção de apoios comunitários. Assim aquando da aprovação deste plano estratégico em 1997, estimou-se ser

necessário um investimento de cerca de 817,5 milhões de euros até ao fim da década de 90, aproveitando os recur-

sos financeiros da União Europeia, nomeadamente do Fundo de Coesão (72,8% do total), do Programa Operacio-

nal do Ambiente (12,4%) e dos diversos Programas Operacionais Regionais (14,8%). Para a erradicação das lixeiras o

custo global estimado situou-se na ordem dos 97,5 milhões de euros, para a execução das novas infraestruturas em

cerca de 606 milhões de euros e para o setor da reciclagem e recolha seletiva em aproximadamente 114 milhões de

euros. Na componente das novas infraestruturas, cerca de 322 milhões de euros destinavam-se à construção das

centrais de incineração da Lipor e da Valorsul e o restante dirigia-se aos novos aterros, que deveriam ser executados

de modo a reservar espaço suficiente para, mais tarde, se instalarem unidades de valorização orgânica.

A difícil recuperação da confiança

Para o sucesso desta nova política, o Ministério do Ambiente deu um enfoque especial às ações de educação

ambiental. O objetivo era não só incutir princípios fundamentais para se atingirem as metas previstas no PERSU – que

seriam inalcançáveis sem uma alteração dos hábitos quotidianos dos cidadãos –, mas sobretudo recuperar a confian-

ça das populações, em especial das que, durante décadas, tinham sido martirizadas pela convivência com vazadouros.

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76 | Resíduos: uma Oportunidade

Enquanto ainda decorria o processo de elaboração do plano estratégico e se criava o novo modelo de gestão

empresarial, o Ministério do Ambiente anunciou logo publicamente um programa faseado de erradicação de lixeiras,

dando prioridade a 33 vazadouros a serem encerrados num curto prazo. Este faseamento devia-se a uma razão óbvia:

não havia, de imediato, alternativas adequadas para receber os resíduos que eram encaminhados para esses locais.

Além disso, como o Ministério do Ambiente não pretendia o mero abandono da deposição, mas sim a reabilitação e a

minimização ambiental, com enquadramento paisagístico, tornava-se necessário a elaboração e a execução de pro-

jetos de engenharia específicos. Embora grande parte das lixeiras estivesse localizada em zonas de cariz mais urbano,

as que se situavam em áreas mais urbanas tiveram de merecer intervenções especiais, permitindo a reabilitação das

áreas dos vazadouros para fins nobres, como espaços verdes e de uso recreativo.

Contudo, neste período, encontravam-se também em fase de implementação as estratégicas para os resíduos

industriais e hospitalares. Em 1996, o governo decidira abandonar o projeto de construção de uma central de incineração

em Estarreja para a queima de resíduos perigosos, prevista pelo anterior executivo, substituindo a solução pela coincine-

ração em cimenteiras. O processo causaria enorme polémica, que se arrastaria por mais de uma década. Atualmente,

parte dos resíduos perigosos são efetivamente eliminados nas cimenteiras de Outão e Souselas, mas em quantidades

muito menores do que inicialmente previsto, uma vez que se adotaram outras soluções nomeadamente a reciclagem de

óleos usados e o tratamento em Centros Integrados de Recuperação, Valorização e Eliminação de Resíduos (CIRVER).

Também por isso, apesar das diversas tentativas do governo em demonstrar que as novas infraestruturas a

construir para os resíduos urbanos jamais degenerariam em vazadouros, a aceitação por parte das populações não

viria a ser fácil. Nada que os próprios autores do PERSU não tivessem previsto, uma vez que alertaram ser «muito

complicado prosseguir uma gestão de resíduos sem um prévio restabelecimento da confiança neste preciso ponto

dos [novos] tecnossistemas».

De facto, além do típico fenómeno social de repulsa popular em relação a determinadas infraestruturas com

impacto ambiental, próximas das suas casas – o chamado efeito NIMBY23 –, havia o risco de os casos polémicos se

poderem generalizar, culminando num efeito BANANA24. E se isso sucedesse em larga escala, poderia estar em

causa a rápida execução das medidas e os objetivos temporais do PERSU.

Em abono da verdade, este tipo de reações não se poderia considerar descabido, nem tão-pouco fruto de

falta de conhecimento ou esclarecimento das populações. Efetivamente, a culpa era do passado e o passado fora

feito com base no somatório do desleixo e da negligência do estado e das autarquias. Durante as décadas anterio-

res, simples vazadouros ou vazadouros controlados eram considerados em muitos casos pelas entidades públicas

como aterros sanitários. Portanto, quando o Ministério do Ambiente anunciou a construção de novas infraestrutu-

ras de tratamento, mesmo garantindo que seriam diferentes das anteriores, as populações desconfiaram e tiveram

23 Acrónimo de not in my back yard; não no meu quintal, em português.24 Acrónimo de build absolutely nothing anywhere near anything; não construir absolutamente nada em nenhum lado próximo de sítio

nenhum, em português.

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77 | A limpeza da casa

mormente atitudes de repulsa, ao estilo do «gato escaldado». Na verdade, com o PERSU tentou criar-se uma

terminologia específica para os novos aterros sanitários: Estações de Confinamento Técnico de Resíduos Urbanos

(ECTRU). Contudo, sendo certo que em termos técnicos há diferenças entre uma ECTRU e um simples aterro sa-

nitário, esta distinção jamais foi interiorizada pela população e até pelos jornalistas. Atualmente, por regra, essa ter-

minologia já nem sequer é usada pelas entidades oficiais.

Neste cenário, ao longo dos anos, foram-se sucedendo diversos focos de polémica, como já tinha ocorrido an-

teriormente com as centrais de incineração da Valorsul e da Lipor, e com a estação de compostagem do Vale do Ave.

No caso das centrais de incineração, a contestação foi sobretudo dinamizada pela Quercus, que considerava estar pe-

rante uma solução que colocaria em risco as políticas de reciclagem e que representava um risco elevado de poluição

atmosférica. No caso da estação de compostagem de Riba d’Ave, a contestação foi de origem popular, iniciando-se

antes da construção, mas intensificando-se ainda mais após a inauguração, devido aos problemas de odores.

Apesar dos evidentes indícios de que qualquer que fosse a atitude do governo e dos sistemas de gestão o pro-

cesso de construção das novas infraestruturas se tornaria invariavelmente conflituoso, certo é que se optou, muitas

vezes, por métodos ao arrepio das regras democráticas de transparência e participação pública. De facto, com o ar-

gumento de ser necessário avançar rapidamente para maximizar os financiamentos da União Europeia, o Ministé-

rio do Ambiente selecionou os locais quase só auscultando as câmaras municipais. Recentemente, um estudo do

Instituto de Ciências Sociais de Lisboa e da Universidade do Minho, ao referir-se especificamente ao caso do aterro

sanitário de Taveiro – que substituiria um vazadouro implantado naquela zona –, salientava que, neste processo, foi

até «negado [aos cidadãos] o acesso a documentos públicos, nomeadamente o relatório do estudo de impacto am-

biental realizado e que não havia sido alvo de discussão pública».

Similares polémicas surgiram, com forte controvérsia, em Bigorne (Lamego), São Pedro da Torre (Valença) e

Vilar (Cadaval), tendo mesmo envolvido processos judiciais. No caso do aterro em Valença, da responsabilidade da

Valorminho, chegou até a ser decretado, em 2004, o seu encerramento pelo Supremo Tribunal Administrativo, dan-

do provimento à queixa formal da Junta de Freguesia de São Pedro da Torre, que acusava o Ministério do Ambiente

de não ter realizado um inquérito público antes do avanço das obras. No entanto, esta decisão judicial acabou por

ficar sem efeito: uma vez que o acórdão apenas saiu em 2004, quando o aterro já funcionava há cerca de seis anos,

concluiu-se que os custos de reposição da situação seriam demasiado elevados. Assim, em 2010, o Tribunal Central

Administrativo do Norte decretou que, em alternativa, a Valorminho deveria acordar o pagamento de uma indem-

nização à junta de freguesia, «devida pelo facto de ocorrer inexecução» do acórdão de 2004.

O fim das lixeiras

Conflitos à parte, certo é que esta estratégia do Ministério do Ambiente acabou, com maiores ou menores

dificuldades, por se concretizar no terreno a um ritmo e a uma eficácia sem paralelo noutras áreas ambientais, so-

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78 | Resíduos: uma Oportunidade

bretudo em comparação com outros subsetores do saneamento básico. Com efeito, o cenário de partida, em 1996,

exigia um esforço colossal: em Portugal havia 341 lixeiras, que teriam de ser encerradas, mas as alternativas ainda

escasseavam, visto que apenas estavam em funcionamento 13 aterros sanitários – alguns dos quais com graves

deficiências –, cinco unidades de valorização orgânica – uma das quais, a de Beirolas, com o encerramento previsto

para o ano seguinte –, uma estação de transferência e uma central de triagem. No ano 2000, embora se registasse

um ligeiro atraso no encerramento das lixeiras – continuavam em funcionamento 36, tendo a última sido fechada

em 2002 –, verificava-se já uma mudança radical. Com as entidades gestoras em franco processo de consolidação,

Portugal detinha, no fim desse ano, 34 aterros sanitários e uma central de incineração – a da Valorsul, estando em

conclusão a da Lipor, que seria inaugurada em 2001 – e cinco unidades de valorização orgânica, para além de 41 esta-

ções de transferência e 14 estações de triagem. A evolução deste tipo de infraestruturas continuaria. No fim do perí-

odo previsto para a implantação do PERSU, em 2005, o país era servido por 37 aterros – entretanto, alguns dos mais

antigos tinham sido encerrados –, três centrais de incineração, sete unidades de valorização orgânica, bem como 73

estações de transferência e 25 estações de triagem. Estes números incluem já os territórios insulares. Na Madeira

existia uma central de incineração, uma unidade de valorização orgânica, dois aterros sanitários, quatro estações de

transferência e duas de triagem, e nos Açores contabilizavam-se cinco aterros, uma unidade de valorização orgânica

e uma estação de triagem.

Nos anos seguintes, o cenário ainda se tornou mais favorável, sobretudo pelo reforço na valorização orgânica,

com a introdução de novas tecnologias, como o tratamento mecânico e biológico que permitiu não apenas melhorar

as taxas de aproveitamento de resíduos recicláveis mas também diminuir a deposição de materiais fermentáveis em

aterro. No fim de 2010, havia então 41 aterros em exploração – estando mais um em obra e oito previstos –, três cen-

trais de incineração e 14 unidades de valorização orgânica, prevendo-se a entrada em funcionamento de mais 15, das

quais 10 estavam já em obra. Em complemento, havia 91 estações de transferência e 33 estações de triagem, tendo

em perspetiva a construção de mais quatro.

Apesar desta evolução na implantação das novas infraestruturas, assente numa autêntica revolução es-

trutural e institucional, nem todas as metas prometidas no PERSU foram integralmente cumpridas em 2005.

Com efeito, se as lixeiras passaram a ser apenas uma triste recordação de um caótico passado – que, pelo seu

número, talvez se julgasse quase impossível de erradicação em tão curto espaço de tempo –, a valorização orgâ-

nica não atingiu, naquele ano, os valores previstos. De facto, em 2005, apenas 7% dos resíduos foram encami-

nhados para a produção de composto orgânico, muito abaixo dos 25% previstos pelo PERSU, devido sobretudo

aos atrasos nos projetos para a construção de unidades de valorização. Em 2005 apenas estavam em funciona-

mento as unidades de Riba d’Ave (AMAVE, com capacidade para 131,4 mil toneladas), de Alcaria (Associação

de Municípios da Cova da Beira, 50 000 toneladas), Trajouce (AMTRES, 150 000 toneladas), Quinta da Caiada

(Amarsul / Setúbal, 50 000 toneladas), Porto de Lagos-Portimão (Algar, 5000 toneladas), Fonte Sagrada-Tavira

(Algar, 5000 toneladas), Baguim do Monte-Gondomar (Lipor, 60 000 toneladas) e Mina-Amadora (Valorsul,

40 000 toneladas).

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79 | A limpeza da casa

Em resultado disso, os aterros sanitários acabaram por receber uma maior quantidade de resíduos do que

inicialmente previsto: em vez de apenas 23% do total da produção nacional, conforme definido no PERSU para o

ano 2005, absorveram 63%. Devido à maior procura dos aterros de resíduos urbanos – que, por falta de alternativas,

passaram a ser o destino de uma parte significativa de resíduos industriais banais –, algumas destas infraestruturas

viram encurtado o seu tempo de vida útil estimado em projeto. Em 2005, dos 33 aterros existentes, três já apresen-

tavam uma situação de quase saturação e seis encontravam-se com uma capacidade disponível para apenas um

período de dois a quatro anos, o que obrigaria a ampliações ou a procura de novas localizações.

Esta situação deveu-se, em grande parte, ao incumprimento das metas para a prevenção, dado que, ao invés

de uma redução, se manteve um acréscimo na produção de resíduos durante o prazo de vigência do PERSU. Em

2005, de acordo com dados oficiais, tinham sido recolhidas 4,47 milhões de toneladas de resíduos urbanos, dos quais

4,07 milhões de toneladas correspondiam à recolha indiferenciada, 385 000 toneladas à recolha seletiva multima-

terial e 19 000 toneladas à recolha seletiva de resíduos biodegradáveis.

Os novos desafios

Embora alguns objetivos não tenham sido concretizados, quando o Ministério do Ambiente procedeu à ava-

liação da sua estratégia em 2007 e definiu novas orientações – através do denominado PERSU II –, o panorama dos

resíduos sólidos urbanos poderia considerar-se quase idílico, se comparado com o caos vivido na primeira metade

dos anos 90. Não apenas estavam já encerradas as lixeiras, como o país estava equipado com infraestruturas bási-

cas que garantiam, pelo menos, a redução substancial dos impactos ambientais e a pacificação popular em relação

aos sistemas de tratamento de resíduos. Por outro lado, ao longo dos anos, o quadro normativo e legal no setor am-

biental, em geral, e na área dos resíduos, em particular, evoluíra bastante, possibilitando um aumento das expecta-

tivas em termos de cumprimento das novas e cada vez mais exigentes diretivas comunitárias.

De facto, ainda antes de Portugal estar na fase de erradicação das lixeiras, a União Europeia intensificara as

exigências no setor dos resíduos. Embora desde os anos 70 tivessem sido aprovadas diversas orientações e normas

para o setor dos resíduos, foi sobretudo a partir do fim da década de 90 que a Comissão Europeia foi estabelecendo

uma filosofia de intervenção mais moderna e integrada, sobretudo através da Estratégia Comunitária para a Gestão

de Resíduos, consagrada por Resolução do Conselho em fevereiro de 1997, e do 6.º Programa Comunitário de Ação

em Matéria de Ambiente, aprovado em julho de 2002.

Pela primeira vez, o setor deixara assim de ser visto de forma parcelar, passando os resíduos a serem consi-

derados parte do ciclo socioeconómico dos materiais, devendo-se, nessa perspetiva, integrar a sua gestão de forma

globalizante, não apenas para evitar problemas ambientais mas sobretudo para melhorar a eficiência energética e a

utilização de recursos económicos. Nesse contexto, à visão simplista de eliminar os resíduos, evoluiu-se para uma

postura de cariz económico e ecológico, isto é, para uma gestão integrada.

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80 | Resíduos: uma Oportunidade

Nesta linha, a nova diretiva-quadro em matéria de resíduos25 viria a reforçar as prioridades da prevenção, intro-

duzindo uma abordagem ao nível de todo o ciclo de vida dos produtos e dos materiais – e não apenas à fase de produ-

ção de resíduos. Significava isto que a prioridade não deveria estar na eliminação ou deposição no solo, mas sim na im-

plementação de medidas de minimização do impacto ambiental, complementadas com intervenções de valorização

económica dos diferentes fluxos específicos, como os resíduos de construção e demolição, as lamas de depuração, os

resíduos biodegradáveis, as embalagens, as pilhas e os acumuladores, entre outros.

Em certa medida, esta integração estava já prevista nas orientações emanadas em 1999 pela denominada diretiva

Aterros26, que estabeleceu que o confinamento no solo passasse a ser visto como uma solução de fim de linha, cada vez

menos utilizada. Transposta para o direito nacional em 2002, esta diretiva colocava a utilização dos aterros na última po-

sição de uma hierarquia sequencial, surgindo, em primeiro lugar, a prevenção, depois a reciclagem e a seguir a valorização

orgânica e material, e a valorização energética. Com o intuito de concretizar, em Portugal, esta nova filosofia de gestão,

em julho de 2003 o governo aprovaria a Estratégia Nacional de Redução dos Resíduos Urbanos Biodegradáveis desti-

nados aos Aterros (ENRRUBA) que, em harmonia com as exigências comunitárias, determinaria, para o ano 2006, ser

apenas admissível depositar em aterro um máximo de 75% dos resíduos urbanos biodegradáveis (RUB), valor que teria

de diminuir para 50% em 2009 e ser inferior a 35% em 2016. Estas percentagens tinham 1995 como ano de referência.

Pouco tempo depois, em finais de 2005, através de um despacho do Ministério do Ambiente, seria aprova-

do o Plano de Intervenção para Resíduos Sólidos Urbanos e Equiparados (PIRSUE), que impôs, entre outros aspetos

– como a separação/valorização na origem de resíduos urbanos e de resíduos equiparados a urbanos e a valorização

multimaterial, orgânica e energética27 –, um conjunto de medidas a aplicar pelos diversos sistemas de gestão, de modo

a preparar Portugal no sentido do cumprimento das diversas normas comunitárias neste setor. Assim, embora tives-

se deixado de haver diferenciação nos requisitos técnicos de construção e gestão, o Ministério do Ambiente anulou, ou

condicionou, as autorizações concedidas para a receção de resíduos não perigosos de origem industrial (RIB) em gran-

de parte dos aterros de resíduos urbanos, de modo a aumentar-lhes o tempo de vida útil.

A anulação das autorizações, concedidas em 2002, foi determinada para os aterros que, em dezembro de

2004, tivessem menos de quatro anos de vida útil, ou que, no ano anterior, tivessem recebido RIB numa percenta-

gem superior a 10% em relação ao total de resíduos aí depositados. Paralelamente, foram objeto de limitações as au-

torizações concedidas para a receção de RIB nos aterros com uma vida útil superior a quatro anos, a partir de dezem-

bro de 2004, mas que tivessem recebido mais de 10% de RIB em relação ao total depositado, aplicando-se também

outros condicionalismos nos aterros com uma vida útil entre dois e quatro anos, independentemente da quantidade

de RIB aí depositados naquele ano. A acrescentar a isso, ficou ainda interdita a receção e a deposição em todos os

aterros de resíduos biodegradáveis provenientes de recolha seletiva ou sujeitos a tratamento mecânico. Mesmo a re-

25 Diretiva n.º 2008/98/CE de 19 de novembro.26 Diretiva n.º 1999/31/CE do Conselho, de 26 de abril, que foi transposta para o direito nacional pelo Decreto-Lei n.º 152/2002 de 23 de

maio.27 Estes aspetos serão aprofundados no capítulo «Na senda da integração».

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81 | A limpeza da casa

ceção de resíduos provenientes de escritórios, instalações sociais de empresas, cantinas, restaurantes, hotéis, super-

mercados, grandes superfícies comerciais e mercados abastecedores do comércio, somente passou a ser autorizada

se fossem sujeitos a prévia separação e/ou triagem, de modo a otimizar o potencial de reciclagem.

Além disso, tendo em consideração a necessidade de encontrar alternativas para os RIB que estavam a ser

depositados em aterros de resíduos urbanos, o Ministério do Ambiente colocou a hipótese de serem construídas

células independentes para esse fim, desde que não houvesse limitações de espaço, de modo a encontrar sinergias

e economia de recursos. Aquando da aprovação do PIRSUE identificaram-se cerca de duas dezenas de aterros sa-

nitários com essa possibilidade de ampliação.

Para maximizar ainda mais a capacidade de deposição, o Ministério do Ambiente determinou ainda uma ava-

liação aos antigos aterros, ou células entretanto encerradas, no sentido de otimizar e aumentar as suas capacidades

de encaixe. Foi mesmo levantada a hipótese de, se possível, efetuar uma triagem e eventual recuperação de algumas

frações de resíduos potencialmente valorizáveis, permitindo assim não só a sua valorização como um aumento da

vida útil desses aterros.

Paralelamente, para incentivar, ou penalizar, as diversas entidades gestoras em direção às metas impostas

pela União Europeia, o Ministério do Ambiente passou a impor, desde 2007, uma tarifa especial: a taxa de gestão

de resíduos. De periodicidade anual, esta taxa incide, com montantes diferenciados, sobre a quantidade de resíduos

depositados em aterro ou eliminados por incineração, com um agravamento de 50% para os casos de resíduos reci-

cláveis, bem como sobre a quantidade de resíduos urbanos que, contrariando a taxa de recolha fixada na licença das

entidades gestoras, não forem encaminhados para reutilização, reciclagem ou valorização. Estes montantes, além

de desincentivarem a deposição em aterro – e servirem para suportar as despesas da Agência Portuguesa do Am-

biente, como Autoridade Nacional dos Resíduos – têm também como objetivo o financiamento de programas que

visem o cumprimento das metas nacionais em matéria de gestão de resíduos. Ou seja, podem acabar por ser utili-

zados, em certa medida, pelas diferentes entidades gestoras.

Certo é que, apesar de um significativo esforço financeiro – entre 1993 e 2009 registou-se um investimento

de cerca de 1,5 mil milhões de euros em sistemas de gestão de resíduos urbanos, dos quais 67% através de fundos

comunitários –, Portugal ainda tem um longo caminho a percorrer no sentido de alcançar as metas preconizadas

pelo PERSU II e simultaneamente satisfazer e manter o cumprimento de algumas das exigências comunitárias.

De facto, apesar dos esforços na prevenção – destacando-se, neste âmbito, a recente aprovação do Programa

de Prevenção de Resíduos Urbanos –, a produção de resíduos sólidos urbanos tem mantido uma tendência cres-

cente, atingindo 5,4 milhões de toneladas em 2009. Ou seja, uma quantidade em cerca de 360 000 toneladas acima

das metas definidas para esse ano pelo PERSU II, algo que mostra ser cada vez mais difícil, embora não impossível,

o cumprimento da meta estabelecida para o ano 2016, ou seja, uma produção de 4,937 milhões de toneladas.

Em todo o caso, desde 2005 já se registaram dois anos (2007 e 2009) com o crescimento da produção de RSU

inferior ao previsto pelo PERSU II. E no ano de 2011 verificou-se mesmo uma redução na ordem dos 4% comparativa-

mente ao ano anterior, embora em parte devido à diminuição do consumo decorrente da crise económica portuguesa.

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83 | A limpeza da casa

Todavia, o crescimento registado em 2008 (7% em relação ao ano anterior) foi muito superior ao que estava previsto

pelo PERSU II (1,3%). Note-se que, em virtude da gestão ter passado para a esfera multimunicipal e intermunicipal,

não é possível desagregar com rigor as quantidades totais de resíduos produzidos por concelho. No entanto, mantém-

-se o padrão regional já observado nas últimas décadas, ou seja, a concentração das produções de resíduos urbanos

nas duas grandes áreas metropolitanas de Lisboa (AML) e Porto (AMP). Com efeito, os cinco sistemas que geriram

mais resíduos – Lipor, Suldouro, Valorsul, Amarsul e Tratolixo – integram estas duas zonas administrativas.

Contudo mais preocupante ainda acaba por ser o destino final. Em 2009, de acordo com a avaliação ao PER-

SU II, a deposição nos 34 aterros existentes continuava a ser o destino preferencial, tendo sido aí depositados 63% da

produção total de resíduos urbanos, seguindo-se a valorização energética nas centrais de incineração (20%) e, por

fim, a valorização orgânica (9%) e multimaterial (8%). Em grande parte este desempenho insatisfatório deveu-se

aos atrasos na aposta da valorização orgânica, uma vez que em 2009, em Portugal continental, estavam em opera-

ção apenas nove unidades de compostagem, das quais duas de compostagem de verdes, embora esteja prevista a

instalação de 15, incluindo três unidades de compostagem de verdes.

Porém, nos últimos anos tem-se registado progressos assinaláveis no caso da recolha seletiva de resíduos

orgânicos, embora ainda insuficientes, sendo de destacar o projeto Operação Restaurante 5 Estrelas na área de in-

fluência da Lipor, que abrange cerca de 1400 estabelecimentos de restauração. Em 2010 foram encaminhadas para

compostagem cerca de 15 000 toneladas. Em Lisboa, a recolha seletiva de resíduos orgânicos atingiu as 19 297 to-

neladas. A distribuição de pequenas unidades de compostagem (compostores) para vivendas ou prédios com logra-

douros apresenta ainda uma dimensão bastante reduzida. Em todo o caso, no sistema da Lipor já foram entregues

cerca de cinco mil compostores.

Em suma, mesmo se a reciclagem multimaterial tem estado a registar progressos muito assinaláveis28, certo

é que Portugal se encontra ainda distante dos objetivos da diretiva Aterros, tendo-se visto obrigado à recalendariza-

ção das metas a pedido da Comissão Europeia. A derrogação, que já foi autorizada – os prazos inicialmente estabe-

lecidos (2009 e 2016) passaram, respetivamente, para os anos 2013 e 2020 –, constitui uma folga temporal, mas não

pode servir de travão a um percurso que não tem apenas vantagens ambientais. Terá, sim, caso se cumpram estas

exigências comunitárias, inegáveis benefícios económicos.

28 Este aspeto será abordado de forma mais detalhada no capítulo seguinte, «Na senda da integração».

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Na Senda da Integração

Na natureza, postulou o francês Antoine Lavoisier no século XVIII, nada se cria, nada se perde, tudo se transfor-

ma. Séculos antes, Luís Vaz de Camões, embora referindo-se mais à natureza humana, escrevia que «todo o mundo é

composto de mudança, tomando sempre novas qualidades». Misturando as palavras de Lavoisier com as do poeta de

Os Lusíadas, dir-se-ia que a natureza humana nada cria, apenas usa os recursos da natureza, e que a sociedade de-

terminará depois se estes, tomando novas qualidades sob a forma de produtos, se transformam em resíduos, infligindo

estragos à natureza, ou se, mudando-os, os reaproveita como matérias-primas para nada se perder.

Durante milénios, como se sabe, as sociedades não tinham capacidade tecnológica para explorar os recursos

naturais de forma intensiva, nem a população humana atingia os números avassaladores das últimas décadas. Não

havendo uma utilização intensiva dos recursos naturais, os resíduos resultantes da cadeia de produção e consumo,

mesmo sendo devolvidos à natureza, não representavam, a não ser localmente, relevantes impactos negativos.

Mesmo nessa fase mais ancestral, o aproveitamento dos desperdícios domésticos constituiu uma prática

comum nas sociedades, não tanto por razões ambientais, mas mais de índole económica, sendo uma atividade de-

sempenhada quase sempre pelas faixas populacionais mais desfavorecidas, ou seja, o pobre recolhia e reaproveitava

o que o rico deitava fora.

Sobretudo no último século, com o surgimento de novos produtos decorrentes dos avanços tecnológicos,

com o crescimento demográfico – associado à densificação urbana – e ainda com o fenómeno da globalização das

trocas comerciais, a utilização e o consumo de recursos naturais e de energia aumentaram exponencialmente. As

sociedades, em termos gerais, passaram a consumir ainda mais do que aquilo que se produzia em seu redor. Em si-

multâneo, o aumento generalizado do poder de compra permitiu-lhes usufruir de bens cada vez mais diversifica-

dos e em maior quantidade. Este processo intensificar-se-ia ainda mais nas últimas décadas, um pouco por todo o

mundo, mas com relevância colossal nos países mais desenvolvidos.

Para se ter uma ideia deste progressivo crescimento do consumo, basta referir que, em Portugal, o uso de re-

cursos naturais extraídos da natureza para a produção de bens perecíveis e duráveis – que tem uma relação estreita

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86 | Resíduos: uma Oportunidade

com a produção final de resíduos29 – quase quadruplicou entre 1986 e 2007, passando de cerca de 50 milhões de

toneladas para 193 milhões, uma vez que uma parte considerável é proveniente do «consumo» de rochas industriais

para a indústria e construção, e de biomassa. Segundo dados do Eurostat, se se incluírem as importações, atingiram-

-se as 248 milhões de toneladas de resíduos, incluindo-se aqui decorrentes do uso de combustíveis fósseis. Esse

consumo, por si só, não releva tudo, porque uma parte desses recursos até é renovável, como a biomassa, mas in-

dicia que, mesmo havendo eficiências elevadas no uso dos recursos, a parte remanescente não utilizada – ou seja,

a poluição, em geral, e a produção de resíduos, em particular – atinge sempre quantidades absolutas elevadas. No

caso particular português, as estimativas do Eurostat referem que 67% (165 milhões de toneladas) dos recursos na-

turais extraídos e usados em 2007 acabaram por constituir acréscimos líquidos ao stock material – isto é, incorpora-

ram-se ou foram consumidos na totalidade pelo sistema económico –, enquanto 12,1% (30 milhões de toneladas)

resultaram em exportações de produtos, 0,4% (um milhão de toneladas) perderam-se por fluxos dissipativos, 8,5%

(21 milhões de toneladas) foram emitidos para a atmosfera – sob a forma de dióxido de carbono, água e poluentes

diversos – e 12,5% (31 milhões de toneladas) transformaram-se em resíduos urbanos e não urbanos.

Segundo a mesma avaliação, apenas cerca de metade dos resíduos (15,7 milhões de toneladas) teve depois

uma valorização não energética, ou seja, foram reempregues pelo sistema económico como novas matérias-pri-

mas. Donde se conclui que as ineficiências no uso dos recursos representam um grave problema económico e am-

biental, sobretudo pela sua dimensão quantitativa.

Num sistema perfeito, a extração dos recursos naturais deveria ser feita de um modo sustentável – ou seja,

sem pôr em causa os equilíbrios ambientais – e numa perspetiva de solidariedade intergeracional, devendo o con-

sumo de produtos conjugar essa oferta «possível», através de soluções tecnológicas limpas e de práticas adequa-

das, de maneira a reduzir ao máximo os desperdícios e a fomentar a reutilização e a reciclagem; ou seja, fechando

na perfeição o ciclo dos materiais. Mas, na prática, isto não é possível; portanto, aquilo que este «Metabolismo da

Economia» demonstra é sobretudo a importância de uma cuidada gestão dos recursos naturais e a necessidade de

implantação de medidas de minimização dos efeitos negativos, na própria economia e no ambiente, decorrentes do

uso e do consumo dos produtos, disponibilizados pelas atividades industriais, por parte das populações.

Prevenir antes de remediar

Num mundo perfeito não haveria resíduos nem desperdícios. Mas, para se alcançar essa utopia, seria exigí-

vel uma outra: não haver quaisquer atividades industriais nem aglomerados humanos; em suma, estaríamos num

29 Os bens não duráveis incluem os alimentos e as embalagens, enquanto nos bens duráveis estão englobados os edifícios, os veículos e os

equipamentos elétricos e eletrónicos. No primeiro caso, a produção de resíduos está diretamente relacionado com as vendas desses bens, devido

ao seu menor tempo médio de vida. Nos bens duráveis, a sua incorporação como resíduo já se torna mais diluída no tempo, dependendo muito da

economia a sua «saída».

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87 | Na senda da integração

mundo diferente daquele que hoje concebemos. A alimentação teria de se basear numa lógica recoletora e nem

seria possível qualquer tipo de transformação de matérias-primas que implicasse produção de resíduos ou outros

efluentes.

Partindo da impossibilidade desse paradigma, tornar-se-á sempre incontornável, ainda mais nas sociedades

modernas, a produção de resíduos. Porém, sendo certa essa inevitabilidade, a sua prevenção constitui um dos maio-

res desafios de qualquer sociedade, não apenas ambiental mas, em primeiro lugar, económico. Por princípio, produ-

zir um resíduo representará sempre, antes de mais, uma perda económica, principalmente para o consumidor final

mas, de igual modo, para a sociedade no seu todo, independentemente de este ser encaminhado para a reutilização

ou para a reciclagem. Este é um princípio geral que comporta, obviamente, exceções em casos específicos, sobre-

tudo quando estão em causa recursos renováveis. Por exemplo, a produção de papel a partir de pasta virgem prove-

niente de florestas geridas de forma sustentável – como aquelas que são certificadas pela FSC – Forest Stewardship

Council e pela PEFC – Programme for the Endorsement of Forest Certification – traz enormes vantagens em termos

ambientais. Pode sempre discutir-se se não bastaria limitar a exploração intensiva e pouco sustentável das florestas,

sabendo-se até que 71% da madeira para a produção mundial de papel provém de zonas com habitats importantes,

mas certo seria que, nalgumas regiões, surgiria um impacto negativo, económico e até ambiental, se, por hipótese

académica, a indústria deixasse de cortar árvores para a produção de papel.

Posto isto, não é assim por acaso que na hierarquia das prioridades no setor dos resíduos a redução está no

topo. Na verdade, para qualquer entidade gestora quanto menor a quantidade de resíduos, menos encargos haverá

nas operações de recolha, de triagem, de reciclagem e de tratamento. Contudo, um dos maiores obstáculos para se

conseguir resultados favoráveis numa política de redução – ou seja, uma diminuição da quantidade de resíduos pro-

duzidos – acaba por estar no próprio comportamento individual e coletivo das sociedades modernas.

Sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, o forte crescimento económico na generalidade dos países mais

desenvolvidos, aliado ao aumento populacional e ao incremento da população urbana, resultou em sociedades cada

vez mais consumistas. O acesso a bens e produtos é hoje incomensuravelmente superior ao que se registava há meio

século; e não tem parado de crescer a não ser em períodos conjunturais de crise financeira e económica. Desde o início

da década de 60 do século passado, o consumo per capita, em termos de calorias, aumentou mais de 30% nos países

desenvolvidos. Ao nível mundial, apenas entre 1990 e 2009, a produção e o consumo mundiais de petróleo aumentou

19,4%, de carvão 36%, de cimento 141,4%, de alumínio 91,7%, de cobre 76,5% e de estanho 13,7%. O consumo mun-

dial de plásticos passou de sete milhões de toneladas em 1960 para cerca de 200 milhões de toneladas em 2010. E

estima-se que o consumo de papel e pasta de papel ao nível mundial aumente 77% entre 1995 e 2020.

Numa lógica de mercado obviamente que estes crescimentos se justificaram, e justificam-se porque a oferta

de bens e produtos teve a correspondente procura, mesmo sendo esta, em parte, induzida pelo marketing.

Por um lado, a estrutura social alterou-se radicalmente nas últimas décadas, o que implicou a modificação dos

hábitos de consumo. Se, até há poucas décadas, os bens alimentares eram em geral adquiridos diariamente em mer-

cados, comprados a granel ou em embalagens reutilizáveis, hoje os consumidores – cada vez mais urbanos e «afasta-

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88 | Resíduos: uma Oportunidade

dos» dos centros produtores – preferem comodamente fazer as compras semanal ou mensalmente numa grande su-

perfície. Tanto mais que passaram a beneficiar de uma maior capacidade de armazenamento e de conservação de pro-

dutos nos seus lares, quer por via das embalagens quer pela generalização do uso de frigoríficos e arcas congeladoras.

Gráfico 2 – Evolução da capitação da produção de resíduos urbanos em Portugal, na União Europeia e na EFTA

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Fonte: Agência Europeia do Ambiente (2011)

Por outro lado, o aumento do poder de compra e o surgimento de novos produtos fabricados em larga escala

– e a preços mais atraentes –, implicaram um maior consumo e, a prazo, uma maior produção de resíduos. Basta ter

em conta a generalização dos aparelhos elétricos e eletrónicos ou dos diversos artigos do lar e de higiene, roupas e

têxteis, com a «agravante» de se ter perdido, nas décadas mais recentes, o hábito de recorrer a reparações ou con-

sertos, optando-se quase sempre por novas compras quando os produtos anteriormente adquiridos se avariam ou

apresentam alguma deficiência ou deterioração.

Todos estes fatores tiveram assim uma consequência óbvia: dificultaram sobremaneira quaisquer resultados

favoráveis no sentido da redução da quantidade de resíduos. Daí que não seja surpreendente que a generalidade dos

países desenvolvidos tenha registado, nas últimas décadas, um aumento significativo na capitação anual. No caso

português, esse incremento sucedeu sobretudo a partir dos anos 70, tendo continuado nas décadas seguintes. Ape-

nas no período compreendido entre 1995 e 2008 a produção de resíduos urbanos cresceu 24%, um valor bem supe-

rior à média da União Europeia, incluindo os novos estados-membros, que foi de apenas 9,7%.

Nas últimas décadas, para fazer face a estes crescimentos, a União Europeia estabeleceu, como princípio

basilar, a corresponsabilização das empresas que colocassem produtos no mercado, na gestão dos resíduos produ-

zidos pelos consumidores. Ou seja, em vez de serem as entidades municipais a assumirem quase em exclusivo a

gestão dos resíduos sólidos urbanos – e a imputarem os custos aos consumidores –, as empresas ou os importado-

res tinham de contribuir financeiramente para essa tarefa.

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89 | Na senda da integraçãoQ

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90 | Resíduos: uma Oportunidade

Esta nova filosofia, assente no célebre Princípio do Poluidor-Pagador, acabaria por inverter a estratégia que

norteou durante muitos anos a gestão de resíduos. Assim, ao invés de se manter uma intervenção centrada no es-

tabelecimento de locais de receção com vista ao seu tratamento e eliminação – colocando a resolução e os custos

inerentes apenas aos consumidores e às entidades de gestão de resíduos –, começaram a aplicar-se medidas que,

de forma indireta ou direta, obrigaram as empresas produtoras de bens e produtos, bem como embaladores e distri-

buidores, a promoverem medidas ativas em prol da redução, reutilização e reciclagem.

Embora a área da prevenção seja atualmente a prioridade máxima na política de resíduos, o seu sucesso de-

pende sempre de um vastíssimo conjunto de ações que exigem a participação ativa e transversal de todos os agen-

tes, das indústrias até ao consumidor final. Começam por medidas de planeamento ou pela aplicação de instru-

mentos económicos, por parte dos governos, com vista à promoção da utilização eficiente dos recursos, bem como

pelo fomento da investigação e do desenvolvimento de tecnologias que resultem na obtenção de produtos mais

limpos e com menor potencial de desperdício. Passam pela «concepção ecológica» dos produtos, através da inte-

gração sistemática dos aspetos ambientais no seu design, com o objetivo de minimizar os impactos ao longo de todo

o seu ciclo de vida. E terminam, entre outras medidas de política industrial e comercial, na aplicação de instrumentos

económicos que visem não só obter financiamentos para a gestão de resíduos mas também incentivos de medidas

de redução, reutilização e reciclagem.

Um mundo embalado

O caso mais paradigmático, por ser o mais abrangente e percetível pelo consumidor comum, em que as me-

didas de integração e, particularmente da prevenção, podem ter resultados positivos – e seria desejável que assim

fosse – é o das embalagens, que nas últimas décadas têm sido responsáveis por uma parte substancial do aumen-

to da produção de resíduos sólidos urbanos. No entanto, convém não «diabolizar» as embalagens. Estas sempre

tiveram uma função fundamental no acondicionamento de produtos e bens, aumentando a comodidade e sobre-

tudo a conservação de produtos e alimentos. Nas sociedades modernas, de facto, seria já impossível deixar de usar

embalagens especialmente para os bens perecíveis como os alimentos ou os objetos frágeis, e em certa medida a

sua inexistência implicaria até uma maior perda de produtos e consequentemente uma maior produção de resíduos.

Efetivamente, as embalagens sempre foram de grande utilidade às sociedades humanas desde tempos an-

cestrais. Numa primeira fase ainda feitas com artefactos arcaicos – como conchas, folhas de árvore, peles e chifres

de animais –, as embalagens rapidamente se tomaram objetos comuns no quotidiano. Até ao século XIX, os ma-

teriais mais frequentes passaram a ser a argila, a madeira, os tecidos, os metais e o vidro, por terem caraterísticas de

maior perenidade e robustez, podendo até ser reutilizados.

Todavia, somente a partir de finais do século XIX, sobretudo ao longo da segunda metade do século XX, as

embalagens se generalizaram, por via da evolução tecnológica e da capacidade de acondicionarem produtos co-

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91 | Na senda da integração

mercializados em larga escala, que antes apenas eram vendidos a granel. A Primeira Guerra Mundial, de modo in-

direto, teve um papel fundamental neste âmbito, devido à necessidade que houve de acondicionar alimentos, desti-

nados às forças militares. Nas décadas seguintes, com as novas técnicas de produção e selagem, a par da melhoria

nas operações de logística e distribuição, as embalagens ganhariam maior espaço no quotidiano dos países desen-

volvidos, dando assim resposta quer à maior urbanização populacional quer à redução do número médio de mem-

bros das famílias, que se foi verificando neste período. Ou seja, no primeiro caso, foi necessário disponibilizar cada

vez mais bens para zonas mais afastadas dos centros de produção; no segundo caso, as famílias não precisavam de

adquirir grandes quantidades de produtos, preferindo assim comprar doses individuais com menor volume, algo que

nem sempre o comércio a granel permitia. Por outro lado, aproveitando o advento do consumismo, as empresas in-

dustriais e o comércio começaram a aproveitar as embalagens não apenas para acondicionamento, mas também

através de designs mais atraentes, para captar a atenção dos potenciais compradores.

Ainda antes da Segunda Guerra Mundial mais e novas mudanças surgiram neste setor. Primeiro, o plástico

e o alumínio começaram a ser utilizados nas embalagens, uma vez que, embora fossem materiais de maior custo

unitário, eram mais leves que o vidro e o aço permitindo assim acondicionar os mesmos produtos com menos ma-

téria-prima. Depois, surgiram os supermercados, que abriram a porta à generalização absoluta do uso de produtos

pré-embalados – que deixaram de ser um luxo ou um recurso em situações extraordinárias, como as guerras – me-

lhorando as condições de logística e de aquisição. A substituição do balconista, habitual no comércio tradicional, por

uma aquisição direta pelo consumidor, trazida pelos supermercados, implicou que as embalagens passassem a in-

corporar informações diversas sobre os produtos. Ou seja, a função das embalagens deixou de ser o mero acondi-

cionamento dos produtos por si acomodados.

A partir do fim da Segunda Guerra Mundial a utilização de embalagens beneficiou de um novo e mais redo-

brado impulso, por via da popularização dos grandes eletrodomésticos, como os frigoríficos, as arcas congeladoras,

as máquinas de lavar e a televisão – neste último caso mais para estimular o consumo, através dos anúncios publici-

tários. Paralelamente, a proliferação do automóvel permitiu, por sua vez, que as famílias pudessem percorrer maio-

res distâncias até aos grandes supermercados, facilitando assim a aquisição de uma maior quantidade de produtos

embalados.

Nas décadas de 60 e 70, com o aparecimento dos alimentos pré-confecionados, congelados ou enlatados

revolucionar-se-iam os hábitos de consumo. Neste aspeto, para além das embalagens à base de celofane, alumí-

nio e plástico, o maior destaque vai para o surgimento do cartão complexo. Tecnicamente denominadas embalagens

de cartão para alimentos líquidos (ECAL), a sua invenção ocorreu no início dos anos 50 do século XX através da

empresa sueca Tetra Pak, atualmente sediada na Suíça. Apesar de serem classificadas como embalagens de cartão,

os materiais utilizados em diversas camadas são o cartão (75%-80%), polietileno (20%-25%) e a folha de alumí-

nio (cerca de 5%). Devido às suas caraterísticas, as ECAL permitiram aumentar os níveis de segurança, higiene e

conservação dos nutrientes e uma maior proteção do sabor e frescura dos alimentos. Em Portugal, as ECAL foram

introduzidas em 1972 para acondicionar leite ultrapasteurizado, generalizando-se nas décadas seguintes a outros

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92 | Resíduos: uma Oportunidade

produtos alimentares, sobretudo líquidos. A sua tecnologia de fabrico tem permitido a criação de uma vasta gama

de embalagens deste género, que são comercializadas no mercado nacional sobretudo pela Tetra Pak e, em menor

grau, pela Elopak e pela Sig Combibloc.

Mas seria apenas na década de 80 que o marketing começou também a tratar a embalagem como um pode-

roso e privilegiado veículo para aumentar as vendas, alargando-se aos bens duráveis que foram sendo inventados e

disponibilizados em larga escala. Tudo isto trouxe vantagens mas um reverso da medalha: o aumento do consumo e

a diminuição da reutilização implicaram que os diferentes tipos de embalagens descartáveis começassem a cons-

tituir uma parte significativa dos resíduos urbanos, passando a representar na generalidade dos países desenvolvi-

dos mais de 20% do total. No caso concreto português, nas regiões mais urbanas e insulares, as percentagens de

embalagens até são, por regra, mais elevadas, aproximando-se ou atingindo mesmo os 30%. Por exemplo, de acor-

do com o Plano Estratégico para a Gestão Sustentável dos Resíduos Sólidos Urbanos do Grande Porto, elaborado

pela Lipor, 26,3% dos resíduos sólidos urbanos da fração indiferenciada (rececionada na central de incineração) são

embalagens. Em 2011, nas duas caraterizações feitas pela Lipor nos meses de fevereiro e julho, a componente das

embalagens nos resíduos indiferenciados era de 26,15% e 27,28%, respetivamente. Significa isto que o peso relativo

dos resíduos de embalagens, se se somar a parte recolhida seletivamente, se deverá aproximar dos 30% do total da

produção.

Gráfico 3 – Caracterização das embalagens na Lipor

Outras embalagensplásticas: 1,23%

Garrafas e frascos de plástico: 4,23%

Filme plástico de embalagem: 6,91%

Embalagens: 28,49%

Outras embalagens compósitas: 0,2%

Embalagens compósitas de cartão: 1,08%

Embalagens de cartão: 5,75%

Embalagens ferrossas: 1,59%

Embalagens de alumínio: 0,18%

Embalagens de papel: 0,38%

Outros resíduos: 71,51%

Embalagens têxteis: 0,16%

Embalagens de vidro: 6,75%

Embalagens de madeira: 0,03%

Fonte: Lipor (2011)

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93 | Na senda da integração

Em termos de volume, esta percentagem pode ser bastante superior, tendo em conta as caraterísticas volu-

métricas de certas embalagens. Além disso, a utilização cada vez maior do plástico e das embalagens compósitas,

isto é, feitas de diferentes materiais, que não podem ser separadas à mão, implicou uma dificuldade maior nas ope-

rações de triagem e posterior reciclagem.

Se a evolução tecnológica e os hábitos de consumo resultaram numa crescente quantidade de embalagens

presentes nos resíduos urbanos, com uma gama muito diversificada de materiais, certo é que as empresas deste

setor têm estado a investir na prevenção, quer em termos de redução da presença de substâncias perigosas – pas-

síveis de serem libertadas para o ambiente aquando das operações de gestão de resíduos –, quer na sua otimização

dimensional. No entanto, convém referir que há limitações técnicas na redução ou substituição dos materiais que

compõem as embalagens, pois estas têm como função assegurar a conservação dos produtos. Diversos estudos

têm demonstrado que o subdimensionamento das embalagens, que interfere com a sua capacidade de resistência

e de conservação, tem efeitos contraproducentes, por aumentar a degradação dos produtos e concomitantemente

resultar num aumento dos resíduos.

Por um lado, nem sempre os materiais ou produtos mais leves são mais «amigos» do ambiente, uma vez

que podem ter períodos de vida mais curtos ou, no caso das embalagens, dar menores garantias de proteção contra

a deterioração. Por outro lado, numa perspetiva de ciclo de vida, os produtos com maior tempo de vida útil podem

conduzir a atrasos na modernização dos equipamentos, com consequências negativas a médio prazo em termos de

consumo global de energia.

Em todo o caso, ao longo da segunda metade do século XX, o setor industrial foi fazendo investimentos nesta

área, embora tenha sido nas últimas décadas que se observou um reforço maior na procura de soluções tecnológi-

cas em prol da redução, através de melhorias na conceção dos produtos, no processo de acondicionamento, na sim-

plificação e otimização dimensional e na implementação de novos materiais. No caso das embalagens de alumínio,

as alterações no processo de fabrico – designadamente no embutimento e estiramento, em alterações dimensionais

e no design do fundo – permitiu, entre 1975 e 1995, um aumento da produção de embalagens na ordem dos 35% a

partir da mesma quantidade de material. Nas embalagens de vidro, as tecnologias de projeto assistido por compu-

tador, a técnica de moldação pelo processo prensado-soprado e o desenvolvimento de revestimentos da superfície

externa possibilitaram, ao longo dos anos 90, reduções muito significativas no peso das garrafas, que, para certos

volumes de produto embalado, foi superior a 25%.

No caso dos plásticos, têm-se conseguido resultados muito positivos nas últimas décadas levando à dimi-

nuição relevante das quantidades de embalagem por unidade de produto. Um estudo desenvolvido no Reino Unido

em 1992 revelou que os resíduos plásticos em muitos aterros até ocupavam na década de 80 um volume inferior ao

que se registava nos anos 70, mesmo sabendo que a produção de resíduos tinha globalmente aumentado. Em certa

medida, esta alteração adveio da introdução do PET, sobretudo a partir dos anos 80, e da maior utilização de polieti-

leno de alta e baixa densidade, quando antes se usava quase em exclusivo o PVC. De facto, o uso do PET e de ou-

tros tipos de plásticos mais «modernos» foi, em grande parte, responsável pela diminuição do peso das embalagens

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contendo este material. De acordo com dados da Plastval30, entre 1988 e 1997, a redução de peso das embalagens

que incorporavam filme de paletização foi de 77%, atingindo os 19% nas garrafas de bebidas, 34% nos sacos de com-

pras e 12% nas embalagens de margarina e manteigas. Numa outra avaliação apresentada pela Plastval, concluiu-

-se que, entre 1970 e 1990, se registaram reduções na ordem dos 75% nas embalagens com filme de paletização e

de copos de iogurte, e de 45% em certos frascos de detergente.

Mais recentemente, num relatório da Embopar31 foram apresentadas as evoluções registadas nas embalagens

de 29 conhecidos produtos de consumo, concluindo-se que, sem condicionar o desempenho funcional das embala-

gens, se obtiveram poupanças de materiais superiores a 2500 toneladas por ano, além de indiretamente se terem al-

cançado outros benefícios económicos, logísticos e de transporte, incluindo até uma melhoria da imagem dos produtos

que passaram a gozar de maior aceitação junto do consumidor final. De acordo com um catálogo da Embopar, uma

garrafa de vidro de água mineral da marca Vitalis de 25 cl apresentou uma redução de peso de 110 gramas (-35,5%),

tendo-se registado uma redução na embalagem terciária (que serve para transporte de diversas garrafas) na ordem

dos 310 gramas (-21,2%). Os outros casos apresentados pela Embopar referem-se a produtos comercializados pelas

empresas Águas de Castelo de Vide (Vitalis), Fábricas Triunfo (Sortido Triunfo), Johnson’s Wax (Bioshout, Brise, Forza e

Pronto), Leverelida (Comfort e Dove), Nestlé (Bolero, Mokambo, Buondi Decaffé, Chocapic, Chocolate Buondi, Mag-

gi, Nestum, Tofa, Christina e Sical), Novadelta (Cevada Torrada Moída, Deltacao e Platina), Refrige (Coca-Cola, Fan-

ta e Sprite), Sociedade Central de Cervejas (Sagres), Sogrape (Mateus Rosé) e Unilever Bestfoods (Alsa).

Similares destaques merecem as iniciativas tomadas, ao longo dos anos, para reduzir o uso de substâncias

potencialmente perigosas nas embalagens, sobretudo quando estas se transformam em resíduos. Em parte, es-

sas medidas foram impostas pela União Europeia que foi, no caso das embalagens, limitando as concentrações de

chumbo, cádmio, mercúrio e crómio hexavalente incorporados nos materiais utilizados. Estas normas justificaram-

-se não só por motivos de segurança e saúde pública, mas principalmente para facilitar os processos de reutiliza-

ção, reciclagem e tratamento dos resíduos de embalagens, conforme estava estabelecido na diretiva Embalagens de

1994, que foi transposta para o direito nacional em dezembro de 1998.

O declínio da reutilização

Se a tecnologia na produção de embalagens tem permitido resultados interessantes na prevenção – que, em

todo o caso, não conseguiu contrariar a tendência de crescimento na produção de resíduos –, a segunda componente

da política dos 3R – a reutilização – tem apresentado uma evolução francamente desfavorável.

30 A Plastval é uma sociedade anónima sem fins lucrativos, criada em 1996 por diversas empresas do setor dos plásticos, integrando, por

sua vez, a Interfileiras, uma organização que congrega todas as fileiras de materiais e que detém 20% do capital da Sociedade Ponto Verde.31 Holding constituída em outubro de 1996 e formada atualmente por 69 acionistas, entre empresas embaladoras e associações de em-

presas embaladoras, sendo a principal acionista (54,2% do capital social) da Sociedade Ponto Verde.

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Com efeito, apesar de a reutilização estar a acentuar-se em determinados produtos – por exemplo, na adoção

do sistema de recargas em consumíveis e nalguns produtos de higiene –, no setor da alimentação, particularmente

nas bebidas, tem perdido paulatinamente quota de mercado, que aparenta ser irreversível. A denominada tara retor-

nável, que praticamente monopolizava o mercado até há algumas décadas, foi dando lugar à tara perdida, sobretudo

devido às alterações do padrão e dos hábitos dos consumidores aliados à concorrência entre embaladores e às ques-

tões de política logística por parte dos distribuidores. O leite, a partir dos anos 70, foi o caso mais paradigmático com

a sua embalagem a sofrer uma progressiva «migração» do vidro retornável para outros materiais, sobretudo após a

introdução das embalagens de cartão de alimentos líquidos (ECAL).

O desaparecimento progressivo da embalagem de vidro no leite deveu-se particularmente à introdução da

ultrapasteurização que, aumentando o prazo de validade para um longo período, se tornou bastante popular. Mes-

mo no leite pasteurizado, o vidro foi perdendo quota de mercado para o cartão complexo. Em todo o caso, aprovei-

tando os avanços tecnológicos das últimas décadas, algumas marcas optaram por manter o acondicionamento de

leite esterilizado em vidro, mas geralmente para vasilhames de volume mais pequeno. Apesar de algumas mar-

cas possuírem embalagens de leite ultrapasteurizado em plástico, aparentemente em Portugal não têm tido grande

aceitação junto do consumidor. Contudo, o formato das garrafas de vidro era bastante mais prático e, talvez por isso,

recentemente uma conhecida marca nacional introduziu no mercado leite acondicionado numa embalagem em

cartão complexo com um design similar.

Sobretudo a partir dos anos 80, o mercado das águas, dos sumos, dos refrigerantes e, em menos grau, de de-

terminadas bebidas alcoólicas fomentou, de forma crescente, o uso de embalagens de outros materiais que não o

vidro, como plástico, alumínio e cartão complexo. Muitos dos fabricantes de bebidas, mesmo mantendo o vidro para

alguns dos seus produtos, acabaram por dar preferência à tara perdida em detrimento da tara retornável.

Em junho de 1990, o governo ainda mostrou intenções de estancar a perda de quota da reutilização, tendo

aprovado o 1.º Programa Nacional relativo às Embalagens para Produtos Alimentares Líquidos, no momento em

que transpôs a Diretiva Comunitária 85/339/CEE. Esta diretiva comunitária, aprovada antes da adesão de Portu-

gal à então Comunidade Económica Europeia, não definia metas quantitativas, exigindo apenas que os estados-

-membros, através de planos, definissem ações concretas nos domínios da produção, comercialização, utiliza-

ção, reciclagem e reutilização das embalagens de líquidos alimentares, bem como nos domínios da eliminação

das embalagens usadas, com vista a reduzir o seu impacto ambiental e fomentar a redução do consumo de ener-

gia e de matérias-primas. Para o cumprimento desta diretiva os países deveriam, de três em três anos, elaborar

relatórios para a Comissão Europeia em que constassem as quantidades de líquidos alimentares engarrafados

separadas por cada tipo de líquido e de embalagem utilizada; as quantidades de embalagens reutilizadas e reci-

cladas separadas por cada material de embalagem; as quantidades de embalagens que não tivessem sido nem

reutilizadas nem recicladas separadas por cada material de embalagem; os dados relativos ao consumo de ener-

gia aquando do fabrico e da utilização das embalagens e a descrição dos métodos utilizados para reunir e elaborar

tais informações.

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Contudo, o governo português quis ir mais longe. Assim, além de fixar, para 1991, metas de reciclagem – pelo

menos de 60 000 toneladas de vidro e 400 toneladas de plástico – e de redução dos consumos energéticos – que

deveria ser de 11% para o vidro e de 5% para o plástico –, o 1.º Programa Nacional relativo às Embalagens para Pro-

dutos Alimentares Líquidos estipulou objetivos de reutilização, que deveriam abranger, no mínimo, 120 milhões de

garrafas de vidro e um milhão de garrafas de plástico. Para efetivar estas metas, foram depois assinados protoco-

los com a Associação dos Industriais do Vidro de Embalagem (AIVE) e com o Grupo Intersectorial da Reciclagem

(GIR)32.

Mas, dois anos mais tarde, o segundo plano, aprovado em Resolução do Conselho de Ministros n.º 14/92 de

23 de maio, já eliminaria todas as referências explícitas às metas de reutilização e reciclagem, remetendo-as para

acordos voluntários com os industriais dos diversos setores, que incluíram o plástico, o vidro, o metal e o cartão com-

plexo. Nesses acordos, assinados em 1992, foram estabelecidos objetivos quantitativos intermédios, com metas a

cumprir até dezembro de 1993, prevendo-se a sua revisão para o biénio 1994-1995, o que não veio a acontecer.

Apesar destes acordos, a reutilização manteve o seu progressivo declínio ao longo dos anos 90. Se a tara re-

tornável no setor dos refrigerantes ainda representava 66% das embalagens comercializadas em 1992, cinco anos

mais tarde apenas tinha já uma quota de 32%. No caso das águas, esta quota já se encontrava abaixo dos 25% em

meados dos anos 90.

Em 1996, numa derradeira tentativa de recuperar a quota de reutilização, o governo publicou uma portaria33

com o objetivo de, por um lado, garantir a manutenção da tara reutilizável numa parte importante do mercado – o

canal Horeca34, constituído pelos estabelecimentos hoteleiros, de restauração e similares –, e, por outro lado, conce-

der o direito de os consumidores optarem entre embalagens retornáveis e de tara perdida, impondo em simultâneo

taxas mínimas de reutilização aos embaladores, distribuidores e comerciantes. Incidindo sobre as bebidas refrige-

rantes, cervejas, águas e vinhos de mesa – excluindo assim os vinhos regionais e os vinhos de qualidade produzidos

em região demarcada (VQPRD) – este diploma determinava que os estabelecimentos do canal Horeca apenas

poderiam vender, para consumo imediato no próprio local, essas bebidas acondicionadas em embalagens reutili-

záveis.

Mais, com o objetivo de assegurar o direito de opção do consumidor, todos os distribuidores e comerciantes

que vendessem aquelas bebidas em embalagens não reutilizáveis deveriam comercializar a mesma categoria de

produtos acondicionados em embalagens reutilizáveis.

32 Criada em 1975, a AIVE denominava-se, inicialmente, Associação da Indústria Vidreira, passando para a atual designação a partir de

1976. Engloba as cinco empresas nacionais do setor do vidro de embalagem. O GIR foi fundado em 1989 por diversas indústrias do setor das em-

balagens de plástico, tendo alargado o âmbito da sua atuação às embalagens metálicas, ao cartão complexo e ao cartão canelado. Estas duas enti-

dades desempenharam um papel crucial nos primeiros projetos de criação de circuitos de recolha seletiva de embalagens.33 Trata-se da Portaria n.º 313/96 de 29 de junho, que constituiu a versão inicial de outras duas posteriores: a Portaria n.º 68/96 de 7 de ju-

lho e a Portaria n.º 29-B/98 de 15 de janeiro.34 Horeca tem origem nos substantivos truncados de hotel, restaurante e café, embora esta rede inclua também estabelecimentos de res-

tauração coletiva, cantinas de empresas e estabelecimentos do setor da restauração inseridos em complexos comerciais e desportivos.

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97 | Na senda da integração

O diploma estabelecia outras obrigações para os embaladores e para os distribuidores, designadamente o

estabelecimento de um sistema de consignação que permitisse a recolha e a posterior reutilização, ou seja, proibia a

introdução de embalagens reutilizáveis nos circuitos municipais de recolha de resíduos. Essa consignação envolveria

necessariamente a cobrança aos consumidores, no ato da compra, de um depósito que só poderia ser reembolsado

aquando da devolução das embalagens em locais específicos para armazenamento, devendo ainda os respetivos

embaladores ou distribuidores assumirem, direta ou indiretamente, os encargos da recolha para posterior reutiliza-

ção. Para cumprir esta obrigação, os operadores envolvidos deveriam comunicar anualmente, ao então Instituto dos

Resíduos, os dados estatísticos sobre as quantidades de embalagens reutilizáveis e não reutilizáveis que fossem co-

locadas no mercado, sobre as quantidades de embalagens usadas e efetivamente recuperadas e reutilizadas, e ain-

da, se fosse o caso, sobre as quantidades entregues a entidades que se responsabilizassem pela sua valorização ou

eliminação. Em relação às quantidades de embalagens reutilizáveis comercializadas, semelhante obrigação se apli-

cava aos distribuidores e comerciantes com um volume anual de vendas superior 900 000 euros.

Além disso, o diploma estabeleceu ainda a obrigatoriedade, por parte dos intervenientes envolvidos, de se

executarem planos de gestão que, excluindo os consumos na rede Horeca, deveriam assegurar os seguintes níveis

mínimos de reutilização, expressos em percentagem dos volumes totais, em litros:

1999;

Os princípios que nortearam este diploma acabaram por ser algo desvirtuados. De facto, pouco tempo de-

pois da publicação do diploma, o governo considerou que bastaria aos estabelecimentos comerciais garantirem, para

efeitos de cumprimento da portaria, a colocação à venda de uma única marca de refrigerantes, sumos, águas e vi-

nhos em embalagem de tara retornável. Por outras palavras, querendo um consumidor adquirir a sua marca prefe-

rida de cerveja em embalagem reutilizável, poderia afinal não a ter ao dispor, porque o comerciante disponibilizara

essa marca apenas em tara perdida, destinando a embalagem reutilizável a outra marca. Em parte essa decisão go-

vernamental deveu-se a pressões comunitárias, uma vez que a Comissão Europeia considerava que exigir a obri-

gatoriedade de colocar os dois tipos de embalagem por cada marca afetaria a livre concorrência, pois os custos da

consignação e das operações de recolha se tornariam incomportáveis para as bebidas importadas.

Porém, o fator que mais esvaziou o espírito inicial do diploma foi a possibilidade concedida aos embaladores,

distribuidores e comerciantes de criarem um sistema de recolha seletiva de embalagens não reutilizáveis para o ca-

nal Horeca, em alternativa à obrigatoriedade da venda de bebidas exclusivamente em tara retornável. Por razões de

mercado – pois a obrigatoriedade da reutilização no canal Horeca aumenta os custos de distribuição e de logística

–, essa alternativa acabou por se tornar a regra. Com efeito, em 1999 seria criado um sistema de recolha de emba-

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lagens de tara perdida – denominado Verdoreca, integrado na Sociedade Ponto Verde35, permitindo assim que esses

estabelecimentos não tivessem de vender apenas bebidas em embalagens de tara reutilizável. Inicialmente estava

previsto que o Verdoreca procedesse à recolha das embalagens através de um canal próprio, mas a Sociedade Ponto

Verde obteve autorização governamental para se aproveitarem os sistemas de recolha dos municípios, nomeada-

mente os ecopontos ou a recolha porta a porta. Assim sendo, os responsáveis dos estabelecimentos de restauração

e similares aderentes ao Verdoreca apenas passaram a ter o compromisso, caso vendessem bebidas em embala-

gens de tara perdida, de separar os resíduos e de os entregar nos locais disponibilizados pelas autarquias. Os esta-

belecimentos não aderentes ao Verdoreca continuam a ser obrigados a vender exclusivamente bebidas em emba-

lagens reutilizáveis, podendo ser autuados, em caso de incumprimento, quer pelo Ministério do Ambiente quer pela

Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE).

Figura 4 – Taxa de adesão ao subsistema Verdoreca

Fonte: Sociedade Ponto Verde (2011)

35 Os aspetos essenciais da ação da Sociedade Ponto Verde, criada em 1997, serão estudados com maior detalhe, quando se abordar a re-

colha seletiva e a reciclagem de embalagens.

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A única empresa que optou por um modelo independente do Verdoreca foi a Água do Marão, que instituiu

no ano 2000 um sistema de consignação autónomo para embalagens não reutilizáveis. Contudo, embora esta em-

presa tenha de garantir a recolha integral das embalagens de PET que coloca no canal Horeca, há indicadores que

apontam para uma taxa de recolha inferior a metade.

Apesar de estes aspetos terem constituído um retrocesso em relação ao espírito inicial do diploma do go-

verno – que até tinha realizado mediáticas ações de inspeção para verificar o cumprimento da portaria de 1996 –, o

sistema Verdoreca melhorou, ainda que indiretamente, a eficácia da recolha seletiva de outros resíduos. Com efeito,

nos contratos de adesão, os estabelecimentos do canal Horeca comprometeram-se a depositar todo o tipo de em-

balagens nos ecopontos ou nos circuitos de recolha porta a porta, e não apenas as embalagens de bebidas. Por outro

lado, a licença atribuída pelo estado à Sociedade Ponto Verde exigiu metas quantitativas. Na recente renovação da

licença concedida em 2008 foi exigido que, até finais de 2011, estivessem abrangidos pelo menos 70% do total dos

estabelecimentos do canal Horeca, algo que se atingiu mediante o acréscimo de mais de 20 000 novas adesões nos

últimos três anos. No final do ano 2011 existiam 59 939 estabelecimentos aderentes.

A licença atribuída ao Verdoreca determinou também que, através deste canal, teriam de ser recolhidas ao

longo de 2011 um mínimo de 26 591 toneladas de resíduos de embalagens para reciclagem, das quais 21 621 tonela-

das de vidro, 3371 toneladas de plástico, 732 toneladas de papel e cartão e 867 toneladas de metal. Estas metas são,

porém, impossíveis de determinar, porquanto as embalagens, sendo colocadas nos ecopontos e nos sistemas de

recolha porta a porta, ficam misturadas com embalagens provenientes do fluxo urbano. Quando muito, poder-se-

-á proceder a uma estimativa grosseira, mas o esforço necessário para essa tarefa é despropositado, tendo em conta

um universo dos estabelecimentos do canal Horeca.

Embora a reutilização das embalagens de bebidas esteja claramente em declínio, isto não implica necessa-

riamente uma desvantagem económica e ambiental. De facto, cada vez mais se tem vindo a evidenciar que, numa

perspetiva de ciclo de vida, nem sempre a preferência pelas embalagens retornáveis – que obrigam a operações de

logística mais complexas, com gastos energéticos significativos em termos de transporte e lavagem – apresenta

vantagens irrefutáveis, nem que há uns materiais melhores do que outros numa perspetiva ambiental de longo pra-

zo. Um estudo realizado em 1994 para a Comissão Europeia, intitulado Waste Management – Life Cycle Analysis

of Packaging, concluiu que, por um lado, era mínima a diferença entre os impactos ambientais causados pelas gar-

rafas de vidro de tara retornável e as garrafas de PVC não reutilizável e que, por outro lado, as garrafas de vidro de

tara perdida – mesmo com elevadas taxas de reciclagem – causavam até mais impactos do que as garrafas de PVC.

Posteriormente, em 1999, um estudo de dois investigadores da Universidade do Porto apurou que a adoção

da tara perdida pelo setor das cervejas reduzira o consumo de energia, água e soda cáustica, em comparação com

as embalagens reutilizáveis devido à diferença de peso das garrafas e às diferentes operações necessárias, para cada

caso, nas linhas de enchimento e processos de lavagem.

Contudo, estes exemplos não podem jamais ser generalizados, pois há muitos fatores que influenciam os

resultados comparativos. Efetivamente, são sobretudo os volumes das embalagens que constituem o fator mais

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importante, a par das operações de produção, enchimento, logística e de transporte. Isso mesmo se concluiu num

estudo europeu, realizado em 1999 e intitulado Ecobalances for Policy-Making in the Domain of Packaging and Pa-

ckaging Waste, que analisou, em termos de ciclo de vida, vários tipos de materiais – vidro e PET de tara retornável,

e PVC, PET, vidro, cartão para alimentos líquidos, HDPE, aço e alumínio de tara perdida – em diversos volumes de

embalagem. Os resultados obtidos indicaram que, para as embalagens de maior volume (1 e 1,5 litros), o PET de tara

retornável apresentava os menores impactos ambientais nas categorias consideradas, seguido pelo vidro de tara re-

tornável e pelo cartão para alimentos líquidos de tara perdida. Relativamente às embalagens de menor volume (0,2

e 0,25 litros), o cartão para alimentos líquidos de tara perdida era o que apresentava os melhores resultados ambien-

tais, sendo a seguir o vidro de tara retornável e o PET de tara perdida as melhores alternativas. Demonstrou-se ainda

que a garrafa de vidro de tara perdida apresentava maiores impactos ambientais em comparação com os outros tipos

de embalagens, para as várias análises efetuadas, justificável por via do seu peso e por não ser retornável.

Nas últimas décadas têm-se feito grandes progressos na tecnologia de produção de plásticos, não apenas

através da sua reincorporação em embalagens de produtos alimentares – como é o caso do PET – mas também no

fabrico do PET ou do policarbonato (PC) reutilizáveis. É certo que uma garrafa de PET reutilizável tem aproximada-

mente o dobro do peso de uma garrafa de PET descartável, mas essa particularidade acaba por ser compensada com

a possibilidade de ser usada cerca de 20 vezes, mantendo as suas caraterísticas de segurança. Ou seja, numa pers-

petiva de ciclo de vida, caso se opte pela reutilização do plástico, o seu uso como material de embalagem pode até

vir a ser mais favorável do que a simples redução da quantidade de plástico usado para a produção de embalagens

descartáveis.

Por todos estes motivos, o declínio da reutilização pode não ser um fator negativo em termos ambientais, so-

bretudo se alicerçado em adequadas políticas de gestão dos resíduos urbanos em que haja um reforço nas outras

duas componentes da política dos 3R: redução e reciclagem. Ou seja, em sistemas bem organizados, a adoção de

medidas de redução, de reutilização e de reciclagem – em suma, que tenham como objetivo a poupança de recursos

e a valorização de resíduos – é sempre uma solução equivalente e complementar.

Nos alvores da reciclagem

Não há hoje muitas palavras tão globalizadas e que se entranharam tanto no quotidiano como a palavra re-

ciclagem. Pesquisando num motor de busca da Internet, como o Google, a reciclagem surge com 13,6 milhões de

referências em português, em espanhol atinge 21,4 milhões e em inglês quase alcança a fasquia dos 400 milhões.

No YouTube há várias dezenas de milhares de vídeos sobre reciclagem. Na via pública estão expostas por todo o

lado estruturas como os ecopontos que remetem para a reciclagem. Quase todos os produtos embalados têm um

símbolo com referências à reciclagem. Ninguém fica indiferente às inúmeras campanhas públicas e privadas que

apelam à reciclagem. Dir-se-á que a reciclagem se tornou um símbolo de modernidade.

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Com efeito, nas últimas décadas, as políticas em prol da reciclagem passaram a representar um papel de

charneira na moderna gestão dos resíduos, mas também um caminho para se alcançar o desejável desenvolvimen-

to sustentável. Numa época em que até a gestão dos recursos renováveis começa a ser vista numa perspetiva de

longo prazo, ambiental e económica, o reaproveitamento e a valorização dos resíduos tem vindo, assim, a assumir

um papel cada vez mais prioritário em matérias ambientais.

Apesar de nos países mais desenvolvidos as políticas de reciclagem se terem iniciado nos anos 60 e 70, a Co-

munidade Económica Europeia – entidade precursora da atual União Europeia – procurou a partir da década de 80

generalizá-las aos diversos estados-membros através de um conjunto de diretrizes. No caso dos resíduos urbanos,

particularmente em relação às embalagens, o primeiro passo foi dado em 1985 com a Diretiva n.º 85/339/CEE que

definiu, embora ainda sem exigências concretas, orientações com vista à redução, reutilização e reciclagem das emba-

lagens de produtos alimentares líquidos. Porém, poucos anos mais tarde, tendo-se concluído serem insuficientes as

meras orientações – tanto mais que as embalagens constituíam uma das principais preocupações na gestão dos resí-

duos urbanos –, a Comissão Europeia começou a preparar uma nova diretiva, já com metas específicas de reciclagem.

No entanto, antes mesmo de esta proposta ter sido colocada à discussão em julho de 1992, a França e em

particular a Alemanha antecipar-se-iam na tomada de medidas. Em relação à Alemanha, a iniciativa partiu do seu

ministro do ambiente, Klaus Topfer, que impôs aos agentes económicos a responsabilidade da recolha das emba-

lagens usadas, impondo-lhes diversas metas para 1995, entre as quais taxas de reutilização e reciclagem na ordem

dos 80% em relação ao total de embalagens comercializadas no circuito urbano. Para a implementação do siste-

ma de recolha e posterior envio dos resíduos para reciclagem, seria criada a empresa Duales System Deutschland

(DSD), cujas receitas provinham de uma comparticipação das empresas por cada embalagem colocada no merca-

do. Cada embalagem deveria, para esse efeito, ostentar um símbolo «ponto verde» – denominado der grüne punkt,

em alemão, ou green dot, em inglês –, de modo a provar publicamente que aderira ao sistema.

Embora tenha constituído uma alavanca decisiva para a definição do futuro modelo europeu de gestão de

embalagens, os primeiros anos de funcionamento da DSD demonstraram algumas fragilidades e a necessidade de

se avançar com alguma cautela. Efetivamente, se é certo que as taxas de recolha seletiva dispararam rapidamen-

te, paradoxalmente este sucesso quase causou a falência da própria DSD. A razão deveu-se, por um lado, ao facto

de uma parte das empresas embaladoras não terem pago as taxas de «ponto verde» – tendo-se esgotando assim

os recursos destinados às operações de recolha e ao encaminhamento para reciclagem – e, por outro lado, como a

indústria recicladora alemã não tinha capacidade para absorver tantos resíduos, a DSD foi obrigada a exportar uma

parte considerável das embalagens usadas, sobretudo plásticos, a custo zero e suportando as despesas de trans-

porte. Por exemplo, em 1994 das 461 000 toneladas de resíduos de plástico recolhidas pela DSD, cerca de 256 000

(55%) foram exportadas principalmente para a China e para países europeus.

O recurso à exportação de resíduos esteve mesmo na base de uma forte contestação dos parceiros comu-

nitários, aquando da discussão da nova diretiva Embalagens, uma vez que, se tal continuasse, poderia constituir um

risco para a sustentabilidade da recolha seletiva e da reciclagem nos diversos países europeus.

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102 | Resíduos: uma Oportunidade

Somente em finais de 1994, após o compromisso da Alemanha de aumentar a sua capacidade de reciclagem

e de tendencialmente proibir a exportação de resíduos – que apenas se efetivou em 1997 –, foi possível aprovar a

nova diretiva que obrigou os vários estados-membros a instaurarem sistemas de recuperação, recolha e valorização

de todo o tipo e materiais de embalagens, com metas específicas a serem cumpridas até 30 de junho de 2001. Nessa

altura, a generalidade dos países deveria estar a valorizar, ou em alternativa a incinerar em unidades com recupera-

ção de energia, entre 50% e 65% em peso dos resíduos de embalagens, mas cumprindo obrigatoriamente uma taxa

de reciclagem entre 25% e 45% em peso da totalidade dos materiais de embalagem, com um mínimo de 15% para o

vidro, papel e cartão, metal e plástico.

Na discussão desta diretiva, a Grécia, a Irlanda e Portugal alegaram que, devido à sua situação geográfica pe-

riférica e à existência de territórios insulares e de vastas regiões rurais, bem como à carência de infraestruturas e ao

baixo nível de consumo per capita de embalagens, não poderiam cumprir esse prazo inicial. Desse modo, a Comis-

são Europeia concedeu-lhes uma derrogação, tendo-se alargado para 31 de dezembro de 2005 o prazo de cumpri-

mento daquelas metas.

Além destas metas, a diretiva, transposta em definitivo para o direito nacional em dezembro de 1997, previa

ainda o estabelecimento de um conjunto de normas que seriam promovidas pela própria Comissão Europeia. Essas

normas visavam a verificação da conformidade dos requisitos essenciais que as embalagens colocadas no mercado

teriam de cumprir, designadamente os inerentes ao seu fabrico, composição e natureza reutilizável ou valorizável,

bem como as caraterísticas dos resíduos de embalagens daí resultantes. Simultaneamente, discriminou as normas

de suporte aos objetivos de âmbito ambiental, entre as quais as que se relacionam com critérios e metodologias de

análise do ciclo de vida das embalagens, métodos de medição e verificação da presença de metais pesados e de

outras substâncias perigosas nas embalagens e resíduos de embalagens, critérios referentes à existência de um

teor mínimo de material reciclado nas embalagens, critérios a adotar quanto aos métodos de reciclagem, critérios a

seguir quanto aos métodos de compostagem e ao composto produzido e critérios a usar na marcação das emba-

lagens. O Comité Europeu de Normalização aprovaria, ao longo dos anos seguintes, seis normas específicas para

regular este setor36.

Aquando da aprovação desta diretiva comunitária, Portugal continuava bastante atrasado na gestão integra-

da de resíduos de embalagens. Melhor dizendo, nem sequer tinha subido para esse patamar. Recorde-se que, em

finais de 1994, Portugal era um país com várias centenas de lixeiras e sem qualquer política de recolha seletiva orga-

nizada e abrangendo a totalidade do território.

Contudo, apesar destes atrasos, a reciclagem não era propriamente desconhecida em Portugal, sobretudo no

caso do vidro, do papel e do cartão. De acordo com um estudo da CNA, realizado no início dos anos 80, a recicla-

36 Estas normas, algumas tendo beneficiado de alterações subsequentes, são as seguintes: Norma-chapéu (EN 13 427), Norma da pre-

venção (EN 13 428), Norma da reutilização (EN 13 429), Norma da reciclagem multimaterial (EN 13 430), Norma da valorização energética (EN

13 431) e Norma da valorização orgânica (EN 13 432).

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gem de papel já atingia valores significativos ainda antes da instauração da democracia: em 1970, a indústria pape-

leira processara cerca de 94 000 toneladas de papéis usados, tendo subido para as 161 000 toneladas uma década

mais tarde. Embora estes valores sejam globais – ou seja, incluíam sobretudo cartão e papéis diversos, numa altura

em que as embalagens ainda tinham um peso relativo diminuto –, Portugal apresentava, no início da década de 80,

taxas de recuperação na ordem dos 38%, até superiores à média europeia, que se situava nos 32%.

Esta recolha de papel era feita, todavia, através de um método não estruturado, por «indivíduos que consti-

tuem o primeiro elo de uma longa cadeia de intermediários até à sua colocação no consumidor», conforme se referia

no estudo da CNA. Perante isto, o ritmo de recolha desses materiais não era contínuo, processando-se em função

das flutuações da procura pela indústria papeleira e dos correspondentes preços de mercado. A fraca triagem im-

plicava que os materiais recolhidos servissem apenas para a produção de papéis e cartão de embalagem de inferior

qualidade. Além disso, por regra, as unidades recicladoras eram de pequena dimensão e de reduzido apetrecha-

mento tecnológico, provocando graves problemas de poluição hídrica.

Em todo o caso, o estudo da CNA considerava que, do ponto de vista económico, não se justificava a subs-

tituição deste método informal de recolha por um sistema organizado de recolha seletiva, mesmo que, em termos

sanitários e ambientais, isso fosse recomendável. Mas alertava que, com o aumento previsível do consumo de pa-

péis – o que efetivamente veio a ocorrer –, a recolha por catadores dificilmente permitiria a manutenção das taxas

de recuperação.

Somente em finais dos anos 80 algumas autarquias portuguesas iniciariam a instalação de sistemas próprios

de recolha seletiva, através de papelões e de centros de recolha. A autarquia de Torres Vedras em 1987 foi a pioneira,

sendo seguida pelas de Tomar e Beja (1989), Oeiras e Faro (1990), Seixal e Almada (1991), Aveiro, Santiago do Ca-

cém e Lisboa (1993). No caso da capital portuguesa, inicialmente a recolha centralizou-se em cerca de quatro de-

zenas de postos de limpeza, tendo os papelões surgido nas vias públicas apenas em 1997. Assim, em finais de 1994,

aquando da aprovação da diretiva Embalagens, apenas cerca de três dezenas de municípios procediam à recolha se-

letiva de papel e cartão, embora as quantidades obtidas nesse ano tenham sido reduzidas: apenas 3372 toneladas,

desconhecendo-se a fração respeitante às embalagens. Isto queria dizer que uma parte muito significativa da reco-

lha destes materiais era feita de um modo informal, tanto mais sabendo que as estimativas de recuperação nesse

ano apontavam para valores na ordem dos 40%, rondando a taxa de utilização os 30%37.

O início da recolha seletiva no circuito doméstico de vidro usado em Portugal – ou melhor dizendo, de cas-

co – é mais recente, embora se tenham atingido rapidamente valores significativos. De facto, o uso de casco pela

indústria vidreira remonta aos anos 50 – através de entregas feitas por revendedores ou pelas empresas embalado-

ras, do vidro resultante das quebras nas operações de distribuição e nas linhas de enchimento –, somente no início

da década de 80 se implementaram as primeiras iniciativas de recolha seletiva no circuito urbano, dinamizadas pela

37 A taxa de recuperação é o rácio entre a recuperação aparente de papel usado e o consumo aparente de papel e cartão. A taxa de utilização

é o rácio entre o consumo de papel velho e a produção total de papel e cartão.

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Associação dos Industriais de Vidro de Embalagem (AIVE). A primeira colocação de vidrões na via pública ocorreu

em 1983, numa parceria entre a AIVE e a autarquia de Oeiras, que se alargaria, em pouco tempo, a todas as zonas

urbanas deste município que apresentavam um nível socioeconómico mais elevado, designadamente Oeiras, Paço

de Arcos, Caxias, Algés, Linda-a-Velha, Carnaxide e Queijas. Nos dois anos seguintes, mais nove municípios ade-

ririam a este sistema de recolha: Peniche, Setúbal, Coimbra, Marinha Grande, Tomar, Porto, Sintra, Portalegre e Al-

mada. Em Lisboa, os vidrões surgiram na via pública em 1987. Cerca de uma década mais tarde, os protocolos da

AIVE abrangiam já 138 municípios.

Inicialmente, os vidrões eram de dois tipos: um destinado ao casco de vidro transparente e outro ao vidro de

cor, sendo ambos constituídos por contentores tipo iglu em resina de poliéster, reforçados com fibra de vidro e com

capacidade de 1,2 m3. Numa primeira fase, a AIVE financiava a aquisição dos vidrões, mas ao longo dos anos 90, até

à entrada em vigor da diretiva Embalagens, estes acordos foram sendo adaptados às especificidades de cada mu-

nicípio. Devido à disseminação dos vidrões no espaço público, a par de campanhas intensas de sensibilização, a re-

ciclagem de vidro de origem doméstica alcançaria aumentos significativos, sobretudo a partir do início dos anos 90,

tendo passado de quase 10 000 toneladas, em 1988, para cerca de 22 000, em 1993, alcançando 80 000 toneladas

em 1997. Contabilizando ainda a recolha de casco proveniente dos embaladores e dos distribuidores, significa que,

muito antes da entrada em vigor desta diretiva, Portugal até já cumpria as metas comunitárias impostas para este

fluxo em 2005, dado que em 1989 se registara uma taxa de reciclagem ligeiramente acima dos 25% e em 1997 qua-

se se atingia os 44%.

No caso dos plásticos, antes da diretiva Embalagens, a recolha seletiva em meio urbano era ainda bastante

diminuta, para não dizer inexistente. No circuito urbano, somente no início da década de 90 se começaram a dar os

primeiros passos, por iniciativa do Grupo Intersectorial da Reciclagem (GIR) que começou, em articulação com al-

gumas autarquias, a colocar alguns contentores especiais (plasticões) nas vias públicas.

Os primeiros municípios a instalarem estes contentores especiais foram Sintra, Espinho, Santiago do Cacém,

Vila Nova de Gaia, Maia e Oeiras, embora nem todos tivessem depois criado centrais de triagem para uma sepa-

ração correta. A recolha seletiva em Queijas, no concelho de Oeiras, foi o único caso, durante muitos anos, em que

se obteve plástico com qualidade para ser reciclado. Promovido pelo GIR e pela autarquia de Oeiras, este projeto de

Queijas foi o primeiro caso de recolha seletiva multimaterial implantado em Portugal. Em relação aos plásticos, a

deposição era feita pelos consumidores em sacos azuis – que também tinham cartão para bebidas, latas de alumí-

nio e latas ferrosas –, que depois eram triados em Vila Fria, onde se separava o filme plástico, as garrafas de PVC, as

garrafas de PET e as garrafas de polietileno (PE). Mas era, de facto, um caso isolado, de pequenas dimensões e, por

isso, até à entrada em vigor da diretiva Embalagens, as quantidades de plástico recolhidas em Portugal eram então

insignificantes, embora não haja estatísticas rigorosas.

Contudo, saliente-se que a indústria de reciclagem de plásticos em Portugal estava já bem instalada, quando

a recolha seletiva ainda nem sequer estava pontualmente instalada, mas recorria sobretudo a importações de ma-

teriais (cerca de 70%) e ao setor da distribuição e comércio. A primeira empresa nacional de reciclagem destes ma-

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teriais, a Sirplaste, foi criada em 1974 no concelho de Porto de Mós, começando a processar desperdícios de plástico

com baixa sujidade do setor industrial. Atualmente produz diversos tipos de polietileno (PE) e polipropileno (PP), sob

a forma de granulado, sacos para lixo, mangas plásticas, tubos e garrafas.

No caso dos metais, a recolha seletiva no circuito urbano surgiu mais tarde, embora a atividade dos sucateiros

fosse importante no caso dos veículos em fim de vida, com a grande desvantagem de causarem fortes problemas

ambientais e paisagísticos. De acordo com os dados do Ministério do Ambiente, em meados dos anos 90 apenas

13 municípios promoviam a recolha seletiva destes materiais, alcançando-se em 1994 apenas 4813 toneladas en-

viadas para reciclagem. Embora algumas autarquias já tivessem contentores especiais (metalões) nas vias públicas

para a recolha de aço e alumínio, parte substancial desta quantidade era proveniente da triagem feita nas unidades

de compostagem existentes em Trajouce e Beirolas. Através do processamento de escórias das centrais de incine-

ração também se consegue aproveitar aço e alumínio, mas em meados dos anos 90 ainda não estavam a funcionar

as unidades da Lipor, da Valorsul e da Valor Ambiente.

Para outros materiais – como a madeira, as ECAL, as pilhas e os acumuladores, os pneus e mesmo os óleos

usados –, os projetos de recolha seletiva até meados dos anos 90 eram, em Portugal, muito pontuais e promovidos,

por regra, de forma desarticulada.

Como já foi referido, com a exceção do projeto piloto de Queijas, até meados dos anos 90 nenhum municí-

pio implantara, em todo o seu território, uma estratégia de recolha seletiva multimaterial e a maioria dos municípios

nada fazia. De facto, segundo o projeto Reciclar é Desenvolver, desenvolvido pela Quercus em 1993, a partir de uma

amostra de 129 autarquias – aquelas que responderam ao inquérito –, apenas 69 possuíam sistemas de recolha se-

letiva, embora a esmagadora maioria apenas para um tipo de material. O vidro era o material mais recolhido (em 66

autarquias), seguindo-se o papel (em 14 autarquias) e o cartão (em nove autarquias). O alumínio e as pilhas eram

recolhidos em sete autarquias, em cada caso, os pneus em apenas cinco, enquanto o plástico somente em três mu-

nicípios. O alumínio e o óleo usado eram recolhidos somente numa autarquia. Os municípios que faziam recolha

de dois materiais eram Angra do Heroísmo (sucatas e pneus), Cascais, Estarreja e Peniche (vidro e pilhas), Lisboa e

Santiago do Cacém (vidro e papel), São Pedro do Sul (vidro e pneus). Aqueles que faziam recolha de três materiais

eram Albufeira e Oeiras (vidro, papel e sucata), Loulé (vidro, sucata e óleos usados), Moita e Pedrógão Grande (vidro,

papel e cartão) e Vila Nova de Gaia (vidro, papel e plástico). Os municípios com recolha de quatro materiais eram

Aveiro (vidro, papel, cartão e pilhas), Beja (vidro, papel, cartão e pneus), Loures (vidro, papel, sucata e pneus). Aque-

les que faziam recolha de cinco materiais eram Almada (vidro, papel, cartão, alumínio e sucata), Sines e Sintra (vidro,

papel, cartão, pilhas, sucata e pneus). Em apenas um concelho, o do Seixal, se dinamizava a recolha de seis tipos de

materiais (vidro, papel, cartão, pilhas, sucata e pneus).

Não surpreende assim que, aquando da elaboração do primeiro plano estratégico (PERSU), o Ministério do

Ambiente indicasse que a taxa global de reciclagem em 1996 se situava apenas nos 4% em relação ao total dos resí-

duos urbanos produzidos, correspondendo a 134 000 toneladas, ou seja, Portugal partia com um grande atraso face

às metas exigidas pela diretiva Embalagens.

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Um modelo para o futuro

As exigências da diretiva Embalagens e as metas previstas pelo Plano Estratégico para os Resíduos Sólidos

Urbanos (PERSU) colocaram Portugal perante um desafio sem precedentes. Simultaneamente, por razões am-

bientais e de saúde pública, pretendia-se encerrar lixeiras, implantar sistemas de tratamento adequados e imple-

mentar um sistema articulado e eficaz de recolha seletiva para melhorar as taxas de reciclagem. Perante o historial

do país nestas duas áreas, estava-se, portanto, perante tarefas quase hercúleas pelo esforço financeiro e organização

que exigiam, sobretudo no caso da recolha seletiva.

Com efeito, se para a execução dos principais objetivos do PERSU – encerrar as lixeiras e implantar novas

unidades de tratamento e confinamento de resíduos – se tornava necessário «apenas» a adoção de um novo mo-

delo de base empresarial no setor público e de projetos de engenharia, no caso do sistema integrado de gestão de

resíduos de embalagens era preciso muito mais. Sendo uma área muito mais transversal, necessitava mais do que

financiamento e projetos de engenharia. Por um lado, era preciso estabelecer acordos e promover a concertação en-

tre as autarquias e os setores industrial, de distribuição e de comércio, que nalguns casos defendiam interesses con-

flituantes; por outro lado, exigia-se uma regulação atenta do estado; e, por fim, remetia para o cidadão comum um

papel fundamental, pois cabia-lhe uma parte considerável do esforço de recolha seletiva.

Ora, em relação a tudo isto, Portugal estava quase na estaca zero quando se transpôs a diretiva Embalagens

para o direito nacional, em 199538. É certo que já possuía tecnologia e capacidade industrial instalada para reciclar,

mas a pouca recolha seletiva baseava-se em modelos voluntaristas e desarticulados, estabelecidos através de pro-

tocolos entre um número ainda reduzido de autarquias e algumas associações empresariais. Paralelamente, não

havia ainda estímulos suficientes para a participação mais ativa das populações, sobretudo pela carência de equi-

pamentos e locais de recolha em condições que não representassem um sacrifício. Nesse período ainda não havia

ecopontos nem ecocentros – apenas equipamentos dispersos, servindo uma fração quase insignificante da popu-

lação portuguesa, pelo que, de acordo com dados oficiais, a recolha seletiva de embalagens atingiu em 1996 apenas

28 000 toneladas, sendo a esmagadora maioria de vidro.

Para aplicar efetivamente a responsabilização alargada ao produtor dos resíduos de embalagens, os vários agen-

tes – industriais de materiais de embalagem, embaladores, distribuidores, comerciantes, empresas de reciclagem, au-

tarquias e estado – começaram a encetar negociações, logo em 1996, no sentido de se encontrar uma plataforma de

entendimento sobre a estratégia e o modelo de gestão mais eficazes para se atingir os objetivos da diretiva Embalagens.

Apesar dos interesses por vezes antagónicos entre os diversos agentes, conseguir-se-ia um rápido consenso

para a criação da entidade que em Portugal passaria a assumir a responsabilidade global pela gestão dos resíduos de

38 A transposição foi feita através do Decreto-Lei n.º 322/95 de 28 de novembro e da Portaria n.º 316/96 de 29 de julho. Estes diplomas

seriam substituídos pelo Decreto-Lei n.º 366-A/97 de 20 de dezembro e pela Portaria n.º 29-B/98 de 15 de janeiro, sobretudo por questões de

formalismo perante as regras da União Europeia.

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embalagens. Entre as diversas alternativas já existentes noutros países, optar-se-ia pelo modelo em vigor na França.

Com efeito, naquele país criara-se, em 1992, a Eco-Emballages, uma entidade que, ao contrário do que se fizera na

Alemanha, estabelecera acordos com os municípios para que estes assumissem as tarefas principais nas operações

de recolha seletiva. Os custos suportados pelas autarquias eram depois cobertos pela Eco-Emballages, com fundos

provenientes da aplicação de uma taxa (ecovalor) paga pelos embaladores em função do tipo e das quantidades de

embalagens colocadas no mercado.

Este sistema ganharia forma em Portugal com a criação da Sociedade Ponto Verde – Sociedade Gestora de

Resíduos de Embalagens, a 16 de novembro de 1996, que contou com a participação social de todos agentes econó-

micos direta e indiretamente relacionados com as embalagens. Agrupando inicialmente 140 associados, a Socieda-

de Ponto Verde teve, como fundadores, a Embopar – que integra as empresas que comercializam ou importam pro-

dutos embalados –, com 54,2% do capital social; a Dispar – que engloba as principais empresas de distribuição e co-

mercialização de produtos embalados –, com 20%; a Interfileiras – que congrega as associações das diversas fileiras

de materiais de embalagem –, também com 20%; e a empresa Logoplaste, com 5,8%. Posteriormente, a Logoplaste

reduziu a sua participação, ficando apenas com uma quota de 1%, cedendo a parte restante ao INESC (2%) e a 14 au-

tarquias que aceitaram integrar a Sociedade Ponto Verde: Abrantes, Avis, Belmonte, Câmara de Lobos, Carregal do

Sal, Guarda, Lousada, Moura, Oliveira de Azeméis, Paredes, Póvoa do Varzim, Sousel, Vieira do Minho e Vila Franca

do Campo, tendo cada uma ficado com uma quota de 0,2% do capital social. Saliente-se que uma parte substancial

destas entidades foi criada apenas com o objetivo de integrar o capital social da Sociedade Ponto Verde, uma vez que

a representação de todas as empresas individualmente tornaria complexo qualquer modelo de gestão39.

O funcionamento do sistema integrado, gizado pelos acionistas, seguiu assim uma lógica de circuito fechado,

baseado num conjunto articulado de responsabilidades entre os diversos agentes. Assim, os embaladores e impor-

tadores que optassem por aderir ao denominado Sistema Ponto Verde, delegando as suas responsabilidades na re-

toma das embalagens usadas assinariam um contrato com a Sociedade Ponto Verde e pagariam uma contrapartida

financeira pelas embalagens colocadas no mercado nacional – um ecovalor denominado Valor Ponto Verde (VPV)

–, calculada em função do peso e tipo de material.

Por sua vez, os distribuidores e comerciantes garantiam vender apenas os produtos embalados que cumpris-

sem a legislação e tivessem aderido ao Sistema Ponto Verde, devendo as embalagens primárias ostentar obrigato-

39 A Embopar – Embalagens de Portugal SA foi constituída a 18 de outubro de 1996, contando atualmente com 63 acionistas. A Dispar

– Distribuição de Participações SA foi constituída a 11 de novembro de 1996, contando atualmente com 11 acionistas. A Interfileiras – Associação

Nacional para a Recuperação, Gestão e Valorização de Resíduos de Embalagens SA foi constituída a 18 de novembro de 1996, integrando atual-

mente, como associadas, as cinco fileiras de materiais de embalagens: a CERV – Associação de Reciclagem dos Resíduos de Embalagens (criada

em 1977), a Embar – Associação Nacional de Recuperação e Reciclagem de Embalagens e Resíduos de Madeira (criada em 1998), a Fimet – As-

sociação Nacional para Recuperação, Gestão e Valorização de Resíduos de Embalagens Metálicas (criada em 1996), a Plastval – Valorização de

Resíduos Plásticos SA (criada em 1996) e a Recipac – Associação Nacional de Recuperação e Reciclagem de Papel e Cartão (criada em 1996).

Todas as autarquias foram convidadas a integrar o quadro de acionistas da Sociedade Ponto Verde, com quotas simbólicas (um lote de 10 ações,

num total de 5000), mas apenas 14 manifestaram interesse.

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riamente um símbolo específico, sendo este facultativo nas secundárias e terciárias. Além disso, caberia aos con-

sumidores e aos clientes finais as tarefas de separação das embalagens usadas, por tipo de material, zelando pela

sua entrega em locais previamente indicados. Por último, as autarquias, associações de municípios e os sistemas de

gestão intermunicipais e multimunicipais de resíduos urbanos aderentes ao Sistema Ponto Verde – os denominados

SMAUT – ficariam com a incumbência de proceder à recolha, transporte e triagem final dos resíduos de embala-

gens, por tipo de material, disponibilizando-os depois à Sociedade Ponto Verde para serem encaminhados para re-

ciclagem ou valorização. A venda destes materiais aos recicladores, aderentes ao Sistema Ponto Verde, constituiria

uma outra fonte de financiamento da Sociedade Ponto Verde.

Caso respeitassem as especificações técnicas dos materiais, os SMAUT receberiam uma contrapartida finan-

ceira por cada tonelada de material efetivamente reciclado – denominada Valor de Contrapartida –, de modo a serem

compensados pelos custos adicionais inerentes às operações de recolha e triagem. Para que o sistema se norteas-

se em exclusivo para atingir as metas da diretiva Embalagens, desde a sua criação se assumiu que a Sociedade Pon-

to Verde não teria fins lucrativos, ou seja, os eventuais lucros não poderiam ser distribuídos pelos acionistas mas sim

reinvestidos na promoção da reciclagem.

Em termos práticos, no caso dos materiais recolhidos para reciclagem contendo resíduos que não fossem ape-

nas embalagens – situação que sucede sobretudo no papel e, em menor, grau nos restantes componentes –, seria fei-

to um cálculo para apurar a percentagem das duas frações. A parte que não fosse embalagem constituiria receita dire-

ta dos SMAUT, se algum valor lhe fosse determinado pelos recicladores. Em qualquer dos casos, os SMAUT fariam as

entregas diretas dos resíduos de embalagens aos recicladores, mas sempre sob supervisão e controlo direto e indireto da

Sociedade Ponto Verde. A única exceção seria nos casos em que os materiais triados não fossem oriundos de embala-

gens, como as revistas e jornais, em que os SMAUTs estariam autorizados a negociar diretamente com os recicladores.

Em todo o caso, por opção de algumas autarquias, a gestão da recolha seletiva acabou por ficar sob a alçada de

associações de municípios, mesmo quando estes estavam integrados em sistemas intermunicipais e multimunici-

pais. Somente nos Açores foi permitido, mais tarde, que os municípios aderissem individualmente ao Sistema Ponto

Verde. No entanto, como esta adesão é voluntária, o município da Covilhã, mesmo estando integrado num sistema

multimunicipal de gestão de resíduos (Resistrela) nunca aderiu ao Sistema Ponto Verde, sendo a exceção em território

de Portugal continental. Semelhante situação se verifica com os municípios açorianos das ilhas de São Jorge, Graciosa,

Santa Maria e Corvo

No sentido de formalizar este sistema integrado, em 1997 a Sociedade Ponto Verde apresentaria um caderno

de encargos ao governo, requerendo um licenciamento específico. Esse dossiê incluía a identificação e as caraterísti-

cas técnicas dos resíduos das embalagens abrangidas; a previsão das quantidades a retomar anualmente; as bases da

contribuição financeira exigida aos embaladores e aos responsáveis pela colocação de produtos embalados no mer-

cado nacional, designadamente a fórmula de cálculo do ecovalor respetivo, tendo em conta as quantidades previs-

tas, o volume, o peso e a capacidade das embalagens, bem como a natureza dos materiais presentes nas mesmas;

as condições de articulação com os SMAUT; o modo como se propunha assegurar a retoma dos resíduos recolhidos

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109 | Na senda da integração

e triados por estes, as especificações técnicas dos materiais a retomar e as bases das contrapartidas a conceder aos

SMAUT pelo custo acrescido das operações de recolha seletiva e triagem; a estipulação de uma verba destinada ao

financiamento de campanhas de sensibilização dos consumidores, bem como ao desenvolvimento de novos pro-

cessos de reciclagem e de valorização; o circuito económico concebido para a valorização, evidenciando os termos da

relação entre a entidade e os operadores económicos envolvidos; e as condições de eventual reciprocidade a serem

praticadas em relação às embalagens de produtos importados.

Em resposta, no dia 1 de outubro de 1997, os Ministérios do Ambiente e da Economia atribuiriam a primeira licença

para a implementação do denominado Sistema Ponto Verde, por um período de seis anos, o qual entrou em funciona-

mento pleno em fevereiro de 1998. Nesta primeira licença ficaram apenas abrangidos os resíduos de embalagens urba-

nas e equiparadas a urbanas. Foram assim excluídas as embalagens, e respetivos resíduos, destinadas ao uso hospitalar,

incluídas nos Grupos III e IV; as embalagens e respetivos resíduos sujeitos a outros sistemas de gestão de resíduos de

embalagens; as embalagens e respetivos resíduos que por qualquer razão não estivessem em conformidade com a le-

gislação aplicável; as embalagens e respetivos resíduos que não pagassem Valor Ponto Verde; e as embalagens e respe-

tivos resíduos que fossem determinados por acordo entre a Sociedade Ponto Verde e a Agência Portuguesa do Ambiente.

Três anos mais tarde, por decisão conjunta dos ministros do Ambiente e da Economia, seria feita uma extensão

do licenciamento, passando a Sociedade Ponto Verde a proceder, de igual modo, à gestão dos resíduos de embalagens

não urbanas, ou seja, dos que proviessem dos setores agrícola, industrial, do comércio e serviços. Em 2004, o gover-

no renovaria a licença, por mais um período de sete anos, a expirar a 31 de dezembro de 2011. Atualmente, a Sociedade

Ponto Verde assegura as retomas do fluxo urbano e do fluxo não urbano – neste segundo caso, desde o ano 2000 –

tendo ficado também, a partir de 2010, com a gestão dos resíduos de embalagens que acomodem produtos perigosos,

de acordo com a Lista Europeia de Resíduos (LER), casos os embaladores adiram ao Sistema Ponto Verde.

Em relação às embalagens do fluxo não urbano, a intervenção da Sociedade Ponto Verde é feita de forma indi-

reta, estando incumbida somente da monitorização e da auditoria do encaminhamento dos resíduos para valorização

e reciclagem. Para isso, em abril de 2006, criou um serviço específico, denominado Modelo eXtra-Urbano, de modo a

permitir que as empresas de maior dimensão dos setores da indústria, do comércio e serviços façam a gestão autóno-

ma dos seus resíduos de embalagem, contratando entidades externas que estejam integradas na rede de Operadores

de Gestão de Embalagens reconhecidos, por contrato, pela Sociedade Ponto Verde. Pelo contributo para as metas de

reciclagem, os operadores aderentes ao Modelo eXtra-Urbano – que em 2011 totalizavam 91 empresas – passaram

a receber uma contrapartida financeira, denominada Valor de Informação e Motivação.

A hora da reciclagem

O ano de 1998, o primeiro da existência funcional da Sociedade Ponto Verde, foi sobretudo dedicado à cons-

tituição da estrutura do Sistema Ponto Verde, designadamente a concretização dos contratos de adesão dos emba-

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110 | Resíduos: uma Oportunidade

ladores e das autarquias e sistemas multimunicipais e intermunicipais de resíduos sólidos urbanos (SMAUT). No

primeiro caso, os contratos com os embaladores – fundamentais para se começar a aplicar o Valor Ponto Verde nas

embalagens colocadas no mercado, com vista ao financiamento do sistema de gestão – até se iniciaram em no-

vembro de 1997. Até ao fim desse ano, tinham aderido mais de mil empresas, alcançando-se os 2660 embalado-

res em dezembro de 1998, abrangendo uma parte muito substancial das grandes e médias empresas. Em 1998, as

empresas aderentes foram responsáveis pela colocação no mercado de cerca de 470 000 toneladas de embalagens,

correspondendo a menos de dois terços do total. Desta quantidade, apenas seriam retomadas para valorização e re-

ciclagem cerca de 1495 toneladas, das quais 491 toneladas de vidro, 483 toneladas de papel e cartão, 280 toneladas

de plástico e 240 toneladas de metais. A primeira retoma seria concretizada em fevereiro desse ano, com aço recu-

perado da estação de compostagem de Setúbal, gerida pela empresa Koch.

Em certa medida, a causa para esta reduzida taxa de retoma do Sistema Ponto Verde, no primeiro ano de fun-

cionamento, deveu-se sobretudo à carência de equipamentos de recolha seletiva e de triagem, pois a instalação de

ecopontos e ecocentros, bem como a construção e o funcionamento dos centros de triagem, eram da responsabili-

dade dos municípios, em articulação com os respetivos sistemas de gestão multimunicipal e intermunicipal. Além

disso, ao longo de 1998, a Sociedade Ponto Verde apenas conseguiu estabelecer contratos com a Sociedade Parque

Expo – uma das acionistas da Valorsul –, com dois sistemas multimunicipais (Ersuc e Valorlis), com a Associação

de Municípios do Planalto Beirão e com os municípios de Setúbal e Oeiras, pelo que só ficaram abrangidos 61 con-

celhos, correspondentes a uma área de cerca de 15% do território e a 19% da população de Portugal continental. As-

sim sendo, uma parte considerável das embalagens de vidro e de papel e cartão, embora tenham continuado a ser

recolhidas, como em anos anteriores, não ficaram contabilizadas no Sistema Ponto Verde.

Saliente-se que, para efeitos da diretiva Embalagens, as taxas de valorização e de reciclagem são medidas,

respetivamente, pelo quociente entre a quantidade de resíduos de embalagem valorizados e reciclados e a quanti-

dade de embalagens colocadas no mercado, cujo valor apenas se obtém por estimativa. Todavia, as taxas de valo-

rização e reciclagem do Sistema Ponto Verde são calculadas apenas em função das embalagens declaradas pelas

empresas aderentes e dos resíduos de embalagens enviados para valorização e reciclagem por parte dos SMAUT

aderentes. Por este motivo, no âmbito do Sistema Ponto Verde, essas taxas denominam-se taxas de retoma, que são

geralmente diferentes das que são depois calculadas pelo governo nos relatórios enviados para a Comissão Euro-

peia, no âmbito da diretiva Embalagens. Numa situação normal é expectável que as taxas de retoma sejam superio-

res às verdadeiras taxas de valorização e reciclagem, uma vez que os SMAUT acabam por recolher embalagens de

empresas não aderentes ao Sistema Ponto Verde. Estas embalagens, cujos embaladores se denominam free riders,

contribuem negativamente para a sustentabilidade de um sistema de gestão integrada. Aliás, um estudo europeu,

realizado em 2006 em diversos países, estimou que os free riders são responsáveis por 10 a 50% do total de emba-

lagens colocadas no mercado.

Somente nos anos seguintes, com a consolidação do Sistema Ponto Verde e o incremento da adesão das

empresas embaladoras e de SMAUT, os resultados começaram a surgir. No caso das embalagens declaradas, em

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111 | Na senda da integração

1999 já se atingia as 635 000 toneladas, aumentando esse valor para as 661 000 toneladas no ano 2000, passando

depois a registar-se um crescimento na ordem dos 6,4% por ano. Em 2005, ano definido para o cumprimento das

metas comunitárias constantes da diretiva Embalagens, foram declaradas cerca de 902 000 toneladas. Significa isto

que a Sociedade Ponto Verde foi conseguindo, ao longo dos anos, integrar a esmagadora maioria das empresas em-

baladoras no Sistema Ponto Verde, possibilitando não só um reforço no seu financiamento como um maior rigor no

cálculo das taxas efetivas de reciclagem.

Figura 4 – Adesões dos SMAUT ao Sistema Ponto Verde

Nota: Os sistemas que deram origem à Resinorte já tinhama aderido em anos anteriores. Ainda não aderiram os municípios de Covilhã e os das ilhas açorianas de São Jorge,

Graciosa, Santa Maria e Corvo.

Fonte: Sociedade Ponto Verde.

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112 | Resíduos: uma Oportunidade

Em relação às parcerias com os SMAUT, as adesões foram mais lentas, mas no fim do ano 2000 a Sociedade

Ponto Verde tinha já assinado contratos com os principais sistemas multimunicipais e intermunicipais, que agrupa-

vam a esmagadora maioria da população portuguesa. Os sistemas mais pequenos, incluindo os das regiões autó-

nomas, foram aderindo ao longo da primeira década do século XXI.

A partir da assinatura dos diferentes contratos de adesão dos SMAUT, o processo de instalação de ecopontos e

de centrais de triagem conheceu uma evolução ímpar. Se antes da entrada em funcionamento do Sistema Ponto Verde

os materiais eram depositados em equipamentos dispersos e em reduzido número – exigindo um sacrifício das po-

pulações e maiores custos operacionais –, com o modelo dos ecopontos, integrando três contentores (azul, amarelo

e verde), verificou-se uma melhoria substancial em prol da recolha seletiva. Por um lado, os consumidores puderam,

assim, depositar os diversos materiais num só local sem terem necessidade de se deslocar a vários sítios; por outro lado,

os SMAUT fomentaram economias de escala na recolha e transporte, tanto mais que os ecopontos acabaram tam-

bém por servir para a deposição de outros resíduos com elevado potencial de reciclagem, sobretudo no caso dos jornais,

revistas e papel de escritório40. Além disso, os modelos de ecopontos – integrando três contentores de cores amarela,

verde e azul, havendo alguns com um recipiente acoplado para a recolha de pilhas –, com sinalética idêntica em todo o

país, possibilitaram que as ações de comunicação e sensibilização se tornassem mais eficazes.

Quadro 16 – Evolução das Embalagens declaradas, por material, ao sistema Ponto Verde até 2005

Ano Vidro (ton) Papel e cartão (ton) Plástico (ton) Aço (ton) Alumínio (ton) Madeira (ton)Outros

materiais (ton)Total (ton)

1998 203 098 75 592 154 171 28 489 4543 0 3907 469 800

1999 267 150 208 656 109 087 38 705 5590 2677 3554 635 419

2000 275 356 215 090 116 082 38 793 5784 6280 3218 660 603

2001 295 356 224 636 127 778 40 566 5726 10 863 2862 707 787

2002 299 919 250 487 145 041 40 663 6472 18 547 3200 764 329

2003 309 714 283 126 141 086 37 494 7775 21 775 3169 804 139

2004 339 271 295 997 149 404 41 605 6737 28 889 2399 864 302

2005 353 487 307 925 156 536 40 645 7324 33 640 2387 901 944

Fonte: Sociedade Ponto Verde.

Fruto de um forte investimento das autarquias e dos diversos SMAUT, em poucos anos a colocação de ecopontos

disseminou-se em todo o território, quer em regiões urbanas quer em zonas mais rurais, ao mesmo tempo que se implan-

taram centros de triagem. No ano 2000 já havia 11 820 ecopontos em todo o país e em 2005 atingiam as 25 379 unidades.

40 De acordo com três recentes caraterizações, feitas pelas Lipor em agosto e novembro de 2010 e em maio de 2011, a componente de jor-

nais, revistas e papel de escritório representaram 66,9%, 66,8% e 54,9%, respetivamente, do total dos materiais recolhidos nos contentores azuis.

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113 | Na senda da integração

Ainda durante o mesmo ano, os ecocentros também se foram generalizando, atingindo as 163 unidades41. No caso dos

centros de triagem, essenciais para uma separação criteriosa dos diferentes materiais, o aumento das unidades foi, de igual

modo, significativo desde a criação do Sistema Ponto Verde. Em 1998 apenas havia quatro, passando para 26 em 2005.

Em virtude disto, a par das fortes ações de sensibilização dinamizadas pela Sociedade Ponto Verde, Portugal foi

paulatinamente aumentando as retomas de resíduos de embalagens. No ano 2000, ultrapassou-se, pela primeira vez, as

100 000 toneladas de materiais de embalagens enviadas para reciclagem. Nos anos seguintes, com uma maior partici-

pação dos operadores privados na recolha de embalagens do fluxo não urbano, os desempenhos do Sistema Ponto Verde

continuaram em crescendo, tendo mais do que duplicado as quantidades retomadas entre 2000 e 2003. Neste último

ano, a Sociedade Ponto Verde reportou o envio para reciclagem de quase 220 000 toneladas de resíduos de embalagens.

Quadro 17 – Evolução das retomas por material até 2005

Ano Vidro (ton) Papel e cartão (ton) Plástico (ton) Metais (ton) Madeira (ton) Total (ton)

1998 491 483 280 240 0 1494

1999 17 814 4032 1003 586 42 23 477

2000 56 617 30 332 4236 11 720 98 103 003

2001 68 275 71 546 10 870 19 493 2439 172 623

2002 91 141 79 692 15 151 20 344 2635 193 502

2003 105 911 88 680 20 534 14 670 3655 218 679

2004 75 681 119 031 26 018 14 979 4893 270 832

2005 120 917 164 473 3114 24 926 6163 348 594

Fonte. Sociedade Ponto Verde.

Em 2005, o ano imposto pela União Europeia para Portugal cumprir as metas da diretiva Embalagens, a Socie-

dade Ponto Verde conseguiria retomar 348 594 toneladas de resíduos de embalagens, das quais 120 917 toneladas de

vidro, 164 473 toneladas de papel e cartão, 32 114 toneladas de plástico, 24 926 toneladas de metais e 6136 toneladas

de madeira, excedendo consideravelmente aquilo que constava na licença42. Desta quantidade total, 60% tinham sido

recolhidas pelos 35 SMAUT então existentes – através de ecopontos, ecocentros, recolha seletiva e aproveitamento de

escórias da incineração e de subprodutos da compostagem –, 32% pelos 20 operadores privados e 8% pelos 25 opera-

41 Os ecocentros são parques amplos com contentores de grandes dimensões destinados à receção e armazenamento de resíduos, de for-

ma separada, para posterior tratamento e reciclagem. Recebem, além dos materiais recolhidos nos ecopontos (em maior quantidade), os resíduos

de embalagens de madeira, entulhos, ramos de árvores, restos e aparas de jardim, eletrodomésticos velhos, pilhas e baterias, óleos usados, sofás,

colchões, paletes e caixas, móveis, computadores e impressoras, entre outros resíduos do circuito urbano.42 Na licença de 2004, a Sociedade Ponto Verde comprometera-se a retomar pelo menos um total de 212 184 toneladas, das quais um

mínimo de 107 801 toneladas de vidro, de 54 253 toneladas de papel e cartão, de 19 872 toneladas de plástico, de 29 715 toneladas de metais e de

544 toneladas de madeira.

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114 | Resíduos: uma Oportunidade

dores da indústria integrados no Sistema Ponto Verde. Em termos de materiais, o fluxo urbano foi responsável por cerca

de 99,8% das retomas do vidro, por 34,6% das retomas de papel e cartão, por 48,1% das retomas de plástico, por 58,3%

das retomas de metais e por 20,4% das retomas de madeira. Ou seja, o contributo dos operadores privados aderentes

ao Sistema Ponto Verde foi já maioritário para as embalagens de papel e cartão, plástico e madeira.

Esta evolução permitiu assim o cumprimento de todas as metas assumidas pela Sociedade Ponto Verde na

licença governamental, uma vez que se obtiveram taxas de reciclagem de 34% para o vidro, 53% para o papel e car-

tão, 21% para o plástico, 52% para os metais e 18% para a madeira. Globalmente, a taxa de retoma foi de 39%.

Embora a Sociedade Ponto Verde tivesse cumprido a licença, isso não significava imediatamente que Portugal

superasse as metas da diretiva Embalagens, uma vez que, neste caso, os cálculos deveriam ser feitos em função das

estimativas de embalagens efetivamente colocadas no mercado, ou seja, deveriam incluir também as embalagens

dos free riders, isto é, das empresas que estivessem fora da lei. Esta situação poderia implicar, tendo em conta que

apenas cerca de 60% das embalagens colocadas no mercado estavam inseridas no Sistema Ponto Verde, que as ta-

xas efetivas de valorização e reciclagem de embalagens em Portugal fossem menores.

Contudo, a Agência Portuguesa do Ambiente apresentaria e reportaria à Comissão Europeia outros valores,

que incluíam as estimativas da totalidade das embalagens colocadas no mercado e da totalidade de resíduos efeti-

vamente enviadas para reciclagem, quer através do Sistema Ponto Verde quer através de outros operadores privados.

Assim, para o ano de 2005, esta entidade do Ministério do Ambiente estimou que seriam colocadas 1 498 121 tone-

ladas de embalagens no mercado, o que em certa medida mostrava – mesmo tendo em consideração a existência

de outros dois sistemas integrados – para os medicamentos e fitofármacos, que serão abordados mais adiante, mas

que representam uma pequena quantidade de embalagens –, que os embaladores fora do Sistema Ponto Verde co-

locaram no mercado 39,2% do total de embalagens, estando a esmagadora maioria, portanto, fora da lei. Por material,

fazendo o cálculo a partir dos dados da Agência Portuguesa do Ambiente e da Sociedade Ponto Verde, o peso relativo

dos embaladores aderentes ao Sistema Ponto Verde em 2005 era de 92% para as embalagens de vidro, 58,6% para

as de papel e cartão, 44% para as de plástico, 45,1% para as de metal (aço e alumínio), de 27% para as de madeira e de

100% para as de outros materiais. Por outras palavras, o peso dos free riders era, nesse ano, ainda bastante elevado.

Porém, apesar disto, a Agência Portuguesa do Ambiente indicaria à Comissão Europeia que Portugal enviara

para reciclagem, nesse ano de 2005, cerca de 663 002 toneladas de resíduos de embalagens, das quais 155 607 to-

neladas de vidro, 314 118 toneladas de papel e cartão, 56 335 toneladas de plástico, 64 226 toneladas de metais e 72

716 toneladas de madeira. Deste modo, calculava que se tivesse atingido uma taxa de reciclagem global de 44,3% –

bem acima dos 25% estipulado como mínimo a alcançar, de acordo com a meta para 2005 da diretiva Embalagens,

e ligeiramente abaixo do máximo permitido, que era de 45% –, bem como taxas de reciclagem de 40,5% para o vidro,

de 59,8% para o papel e cartão, de 15,8% para o plástico, de 60,4% para os metais e de 58,4% para a madeira.

Além disso, tendo em consideração que, no ano de 2005, se incineraram 63 276 toneladas de resíduos de

embalagens nas três centrais de incineração existentes (Lipor, Valorsul e Valor Ambiente; esta última localizada no

Funchal), Portugal apresentou oficialmente uma taxa global de valorização de 50,9%, acima dos 50% exigidos pela

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115 | Na senda da integração

União Europeia. Em suma, em menos de uma década, o Portugal das lixeiras atingira resultados surpreendente-

mente elevados na valorização e reciclagem de embalagens.

Quadro 18 – Evolução das Embalagens declaradas, por material, ao sistema Ponto Verde entre 2006 a 2011

Ano Vidro (ton) Papel e cartão (ton) ECAL (ton) Plástico (ton) Aço (ton) Alumínio (ton) Madeira (ton)Outros

materiais (ton)Total (ton)

2006 374 340 289 189 30 390 171 413 48 313 7899 41 911 2944 966 399

2007 397 694 302 117 30 745 181 920 49 103 8674 43 049 3428 1 016 730

2008 422 599 329 867 33 602 192 719 49 544 8404 51 109 3038 1 090 882

2009 420 117 354 631 36 080 197 132 51 555 8704 53 056 2970 1 124 245

2010 425 033 355 718 36 122 197 674 49 536 8476 51 386 3155 1 127 100

2011 410 387 348 764 36 241 199 159 51 274 9052 54 501 2509 1 111 887

Fonte: Sociedade Ponto Verde.

Estes resultados oficiais devem ser olhados com alguma prudência, por serem demasiado otimistas. Com

efeito, numa análise crítica aos dados da Agência Portuguesa do Ambiente mostra-se que os operadores fora do uni-

verso da Sociedade Ponto Verde terão enviado para reciclagem, ao longo de 2005, cerca de 34 690 toneladas de vidro,

149 645 toneladas de papel e cartão, 24 221 toneladas de plástico, 39 300 toneladas de metal e 66 553 toneladas de

madeira. Significa isto, se assim fosse, que a Sistema Ponto Verde, com toda a estrutura conhecida, apenas teria con-

tribuído para o total nacional de materiais de embalagem enviados para reciclagem em 77% no caso do vidro, 52,4%

no caso do papel e cartão, 57% no caso do plástico, 38,8% no caso dos metal e 8,5% no caso da madeira. Sem pôr em

dúvida os valores oficiais indexados aos operadores privados fora do universo da Sociedade Ponto Verde, resta apurar

se o sistema de controlo, por parte das instâncias ambientais, é eficaz de modo a saber-se se essas quantidades en-

viadas para valorização e reciclagem eram efetivamente resíduos de embalagens. E saber também a razão para haver

uma quantidade ainda tão elevada de embaladores em incumprimento, pois isso resulta em situações de concorrên-

cia desleal face aos embaladores cumpridores, e afeta a sustentabilidade financeira do Sistema Ponto Verde.

Em todo o caso, a Comissão Europeia aceitou como válidos os dados do governo português. Mas não houve

tempo sequer para festejos. Na União Europeia exigiu-se mais. De facto, em 2004, a diretiva Embalagens fora alte-

rada e estipulara novas metas com objetivos de reciclagem e valorização mais elevados a serem cumpridas pela ge-

neralidade dos países no ano 2008. Mais uma vez, Portugal, Grécia e Irlanda beneficiaram de uma derrogação, que

lhes alargou esse prazo para finais de 201143. Assim, ficou estabelecida, para o ano em causa, a obrigatoriedade de

43 Esta legislação comunitária, Diretiva n.º 2004/12/CE, foi transposta para o direito nacional pelo Decreto-Lei n.º 92/2006 de 25 de maio.

Para os estados-membros que tinham aderido à União Europeia nos anos mais recentes foi aberto um processo negocial para a definição, caso a

caso, dos prazos de cumprimento.

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116 | Resíduos: uma Oportunidade

uma taxa de valorização mínima de 60% em peso das embalagens colocadas no mercado e uma taxa de reciclagem

global no mínimo de 55%, sendo de pelo menos 60% para as embalagens de vidro, de outro tanto para as de papel e

cartão, de 50% para as de metal, de 22,5% para as de plástico e de 15% para as de madeira.

Partindo destas metas, a Sociedade Ponto Verde viria a intensificar, na última meia década, as suas ações de

promoção da recolha seletiva, quer no fluxo urbano quer no fluxo não urbano, conseguindo, em paralelo, abranger

cada vez mais embaladores e, concomitantemente, passando a assumir a responsabilidade de gestão de maior

percentagem maior de embalagens colocadas no mercado. Assim, os contratos com os embaladores totalizavam

10 096 no ano de 2011, quando em 2006 atingiam os 7235. No caso das embalagens declaradas (e que pagaram

Valor Ponto Verde), em 2006 totalizavam 966 398 toneladas, tendo subido para 1 111 892 de toneladas em 2011.

Desde 2008, por razões de índole económica, o crescimento das quantidades de embalagens colocadas no mer-

cado foi mais moderado, registando-se mesmo uma ligeira diminuição entre 2010 e 2011. Em todo o caso, em ter-

mos globais, as novas metas da diretiva Embalagens exigiam um duplo esforço na recolha seletiva, quer porque as

metas se tornaram mais elevadas, quer por estar em causa a gestão de uma maior quantidade de resíduos, devido

ao aumento das adesões e das embalagens declaradas.

Quadro 19 – Evolução das retomas por material entre 2006 e 2011

Ano Vidro (ton) Papel e cartão (ton) Plástico (ton) Metais (ton) Madeira (ton) Total (ton)

2006 133 292 165 013 24 860 31 200 15 468 369 833

2007 151 111 217 343 33 396 35 568 27 161 464 579

2008 168 215 247 067 53 436 37 855 28 462 535 035

2009 181 127 291 815 62 015 36 944 28 732 600 633

2010 191 681 324 551 65 080 46 244 40 307 667 863

2011 217 158 327 203 73 773 50 314 42 529 710 977

Fonte: Sociedade Ponto Verde.

No caso específico do fluxo urbano, as autarquias viriam a reforçar muito os equipamentos de recolha na via

pública que aumentaram substancialmente. Em finais de 2010, os contentores verdes totalizavam 48 215 conten-

tores verdes, existindo 41 893 contentores azuis e 41 329 contentores amarelos, que no conjunto integravam 40 278

ecopontos – ou seja, verificou-se um aumento de 241% em relação ao ano 2000 e de 58,7% em relação a 2005. Os

ecocentros, por sua vez, cresceram para as 204 unidades em 2010, mais 41 do que cinco anos antes, enquanto os

centros de triagem aumentaram para as 33 unidades, mais sete do que em 2005. Em parte, esta evolução deveu-se

também à integração de mais SMAUT no Sistema Ponto Verde, particularmente os das regiões autónomas. Além

disso, os sistemas de recolha porta a porta foram sendo alargados a mais zonas, sobretudo nos municípios das áreas

metropolitanas de Lisboa e Porto, obtendo-se ainda melhores desempenhos na recolha seletiva de embalagens. Em

2010, este modelo de recolha abrangia já uma população de 361 351 habitantes.

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117 | Na senda da integração

Figura 6 – Densidade de contentores e ecopontos por SMAUT

Fonte: Sociedade Ponto Verde (2011)

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120 | Resíduos: uma Oportunidade

Esta aposta tem tido bons frutos. Com efeito, em 2005, a capitação média das retomas da Sociedade Ponto

Verde a partir da recolha seletiva feita pelos consumidores – excluindo, assim, os fluxos complementares, ou seja, os

materiais posteriormente recuperados ou valorizados nas unidades de compostagem e nas centrais de incineração

– era de 18,79 kg por habitante, enquanto em 2010 já se situavam nos 32,73 kg por habitante, isto é, um crescimento

de 74% em apenas cinco anos.

Essas melhorias verificaram-se em todo o tipo de resíduos de embalagens, mas foram muito distintas nos

diversos SMAUT, tornando-se interessante constatar que, em 2010, os melhores desempenhos não se registaram

nas regiões mais urbanas e de maior nível de vida. Por exemplo, se é certo que, de acordo com dados da Agência Por-

tuguesa do Ambiente, referentes a 2009, os sistemas que apresentaram maiores quantidades de resíduos recolhi-

dos seletivamente foram os da Algar (88 960 toneladas), Valorsul (82 137 toneladas), AMTRES (81 419 toneladas),

Lipor (56 215 toneladas) e Ersuc (36 206 toneladas) – que representaram 57% do total de Portugal continental –, as

capitações nem sempre foram muito elevadas, em comparação com zonas menos urbanas. Por exemplo, na área

de influência da Valorsul e da Lipor – que abrangem, entre outros municípios, os concelhos de Lisboa e Porto –, as

capitações da recolha seletiva em 2010, para todos os resíduos de embalagem, foram de 34,72 kg e 36,87 kg por ha-

bitante, respetivamente; ou seja, embora ligeiramente acima da média nacional, não ocuparam sequer um dos cinco

melhores desempenhos entre todos os SMAUT.

Apesar deste reforço contínuo na promoção da recolha seletiva no fluxo urbano, certo é que, em termos glo-

bais, os operadores privados foram ganhando cada vez mais peso nas retomas do Sistema Ponto Verde. Com efeito,

se bem que os SMAUT tenham registado um incremento na recolha multimaterial de quase 65% entre 2005 e 2010

– passando de 208 854 toneladas para 344 393 –, o fluxo não urbano, dinamizado pelos operadores privados, refor-

çou o seu contributo, pois se em 2005 representavam cerca de 40% do total das retomas, em 2010 já atingiam 48,4%.

De qualquer modo, o Sistema Ponto Verde conseguiu cumprir, excedendo nalguns casos largamente a ge-

neralidade das metas estabelecidas pela licença governamental para 2011, feitas de acordo com as exigências da

diretiva Embalagens, com a única exceção: o vidro, cujas retomas atingiram 53%, quando deveriam ter alcançado os

60%44. O caso do vidro acaba por ser, na aparência, surpreendente, uma vez que era o material de embalagens que,

desde os anos 90, melhores taxas de reciclagem apresentava em Portugal. Todavia, nos últimos anos, tem sido no-

tório um menor ritmo de crescimento da recolha seletiva. Com efeito, entre 2005 e 2011, a retoma de vidro de em-

balagem cresceu 79,6%, um valor que aparentando ser bom, acaba por contrastar com os aumentos relativos, em

período homólogo, muito mais significativos nos outros materiais: 98,9% para o papel e cartão, 129,7% para o plás-

tico, 101,9% para o metal e 590% para a madeira. Se se acrescentar que, no período referido, o aumento global das

44 De acordo com a licença governamental, para além das metas em termos percentuais em relação às embalagens declaradas, a Socie-

dade Ponto Verde deveria, no ano de 2011, retomar pelo menos 490 881 toneladas de resíduos de embalagens, com um mínimo de 227 060 tone-

ladas de vidro, de 173 158 toneladas de papel e cartão, de 43 138 toneladas de plástico, de 47 314 toneladas de metais e de 211 toneladas de madeira.

Significa assim a Sociedade Ponto Verde conseguiu exceder em 44,4% a meta das retomas totais, ultrapassando em 89% a meta para o papel e

cartão, em 71,0% para o plástico e em 63% para os metais. No caso do vidro, a meta ficou aquém em apenas 4,4%.

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embalagens declarados no Sistema Ponto Verde foi de 23,3% – tendo sido de apenas 16,1% para o vidro – e o cresci-

mento global das retomas alcançou os 104%, significa que o desempenho na recolha seletiva deste tipo de resíduos

foi insatisfatório.

As causas para esta situação são diversas. Por um lado, no caso do vidro, o contributo do fluxo não urbano é

residual, uma vez que a esmagadora maioria das embalagens deste material são primárias – ou seja, constituídas

sobretudo por garrafas, frascos e boiões, praticamente exclusivas do circuito urbano de resíduos. Por isso, ao contrá-

rio do que sucede com as embalagens de plástico, madeira, papel e cartão, a recolha seletiva do vidro é quase exclu-

sivamente feita através dos SMAUT. Ora, além de serem materiais unitariamente mais pesados e de maior volume

e não serem recolhidos pela generalidade dos sistemas porta a porta, a sua colocação em ecopontos ou ecocentros

acarreta a necessidade de uma maior colaboração dos consumidores finais, o que não tem estado a suceder num

nível desejável.

Em todo caso, independentemente dos resultados globais que vierem a ser apurados pela Agência Portugue-

sa do Ambiente em relação a 201145 –, o Sistema Ponto Verde tem vindo a demonstrar ser cada vez mais um modelo

de sucesso num país que, há pouco mais de década e meia, tinha quase tudo por fazer no setor dos resíduos sólidos

urbanos. De facto, é sempre bom recordar que há 15 anos Portugal era um país de lixeiras, e hoje ombreia já com es-

tados comunitários com políticas de recolha seletiva e reciclagem muito mais antigas e consolidadas.

Um sistema verde em maturação financeira

Como as atividades económicas necessitam de ter em consideração as questões ambientais, também as po-

líticas de ambiente devem procurar modelos económicos sustentáveis. Significa isto que quaisquer medidas em prol

do ambiente não devem ser feitas apenas para se atingir metas, pois estas podem, numa análise global, comportar

custos económicos tão elevados que se tornam incomportáveis para a sociedade, causando assim, a médio ou lon-

go prazo, o colapso daquilo que ambientalmente se pretendia proteger ou incentivar. O caso da gestão dos resíduos

não foge a esta regra. Embora o objetivo fulcral dos vários Sistemas Ponto Verde na União Europeia seja a promoção

da reciclagem e da valorização, jamais será sustentável se, no início, se pretendesse alcançar, de imediato e a qual-

quer custo económico, a recolha integral das embalagens e o seu encaminhamento para valorização e reciclagem.

De facto, pelo menos numa fase inicial, e mostrando ser um aparente paradoxo, o modelo financeiro de qual-

quer sistema de gestão integrado de resíduos tem em si subjacente algum insucesso na taxa de recolha seletiva, a

menos que os resíduos tenham um alto valor de mercado. Ou, dizendo de outra forma, as taxas de valorização e re-

45 Os dados mais recentes da Agência Europeia de Ambiente são referentes a 2008, apontando para uma taxa global de reciclagem de

embalagens (incluindo Sistema Ponto Verde e outros operadores) de 61%, correspondente a 1 088 186 toneladas, e para uma taxa de valorização

global de 66%, correspondente a 1 1178 626 toneladas. Em termos de taxa de reciclagem por material, em 2008, o vidro contabilizou 51,8%, o papel

e o cartão 87,8%, o plástico 19,1%, o metal 64,8% e a madeira 64,5%.

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ciclagem multimaterial não podem atingir níveis demasiado elevados, na generalidade dos casos, sem se ponderar

os efeitos no necessário equilíbrio financeiro do Sistema Ponto Verde, que desejavelmente se deve basear na não

repercussão dos custos no consumidor final. Por isso mesmo, quando a União Europeia definiu as metas de recicla-

gem e valorização teve sempre em conta que, no início, metas demasiado ambiciosas poderiam colocar em causa

os objetivos fundamentais da diretiva Embalagens. Na verdade, a reciclagem e a valorização não devem ser vistas

como um objetivo para alcançar a sustentabilidade; são sim um meio para atingir essa sustentabilidade, que tem de

ser, em simultâneo, ambiental e económica.

Como em qualquer sistema económico, o princípio básico da sustentabilidade do Sistema Ponto Verde as-

senta exclusivamente no equilíbrio entre as receitas e as despesas. Por um lado, há os proveitos do Valor Ponto Verde

aplicado aos embaladores e os proveitos das vendas aos recicladores dos resíduos de embalagens retomados. No

entanto, no caso da Sociedade Ponto Verde – como noutros sistemas estrangeiros –, o Valor Ponto Verde acaba por

ser a principal fonte de receitas – entre 85% e 95% do total –, tendo em conta que os montantes arrecadados pela

venda dos materiais são sempre marginais, uma vez que a reciclagem de embalagens nunca será economicamente

autossustentável. Aliás, em casos especiais, a Sociedade Ponto Verde tem mesmo de pagar aos recicladores para

receberem determinados materiais.

No outro lado do modelo financeiro estão os custos inerentes à recolha, triagem e operações de reciclagem,

que implicam milhões de consumidores e inúmeras entidades públicas e privadas. Ora, sendo a Sociedade Ponto

Verde uma entidade sem fins lucrativos, os montantes amealhados servem exclusivamente para suportar, além

dos encargos administrativos e das campanhas de sensibilização ambiental, os custos das operações de recolha

seletiva e triagem. Assim, desde o início, a grande dificuldade na definição do modelo desta gestão empresarial foi

exatamente a obtenção de um equilíbrio entre o Valor Ponto Verde, a pagar pelos embaladores, e as contrapartidas

financeiras a atribuir aos operadores, que numa fase inicial eram exclusivamente os SMAUT.

Nesta ótica, compreensivelmente, os diversos embaladores não pretendiam que os custos inerentes ao Sis-

tema Ponto Verde lhes fossem demasiado elevados. Além disso, tendo em consideração as quantidades e as cara-

terísticas dos diferentes materiais usados nas embalagens – e as especificidades de cada tipo, em termos de custos

de recolha seletiva, triagem, reciclagem e valorização –, os embaladores de uma determinada fileira não estavam

dispostos a suportar em demasia os custos de outra fileira.

Por outro lado, com o intuito de se atingirem as metas da diretiva Embalagens, pretendia-se que os SMAUT,

e mais tarde os operadores privados, vissem nos valores das contrapartidas financeiras um estímulo económico im-

portante para investirem mais na recolha seletiva. Contudo, esses montantes nunca poderiam ser demasiado eleva-

dos, sob risco de a Sociedade Ponto Verde não ter depois capacidade financeira suficiente para suportar os encargos;

ou, em alternativa, ver-se obrigada a aumentar bastante o Valor Ponto Verde, arriscando-se assim a que os emba-

ladores arranjassem formas sub-reptícias de não declararem a totalidade das embalagens colocadas no mercado.

Esse perigo – e não apenas em Portugal – é efetivamente uma realidade. Em alguns sistemas europeus de

gestão integrada de embalagens, como o da Alemanha, surgiram já taxas de reciclagem para determinados mate-

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123 | Na senda da integração

riais acima de 100%. Esta situação deve-se, em grande parte, aos free riders, que no sistema alemão se estima repre-

sentarem 20% do total de embalagens colocadas no mercado. Sendo também recolhida uma parte de embalagens

não declaradas, isto significa que o sistema apenas ilusoriamente se mostra eficaz, pois, na verdade, valores dema-

siado elevados podem constituir sobretudo um aviso para a necessidade de reforçar as medidas que obriguem todos

os embaladores a comparticipem no Sistema Ponto Verde.

Daí que, nos últimos anos, a Sociedade Ponto Verde tenha intensificado a fiscalização para detetar situações

anómalas ou ilegais, quer de embaladores que imprimem o símbolo Ponto Verde nas embalagens, mas não pa-

gam Valor Ponto Verde, quer de embaladores que declararem uma quantidade inferior de embalagens do que as

que efetivamente colocaram no mercado. Assim, apenas entre 2007 e 2009, a Sociedade Ponto Verde conseguiu

celebrar 184 adesões de embaladores após detetar casos de utilização abusiva do símbolo Ponto Verde, o que repre-

sentou um acréscimo de 6700 toneladas de embalagens declaradas e uma receita de Valor Ponto Verde superior a

1,2 milhões de euros. No caso das auditorias, a Sociedade Ponto Verde conseguiu, através de cerca de 400 proces-

sos, aumentar em mais de 40 000 toneladas as embalagens declaradas ao Sistema Ponto Verde, que se traduziram

num reforço financeiro superior a três milhões de euros. Convém, no entanto, salientar que estas auditorias servem

sobretudo para garantir a equidade entre os embaladores e, por isso mesmo, em 2010 a Sociedade Ponto Verde até

devolveu mais de um milhão de euros de receitas a diversos embaladores que tinham feito declarações por excesso.

Por tudo isto, para se encontrar um ponto de equilíbrio – não onerando em demasia os embaladores e incen-

tivando, por via económica, a reciclagem e a valorização –, o Sistema Ponto Verde contou sempre, conforme estava

subjacente à diretiva Embalagens, com um previsível grau de ineficiência na recolha seletiva. Ou seja, sabendo-se

ser expectável que não se conseguiria retomar uma parte das embalagens, os montantes de contrapartida poderiam

assim ser mais elevados, porque «aproveitavam» os Valores Ponto Verde das embalagens que, tendo sido coloca-

das no mercado, não fossem posteriormente retomadas. Por hipótese académica, sem considerar outros custos e

ponderações, se todos os SMAUT recolhessem apenas uma em cada 10 embalagens colocadas no mercado – uma

taxa de retoma de 10% –, a Sociedade Ponto Verde até poderia pagar apenas por essa embalagem recolhida todo o

montante correspondente ao Valor Ponto Verde das 10 embalagens colocadas no mercado. No entanto, se no ano

seguinte os SMAUT recolhessem duas em cada 10 embalagens – taxa de retoma de 20% –, o montante a pagar

pela Sociedade Ponto Verde nunca poderia ser o dobro, caso contrário entraria em défice financeiro. Ou, para obviar

tal facto, o embalador teria de pagar o dobro do Valor Ponto Verde por cada embalagem. Este exemplo serve apenas

para indicar que, caso não sejam devidamente ponderados os aspetos financeiros, um aumento abrupto das taxas de

reciclagem podem colocar em causa a sustentabilidade financeira do Sistema Ponto Verde.

Nos primeiros anos de funcionamento da Sociedade Ponto Verde, sendo expectável que as quantidades de

retoma ainda não fossem elevadas nem tão-pouco os embaladores aderentes, ficou determinado que, a título de

Valor Ponto Verde, as embalagens de vidro, papel e cartão, plástico, aço, alumínio, madeira e outros materiais colo-

cadas no mercado pagariam, por cada tonelada, respetivamente 1,50 euros, 10 euros, 39,90 euros, 17,05 euros, 69,08

euros e 74,08 euros. Apesar dos montantes globais mesmo assim atingirem valores significativos – por exemplo,

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124 | Resíduos: uma Oportunidade

as receitas da Sociedade Ponto Verde em 1998 foram de 1,1 milhões de euros, subindo para 4,9 milhões de euros

em 1999 –, em termos de valor unitário mostravam-se quase irrelevantes. Assim, tendo em conta estes valores,

por cada garrafa de vidro não-reutilizável com um peso de 150 gramas, os embaladores apenas pagaram cerca de

0,023 cêntimos de euro; por cada garrafa de plástico PET de 50 gramas pagaram um pouco menos de 0,2 cêntimos;

por cada lata de alumínio com 15 gramas pagaram 0,1 cêntimos, e por cada caixa de cartão com 20 gramas pagaram

somente 0,02 cêntimos. Ou seja, com valores unitários tão baixos, cumpria-se o princípio de não onerar os consu-

midores pela criação do Sistema Ponto Verde.

Definidos estes montantes e estabelecendo-se assim uma previsão de receitas, a Sociedade Ponto Verde

procurou que os Valores de Contrapartida a pagar aos SMAUT pudessem não só cobrir os custos inerentes à recolha

seletiva e à triagem dos resíduos de embalagens, mas também constituíssem um estímulo para melhorar as taxas

de reciclagem de alguns materiais. Deste modo, tendo em conta que o Sistema Ponto Verde não era «perfeito» –

ou seja, admitia-se que uma parte substancial das embalagens colocadas no mercado não seria reciclada nem va-

lorizada –, foi possível definir Valores de Contrapartida, por tonelada de material, substancialmente superiores aos

respetivos Valores Ponto Verde. Assim, em 1997, a Sociedade Ponto Verde comprometeu-se a pagar 21,47 euros por

cada tonelada de vidro entregue para reciclagem pelos SMAUT, 34,92 euros por tonelada no caso de papel e cartão,

99,76 euros por tonelada no caso do plástico, 74,82 euros por tonelada no caso do aço e 364,12 euros por tonelada no

caso do alumínio. Saliente-se que, nos primeiros anos, as embalagens de madeira, apesar de pagarem Valor Ponto

Verde, não tinham taxa mínima de reciclagem para efeitos da diretiva Embalagens, pelo que os SMAUT não rece-

biam Valores de Contrapartida.

Logo nesta fase inicial, rapidamente se constatou que os Valores Ponto Verde necessitavam de reajustes, so-

bretudo porque, devido aos investimentos em ecopontos, ecocentros e estações de triagem e aos custos de gestão

na recolha seletiva e na triagem, os SMAUT reivindicaram aumentos substanciais nas contrapartidas financeiras.

Mas a Sociedade Ponto Verde não tinha, nessa altura, receitas suficientes para satisfazer esses pedidos. De facto,

analisando o rácio entre os Valores Ponto Verde e os Valores de Contrapartida, o sistema não conseguiria atingir, no

futuro, as metas impostas pela diretiva Embalagens sem entrar em dificuldades financeiras. Numa análise simplis-

ta, o Valor Ponto Verde pago pelos embaladores de vidro apenas serviria para suportar os encargos de retomas cor-

respondentes a uma taxa de reciclagem de cerca de 7%. Para os outros materiais, a situação era mesmo desfavorável:

a taxa de reciclagem a partir da qual o Valor Ponto Verde de cada material passava a ser insuficiente para suportar

os Valores de Contrapartida era de 28,6% para o papel e cartão, de 40% para o plástico, de 22,8% para o aço e de 19%

para o alumínio. É certo que, tendo esses materiais taxas de reciclagem mais baixas, dir-se-ia que a situação finan-

ceira não seria assim tão dramática, mas, em todo o caso, significava que, no futuro, mantendo-se este quadro, os

embaladores de vidro estariam a pagar de menos e os outros embaladores de mais.

Convém salientar que, numa primeira fase, apesar de as taxas globais de reciclagem do vidro serem mais

elevadas, até 1999 apenas uma pequena percentagem estava integrada no Sistema Ponto Verde e, portanto, os cus-

tos em termos de contrapartidas financeiras aos SMAUT era reduzida. De facto, se em 1996 se tinham recolhido,

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125 | Na senda da integração

através do modelo implantado pela AIVE, quase 80 000 toneladas de vidro, em 1998 o Sistema Ponto Verde apenas

foi responsável pela retoma de 491 toneladas, aumentando para 17 814 toneladas em 1999. Significa isto que, nos

primeiros tempos, o setor do vidro até concedeu, ao Sistema Ponto Verde, um saldo financeiro positivo, pois os em-

baladores terão pago, a título de Valor Ponto Verde, cerca de 300 000 euros (correspondentes a 203 098 toneladas

de material colocado no mercado) e apenas foram pagos cerca de 10,5 mil euros (correspondentes a 491 toneladas

retomadas sob a responsabilidade do Sistema Ponto Verde). Em 1999, tendo já sido contabilizadas 17 814 toneladas

de vidro para reciclagem no Sistema Ponto Verde, as contrapartidas pagas já se aproximaram dos 300 000 euros, o

que já causaria um défice, se o Valor Ponto Verde se mantivesse em 1,50 euros por tonelada.

Por estes motivos, após uma negociação no seio da Sociedade Ponto Verde e com outros agentes, interme-

diada pelo Ministério do Ambiente, seriam definidos, no ano 2000, novos Valores Ponto Verde e Valores de Con-

trapartida que, de certa forma, corrigiram alguns destes problemas iniciais. Assim, o Valor Ponto Verde aumentou

substancialmente para o vidro, passando os embaladores a pagar 6,30 euros por tonelada, ou seja, uma subida na

ordem dos 320%. As embalagens de papel e cartão sofreram um aumento de 58%, enquanto os agravamentos do

plástico, do aço e de outros materiais foram, respetivamente, de 203,5%, 81,2% e 70,6%. No entanto, os ecovalores

das embalagens de alumínio e da madeira beneficiaram de reduções significativas.

Além de tornar mais justa a distribuição das comparticipações entre os diversos embaladores no financia-

mento da Sociedade Ponto Verde, estas alterações possibilitaram assim satisfazer as pretensões dos SMAUT, que

beneficiaram de acréscimos nos Valores de Contrapartida, sobretudo para os materiais que exigiam um esforço

maior de retoma, como o plástico e o alumínio. Os valores pagos aos SMAUT pela recolha seletiva passaram assim

a ser, por cada tonelada de embalagens, de 38,91 euros para o vidro, de 63,85 euros para papel e cartão, de 803,06

euros para o plástico, de 124,70 euros para o aço e de 964,18 euros para o alumínio. A madeira, embora não tivesse

valores mínimos de reciclagem na diretiva Embalagens, passou a ter uma contrapartida de 14,96 euros por tonelada.

Até ao fim da primeira licença e com a integração do fluxo não urbano no Sistema Ponto Verde, tanto os Va-

lores Ponto Verde como os Valores de Contrapartida foram sofrendo pequenos reajustes anuais. Em 2003 foi intro-

duzida uma nova metodologia nos apoios financeiros às retomas, com uma diferenciação das contrapartidas ao aço

e ao alumínio – em função de os materiais serem provenientes da recolha seletiva ou das escórias das centrais de

incineração –, e também uma diferenciação nas contrapartidas entre resíduos de embalagens recolhidos no fluxo

urbano, pelos SMAUT, e no fluxo não urbano, pelos operadores privados. Tendo em conta que os operadores priva-

dos do setor da distribuição e da indústria tinham maiores facilidades e menores custos nas operações de recolha

seletiva, passaram assim a receber montantes ligeiramente inferiores aos praticados com os sistemas municipais

e as autarquias. Além disso, no caso das embalagens plásticas, o Valor de Contrapartida foi fixado em função do

tipo de plástico. Assim, em 2003, enquanto no fluxo urbano a Sociedade Ponto Verde pagava uma contrapartida de

685,22 euros por tonelada de plástico, independentemente do tipo, no caso dos operadores privados era necessário

que fizessem uma triagem mais fina, ficando definido que, por tonelada, o filme plástico receberia 342,61 euros, o PET

439,79 euros, o PEAD 245,60 euros, o PVC 124,70 euros e o EPS 378,40 euros.

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126 | Resíduos: uma Oportunidade

Embora a participação do fluxo não urbano tenha contribuído de forma significativa para o aumento das taxas

de reciclagem – sobretudo nas embalagens de papel e cartão, plástico e madeira –, os custos operacionais do Siste-

ma Ponto Verde viriam a sofrer um agravamento nesse ano, pelo que, após a renovação da licença, em 2004, foram

introduzidas novas alterações tarifárias.

Deste modo, em relação aos Valores Ponto Verde, o renovado modelo de financiamento acrescentou, além

da diferenciação por material – que passou a incluir, de forma autónoma, as embalagens de cartão para alimentos

líquidos (ECAL) –, uma divisão em duas categorias, definidas em função de a embalagem pertencer ao fluxo urba-

no (categoria A) ou não urbano (categoria B). No caso específico do fluxo urbano, estes valores – que seriam alvo

de novas afinações, em anos seguintes, de modo a compensarem os aumentos quase generalizados dos Valores de

Contrapartida a pagar aos SMAUT – tiveram em conta a situação registada em termos de taxas de reciclagem para

cada material. Posteriormente foi aplicada uma diferenciação no Valor Ponto Verde, em função das embalagens se-

rem primárias, secundárias ou terciárias, ou se destinarem a produtos de grande consumo ou a produtos industriais

e de matérias-primas. Em 2010, com a inclusão no Sistema Ponto Verde das embalagens de produtos industriais

e matérias-primas consideradas perigosas, os respetivos embaladores começaram a pagar Valor Ponto Verde em

montantes unitários similares aos aplicados às embalagens de produtos industriais e de matérias-primas.

Para corrigir algumas distorções, em 2007 seria remodelada a forma como se calculavam os Valores de Con-

trapartida a pagar aos diversos SMAUT, que passaram assim a ser distintos, em função da tipologia urbana onde

operavam e do cumprimento de determinados objetivos. Contudo, os montantes pagos pela Sociedade Ponto Verde

eram então claramente superiores aos praticados na primeira licença. Nesta fase, os SMAUT ficaram divididos em

três grupos – sistemas rurais (tipologia 1), sistemas mistos (tipologia 2) e sistemas urbanos (tipologia 3) –, deter-

minados em função da área, densidade populacional e quantidade de resíduos sólidos urbanos produzidos anual-

mente. Esta divisão teve como objetivo apoiar, com montantes mais elevados, os sistemas rurais, por os encargos de

recolha seletiva serem superiores, dado que, nestes casos, se torna necessário percorrer maiores distâncias, com os

correspondentes agravamentos nos custos de transporte.

Similar alteração se fez para as retomas de embalagens do fluxo não urbano. Neste caso, após aprovação go-

vernamental, a Sociedade Ponto Verde estabeleceu valores mais reduzidos de contrapartida financeira, além de ter

modificado a denominação deste tipo de apoio. Assim, a partir da licença de 2005, os operadores privados de gestão

de resíduos passaram a receber um Valor de Informação e Motivação, fixado em cinco euros por tonelada para o vi-

dro, a madeira e o papel e cartão, em 15 euros por tonelada para o plástico e o aço, e em 35 euros por tonelada para

o alumínio.

Em 2009 seria estabelecido um novo modelo de cálculo das contrapartidas aos SMAUT, em função da quan-

tidade de recolha seletiva per capita ao longo do ano, embora com um fator de correção de distorções. Assim, para

cada material, os valores de contrapartida por tonelada recolhida aumentam quando é ultrapassada a capitação mé-

dia nacional de retoma, aumentando ainda mais se os desempenhos superam o rácio per capita necessário para o

cumprimento da diretiva Embalagens. No entanto, essa contrapartida reduz-se significativamente se a capitação

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das retomas for demasiado elevada, embora o objetivo seja sobretudo condicionar práticas menos idóneas e não

tanto colocar um travão à recolha seletiva.

Nesse sentido, a Sociedade Ponto Verde elabora, anualmente, uma estimativa da quantidade potencial de

embalagens colocadas no mercado na área de influência de cada SMAUT, sendo calculada a capitação média ex-

pectável em Portugal e a capitação média necessária para se cumprirem as metas da diretiva Embalagens. Tendo em

consideração vários critérios, é assim possível determinar o potencial máximo de recolha em cada SMAUT. Caso

não fosse determinado um patamar em função desse potencial máximo de retomas – e, em paralelo, um forte me-

canismo financeiro de desincentivo para não ser ultrapassado –, poderia haver a tentação de os SMAUT recolherem

resíduos de embalagens do circuito não urbano ou procederem a «importações» não autorizadas. Como os Valores

de Contrapartida a atribuir quando se ultrapassa esse potencial máximo são bastante baixos – ao nível dos atribuídos

quando se fica abaixo da capitação média nacional –, consegue-se assim evitar práticas menos idóneas.

Este último e complexo modelo financeiro da Sociedade Ponto Verde aparentava ser perfeito, especialmen-

te por corrigir diversas distorções. Mas em meados de 2009, um projeto piloto desencadeou um grave problema de

sustentabilidade financeira no Sistema Ponto Verde. De facto, com o objetivo de incentivar ainda mais as taxas de

retoma, a Sociedade Ponto Verde aproveitou o surgimento em Portugal de uma unidade de reciclagem de plásticos

mistos – ou seja, de plásticos heterogéneos que anteriormente eram rejeitados nas operações de triagem, devido ao

elevado grau de contaminação –, comparticipando as retomas como se fossem plásticos normalizados. Os prin-

cípios subjacentes a este projeto piloto até eram, saliente-se, nobres e justos. Por um lado, as embalagens que re-

sultavam em resíduos de plásticos mistos também pagavam Valor Ponto Verde; por outro, os consumidores já se-

paravam esses resíduos e não compreendiam as razões para não lhes ser dado um destino adequado, mas que se

devia ao facto de não haver até então tecnologia adequada; e, por fim, os plásticos mistos causavam um problema na

gestão das estações de triagem, uma vez que eram tratados como refugo, encarecendo assim os custos de recolha.

Contudo, este projeto iniciou-se com especificações técnicas ainda experimentais – revistas mais tarde e en-

tão incluídas na licença da Sociedade Ponto Verde46 –, pelo que acabaram sendo retomadas grandes quantidades de

resíduos de plásticos mistos que não apresentavam boa qualidade, além de conterem um grande peso de resíduos

que não provinham de embalagens. Os problemas relacionados com a inadequada triagem seriam entretanto retifi-

cados, através de campanhas de caraterização para controlo de qualidade dos materiais expedidos para reciclagem,

mas o saldo final foi amargo. De facto, embora as retomas de plástico tenham aumentado significativamente em

2009 – mais cerca de 10 000 toneladas em comparação com o ano anterior, o que seria uma boa notícia –, o reverso

da medalha foi uma subida abrupta dos encargos da Sociedade Ponto Verde. Não apenas por causa dos Valores de

46 Trata-se do Despacho n.º 21894-A/2009 de 30 de setembro, que refere que os plásticos mistos englobam diversos tipos de embala-

gens de plástico de uso comum (PVC, PP e PS), resultantes do material residual da triagem dos materiais com especificações próprias. Do ponto

de vista técnico, os lotes devem ter mais de 90% em massa de plásticos mistos, estar isentos de resíduos perigosos e conter no máximo 0,5% de

resíduos de metais, madeira, cerâmica e vidro, e não podem ultrapassar 5% de outros contaminantes, designadamente materiais não plásticos,

embalagens com terra e embalagens com fixação metálica.

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Contrapartida pagos aos SMAUT – e que não estavam cabimentados no início desse ano –, mas também porque o

reciclador necessitava de verbas elevadas para processar os plásticos mistos. Deste modo, os custos operacionais

agravaram-se, também em parte por causa da quebra do valor no mercado da reciclagem do papel e cartão, tendo a

Sociedade Ponto Verde – que em 2008 apresentara um resultado líquido positivo de mais de meio milhão de euros

–, fechado o ano 2009 com um resultado líquido negativo de quase 14 milhões de euros.

Para equilibrar as contas em 2010 – e porque o Ministério do Ambiente não permitiu que se abandonasse por

completo este projeto –, foi necessário reduzir substancialmente as contrapartidas pagas aos SMAUT pelas retomas

dos plásticos mistos, diminuir ligeiramente esses montantes para os outros materiais e sobretudo agravar os Valo-

res Ponto Verde a aplicar aos embaladores. Assim, por exemplo, no caso das embalagens primárias de produtos de

grande consumo, entre 2009 e 2010, o Valor Ponto Verde para vidro, papel e cartão, plástico, aço, alumínio e madeira

teve um aumento na ordem dos 35%, sendo de 102,5% para as ECAL e de 46% para os outros materiais.

Este episódio particular veio sobretudo reforçar, se necessário fosse, a ideia de que o sucesso e a sustentabi-

lidade do Sistema Ponto Verde não dependem apenas da promoção da reciclagem, mas sim de um equilíbrio eco-

nómico rigoroso entre receitas e despesas. E demonstrar que, como noutras áreas, os objetivos ambientais em ter-

mos de metas de valorização e reciclagem não se alcançam apenas com vontade política nem tão-pouco com uma

participação pública, imbuída de princípios ambientais; têm sim de ser sustentados por um modelo financeiro que

procure conciliar os aspetos ecológicos e económicos. Aliás, estará aí a base de sucesso, a longo prazo, de todas as

políticas ambientais, sendo o caso específico da gestão dos resíduos de embalagens um feliz paradigma.

A universalização da gestão integrada

O sucesso do modelo de gestão integrada de embalagens no seio da União Europeia, patente na sua genera-

lização dos Sistemas Ponto Verde em muitos dos países comunitários e extracomunitários – de que são exemplo as

entidades integradas no Pro Europe47 –, mostrou que a diretiva Embalagens poderia servir de paradigma para outros

fluxos de resíduos, no sentido de, direta e indiretamente, levarem à alteração da conceção dos produtos e à diminui-

ção da opção pelos tratamentos de fim de linha, como a incineração e a deposição em aterro.

No seio da União Europeia foi sendo definido, nos últimos anos, um conjunto de normas, orientações e obriga-

ções, bem como metas quantificadas de recolha, de reutilização, de reciclagem e de valorização para os mais diversos

fluxos de resíduos urbanos ou que, por regra, surgem no circuito urbano, designadamente as pilhas e os acumuladores

usados, os óleos usados, os resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos, os veículos em fim de vida e os pneus.

47 Fundada em 1995, a Pro Europe é uma organização internacional que agrega 34 entidades gestoras de resíduos de embalagens, detendo

os direitos do green dot (Ponto Verde) como marca registada em mais de 170 países. Os sistemas associados na Pro Europe abrangem uma popu-

lação total de 400 milhões de habitantes, tendo retomado, no conjunto, cerca de 32 milhões de toneladas de resíduos de embalagens. Desde maio

de 2011, e por um período de dois anos, a presidência desta organização é exercida por Luís Veiga Martins, diretor-geral da Sociedade Ponto Verde.

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Quadro 20 – Lista de entidades gestoras integradas no Pro Europe

País Entidade gestora Ano de fundação

Alemanha Duales System Deutschland 1990

Áustria Altstoff Recycling Austria 1993

Bélgica Fost Plus 1994

Bulgária Ecopapack Bulgaria 2004

Canadá Green Dot North America 2009

Chipre Green Dot Cyprus 2006

Croácia Eko-Ozra 2005

Eslováquia Envi-Pak 2003

Eslovénia Slopak 2002

Espanha Ecoembes 1996

Estónia Estonian Recovery Organization 2004

Finlândia PYR 1997

França Eco-Emballages 1992

Grécia Hellenic Recovery Recycling Corporation 2001

Holanda Ned- vang 2005

Hungria ÖKO-Pannon 1996

Islândia Ùrvinnslusjódur, 2002

Irlanda Repak 1997

Itália Conai 1997

Letónia Latvijas Za ais Punkts 2002

Lituânia aliasis Taškas 2002

Luxemburgo Valorlux 1995

Macedónia Pakomak 2011

Malta GreenPak 2004

Noruega Grønt Punkt Norge 1997

Polónia Rekopol Organizacja Odzysku 2001

Portugal Sociedade Ponto Verde 1996

Reino Unido Valpak, 1997

República Checa Eko-Kom 2002

Roménia Eco-Rom Ambalaje 2003

Sérvia Sekopak 2009

Suécia Repa 2007

Turquia Çevko 1991

Ucrânia Ukrainian Packaging & Ecological Coalition 1999

Fonte: Pro Europe (2011).

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Genericamente, nas diretivas que foram sendo implementadas esteve sempre subjacente o modelo que fi-

caria estabelecido no Sistema Ponto Verde e que vem sendo implementado a nível mundial por várias dezenas de

entidades gestoras: a responsabilidade alargada do produtor, até ao nível da gestão dos resíduos, mas podendo esta

ser assumida por uma entidade de gestão integrada, mediante o pagamento de prestações financeiras pelas diversas

empresas do setor respetivo, de acordo com a quantidade e o tipo de produtos colocados no mercado.

Contudo, em Portugal, antes de se alargar este princípio a outros fluxos, foi no setor das embalagens que

nasceria uma nova entidade gestora, embora abrangendo uma parte muito específica e minoritária deste tipo de re-

síduos urbanos. Com efeito, a indústria farmacêutica, apesar de ser apenas responsável por 0,5% do total das em-

balagens contidas nos resíduos sólidos urbanos, decidiu não aderir ao Sistema Ponto Verde e constituir, em 1999, a

Valormed. A razão principal adveio sobretudo da especificidade dos resíduos produzidos, uma vez que não estava

apenas em causa a necessidade de recolha das embalagens propriamente ditas, mas também dos resíduos de me-

dicamentos e dos medicamentos fora de prazo.

Fundada a 25 de outubro desse ano, a Valormed tomou a forma de sociedade sem fins lucrativos, tendo

como sócios a Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (Apifarma), a Associação Nacional das Farmá-

cias (ANF), a Federação das Cooperativas de Distribuição Farmacêutica (Fecofar) e a Associação de Grossistas de

Produtos Químicos e Farmacêuticos (Groquifar). A primeira licença para atuar como entidade gestora seria conce-

dida em fevereiro do ano 2000, por despacho conjunto dos Ministérios do Ambiente e da Economia. Em fevereiro

de 2007, com a renovação da licença, a Valormed alargaria o seu âmbito de intervenção, intervindo atualmente em

quatro subsistemas: farmácias, farmácias hospitalares, veterinárias e indústria.

O subsistema farmácia abrange os resíduos de embalagens e resíduos de produtos fora de uso, incluindo os

de uso humano e veterinário, bem como outros produtos equiparados aos medicamentos. O subsistema farmá-

cias hospitalares abrange os resíduos anteriormente referidos que tenham tido origem nas farmácias de unidades

hospitalares públicas ou privadas. O subsistema de embalagens de veterinária abrange resíduos de embalagens de

medicamentos e produtos de uso veterinário usados em explorações pecuárias. O subsistema indústria abrange os

resíduos de todas as tipologias, nomeadamente resíduos de embalagens de matérias-primas e produtos adquiridos

pela indústria farmacêutica, gerados nas operações de produção e enchimento, bem como na actividade das em-

presas distribuidoras, e os provenientes de devoluções das farmácias ou dos distribuidores, nos casos em que estas

devoluções ocorram em conformidade com os procedimentos, prazos e condições estabelecidas entre os operado-

res económicos envolvidos.

Funcionando num modelo financeiro similar ao adotado pela Sociedade Ponto Verde, com receitas prove-

nientes da indústria farmacêutica48, o sistema da Valormed integrava, no fim de 2010, cerca de 230 empresas que

foram responsáveis pela colocação no mercado de 336 milhões de embalagens de medicamentos, das quais 93% se

reportavam ao subsistema farmácia, ou seja, aos produtos comercializados nas farmácias. No caso específico des-

48 Atualmente, o ecovalor é de 0,00504 euros por embalagem colocada no mercado, independentemente do peso e do tipo de material.

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te subsistema, até à referida data, tinham aderido 2816 farmácias e 15 armazenistas, que funcionam como centros

de recolha. No subsistema veterinária foram estabelecidos contratos com 43 centros de retoma e 17 armazenistas.

No caso dos medicamentos de consumo doméstico, a recolha faz-se nas próprias farmácias aderentes,

através das entregas pelos consumidores, enquanto nos outros subsistemas essa responsabilidade recai sobre os

profissionais dessas áreas. A triagem e o posterior encaminhamento para reciclagem e valorização são tarefas exe-

cutadas pela própria Valormed, que recorre a um operador privado.

As metas de valorização e reciclagem impostas pela licença governamental foram semelhantes às exigidas

à Sociedade Ponto Verde. Ou seja, em relação às quantidades de embalagens declaradas pelas empresas aderentes,

o sistema integrado teria de alcançar, até final de 2011, uma valorização igual ou superior a 60% do total das emba-

lagens, e entre 55% e 80% terão de ser feitos através de reciclagem, com um mínimo de 60% para o vidro e o papel e

cartão, de 50% para os metais, de 22,5% para o plástico e de 15% para a madeira.

Em termos quantitativos, tendo em conta valores previsionais definidos na licença, a Valormed teria, para esse

ano, a obrigação de reciclar 4435 toneladas de resíduos de embalagem, das quais 1837 toneladas de papel e cartão,

363 toneladas de plásticos, 1934 toneladas de vidro, 121 toneladas de metais e 181 toneladas de embalagens com-

pósitas. Além destas quantidades, mais 404 toneladas deverão ser recicladas ou, em alternativa, valorizadas ener-

geticamente em centrais de incineração.

Apesar de as recolhas de resíduos geridos pela Valormed estarem a registar, ao longo dos anos, uma tendên-

cia crescente, o certo é que os objetivos constantes da licença governamental não serão cumpridos. Com efeito, nos

dois principais subsistemas abrangidos – farmácia e veterinária –, apenas foram recolhidas 838 toneladas de resí-

duos de embalagens ao longo de 2010, que resultaram somente em 255 toneladas enviadas para reciclagem e 571

toneladas encaminhadas para incineração, na central da Valorsul. No caso específico da reciclagem, observou-se

mesmo uma redução de quase 41% em relação ao ano anterior, que se deveu, segundo a Valormed, a deficiências

de desempenho do operador contratado para esta tarefa, com quem o contrato foi denunciado no fim daquele ano.

Ainda no setor das embalagens, em 2005 seria ainda criado o Sistema Integrado de Gestão de Embalagens

e Resíduos em Agricultura, com o objetivo de recolher, reciclar e valorizar, com segurança, os resíduos de embala-

gens e os resíduos de excedentes de produtos fitofarmacêuticos. Apesar de não serem classificados como urbanos,

considerou-se que, pelas suas caraterísticas, seria conveniente estes resíduos terem um sistema autónomo de ges-

tão, de modo a desviá-los do circuito urbano49.

Mais conhecido por Valorfito, este sistema integrado foi criado pela Associação Nacional da Indústria para a

Proteção das Plantas (Anipla) e pela Associação de Grossistas de Produtos Químicos e Farmacêuticos (Groquifar),

49 Em 2005, no âmbito da disciplina de Química Orgânica da licenciatura em Ciências Farmacêuticas, da Universidade de Coimbra, foi re-

alizado um inquérito em zonas rurais – em que 57% dos inquiridos se dedicavam à agricultura como atividade secundária –, tendo-se apurado que

a maioria das pessoas depositava os resíduos de embalagens de fitofármacos no lixo comum (51%, no caso das embalagens de produtos destina-

dos à preparação de caldas, e 59%, no caso das embalagens destinadas a outros fins), seguindo-se a queima. Apenas uma minoria dos inquiridos

encaminhava os resíduos para reciclagem.

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depois de terem desenvolvido, em 2003 e 2004, na região do Oeste e em outros pontos do país, um projeto de reco-

lha de embalagens primárias de produtos fitofarmacêuticos com capacidade inferior a 250 kg.

Em maio de 2006, através de um despacho conjunto dos Ministérios do Ambiente e da Agricultura, a Va-

lorfito obteve uma licença, até 2011, adotando um modelo financeiro idêntico ao dos outros sistemas de gestão de

embalagens50, sendo a recolha feita pontualmente em centros de receção onde os agricultores podem depositar os

resíduos de produtos fitofarmacêuticos. Na licença, estabeleceu-se a obrigatoriedade de se cumprir, para este flu-

xo de resíduos, metas de valorização e reciclagem global e multimaterial semelhantes às dos sistemas geridos pela

Sociedade Ponto Verde e pela Valormed. De acordo com a licença, ficou estipulado que a Valorfito teria de valorizar,

pelo menos, 193 toneladas de resíduos de embalagens em 2006 e subir até cerca de 490 toneladas em 2011.

Em 2006, através de uma rede constituída por 280 centros de recolha, a Valorfito apenas obteve uma reto-

ma de 81,4 toneladas de resíduos de embalagens. Durante o ano de 2010 atingiu as 220,7 toneladas, através de 639

centros de receção, tendo os resíduos sido encaminhados para o Centro Integrado de Recuperação, Valorização e

Eliminação de Resíduos (CIRVER) do Grupo Egeo, na Chamusca. Ou seja, muito aquém das metas exigidas na li-

cença governamental.

Fora do setor das embalagens, o primeiro sistema integrado português foi o da Ecopilhas, destinado à gestão

de pilhas e acumuladores usados, que engloba qualquer pilha, pilha-botão, bateria de pilhas ou acumulador que seja

fechado hermeticamente. Incluem-se, nesta classificação, as pilhas constituídas por um elemento único, como as

pilhas AA e AAA, bem como as pilhas e os acumuladores utilizados em telemóveis, computadores portáteis, ferra-

mentas elétricas sem fios, brinquedos e aparelhos domésticos e industriais.

Criada em abril de 2002 pela Associação Empresarial dos Setores Elétrico, Eletrodoméstico, Fotográfico e

Eletrónico (AGEFE) e por cinco empresas (Cegasa, Energizer, Procter & Gamble, Sony Portugal e Varta), a Ecopilhas

foi a solução empresarial para responder às exigências comunitárias e nacionais, que não só impuseram restrições

aos teores de determinadas substâncias químicas destes produtos mas também exigiram medidas com vista à re-

colha e posterior valorização ou eliminação de pilhas e acumuladores usados. Saliente-se que a legislação comu-

nitária sobre pilhas e acumuladores é já antiga e vasta, tendo a mais determinante sido publicada em 1991 e 1993

(Diretivas n.ºs 91/157/CEE e 93/86/CE), que seria transposta para o direito nacional pelo Decreto-Lei n.º 219/94 e

demais legislação regulamentar. No entanto, seria através do Decreto-Lei n.º 62/2001 e da Portaria n.º 571/2001

que se criariam as condições para a constituição de um sistema integrado de gestão deste fluxo de resíduos.

Num modelo de financiamento similar aos outros sistemas – ou seja, as empresas pagam um ecovalor em

função do tipo de pilhas ou acumuladores colocados no mercado51 –, a Ecopilhas intensificou o sistema de recolha,

existente já nalgumas zonas do país desde os anos 90, através da assinatura de contratos e protocolos de colabora-

50 Para o biénio de 2005-2006, o ecovalor foi fixado em 336 euros por cada tonelada de embalagens colocadas no mercado, independen-

temente do tipo de material.51 Atualmente, os ecovalores são os seguintes, em função do tipo de pilha e acumulador: alcalinas e zinco carbono – 0,45 euros/kg; lítio e

de botão – 0,76 euros/kg; NiMH e NiCd – 0,30 euros/kg; iões de lítio – 0,26 euros/kg; chumbo ácido – 0,007 euros/kg. Estes valores são subs-

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ção com autarquias, comércio, escolas, hospitais e diversas empresas. Em muitas situações, os parceiros da Ecopi-

lhas colaboram de forma graciosa, mas no caso dos SMAUT, que recolhem as pilhas e os acumuladores nos eco-

pontos e ecocentros, é concedido um Valor de Contrapartida que atualmente se cifra nos 45 euros por tonelada de

pilhas e acumuladores.

No ano de 2009, a Ecopilhas tinha já assinado protocolos com 1993 entidades – denominadas ecoparceiros

–, abrangendo 4350 pontos de recolha, a que acresciam mais cerca de 11 760 pilhões colocados na via pública, em

muitos casos integrados em ecopontos geridos pelos municípios.

Em virtude de uma nova diretiva europeia52, publicada em 2009, e com a renovação da licença governamen-

tal em 2010, foi alargado o âmbito de atuação de Ecopilhas para as pilhas e os acumuladores industriais, tendo sido

impostas metas progressivas. Assim, para 2011, a Ecopilhas comprometeu-se a abranger a gestão de 72% e 50%,

respetivamente, do total de pilhas e acumuladores portáteis e industriais colocados no mercado. Em 2015, esses va-

lores deverão atingir, pelo menos, os 80% e os 50%, respetivamente.

Além disso, a licença impôs a recolha total de resíduos de pilhas e acumuladores industriais, bem como ta-

xas mínimas progressivas, ao longo dos anos, para as pilhas e os acumuladores portáteis, devendo atingir os 27%

em 2011 e os 45% em 2015. Em termos de reciclagem, a Ecopilhas teve ainda de garantir que, até 26 de setembro de

2011, alcançaria uma taxa mínima de 65% em peso das pilhas e acumuladores de chumbo ácido, de 75% em peso

das pilhas e acumuladores de níquel-cádmio e de 50% em peso de outros resíduos, desde que tecnicamente viável

e sem custos excessivos.

De acordo com os dados mais recentes, em 2009 a Ecopilhas alcançou uma recolha global de cerca de 500

toneladas de pilhas e acumuladores, que foram encaminhadas para reciclagem, o que, tendo em consideração que

foram colocadas no mercado cerca de 2,4 mil toneladas, representa uma taxa de reciclagem de quase 21%.

No caso específico das baterias dos veículos automóveis, a recolha para reutilização e reciclagem tem sido

agora uma responsabilidade de outro sistema de gestão: a Valorcar. Criada em 2003 pela Associação do Comércio

Automóvel de Portugal (ACAP), com uma quota de 90%, pela Associação dos Industriais de Automóveis (Aima)

e pela Associação Nacional dos Recuperadores de Produtos Recicláveis (Anarepre), ambas com uma participação

de 5%, a ação desta entidade é mais abrangente. Entretanto, no fim do ano 2007, a ACAP e a Aima aprovaram a sua

integração numa única estrutura associativa, que se designa ACAP – Associação do Comércio Automóvel de Por-

tugal, que passou a deter 95% do capital social da Valorcar.

Além da gestão das baterias usadas – para a qual só recebeu licenciamento em julho de 2009 – desde a sua

fundação tem a missão de receber, tratar e valorizar os resíduos resultantes dos veículos em fim de vida, de modo a

cumprir diretivas comunitárias impostas para o setor automóvel. No caso dos veículos em fim de vida, as exigências

tancialmente inferiores aos praticados no início do sistema integrado. Em 2003, o ecovalor aplicado às pilhas alcalinas e de zinco carbono era de

1,50 euros/kg.52 Diretiva n.º 2006/66/CEE, transposta para o direito nacional pelo Decreto-Lei n.º 6/2009 de 6 de janeiro.

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foram emanadas pela Diretiva n.º 2000/53/ CE, transposta para o direito nacional pelo Decreto-Lei n.º 196/2003 de

23 de agosto. No caso das baterias usadas de veículos, as normas constam da Diretiva n.º 66/2006/CE, transposta

pelo Decreto-Lei n.º 6/2009 de 6 de janeiro. Estas diretivas, e a correspondente legislação nacional, visaram a toma-

da de medidas pela parte dos construtores automóveis no sentido de promover um design dos veículos adequado

para melhorar os processos de desmantelamento, a minimização da quantidade de materiais utilizados e a redução

da utilização de substâncias perigosas, bem como a substituição de certos materiais por outros de menor impacto

ambiental ou por materiais reciclados.

No caso das baterias usadas, a Valorcar tem a obrigação de garantir, até 26 de setembro de 2011, a reciclagem

de 65%, em massa das baterias de chumbo-ácido, incluindo a reciclagem do mais elevado teor possível de chumbo

que seja tecnicamente viável, evitando simultaneamente custos excessivos. Em relação aos veículos em fim de vida,

existe a obrigatoriedade de garantir até 1 de janeiro de 2015 a reutilização e a valorização num mínimo de 95% dos di-

versos materiais, com a condição simultânea de o somatório da reutilização e da reciclagem atingir pelo menos 85%.

A 1 de janeiro de 2006, essas metas deviam ser de, respetivamente, 85% e 80%, mas, nesse ano, a Valorcar ainda não

tinha sido constituída como entidade gestora.

Funcionando num modelo financeiro similar aos dos outros sistemas53, a Valorcar possui atualmente uma

rede de 69 centros de recolha espalhados pelo país, parte dos quais procedem ao desmantelamento de veículos em

fim de vida, para posterior reutilização, reciclagem e valorização dos diversos componentes. De acordo com os da-

dos desta entidade gestora, em 2010 foram recebidos 78 402 veículos, dos quais cerca de metade provenientes de

particulares – que os entregaram gratuitamente – e 30% vindos do Programa de Incentivo ao Abate.

Deste modo, em termos globais, o sistema da Valorcar conseguiu, durante o ano 2010, reutilizar cerca de

3691 toneladas de materiais desmantelados e fragmentados – dos quais 84% eram componentes não metálicos;

reciclar quase 56 158 toneladas – entre as quais 48 884 toneladas de metais ferrosos, 1022 toneladas de baterias,

1239 toneladas de pneus, 1162 toneladas de vidros e 188 000 toneladas de óleos; e valorizar energeticamente cerca

de 2875 toneladas – das quais 639 toneladas de pneus. Em termos globais, obteve-se assim uma taxa de valoriza-

ção de 88,3% e uma taxa de reutilização e reciclagem de 84,2%.

No caso das baterias usadas geridas pela Valorcar, foram recolhidas e enviadas para reciclagem 26 309 tone-

ladas no ano de 2010, uma quantidade superior às quantidades colocadas nesse ano no mercado (20 323 toneladas),

o que se explica pelo diferimento no tempo entre o momento da venda e da inutilização.

Em março de 2010, a GVB – Gestão e Valorização de Baterias obteve também uma licença para gerir um sis-

tema integrado de resíduos de baterias e acumuladores industriais e de veículos automóveis. Esta sociedade sem

53 No caso das baterias usadas, o ecovalor – denominado Prestação Financeira Unitária – é de 0,45 euros para baterias de veículos não

elétricos; de 0,90 euros para baterias de veículos pesados não elétricos, de máquinas não elétricas e de embarcações não elétricas, e de veículos

ligeiros, pesados, motociclos e embarcações exclusivamente elétricos; de 0,10 euros para baterias de motociclos não elétricos; de 11 euros para ba-

terias de máquinas de carga e outras exclusivamente elétricas; e de 2 euros para veículos híbridos. No caso dos veículos, é paga ainda uma com-

participação financeira, acordada especificamente entre a Valorcar e as empresas aderentes.

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fins lucrativos foi constituída a 25 de setembro de 2009, tendo como sócios a Exide Technologies, com 60% do capi-

tal, a Associação Nacional das Empresas do Comércio e Reparação Automóvel (ANECRA) e a Associação Na-

cional dos Recuperadores de Produtos Recicláveis (Anarepre), ambos com 20% do capital.

Embora ainda seja cedo para avaliar o seu desempenho, certo é que a sua postura no mercado, para obter

adesões dos fabricantes, demonstra que a competitividade surge já neste setor: a GVB tem apresentado ecovalores

substancialmente mais reduzidos do que os dos sistemas da Valorcar e da Ecopilhas.

Um outro importante fluxo de resíduos que passou para a alçada de entidades de gestão integrada foram os

equipamentos elétricos e eletrónicos, que englobam 10 categorias: grandes eletrodomésticos (frigoríficos, máquinas

de lavar, etc.), pequenos eletrodomésticos (aspiradores, torradeiras, etc.), equipamentos informáticos e de teleco-

municações (impressoras, telemóveis, etc.), equipamentos de consumo (televisões, câmaras de vídeo, etc.), equi-

pamentos de iluminação, as ferramentas elétricas e eletrónicas (serras, berbequins, etc.), brinquedos e equipamen-

tos de desporto e lazer, aparelhos médicos (aparelhos de raios X, medidores de tensão arterial, etc.), aparelhos de

monitorização e controlo (termóstatos, sensores, etc.) e distribuidores automáticos (máquinas de bebidas, de venda

de bilhetes, ATM, etc.).

A necessidade de criar um sistema integrado adveio de um conjunto de diretivas comunitárias, publicadas

sobretudo a partir de meados dos anos 90. Destacam-se, neste âmbito, a Diretiva n.º 2002/95/CE, que restringe o

uso de determinadas substâncias perigosas nos equipamentos elétricos e eletrónicos, e a Diretiva n.º 2002/96/CE

que abrange as ações a serem desenvolvidas nos estados-membros em relação aos resíduos destes equipamentos,

bem como a Diretiva n.º 2003/108/CE. No intuito de adaptar as normas aos progressos técnicos, a partir de 2005

foram sendo publicadas diversas Decisões da Comissão Europeia. Estas diretivas foram transpostas para o direito

nacional pelo Decreto-Lei n.º 230/2004 de 10 de dezembro, que foi alterado posteriormente pelo Decreto-Lei n.º

174/2005 de 25 de outubro e pelo Decreto-Lei n.º 132/2010 de 17 de dezembro.

Assim, ficaram estabelecidos objetivos de gestão dos equipamentos elétricos e eletrónicos, calculados em

função do peso de cada aparelho recolhido após o seu ciclo de vida. Isto implicou a exigência de os produtores, em

conjunto, adotarem as medidas necessárias para que a partir de 31 de dezembro de 2006 fossem atingidas taxas

de valorização e de reutilização, e reciclagem para as diferentes categorias de equipamentos. Por exemplo, para

os grandes eletrodomésticos e distribuidores automáticos, a taxa de valorização teria de ser de, pelo menos, 80%

do peso médio por aparelho recolhido, enquanto a taxa de reutilização e reciclagem de componentes, materiais e

substâncias deveria ser, pelo menos, de 75% do peso médio por aparelho recolhido. Para as outras categorias de

equipamentos, a valorização exigida apontava para taxas superiores a 70% para os pequenos eletrodomésticos,

equipamentos de iluminação, ferramentas elétricas e eletrónicas, brinquedos e equipamentos de desporto e la-

zer, e instrumentos de monitorização e controlo; e para taxas superiores a 75% para os equipamentos informáticos

e de telecomunicações e equipamentos de consumo. No caso da reutilização e da reciclagem, os pequenos ele-

trodomésticos, os equipamentos informáticos e de telecomunicações, as ferramentas elétricas e eletrónicas, os

brinquedos e os equipamentos de desporto e lazer, e os instrumentos de monitorização e controlo teriam de cum-

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136 | Resíduos: uma Oportunidade

prir taxas superiores a 50%, sendo de 65% para os equipamentos de consumo e de 80% para os equipamentos de

iluminação, medidos em termos de peso das lâmpadas de descarga de gás. Para os aparelhos médicos não foram

ainda definidas metas. Além disso, no conjunto, deveriam os produtores garantir uma recolha mínima superior a

4 kg por habitante.

Este sistema funciona, todavia, através de um modelo algo distinto dos anteriores. Os fabricantes e impor-

tadores de equipamentos elétricos e eletrónicos têm, primeiro, de declarar os produtos comercializados junto da

Associação Nacional para o Registo de Equipamentos Elétricos e Eletrónicos (ANREEE), para se conseguir, numa

perspetiva global, a caraterização do mercado português em termos de unidades e peso. Esta entidade, criada por

associações de produtores e pelas entidades gestoras do sistema integrado de gestão deste fluxo de resíduos, tem

autonomia própria e encontra-se licenciada desde 23 de março de 2006, sendo membro fundador da European

WEEE Register Network, uma rede de registos europeia que representa 80% do mercado europeu de equipamen-

tos elétricos e eletrónicos. O registo nacional iniciou-se em julho de 2005, realizada pela ANREEE que é ainda res-

ponsável pela classificação dos equipamentos de acordo com as 10 categorias e 104 subcategorias constantes na

legislação, especialmente daqueles que não estejam explicitamente descritos na lista do Anexo I do diploma legal.

Como taxa de registo, as empresas pagam, atualmente, 100 euros pelos primeiros 1500 equipamentos colocados no

mercado; 0,02 euros por equipamento, a partir das 1501 unidades até às 61 499 unidades; e 1300 euros se colocarem

61 500 ou mais equipamentos.

Por razões de índole empresarial, para este fluxo acabou por se optar pela criação de duas entidades gestoras

– a Amb3E e a ERP Portugal –, tendo ambas obtido licença governamental a 27 de abril de 2006. A Amb3E – As-

sociação Portuguesa de Gestão de Resíduos, foi fundada a 27 de abril de 2005, embora inicialmente com a desig-

nação de Amb3E – Associação Portuguesa de Gestão de Resíduos de Equipamentos Elétricos e Eletrónicos, sendo

uma entidade sem fins lucrativos, constituída por diversas empresas do setor elétrico e eletrónico. Atualmente tem

60 empresas associadas, sendo 57 fundadoras, e mais de mil aderentes. A alteração da denominação resultou do

facto de, no início de 2010, a licença ser apenas para o exercício da atividade de gestão de resíduos de pilhas e acu-

muladores portáteis e de resíduos de pilhas e acumuladores industriais incorporáveis em equipamentos elétricos e

eletrónicos. Quanto à ERP Portugal, foi fundada em dezembro de 2002, sendo uma associação de natureza privada

sem fins lucrativos, constituída, no nosso país, pelos grupos empresariais Gillette, HP, Sony e Electrolux, integran-

do um sistema pan-europeu de recolha e gestão de resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos, administrado

pela sociedade comercial European Recycling Platform (ERP).

No caso da Amb3E, a licença determinou que deveria, até 2011, abranger no mínimo 31% do total dos resí-

duos, ou seja, 41 469 toneladas. No entanto, estipulou-se que deveria envidar esforços no sentido de alcançar uma

quota de 80% até ao fim da sua licença. No caso da ERP Portugal, para o mesmo período, deveria ser responsável

por recolher 8% do total, ou seja, previsivelmente 10 702 toneladas, com o compromisso de ir alargando o universo

dos produtores aderentes de modo a abranger a gestão de pelo menos 20% do total de resíduos produzidos anual-

mente.

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137 | Na senda da integração

Tanto num caso como no outro, o financiamento do sistema de gestão é assegurado pela prestação financeira

suportada pelos produtores – designada ECOREEE –, calculada em função das caraterísticas e do número dos equi-

pamentos colocados no mercado. A ERP Portugal tem, contudo, cinco subcategorias54.

O modelo de recolha seletiva, em ambos os sistemas, assenta sobretudo na participação dos consumidores,

que podem trocar os equipamentos em estabelecimentos comerciais no ato de compra de novos, ou simplesmente

depositar os equipamentos usados, de que se queiram descartar, em centros de receção. Numa grande parte dos

municípios há serviços de recolha específicos para resíduos volumosos – os chamados monos –, em que podem

estar incluídos os eletrodomésticos. As entregas são feitas sem custos para o consumidor, e nenhuma das entida-

des pode recusar a receção dos resíduos, independentemente da marca e do tipo.

Em 2009, a rede de recolha da Amb3E era constituída por 265 centros e pontos de receção e 138 contentores

especiais (pontos eletrão), enquanto a da ERP Portugal tinha 874 pontos de receção, incluindo contentores denomi-

nados depositrões, uma parte gerida pelos SMAUT e os restantes por distribuidores e operadores privados. Os re-

síduos, depois de recolhidos, são sempre encaminhados para centros de consolidação, para se proceder a uma tria-

gem, podendo os materiais ou produtos reaproveitáveis ser cedidos a organizações não-governamentais com vista

à sua doação a pessoas mais carenciadas. A restante segue para valorização e reciclagem.

De acordo com os dados da ANREE, em dezembro de 2010 havia 1566 empresas com registo de comercia-

lização de equipamentos elétricos e eletrónicos, sendo a esmagadora maioria importadores (74,3%). Mais de meta-

de das empresas registadas (55,9%) colocaram menos de 1500 equipamentos no mercado e apenas 10,4% das em-

presas foram consideradas de grande dimensão empresarial, comercializando mais de 61 500 equipamentos. No

total, ao longo desse ano, foi declarada a colocação no mercado nacional de 77 592 249 unidades, correspondentes

a um potencial de resíduos de 165 355 toneladas. Em termos de unidades colocadas no mercado, os equipamentos

de iluminação (englobando as lâmpadas), informáticos e de telecomunicações representaram, no conjunto, cerca de

60% do total dos equipamentos elétricos e eletrónicos. Em termos de peso, os grandes eletrodomésticos, represen-

taram quase 61% do total, com mais de 100 000 toneladas. A título de exemplo, as 372 055 máquinas de lavar colo-

cadas no mercado em 2010 pesavam 24 815 toneladas e os 346 025 frigoríficos pesavam 20 267 toneladas.

A quantidade recolhida pelos dois sistemas de gestão totalizou, ao longo de 2010, cerca de 46 672 toneladas,

com destaque para os grandes eletrodomésticos (61,6%), seguidos pelos equipamentos informáticos e telecomunica-

ções (15,6%), equipamentos de consumo (9,5%) e pequenos eletrodomésticos (8,7%). Significa isto que se obteve uma

recolha média de 4,6 kg por habitante, cumprindo-se assim a meta definida pela legislação nacional e comunitária.

Em relação à valorização destes resíduos, em 2010 conseguiu-se cumprir a totalidade das metas definidas

para a generalidade das categorias, com taxas de 83,2% nos grandes eletrodomésticos, de 92,9% nos pequenos ele-

54 Os ecovalores aplicados aos produtores são muito diversos, pelo que se tornaria exaustivo fazer-lhes referência detalhada. A título de

exemplo, os ecovalores aplicados em 2007 pela Amb3E variavam entre os 0,10 euros (para as lâmpadas e telemóveis) e os 34,79 euros, para os

grandes eletrodomésticos com um peso superior a 150 kg.

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138 | Resíduos: uma Oportunidade

trodomésticos, de 91,4% nos equipamentos informáticos e de telecomunicações, de 90,3% nos equipamentos de

consumo, de 96,9% nos equipamentos de iluminação, de 93,3% nas ferramentas elétricas e eletrónicas, de 93,1%

nos brinquedos e equipamentos de desporto e lazer, de 93,5% nos instrumentos de monitorização e controlo e de

91,3% nos distribuidores automáticos.

No caso das taxas de reutilização e reciclagem também se cumpriram as metas exigidas, tendo-se atingido

os 80,2% nos grandes eletrodomésticos, 92,9% nos pequenos eletrodomésticos, 91% nos equipamentos informáti-

cos e de telecomunicações, 89,9% nos equipamentos de consumo, 96,9% nos equipamentos de iluminação, 92,9%

nos brinquedos e equipamentos de desporto e lazer, 93,3% nos instrumentos de monitorização e controlo e 90,4%

nos distribuidores automáticos.

Além dos sistemas já referidos, há ainda em Portugal mais duas entidades gestoras de fluxos que, de uma

forma abrangente, podem ser considerados urbanos: os pneus usados e os óleos lubrificantes usados, dado serem

resíduos que, ainda não há muitos anos, eram depositados em lixeiras e aterros55.

No caso dos pneus usados, a entidade gestora é a Valorpneu, constituída em fevereiro de 2002 pela ACAP –

Associação do Comércio Automóvel de Portugal, com 60% do capital, pela Associação Nacional de Industriais de

Recauchutagem de Pneus (ANIRP) e pela Associação Portuguesa dos Industriais de Borracha, ambas com 20%. Na

primeira licença governamental, obtida em outubro de 2002, a Valorpneu comprometeu-se até janeiro de 2003 a con-

seguir cessar a deposição destes resíduos em aterros, a proceder à recolha de pneus usados numa proporção mínima

de 85% dos pneus anualmente colocados no mercado, e a atingir uma taxa de recauchutagem mínima de 25% e uma

valorização total dos pneus recolhidos, dos quais pelo menos 60% deveriam ser reciclados. Para 2007, a recolha deveria

atingir pelo menos 95%, em relação aos pneus colocados anualmente no mercado, com a obrigatoriedade de todos se-

rem valorizados, e de se alcançarem taxas mínimas de recauchutagem e de reciclagem de 30% e 65%, respetivamente.

Em 2008, esta licença seria renovada por mais cinco anos, ficando estabelecida a obrigatoriedade de a Va-

lorpneu assegurar, até finais de 2012, a recolha de pneus usados numa proporção anual de pelo menos 96 %, uma

taxa anual mínima de recauchutagem de 27 %, e a valorização da totalidade dos pneus usados recolhidos e não re-

cauchutados ou reutilizados, dos quais pelo menos 69% teriam de ser reciclados. Em termos quantitativos, para o

ano 2012, a Valorpneu comprometeu-se ainda, tendo em conta as previsões de pneus colocados no mercado, a

recolher cerca de 97 859 toneladas, enviando 27 523 toneladas para reutilização ou recauchutagem, e reciclando

aproximadamente 48 532 toneladas.

55 Decidiu-se não abordar, com detalhe, o sistema de gestão integrada dos óleos usados por sair do âmbito principal desta obra: os re-

síduos sólidos urbanos. Em todo o caso, refira-se que este sistema é gerido pela Sogilub – Sociedade de Gestão de Óleos Lubrificantes Usados,

funcionando em moldes semelhantes aos outros sistemas integrados, tendo sido criada para dar resposta às normas inseridas no Decreto-Lei n.º

153/2003 de 11 de julho. Para 2011, a Sogilub comprometeu-se a valorizar a totalidade dos óleos lubrificantes recolhidos e a atingir uma taxa mínima

de recolha, em relação à quantidade total colocada no mercado, na ordem dos 85%, bem como uma taxa de regeneração de 25% e de reciclagem de

50%. Em 2010, este sistema agrupava 417 empresas aderentes, tendo sido recolhidas 30 096 toneladas de óleos usados, correspondentes a uma

taxa de recolha de 79%, ligeiramente abaixo da meta dos 85%. Desta quantidade, 17 854 toneladas foram recicladas e 8893 toneladas foram objeto

de regeneração, correspondendo a taxas de 85% e 30%, respetivamente.

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139 | Na senda da integração

O funcionamento deste sistema é semelhante aos demais, sendo financiado através de um ecovalor, pago

pelos aderentes, que em 2010 totalizavam quase 1200 empresas. Atualmente, os ecovalores, que abrangem 14 ca-

tegorias, variam entre os 0,07 euros, aplicados aos pneus de bicicleta, e os 36,54 euros, aplicados aos pneus usados

por maquinaria pesada, sendo de 1 euro para os pneus de ligeiros e de 7,81 euros para os pneus de veículos pesados.

Estes montantes servem para suportar os encargos de recolha e operações seguintes. O sistema de recolha assen-

ta, de uma forma simplista, numa rede constituída atualmente por 48 pontos, dos quais 39 em Portugal continental,

que recebem da Valorpneu, como contrapartida financeira, 25 euros por tonelada.

Os pneus usados são depois transportados, por diversos operadores, para centros de recauchutagem e de va-

lorização. No caso da recauchutagem, há atualmente 31 empresas aderentes à Valorpneu, das quais 25 em Portugal

continental. Em caso de impossibilidade de recauchutagem, os pneus usados são enviados para reciclagem, feita em

três empresas – Biosafe, Biogoma e Recipneu –, em que se produz granulado de borracha, posteriormente utilizado

em diversas aplicações (betume modificado com borracha, campos de futebol sintéticos, pavimentos, parques in-

fantis, etc.), ou são encaminhados para as cimenteiras da Secil (Maceira, Pataias e Outão), para aí serem coincinera-

dos, ou para a unidade de cogeração da empresa Recauchutagem Nortenha (Penafiel), onde são valorizados ener-

geticamente. De acordo com os dados da Valorpneu, durante o ano 2010 passaram pelo sistema de gestão integrada

cerca de 98 000 toneladas de pneus usados, correspondentes a quase 8,1 milhões de unidades, tendo sido recicladas

quase 50 000 toneladas e reaproveitadas energeticamente 29 000 toneladas, tendo a restante parte sido reutilizada

ou recauchutada. Assim sendo, tendo em conta que nesse ano foram declaradas 83 294 toneladas de pneus pelas

empresas aderentes ao sistema da Valorpneu, obteve-se uma taxa de recolha de 106%, uma taxa de recauchutagem

de 20,9% e uma taxa de reciclagem de 74,7%. Note-se que, desde 2008, a taxa de recolha do sistema da Valorpneu

é superior a 100%, o que significa que se recolheu mais pneus do que aqueles que foram gerados no ano e que pa-

garam ecovalor. Tal situação implica que a esta entidade gestora recolheu e tratou pneus provenientes do mercado

paralelo, que estavam ilegais e não contribuíram financeiramente para o sistema.

Se para os resíduos de embalagens, pilhas e acumuladores usados, de equipamentos elétricos e eletrónicos,

pneus e veículos usados, os sistemas de gestão integrada já se encontram em pleno funcionamento – e grande parte

deles estão a responder positivamente aos objetivos estabelecidos –, noutros fluxos específicos só muito recente-

mente se começaram a estudar soluções específicas.

No caso dos resíduos de consumíveis informáticos – suportes de informação descartáveis (CD, DVD, dis-

quete, VHS) e consumíveis de impressão (tinteiros e toners) –, a Agência Portuguesa do Ambiente tem procurado

estabelecer parcerias com as entidades gestoras já licenciadas – como as que gerem as pilhas ou os resíduos elétri-

cos –, no sentido de potenciar sinergias, aproveitando os locais de recolha implementados e os canais de sensibiliza-

ção e informação. Há também a hipótese de se optar pela criação de um sistema autónomo.

Noutra linha, a Agência Portuguesa do Ambiente tem-se debruçado, desde 2009, sobre a pertinência de se

criar um modelo de gestão para as fraldas descartáveis, que englobam a esmagadora maioria da componente dos

têxteis sanitários, atingindo, nalgumas regiões, mais de 5% do total dos resíduos sólidos urbanos. Por exemplo, na

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140 | Resíduos: uma Oportunidade

área de influência da Tratolixo, uma recente caraterização física apurou que representavam 6,85% do total, enquanto

na área da Lipor rondam os 7%. No entanto, após um estudo de viabilidade, considerou-se para já que não haveria

mais-valia na constituição de um fluxo específico, embora no futuro possa vir a ser inserido num sistema integrado

de resíduos de têxteis, tendo em consideração que este setor começa a despertar um cada vez maior interesse eco-

nómico.

Mais avançada está a solução para os óleos alimentares usados, desde que foi assinado, em 2005, um pro-

tocolo entre a atual Agência Portuguesa do Ambiente e os diversos setores de actividade envolvidos no ciclo de vida

deste fluxo de resíduos. Esse acordo foi assinado entre o então Instituto dos Resíduos e as seguintes entidades: As-

sociação Portuguesa de Óleos e Gorduras Vegetais, Margarinas e Derivados (APOGOM), Associação de Hotela-

ria, Restauração e Similares de Portugal (Ahresp), Associação Nacional de Comerciantes e Industriais de Produ-

tos Alimentares (Ancipa), Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição (APED), Associação Nacional dos

Recolhedores de Óleos Alimentares Usados de Portugal (Recióleo) e Associação Nacional de Produtores de Bio-

diesel e Transformadores de Óleos Alimentares Usados de Portugal (BDP). Após uma fase inicial de experiências,

foi estabelecido um regime jurídico de gestão, tendo-se, posteriormente, avançado para a criação, por iniciativa do

Ministério do Ambiente, de um Sistema Voluntário de Gestão (SGOAU)56. Além de proibir, entre outros atos, a des-

carga destes resíduos nos sistemas de drenagem de águas residuais e em aterros, este diploma criou um conjunto

de normas que visaram quer a implementação de circuitos de recolha seletiva, o seu correto transporte, tratamento e

valorização, por operadores devidamente licenciados para o efeito, quer a sua rastreabilidade e quantificação. Neste

sistema voluntário, o papel fulcral foi entregue às autarquias, tendo sido definidos objetivos concretos para a consti-

tuição de redes municipais de recolha seletiva.

Neste âmbito, ficou estabelecido que até finais de 2011 e 2015, os municípios deveriam, em função da popu-

lação, instalar um número mínimo de pontos de recolha. Para os municípios com mais de 300 000 habitantes, foi

determinado que até 2011 deveriam possuir pelo menos 40, e em 2015 pelo menos 80. Os municípios de menores

dimensões – abaixo dos 25 000 habitantes – terão de implantar pelo menos oito pontos de recolha em 2011, e 12 em

2015; ou, em alternativa, um ponto de recolha por cada 3125 habitantes, em 2011, e um ponto de recolha por cada

2083 habitantes, em 2015. Nas autarquias com sistemas de recolha porta a porta, o número mínimo de pontos de

recolha na via pública poderá ser inferior. Por outro lado, ficou determinado que os operadores do setor da distribui-

ção responsáveis pelas grandes superfícies comerciais deveriam contribuir para esta rede municipal, disponibili-

zando locais adequados para a colocação de pontos de recolha. Nos estabelecimentos hoteleiros e de restauração,

a recolha será feita, gratuitamente, por operadores licenciados ou através dos pontos de recolha municipais geridos

pelas autarquias.

56 Através do Decreto-Lei n.º 267/2009 de 29 de setembro, que entrou em vigor a 1 de novembro de 2009. Estima-se que a produção de

óleos alimentares usados em Portugal se situe entre as 43 000 e as 65 000 toneladas, das quais cerca de 62% são gerados no setor doméstico, 37%

no setor da hotelaria e restauração (Horeca) e 1% no setor da indústria alimentar.

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141 | Na senda da integração

De acordo com os dados da Agência Portuguesa do Ambiente, em outubro de 2010 já havia, em Portugal,

2374 pontos de recolha seletiva, dos quais 58% na via pública (oleões), 23% em lares, escolas e instituições, 15% em

instalações municipais, 3% em ecocentros e 1% em estabelecimentos do setor da distribuição. O distrito com mais

pontos de recolha era o de Lisboa (com 461), seguido pelo de Braga (com 267), Porto (com 267) e Portalegre (com

215). Numa escala local, 28% dos municípios já cumpriam os objetivos de 2011 e 2015 para a quantidade mínima de

pontos de recolha, e mais 9% cumpriam os mínimos estabelecidos para 2011.

Tendo em conta que a maioria das autarquias iniciou muito recentemente as operações de recolha, ainda não

há estatísticas precisas sobre a quantidade de óleos alimentares usados enviados para reciclagem, sendo certo que

já existem variados projetos empresariais e autárquicos que visam a sua reciclagem, sobretudo com vista à produção

de biocombustíveis.

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O português, esse reciclador

Ao longo da última década e meia, Portugal assistiu a uma autêntica revolução ambiental no setor dos resí-

duos sólidos urbanos. O país das lixeiras dos anos 90 do século XX transformou-se, à entrada da segunda déca-

da do século XXI, numa nação apostada na valorização e na reciclagem de resíduos, contando já com 10 entidades

gestoras de sistemas integrados de fluxos específicos. Em 2009, de acordo com dados da Agência Portuguesa do

Ambiente, estes sistemas integrados coletivos valorizaram – através da reutilização, da reciclagem e da queima em

incineradores com aproveitamento de energia – 822 000 toneladas de resíduos, correspondentes a uma taxa de

valorização relativa de 37%, 7% e 24% para, respetivamente, resíduos de embalagem, as embalagens e resíduos de

medicamentos e as embalagens de resíduos fitofarmacêuticos, de 74% relativa aos óleos minerais usados, de 55%

relativa aos resíduos de pilhas portáteis, de 103% relativa aos pneus usados, de 24% relativa aos resíduos de equipa-

mentos elétricos e eletrónicos, e de 48% relativa aos veículos em fim de vida. Numa análise integrada dos oito fluxos

específicos de resíduos, Portugal apresentava uma taxa de valorização média de 46,5%.

Entre 2004 e 2009, de acordo com dados compilados pelo Instituto Nacional de Estatística, foram recolhidos

pelas entidades gestoras de fluxos específicos, cerca de 6,1 milhões de toneladas de resíduos, dos quais, cerca de

90% (5,4 milhões de toneladas) foram enviados para reciclagem. As restantes 700 000 toneladas foram encami-

nhadas para valorização energética, em centrais de incineração, ou sujeitas a outras operações de valorização, como

é o caso da regeneração de óleos lubrificantes usados e a recauchutagem de pneus usados.

Saliente-se, contudo, que os dados do Instituto Nacional de Estatística, constantes no relatório Gestão de

Resíduos em Portugal 2004-2009, apontam para um total de 1 595 731 toneladas de resíduos recolhidos ou re-

cuperados no ano 2009 pelos diversos sistemas de gestão integrada. No entanto, no caso dos resíduos de emba-

lagens, embora identificando os três sistemas (Sociedade Ponto Verde, Valorfito e Valormed), os valores indicados

– 1 253 076 toneladas enviadas para reciclagem e 104 143 toneladas encaminhadas para valorização energética –

são largamente superiores aos apontados nos relatórios das próprias entidades gestoras. Esta questão remete para

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144 | Resíduos: uma Oportunidade

uma incongruência já referida em outros casos, ou seja, a Agência Portuguesa do Ambiente, que constitui a fonte de

informação do Instituto Nacional de Estatística, continua a reportar valores da reciclagem e valorização muito supe-

riores aos que são apurados pelas três entidades gestoras, o que, podendo ser verdadeiros, significa porém que uma

quantidade apreciável de embalagens, mesmo sendo recolhidas em sistemas autónomos, continua sem cumprir a

legislação.

Todavia, se hoje o nosso país pode ombrear com os outros países comunitários em termos de taxas de reci-

clagem e valorização é porque houve uma causa fundamental, além dos investimentos e de uma melhoria colossal

na gestão das infraestruturas: a mudança de mentalidade dos portugueses. Na verdade, sem a participação ativa da

população – que produz resíduos mas que, complementarmente, desempenha um papel crucial na tarefa de os re-

ciclar e valorizar –, nenhuns resultados práticos se teriam alcançado.

Apesar de ser parcialmente geracional, esta mudança deveu-se, de uma forma indesmentível, aos fortes

empenhos das entidades públicas e sobretudo privadas, a par das contínuas iniciativas dinamizadas por variados

setores da sociedade civil, que nos últimos anos criaram e implantaram um novo paradigma para o lixo, transfor-

mando-o, aos olhos do cidadão comum, em produtos com valor económico. Mostrando e demonstrando que há

evidentes vantagens ambientais e económicas, diretas e indiretas, se os resíduos forem convenientemente geridos.

De facto, até meados dos anos 80 do século passado, o lixo era apenas um incómodo, que se queria longe da

vista e longe do coração. O cidadão comum pretendia tão-somente, e sentir-se-ia satisfeito quando isso sucedia,

que as autarquias procedessem à rápida retirada do lixo defronte da sua casa e que o espaço público se mantivesse

razoavelmente limpo.

Durante muitos anos, a separação seletiva dos resíduos em Portugal apresentava-se, assim, como uma ta-

refa quase lírica, apenas defendida pelos ambientalistas, olhada pela população em geral como algo sem qualquer

interesse coletivo e muito menos com vantagens económicas. A separação de resíduos até à década de 80, como já

se referiu, era sobretudo feita para o papel usado, mas com fraca participação pública, uma vez que era uma atividade

executada por catadores, vista como pouco nobre.

Somente a partir de 1983, com a iniciativa da Associação dos Industriais de Vidro de Embalagem (AIVE) de

instalar vidrões nas vias públicas, se iniciou uma primeira tentativa organizada de sensibilização das populações para

a vantagem da recolha seletiva e da reciclagem. «Vidro velho, vira novo» foi o primeiro slogan usado pela campanha

da AIVE e os resultados até foram animadores. Em cerca de uma década estavam instalados quase seis mil vidrões

no país e as recolhas atingiram valores bastante aceitáveis para a época.

Porém, nos anos seguintes, embora fossem sendo realizadas diversificadas campanhas de sensibilização,

sobretudo em escolas ou em ocasiões especiais, os avanços na recolha seletiva foram muito ténues. E as autarquias,

de forma dispersa e algo voluntarista, pouco mais conseguiam que instalar alguns equipamentos dispersos, reco-

lhendo quantidades tão escassas que nem sempre era rentável o envio para unidades de reciclagem.

Mesmo o inovador projeto piloto, iniciado em Queijas em 1994, por iniciativa da autarquia de Oeiras e do

Grupo Intersetorial para a Reciclagem, pareceu nos primeiros anos confirmar que os portugueses eram avessos à

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145 | O português, esse reciclador

recolha seletiva. Com efeito, mesmo tendo funcionado em zonas de razoável nível de vida, este sistema de recolha

porta a porta deparou-se logo com diversos problemas: acumulação de sacos e formação de montureiras junto a

contentores, incumprimento dos horários de colocação dos sacos na rua, sacos rasgados e resíduos espalhados por

ação dos animais e do vento, utilização de sacos para outros fins e utilização de sacos pretos – que se destinavam

aos resíduos indiferenciados – para os recicláveis e existência de vidro nos sacos azuis, que se destinavam ao papel e

cartão. Resultado: o sistema de recolha teve de ser alterado, passando a ser feito porta a porta apenas em moradias

e em edifícios com casa do lixo.

O primeiro impulso verde

A aprovação do Plano Estratégico de Resíduos Sólidos Urbanos (PERSU), sobretudo a entrada em funciona-

mento do Sistema Ponto Verde, marcou a reviravolta nesta desoladora situação. Com a obrigatoriedade de se cum-

prir as metas de reciclagem e valorização impostas pela diretiva Embalagens, as autarquias e os sistemas municipais

intensificaram estratégias coordenadas no sentido de uma maior e mais eficaz participação dos cidadãos, em muito

por via das contrapartidas pagas pelas retomas de resíduos por parte da Sociedade Ponto Verde.

Embora se apontasse como objetivo ideal dotar as zonas mais urbanizadas com sistemas de recolha seletiva

porta a porta, a esmagadora maioria das autarquias e dos sistemas de gestão de resíduos sólidos urbanos (SMAUT)

acabou por optar pela instalação, nas vias públicas, de contentores especiais agrupados – ou seja, os ecopontos e,

nalguns casos, ecoilhas57 –, associados a ecocentros e, mais a jusante, a centros de triagem. Como meta para 2005

estabeleceu-se um rácio desejável de um ecoponto por 500 habitantes. Esse objetivo seria atingido mediante um

crescimento médio de 16% ao ano, entre 2000 e 2007. E continuou a aumentar, depois desta última data, de modo

que atualmente o rácio é já inferior a 300 habitantes por cada ecoponto.

Mas, sendo certo que os ecopontos, ecoilhas e ecocentros – bem como os sistemas de recolha seletiva porta

a porta, que abrangiam, em 2010, cerca de 4% da população – constituíram peças fundamentais para melhorar as

taxas de recolha seletiva, pouco sucesso se teria alcançado se esses investimentos em infraestruturas não tivessem

sido acompanhados de um forte investimento de sensibilização e informação por parte da Sociedade Ponto Verde.

De facto, como primeira entidade responsável por um sistema de gestão integrada – e do mais importante flu-

xo específico de resíduos –, a Sociedade Ponto Verde foi desenvolvendo desde a sua fundação uma intensa atividade

de sensibilização e informação. As linhas principais da sua atuação dividiram-se sobretudo em duas componentes: a

primeira, na sensibilização da população em geral – e dos mais jovens em particular por serem motores de motivação

57 A diferença fundamental entre ecopontos e ecoilhas está no facto de, no segundo caso, estarem também associados contentores para

resíduos indiferenciados. Esta segunda solução é sobretudo utilizada em aglomerados de menor densidade, onde a recolha de resíduos não ne-

cessita de ser muito frequente.

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146 | Resíduos: uma Oportunidade

nas respetivas famílias – para a importância da separação seletiva; a segunda, na comunicação, explicando a forma

adequada de separar e depositar corretamente os variados materiais nos ecopontos. Contudo, também foram reali-

zadas campanhas de sensibilização mais alargada, através de iniciativas de promoção da recolha seletiva – não apenas

dos resíduos de embalagem – com vista ao financiamento de instituições com trabalho nas áreas da saúde e do apoio

social. De entre as iniciativas mais recentes destacam-se as campanhas com a Associação Laço, em 2008 – para a

aquisição de duas novas unidades móveis de rastreio – e com o Banco de Bens Doados, em 2010 – para compra de kits

escolares feitos em materiais reciclados –, estando atualmente em curso a campanha Reciclar é Dar e Receber, que

visa equipar salas de estudo em instituições particulares de solidariedade social (IPSS). No caso da campanha com a

Laço, cada um dos sistemas municipais aderentes contribuiu com 1 euro por tonelada de embalagens provenientes

da recolha seletiva (ecopontos e porta a porta) e recicladas em 2008, na sua área de intervenção. A este contributo

juntou-se o da Sociedade Ponto Verde, que doou 0,50 euros por cada tonelada de embalagens reciclada ao nível na-

cional. No total foram angariados 409 000 euros. No caso da segunda campanha, exclusivamente dinamizada pela

Sociedade Ponto Verde, foram distribuídos dois mil kits escolares em 75 instituições de apoio a crianças carenciadas.

Ao longo de uma década e meia, a Sociedade Ponto Verde investiu cerca de 37,5 milhões de euros em diver-

sas campanhas com grande impacto na comunicação social – com especial destaque para os anúncios televisivos

– e em inúmeras iniciativas junto de escolas e outras instituições. Foram, por outro lado, estabelecidas várias par-

cerias com entidades públicas e privadas para o desenvolvimento de campanhas de sensibilização. O seu papel de

dinamização acabou assim por não se cingir exclusivamente à temática dos resíduos de embalagens, alargando-se

para a esfera da promoção ambiental em geral. Em 2010, a Sociedade Ponto Verde foi mesmo considerada a segunda

marca portuguesa mais associada à Responsabilidade Ambiental.

Além destas ações, ao longo dos seus 15 anos de atividade, a Sociedade Ponto Verde investiu cerca de dois

milhões de euros em apoios a projetos de investigação e desenvolvimento, que se destinaram não só a melhorar as

capacidades de recolha, tratamento, reciclagem e valorização dos resíduos de embalagens, mas também a promo-

ver a prevenção na área dos resíduos. A definição das linhas prioritárias para o desenvolvimento de projetos inova-

dores é da responsabilidade de uma Comissão Consultiva, integrando personalidades de mérito, de acordo com a

evolução do setor e do estado da arte.

Em resultado desta multiplicidade de iniciativas de sensibilização e comunicação, e da densificação das infra-

estruturas de recolha seletiva, a participação dos portugueses na recolha seletiva foi evoluindo muito favoravelmen-

te. Assim, de acordo com um estudo da Sociedade Ponto Verde, realizado em 2004, nas áreas do Grande Porto e da

Grande Lisboa, 48% das famílias já procediam à separação de parte ou da totalidade dos resíduos de embalagens.

Em todo o caso, convém referir que, nesta data, se estava aquém do desejável e que nos primeiros anos de

funcionamento do Sistema Ponto Verde a adesão das populações foi ainda bastante lenta, sobretudo por causa dos

atrasos na instalação de ecopontos e na sua deficiente gestão pelos SMAUT. Com efeito, um estudo realizado en-

tre 2004 e 2006 pelo Instituto de Ciências Sociais (ICS), em vários aglomerados urbanos da área de intervenção da

Amtres – ou seja, nos concelhos de Cascais, Sintra, Oeiras e Mafra –, verificou que nas zonas em que os problemas

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147 | O português, esse reciclador

de sujidade e desleixo na limpeza urbana eram muito sentidos, a tendência era para uma mais fraca taxa de sepa-

ração seletiva. Além da desconfiança e do desconhecimento popular, que se verificava, sobre o funcionamento do

Sistema Ponto Verde, as condições logísticas – nomeadamente a inexistência de ecopontos ou o seu demasiado dis-

tanciamento das residências – mostravam-se insatisfatórias. De acordo com o estudo do ICS, 47% dos inquiridos

apontavam para a falta dessas condições logísticas como a causa para não fazerem separação seletiva. Deste modo,

o estado de limpeza e a eficácia da recolha dos ecopontos – que por vezes de transformavam em monturos de lixo –

determinaram, durante algum tempo, uma certa aversão pela recolha seletiva. Em todo o caso, cerca de dois terços

dos inquiridos avaliavam de forma positiva o estado do ecoponto mais próximo de sua casa, enquanto cerca de um

terço considerava que o ecoponto estava sujo ou com lixo em redor ou mesmo degradado/vandalizado.

Um outro aspeto muito importante, mas lógico, saído deste estudo do ICS, que abordou a evolução da reco-

lha seletiva naqueles aglomerados urbanos ao longo de três anos, foi a constatação de que a maioria dos inquiridos

iniciou a separação seletiva após a instalação de ecopontos perto das respetivas casas. Ou seja, à medida que se cria-

ram melhores condições logísticas e as mensagens de sensibilização e informação se enraizaram, os portugueses

foram aderindo à reciclagem. Assim, em 2007, um novo inquérito da Sociedade Ponto Verde, sobre hábitos e atitu-

des dos portugueses, apurou que a taxa de recolha seletiva tinha aumentado para 63% do total das famílias, embora

apenas 11% procedessem à separação de todos os materiais.

Nos anos seguintes, com o contínuo incremento das ações de sensibilização da Sociedade Ponto Verde e, em

certa medida, com o surgimento de outras entidades gestoras – cujas campanhas, embora para outros fluxos, ampli-

ficaram a mensagem em prol da recolha seletiva –, a adesão popular foi aumentando ainda mais. No último inquérito,

realizado em 2010, constatou-se que a recolha seletiva de resíduos de embalagens para todos os materiais era já feita

por 33% do total das famílias (separadores totais), atingindo-se, com as famílias que separavam apenas alguns ma-

teriais, os 56%. No caso dos separadores parciais, o inquérito apurou que 91% das famílias inquiridas faziam separação

de vidro, 83% de caixas de cartão, 82% de jornais e revistas, 78% caixas e pacotes de cereais, 76% de garrafas de plástico,

69% de sacos de papel, 61% de latas de bebidas, 59% de embalagens plásticas de detergentes, 53% de embalagens de

cartão para líquidos alimentares (ECAL), 52% de embalagens de produtos de higiene, 51% de embalagens de iogurte

líquido, 49% de embalagens de iogurtes sólidos, 48% de caixas de ovos, 42% de sacos de plástico, 38% de sacos de co-

mida para animais, 33% de esferovite, 32% de latas de conserva, 22% de couvettes de metal e 17% de aerossóis.

Este último inquérito confirmou que a adesão dos portugueses à recolha seletiva continua sobretudo depen-

dente de questões logísticas, e só indiretamente a fatores socioeconómicos. Com efeito, apesar da taxa de adesão

em famílias de estrato social mais elevado (A/B) ter apresentado valores superiores, tal não se deve necessaria-

mente a uma maior sensibilidade face as questões ambientais, mas sim à existência ou não de condições de arma-

zenamento temporário dos resíduos nas casas, designadamente em ecopontos domésticos58.

58 De acordo com o inquérito de 2010, 44% das famílias de estrato A/B são separadores totais, 20% são separadores parciais, 5% são ex-

-separadores e 31% nunca separaram. No caso das famílias de estrato C1, as percentagens são, respetivamente, as seguintes: 33%, 20%, 6% e 41%.

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A confirmar isso está o facto de 91% das famílias que procediam à separação total, independentemente do

estrato social a que pertencessem, terem ecopontos domésticos, enquanto esse valor descia para os 29% no caso de

famílias sem ecopontos domésticos.

De uma forma global, torna-se também evidente que o aumento da participação ativa na recolha seletiva

advém cada vez mais do aumento da sensibilidade ambiental e de uma melhor postura cívica dos portugueses. No

último inquérito da Sociedade Ponto Verde, 59% das famílias separadoras totais apontaram o respeito ou o dever

pelo ambiente como uma das motivações para dar início à separação, enquanto 13% indicaram as questões cívicas.

Curiosamente, apenas 10% confessarem ter sido por influência de terceiros, 7% por influência da comunicação so-

cial e 4% por causa das campanhas de sensibilização. Convém salientar, contudo, que os resultados deste tipo de

inquéritos têm de ser analisados com precaução, pois se muitos dos inquiridos apontam como principal motivação

o maior respeito pelas questões ambientais, é certo que, para isso, muito terão contribuído as campanhas de sen-

sibilização e a comunicação social. Por outro lado, muitos inquiridos preferem não admitir, neste tipo de inquéritos,

mesmo que sejam anónimos, que as suas decisões são feitas por influência de terceiros.

O papel dos jovens com mais de 15 anos aparenta ser relevante na motivação das famílias, justificando assim

a incidência de muitas das campanhas de sensibilização nesta faixa populacional. De acordo com o referido inquérito,

62% das famílias que fazem separação seletiva incluem filhos ou netos no seu agregado, sendo a separação total em

37% e parcial em 25%. Nos casos de agregados familiares sem jovens, a taxa global não ultrapassa os 55%. As mu-

lheres parecem também desempenhar um papel determinante, pois em 57% das famílias separadoras foi a responsá-

vel do agregado familiar do sexo feminino que tomou a decisão de se fazer separação dos resíduos, em 16% dos casos

tendo vindo a decisão de todos os elementos, em 12% por iniciativa do responsável familiar do sexo masculino, em 6%

dos casos por um descendente com mais de 14 anos e em 5% dos casos por um descendente com menos de 14 anos.

Estes resultados evidenciam, assim, que as campanhas de sensibilização e de informação ambiental – que

em Portugal, durante muitos, se canalizavam em exclusivo para os jovens – para se obterem resultados imediatos,

têm de se dirigir cada vez mais aos adultos, por serem estes que, obviamente, detêm um maior poder de decisão na

modificação das práticas quotidianas.

Apesar de tudo isto, mantém-se os mitos sobre a morosidade das operações de separação seletiva – que

implicam a não adesão de uma parte significativa da população portuguesa –, embora apenas 14%, das famílias se-

paradoras totais considerem que esta tarefa traz inconvenientes, sobretudo por causa do trabalho exigido e da limi-

tação do espaço doméstico. Contrariar este mito talvez não seja tão complicado como se imagina, sobretudo por se

saber que uma parte considerável das famílias não separadoras admite vir a aderir à separação seletiva desde que

haja ecopontos mais próximos, que lhes sejam fornecidos gratuitamente recipientes domésticos apropriados e/ou

que passem a ser servidas por um sistema de recolha porta a porta.

Nas famílias de estrato C2, as percentagens são, respetivamente, de 35%, 24%, 3% e 38%. Nas famílias de estrato D/E são, respetivamente, de

38%, 15%, 4% e 43%.

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149 | O português, esse reciclador

Um outro aspeto relevante do último inquérito da Sociedade Ponto Verde é a elevada frequência de erros

nos procedimentos de separação dos diferentes materiais, designadamente na colocação dos diversos materiais nos

ecopontos ou nos sacos e contentores da recolha porta a porta. De facto, para alguns materiais – sobretudo emba-

lagens de cartão para líquidos alimentares (ECAL), bases de esferovite e invólucros de papel de packs –, a falta de

informação leva a deposições incorretas, mesmo na faixa das famílias separadoras totais, que são, em princípio, as

mais informadas.

Este problema deteta-se, de alguma forma, na caraterização realizada no primeiro semestre de 2011, em eco-

pontos da área de influência da Lipor. No ecoponto verde, a presença de elementos estranhos até era reduzida –

apenas 5% de materiais estranhos, sendo sobretudo de elementos finos, ou seja, de pequenos resíduos que surgem

misturados com as embalagens de vidro. No ecoponto azul, para recolha de papel e cartão, as contaminações tam-

bém eram baixas: menos de 3%. Mas já atingiram valores elevados – bem acima dos 12% – no ecoponto amarelo,

destinado às embalagens de plástico, metais e ECAL. Ou seja, neste caso, a heterogeneidade de outros materiais

contaminantes é muito significativa.

Do sacrifício ao benefício

Se os portugueses estão hoje mais recetivos, e ativos, para desempenharem um papel determinante na re-

colha seletiva – e os resultados quer no Sistema Ponto Verde, quer nos outros sistemas de gestão integrada, assim

o têm comprovado –, há ainda um longo caminho a percorrer. Mas esses passos devem ser dados também pelas

autarquias e por outras entidades responsáveis pela gestão dos resíduos sólidos urbanos, através da implantação de

soluções e estratégias que possam melhorar a adesão das populações e, concomitantemente, das quantidades de

materiais recolhidos e enviados para valorização e reciclagem.

Depois de uma década em que se deu prioridade sobretudo à instalação de ecopontos e nas ecoilhas, a

aposta tem ido, em muitas regiões, para a implantação da recolha seletiva porta a porta, que atualmente beneficia

cerca de 4% da população nacional. Em 2008, segundo uma tese de mestrado desenvolvida por Mark Terra Lavita,

os sistemas de recolha porta a porta no fluxo doméstico ocorriam em determinadas zonas de Angra do Heroísmo,

Funchal, Lisboa, Loures, Maia, Marinha Grande, Matosinhos, Óbidos, Oeiras, Penafiel e Valongo. Porém, a reco-

lha seletiva nem sempre abrangia todos os três fluxos – amarelo (plásticos, ECAL e metais), azul (papel e cartão)

e verde (vidro). De acordo com o referido estudo, a recolha porta a porta beneficiava, nesse ano, cerca de 415 000

habitantes para o fluxo amarelo, um pouco mais de 450 000 habitantes para o fluxo azul e quase 302 000 habitan-

tes para o fluxo verde.

A autarquia de Lisboa tem sido uma das entidades que, nos últimos anos, mais tem apostado nesta via, so-

bretudo para os fluxos azul e amarelo, estando mesmo previsto que até finais de 2013 toda a população da capital

passe a usufruir deste serviço. Essa aposta tem tido, aliás, excelentes resultados financeiros. Em 2010, a autarquia de

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150 | Resíduos: uma Oportunidade

Lisboa obteve receitas na ordem dos 3,7 milhões de euros pelos resíduos recolhidos seletivamente, além de ter con-

seguido economizar 5,3 milhões de euros, que seriam gastos se essa quantidade tivesse sido incinerada. A recolha

seletiva em Lisboa é um caso paradigmático da evolução do país: em 1996 foram enviadas para reciclagem apenas

4922 toneladas de resíduos (1,2% do total), enquanto em 2010 o município enviou 46 584 toneladas (14,4% do total).

Em termos globais, em 2010, a autarquia recolheu, de forma separada, 23 162 toneladas de papel, 12 430 toneladas

de vidro, 8255 toneladas de embalagens do fluxo amarelo (plástico, metal e ECAL), 38 toneladas de madeira, 11 to-

neladas de pilhas, 497 toneladas de resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos, 232 toneladas de metais fer-

rosos, 972 toneladas de veículos em fim de vida, 53 toneladas de pneus, 772 toneladas de resíduos de construção e

demolição, 19 297 toneladas de resíduos biodegradáveis e 230 toneladas de outros materiais.

Convém, contudo, referir que, de acordo com o inquérito de 2010 feito pela Sociedade Ponto Verde, apenas

27% das famílias separadoras totais dispunham deste tipo de sistema. Por outro lado, nem sempre se revela a so-

lução economicamente mais favorável. De facto, embora genericamente possa apresentar melhores resultados

nas retomas de resíduos, os custos associados à recolha porta a porta podem constituir um fator limitativo, pois

torna-se necessário que os SMAUT criem vários circuitos de recolha distintos: um para os indiferenciados e outro,

ou outros, para os diferentes materiais recicláveis. Numa análise aos diversos sistemas de recolha porta a porta,

Mark Terra Lavita concluiu que os custos per capita deste modelo são, por regra, superiores entre 75% e 110% aos

apresentados pelo sistema de recolha por ecopontos. Comparando os dois sistemas em termos de custos por to-

nelada retomada, o estudo verificou que, para uma tipologia habitacional de porte misto, os ecopontos apresen-

tam um custo de recolha 19% inferior para o fluxo azul (papel e cartão) mas superior em 45% para o fluxo amarelo

(plástico, metais e ECAL).

Além disso, o sistema porta a porta pode apresentar, para uma faixa da população, uma desvantagem rele-

vante: requer o cumprimento de mais regras de deposição, uma vez que a recolha dos resíduos recicláveis apenas é

feita em determinados dias e horas da semana. Porém, este efeito pode ser temporário, até a população de adaptar

às novas regras horárias, pois tem a enorme vantagem de substituir as deslocações até ao ecoponto mais próximo.

De acordo com diversos estudos já realizados em Portugal, o sistema porta a porta parece estar a mostrar o

seu potencial, por razões de economia de escala e de maior adesão das populações, sobretudo em zonas urbanas

mais densas e de caraterísticas homogéneas, por regra com uma densidade populacional superior a dois mil habi-

tantes por quilómetro quadrado. Num estudo comparativo desenvolvido em 2008 na zona histórica dos Olivais, em

Lisboa – servida pelo sistema porta a porta por sacos –, no Bairro da Fraternidade – servido pelo sistema porta a porta

por cestos – e na Urbanização da Portela – servida por contentores em cada prédio –, ambos no concelho de Loures,

e ainda na vila da Ericeira, em Mafra – servida por ecopontos – constatou-se que a percentagem de famílias separa-

doras era superior nos grupos de inquiridos servidos pelos sistemas porta a porta.

Verificaram-se, no entanto, já alguns casos de insucesso. Os sistemas de recolha porta a porta em Ermesinde

(Valongo), Bonfim, Campanhã e Paranhos (Porto) e Rio Tinto (Gondomar) foram abandonados pouco tempo depois

de terem sido implementados, porque as taxas de recolha de recicláveis se mostraram pouco satisfatórias em rela-

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151 | O português, esse reciclador

ção aos ecopontos e apresentaram custos mais elevados. Contudo, para tal situação contribuiu o facto de nalguns

casos as autarquias terem mantido os ecopontos em simultâneo com o sistema porta a porta. Em todo o caso, os

sistemas de recolha porta a porta na cidade do Porto têm-se mantido com elevado sucesso para o comércio, o mes-

mo se verifica em relação à recolha seletiva de resíduos orgânicos nos estabelecimentos Horeca nos oito municípios

integrados na Lipor.

Por outro lado, tem-se constatado que o tipo de sistema de recolha influencia o comportamento, uma vez

que a atividade de separação dos resíduos é melhor e bastante superior nos sistemas porta a porta em comparação

com as outras formas de recolha. Por exemplo, de acordo com o estudo já referido, cerca de 95% dos inquiridos na

zona histórica dos Olivais separava todos os materiais alvo de reciclagem, seguindo-se o grupo da Urbanização da

Portela (86%), o Bairro da Fraternidade (79%) e a Vila da Ericeira (74%). Em todo o caso, convém referir que, neste es-

tudo, o sistema que se revelou mais cómodo para os utilizadores foi o sistema de contentor por prédio, uma vez que

juntava uma das vantagens apontadas para o sistema porta a porta – o facto de a deposição se fazer muito perto da

casa – com uma das vantagens apontadas para o sistema coletivo por ecopontos, isto é, poder depositar-se os resí-

duos nos dias e horas mais convenientes.

Curiosamente, no caso dos residentes servidos por ecopontos, as principais virtudes apontadas estavam re-

lacionadas com a liberdade de se depositar os resíduos a qualquer hora e dia. Mas isto pode indiciar que as pessoas

que usam este sistema possuem já uma forte motivação ambiental. De facto, o importante é saber se as pessoas

que não fazem separação seletiva alterariam esta postura caso beneficiassem de um sistema de recolha porta a

porta.

Uma outra solução para melhorar a recolha seletiva tem passado pelo alargamento da implantação das ecoi-

lhas, mesmo em zonas urbanas mais densas com recolha diária. Neste caso, aumentando-se o rácio de equipa-

mentos por habitante, pode-se até potenciar o interesse de proceder à recolha seletiva de resíduos biodegradáveis.

Este sistema, tal como o porta a porta, permite a possibilidade de reduzir substancialmente os custos globais de re-

colha, caso se comece a usar modernos veículos de transporte que tenham recetáculos separados, com compacta-

dores individuais, para pelo menos dois tipos de resíduos. Deste modo, em vez de ser necessário enviar dois veículos

para recolher dois tipos de resíduos, bastará um.

Mas a solução do futuro – que necessariamente irá condicionar a manutenção de algumas justificações das

famílias não separadoras, apontadas no último inquérito da Sociedade Ponto Verde59 –, parece ser o sistema PAYT

– Pay as You Throw, ou seja, a aplicação individualizada do princípio do utilizador-pagador na produção de resídu-

os domésticos. Este modelo, já em voga em vários países e previsto no segundo Plano Estratégico para os Resídu-

os Sólidos Urbanos (PERSU II), consiste na aplicação de uma taxa variável em função dos resíduos efetivamente

59 Neste inquérito, 61% das famílias não separadoras apontavam a falta de recipientes próprios para não fazerem recolha seletiva, em 59%

dos casos referiam o excesso de trabalho que esta tarefa acarretava, em 39% dos casos apontavam a demasiada distância aos ecopontos, em 21%

dos casos consideravam ser tarefa desnecessária, em 20% dos casos alegavam falta de informação e em 10% dos casos referiam a falta de hábito.

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152 | Resíduos: uma Oportunidade

produzidos em cada residência, com deduções a partir dos índices individuais de reciclagem. Ou seja, quem fizer a

recolha seletiva tendencialmente pagará um valor inferior aos que não a fazem, e quem produzir mais resíduos indi-

ferenciados terá de suportar um custo superior, deixando assim de se aplicar tarifas de gestão de resíduos indexadas

ao consumo de água, pois estes dois serviços só indiretamente estão relacionados.

Em termos práticos, este sistema de recolha pode ser implantado recorrendo ao aluguer de contentores de

volume variável para os resíduos indiferenciados – em que o consumidor ou grupo de consumidores paga um valor

fixo por cada recolha –, à venda de sacos pré-pagos ou ainda à venda de etiquetas para identificar, nos sacos, o tipo

de resíduo aí depositado. No entanto, os sistemas mais modernos utilizam contentores especiais com um modo de

abertura por cartão magnético que, quando é feita uma deposição, regista os volumes e identifica o consumidor. Em

regra, apenas as deposições nos contentores de resíduos indiferenciados são cobradas, podendo as deposições de

materiais recicláveis, em diversos contentores específicos (fluxos amarelo, azul e verde), até servirem para se obter

deduções nas taxas de gestão de resíduos. Desta forma, o consumidor é incentivado, pelo lado económico, a reduzir

quer a produção de resíduos indiferenciados quer a aumentar a recolha seletiva.

Apesar das evidentes vantagens económicas na implantação deste modelo – tanto mais que em Portugal o

setor da recolha e tratamento de resíduos é altamente deficitário, precisamente por ser difícil definir as receitas ne-

cessárias para cobrir os custos da gestão dos resíduos utilizando os consumos de água, que nalgumas regiões têm

tarifas já de si demasiado baixas –, torna-se expectável que, após a sua implementação, surjam alguns casos de

despejos ilegais, como seja a deposição de resíduos indiferenciados nos sacos de resíduos recicláveis, a deposição

em locais ermos ou a queima. A situação, porém, nem sempre assume as proporções que se temem inicialmente,

sobretudo se houver fiscalização e campanhas de sensibilização. Nos Estados Unidos, 48% das comunidades que

adotaram o sistema PAYT não registaram qualquer mudança na taxa de despejos ilegais, 6% até tiveram uma redu-

ção e apenas 19% tiveram um aumento, desconhecendo-se a situação de 27% dos casos.

Nos diversos países, os resultados da aplicação deste sistema, embora tenha aumentado os custos de ges-

tão, têm sido bastante interessantes, por via das receitas acrescidas, não apenas diretas como indiretas, uma vez que

se registam, em regra, reduções da ordem dos 25% na quantidade de resíduos indiferenciados e um aumento subs-

tancial da recolha de materiais recicláveis.

Em Portugal, nos últimos anos foram iniciados alguns estudos e projetos piloto para a aplicação do sistema

PAYT, tendo os municípios de Óbidos, Portimão e Maia sido os pioneiros. No caso do concelho da Maia, por inicia-

tiva da Lipor e da empresa municipal Maiambiente, este sistema foi implantado, de forma plena, no início de 2012,

na freguesia de Vila Nova da Telha, abrangendo uma zona semiurbana de 90 hectares formada sobretudo por mo-

radias de dois pisos, com diversos prédios e pequenos polos de comércio e serviços, onde 93% dos moradores das

habitações fazem já recolha seletiva.

O sistema de Vila Nova da Telha, que conta com um investimento de 300 000 euros, financiado pela Agência

Portuguesa do Ambiente, através dos fundos provenientes da taxa de gestão de resíduos, basear-se-á na coloca-

ção de contentores com um sistema de monitorização. Em termos práticos, no caso das moradias, serão disponibi-

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153 | O português, esse reciclador

lizados, para cada família, quatro tipos de contentores com capacidade de 120 litros – três para os fluxos de resíduos

recicláveis (amarelo, azul e verde) e outro para os resíduos indiferenciados –, além de um pequeno compostor, des-

tinado à valorização dos resíduos orgânicos. Todos estes contentores terão um sistema de abertura através de cartão

com chip, de modo a ficar registado o volume depositado dos diferentes materiais. Apenas haverá lugar ao paga-

mento de uma taxa para os resíduos indiferenciados, quando o contentor for colocado na rua, para ser transportado

pelos serviços camarários. Significa isto que, quanto menores forem as deposições neste contentor e quanto maior

for o esforço de separação seletiva, menor será a fatura a pagar pela respetiva família.

Em relação aos prédios, a Lipor e a Maiambiente adotaram um sistema inovador que permite que os diversos

condóminos paguem individualmente pela deposição dos resíduos indiferenciados. Neste caso, todos os quatro ti-

pos de contentores, com uma capacidade de 800 litros, possuem um sistema de abertura através de um cartão com

chip que possibilita a deposição, de cada vez, de um volume máximo de 30 litros de resíduos. Assim, tanto nos con-

tentores de resíduos indiferenciados como nos destinados aos resíduos recicláveis, o sistema permite a aplicação de

distintas tarifas de resíduos entre condóminos, em função das quantidades depositadas por cada um, assegurando

assim benefícios para quem, num determinado prédio, faz um esforço maior na redução da produção de resíduos e

participe mais na separação seletiva.

A implantação deste sistema nesta freguesia da Maia apresentará, em princípio, menores custos de gestão,

uma vez que não só substituirá os ecopontos atualmente existentes, mas também reduzirá a frequência de recolha,

já que esta passará de trissemanal para bissemanal. Um dos principais objetivos da Lipor e da Maiambiente, além

de aproveitar este modelo para ser expandido em muitas outras zonas, é conseguir uma redução na ordem dos 20%

na recolha de resíduos indiferenciados, aumentando na mesma proporção a recolha seletiva. Os consumidores que

alcançarem este objetivo conseguirão, em princípio, uma redução da atual tarifa de resíduos. Além disso, como es-

tímulo, estão previstos prémios por desempenho na ação de recolha seletiva, podendo os consumidores aceder aos

extratos históricos das suas produções, tanto dos resíduos indiferenciados como dos diversos materiais recicláveis.

Numa primeira fase, as tarifas calculadas através do sistema PAYT serão meramente indicativas, no sentido de per-

mitir que os utentes se adaptem ao novo modelo.

Independentemente das soluções e estratégias que venham a ser seguidas, certo é que se torna patente que,

induzidos ou seduzidos, os portugueses continuarão a ser no futuro, de forma individual e coletiva, os principais mo-

tores da reciclagem. Esse é um processo em curso, quase em velocidade de cruzeiro, e será previsível que a médio

prazo a recolha seletiva nos lares portugueses passe a ser uma tarefa tão banal como lavar a cara ao acordar.

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O Futuro Com Novos Horizontes

Em Portugal, após décadas de inércia, o setor dos resíduos, antes quase menosprezado pelas instâncias po-

líticas, foi catapultado para um patamar de qualidade que, embora ainda longe da perfeição, permite olhar para o

futuro numa outra perspetiva. O sucesso já alcançado, quer na implementação de estratégias quer na criação de

infraestruturas e modelos de intervenção mais profissionalizados, trouxe inegáveis benefícios ambientais e até eco-

nómicos, não apenas pela poupança de recursos naturais mas também pela criação de empregos. Todavia impôs

também novas exigências, novas necessidades e novos desafios. Hoje, mais do que atingir metas, torna-se fun-

damental assumir que a gestão de resíduos não é unicamente um problema ambiental mas sobretudo um desafio

no sentido de melhorar a eficiência energética e a correta utilização de recursos naturais. Em suma, um desafio para

integrar estratégias que anteriormente só mereciam intervenções autónomas e independentes.

Em certa medida, como se salientou nos capítulos anteriores, durante a última década e meia, o trilho por

onde caminhou a política de resíduos em Portugal foi orientado pelas exigências ambientais da União Europeia. E o

nosso país soube, passo a passo, cumprir a generalidade desses objetivos. Mas agora provavelmente torna-se fun-

damental definir um rumo próprio, adequado às especificidades e às necessidades nacionais, que não esteja apenas

condicionado por metas individualizadas.

Nesse âmbito, o Plano Nacional de Gestão de Resíduos (PNGR), cuja proposta técnica foi elaborada ao lon-

go de 2011, poderá constituir um passo decisivo na integração absoluta das estratégias setoriais dos diversos tipos de

resíduos (urbanos, industriais, agrícolas e de construção civil), cruzando-as com outras áreas da atividade econó-

mica do país. Tanto mais que um dos aspetos mais interessantes deste plano passa pela sua visão mais transversal,

englobando todos os setores da sociedade e estabelecendo objetivos operacionais de índole económica e ambiental.

Ou seja, apesar de algumas das suas medidas se encontrarem previstas noutros planos, a sua visão mostra-se mais

holística e integradora.

O seu primeiro grande objetivo operacional incide precisamente em duas importantes vertentes da preven-

ção da produção de resíduos: a implementação de medidas com vista à sua redução na fonte – ou seja, antes de os

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156 | Resíduos: uma Oportunidade

produtos serem colocados no mercado e se «transformarem» em resíduo – e a redução da perigosidade das com-

ponentes incluídas nos produtos. Nesta linha incluem-se as ações que visam o aumento do tempo de vida dos pro-

dutos, a redução da quantidade de materiais utilizados para o seu fabrico e embalamento e a redução dos compo-

nentes perigosos utilizados, aspetos que implicarão não apenas alterações na conceção, fabrico, aquisição, utilização

e reutilização dos produtos e materiais, mas também nas reduções do seu volume ou perigosidade.

Fundamental para este desiderato será a promoção de ações de comunicação e sensibilização para a disse-

minação das boas práticas na utilização de produtos e de incentivos à utilização de rotulagem ambiental nos produ-

tos – como são os casos do selo de carbono e do rótulo ecológico –, bem como a divulgação dos locais onde as popu-

lações possam recorrer para a reparação e reutilização de equipamentos e/ou produtos. Num outro nível, o PNGR

propõe a criação de plataformas de informação, de âmbito empresarial, sobre boas práticas geradoras de ecoeficiên-

cia, incluindo as técnicas de prevenção de resíduos, bem como a elaboração de um catálogo eletrónico de produtos

reutilizáveis e de produtos fabricados com materiais reciclados, conjugando-o com certificados de qualidade.

Para fomento e promoção da conceção ecológica – o chamado ecodesign, que contribui, de forma decisiva,

para a redução e qualidade dos resíduos –, é recomendado o estabelecimento de acordos voluntários com empresas,

de modo a serem criados produtos com maior extensão do período de vida, bem como uma maior aposta na modu-

laridade e no desenho de materiais para facilitar o seu posterior desmantelamento, reparação e reutilização. Outras

medidas que deverão ser tomadas passam também pela diferenciação dos ecovalores ou taxas, pagos às entidades

gestoras pelos industriais ou embaladores, consoante o grau de ecodesign dos produtos, ou, ainda, pelo reforço das

medidas políticas em matéria de utilização de substâncias químicas, de acordo com o regulamento REACH60.

Numa visão mais holística, o PNGR propõe, igualmente, que seja fomentada junto dos produtores de bens e

serviços a utilização de metodologias técnico-científicas direcionadas para o ciclo de vida, como seja a Avaliação do

Ciclo de Vida e a Análise Custo-Benefício, bem como o cálculo de indicadores de pressão ambiental, entre os quais

a denominada pegada de carbono ou a energia incorporada nos materiais.

Ainda na área da prevenção e redução, o PNGR considera que o estado deve dar o exemplo, propondo assim

a revisão da estratégia nacional de compras públicas ecológicas, no sentido de uma maior promoção de aquisições,

pelo setor público, com base em critérios de sustentabilidade, a ser seguida nomeadamente em obras públicas, e

dando preferência à reutilização e à utilização de materiais reciclados nos produtos finais.

O segundo grande objetivo operacional do PNGR incide na promoção de parcerias empresariais, para que,

em alternativa ao tratamento e à eliminação de resíduos, se maximize o seu aproveitamento como matéria-prima,

conseguindo-se assim sinergias com valor económico e maiores poupanças energéticas. Nesse sentido, é sugeri-

do o estabelecimento de metas, normas e regras para a incorporação de materiais reciclados em diversos produtos,

60 Regulamento (CE) n.º 1907/2006, relativo ao Registo, Avaliação, Autorização e Restrição de substâncias químicas (REACH – Regis-

tration, Evaluation, Authorisation and Restriction of Chemicals), que entrou em vigor a 1 de junho de 2007, tendo surgido com o objetivo de melho-

rar o quadro legislativo comunitário em matéria de substâncias químicas, substituindo cerca de 40 normativos, entre os quais o Regulamento (CE)

n.º 793/93, a Diretiva n.º 1999/45/CE e a Diretiva n.º 76/769/CEE, e alterando a Diretiva n.º 67/548/CEE.

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157 | O futuro com novos horizontes

designadamente nos materiais de construção em obras públicas. De modo a garantir uma elevada qualidade des-

ses reciclados deverá ser criada uma regulamentação, incluindo aqui a sua certificação e o fomento do uso de rótulos

ecológicos e promovendo simultaneamente um sistema de incentivos à sua utilização.

Em parte, este objetivo operacional pode ser otimizado através do apoio à constituição de ecoparques indus-

triais, onde os resíduos, subprodutos e energia gerados possam ser utilizados localmente e de forma adequada em

processos industriais de outras empresas. Em determinadas zonas industriais, recomenda-se ainda a adoção de

planos que prevejam o fecho de ciclo de materiais e o aproveitamento da energia em cascata, por parte das entidades

promotoras de parques empresariais.

Todas estas ações, para uma melhor articulação, devem ser complementadas com um reforço dos sistemas de

gestão de fluxos específicos, com a correspondente aplicação da responsabilidade alargada do produtor, quer através

da criação de novas entidades gestoras, do tipo da Sociedade Ponto Verde, quer alargando o âmbito das já existentes.

Como terceiro grande objetivo operacional, o PNGR preconiza a consolidação e a otimização da rede de ges-

tão de resíduos, de maneira a reduzir-se ao mínimo possível os movimentos transfronteiriços. Nessa medida, su-

gere-se uma avaliação das necessidades de alargamento e de aproximação da rede de recolha aos consumidores

particulares, associado a ações junto dos municípios e operadores de gestão, no sentido de se garantir níveis eficazes

de proximidade. Estas intervenções podem e devem sempre encontrar sinergias com outros modelos de recolha

seletiva, como os que estão assentes nos ecopontos e nos ecocentros. Na mesma linha, considera-se que as ope-

rações de recolha, transporte e amostragem devem ser feitas de modo mais transparente e eficiente, sendo assim

necessário criar regras legais de uniformização das atividades de todos os operadores, pertencentes ou não a um sis-

tema integrado de gestão de resíduos.

Por fim, ainda nesta temática, o PNGR advoga que o próprio estado deverá reforçar a obrigatoriedade de se-

paração seletiva de resíduos na administração pública e nas empresas com capitais públicos, bem como aplicar in-

centivos à recolha de determinados resíduos, dando o exemplo concreto das embalagens de medicamentos e de

medicamentos fora do prazo.

O quarto grande objetivo operacional do PNGR passa pela recuperação absoluta dos passivos ambientais

decorrentes da deposição de resíduos, quer industriais quer urbanos, em várias zonas do país, incluindo a reabilitação

de antigas pedreiras e minas. Nesta vertente, deverão ser elaborados guias e normas técnicas para a descontami-

nação de solos, numa ótica de proteção dos recursos hídricos e de recuperação da biodiversidade. Além disso, será

necessário estabelecer programas de monitorização que permitam avaliar a qualidade dos recursos hídricos super-

ficiais e subsuperficiais, as emissões de biogás e lixiviados e a existência de assentamentos. Adicionalmente propõe

ainda a obrigatoriedade da aplicação de planos de gestão por parte dos sistemas multimunicipais e intermunicipais,

no sentido de serem implementadas medidas de estabilização dos aterros em fim de vida, bem como de se estudar

a possibilidade, a longo prazo, de extrair e valorizar materiais de antigos aterros, lixeiras e escombreiras.

O quinto grande objetivo operacional incide no reforço da cidadania ambiental, pretendendo o PNGR que

sejam reforçadas as medidas tendentes à adoção, pelas populações, de melhores padrões de consumo e de ati-

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158 | Resíduos: uma Oportunidade

tudes comportamentais mais sustentáveis, designadamente ao nível da prevenção e da recolha seletiva dos dife-

rentes fluxos específicos. Igual importância se deverá dar ao envolvimento dos cidadãos nos processos de tomada

de decisão em matérias relacionadas com os resíduos, através da criação de uma plataforma de consulta pública e

da realização de inquéritos e de workshops. No caso do ensino, o PNGR propõe que os programas curriculares do

ensino básico e secundário passem a incluir expressamente, entre outros aspetos, ações de formação relacionadas

com a prevenção e a gestão adequada dos resíduos, bem como sobre o uso sustentável dos recursos naturais e o ci-

clo de vida dos materiais e produtos. Numa outra linha, considera-se essencial estimular os diversos agentes com

responsabilidades na gestão dos resíduos – incluindo empresas, municípios, entidades públicas e dos sistemas de

gestão e escolas – através da atribuição de prémios anuais de desempenho.

O sexto grande objetivo operacional do PNGR passa pela promoção e qualificação dos diversos agentes eco-

nómicos, no sentido de aumentar a procura e a utilização dos resíduos como matérias-primas secundárias e energia.

Nesse sentido, considera-se fundamental o desenvolvimento de programas de formação e qualificação profissio-

nal, seguindo guias técnicos certificados, bem como a implementação de sistemas de gestão ambiental, de quali-

dade e de higiene e segurança no trabalho.

Fomentar o conhecimento do setor dos resíduos numa lógica de ciclo de vida constitui o sétimo grande objeti-

vo operacional do PNGR, seguindo a hierarquia definida pela União Europeia: prevenção e redução; preparação para

reutilização; reciclagem; e outras formas de valorização, incluindo a valorização energética e eliminação. De acordo

com o PNGR, devem prevalecer as opções que conduzam a um menor impacto ambiental global, pelo que em ca-

sos específicos poderá ser aceitável optar-se pela alteração desta hierarquia, se se justificar na perspetiva de ciclo de

vida. Neste contexto, preconiza-se a promoção da integração de sistemas de informação que garantam maior fia-

bilidade da informação, necessária aos processos de decisão e avaliação de tendências, melhorando-se assim, ain-

da mais, o atual Sistema Integrado de Registo de Resíduos da Agência Portuguesa do Ambiente (SIRAPA). Nes-

sa linha, poder-se-ão introduzir novas valências neste sistema de registo, designadamente a georreferenciação da

produção e/ou do destino dos resíduos, os relatórios de monitorização dos aterros, a contabilização dos movimentos

transfronteiriços de resíduos, a lista de operadores e a caraterização das infraestruturas. De igual modo, o PNGR

recomenda o desenvolvimento e a atualização, numa base regular, de um sistema de indicadores sobre resíduos e

fluxos de materiais, disponibilizando essa informação publicamente, de modo a se poder seguir a sua evolução. Tor-

na-se fundamental, nessa perspetiva, apostar e incentivar ainda mais os projetos de investigação e desenvolvimento

em diversas áreas-chave, designadamente em termos de ecodesign de produtos, e da sua implementação prática,

da utilização sustentável de produtos, da inovação tecnológica das infraestruturas de valorização de resíduos, e do

desenvolvimento de projetos piloto centrados no desvio de frações perigosas e na recolha seletiva.

O oitavo objetivo operacional incide na agilização e adequação dos processos administrativos, no sentido da

desburocratização e do aumento da celeridade nos processos de decisão e aprovação de projetos, mediante um re-

forço do sistema de regulação e do papel de fiscalização por parte do estado. Uma tónica especial deve ser dada à re-

alização de auditorias técnico-financeiras dos diversos organismos de gestão de resíduos, a serem feitas por peritos

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159 | O futuro com novos horizontes

qualificados, cujos resultados essenciais passarão a ser facultados ao público, servindo, de igual modo, para ponde-

rar medidas de poupança económica. Neste contexto, o PNGR considera essencial a otimização do atual quadro

legal e institucional, recomendando, entre outras medidas, a revisão de alguns programas estratégicos sectoriais

– como o dos resíduos industriais e agrícolas –, a definição de uma estratégia para os produtos da compostagem, a

elaboração de um programa para o uso sustentável dos materiais, de normas técnicas relativas à descontaminação

de solos, a revisão do regime jurídico de gestão de resíduos, a adequação dos diplomas relacionados com fluxos es-

pecíficos de resíduos, a atualização das normas relativas ao transporte de resíduos e a análise da viabilidade da proi-

bição da deposição em aterro de resíduos passíveis de valorização em condições técnicas e económicas adequadas.

Como nono e derradeiro objetivo operacional, o PNGR recomenda uma adequação no uso dos instrumen-

tos económicos e financeiros, designadamente ao nível dos ecovalores introduzidos no contexto da aplicação da

responsabilidade alargada do produtor e da taxa de gestão de resíduos, cujos valores deverão ser avaliados periodi-

camente, e alargado mesmo o seu âmbito de aplicação. Nesta linha, considera-se que, na definição desses instru-

mentos, deve ser dada especial atenção à gestão dos fluxos de resíduos em função da reciclabilidade, perigosidade e

impactos no ciclo de vida. Nesse sentido, deverá favorecer-se uma diferenciação das prestações financeiras às en-

tidades gestoras que incorporem materiais secundários em novos produtos ou em combustíveis alternativos, con-

seguindo-se isso através do incremento progressivo das taxas relacionadas com a eliminação de resíduos com alto

potencial técnico de valorização, da diferenciação de ecovalores consoante o comportamento ambiental dos produ-

tos e da promoção de linhas de crédito bonificadas para projetos e atividades inovadoras de prevenção e valorização

de resíduos. Assim, o PNGR considera que a diferenciação das prestações ao nível da taxa de gestão de resíduos

pode ser feita através de incentivos à recolha seletiva, concedendo descontos por devoluções de produtos em fim de

vida que podem ser reutilizados ou valorizados, ou de reduções das tarifas pagas pelos consumidores que efetuam a

recolha seletiva dos resíduos urbanos e equiparados, nomeadamente através do sistema PAYT.

Ainda nesta área, o PNGR recomenda um reforço na promoção do Mercado Organizado de Resíduos, que

funcione como instrumento para a troca e a valorização de resíduos, a promoção de simbioses industriais e o au-

mento da produtividade dos recursos materiais, sendo essencial a simplificação da troca direta de resíduos entre in-

dústrias, desde que esteja garantida a proteção do ambiente e da saúde pública. Algo que até, em certa medida, foi já

iniciado com a constituição do MOR Online, a primeira plataforma eletrónica integrada no Mercado Organizado de

Resíduos, criada pela Sociedade Ponto Verde, ACAP e Ambigroup, e que obteve autorização da Agência Portuguesa

do Ambiente, a 21 de julho de 2010. O objetivo fundamental desta sociedade é gerir a transação e a valorização de

resíduos: industriais, urbanos, de construção e demolição e de outros fluxos. Ou seja, os produtores poderão colocar

nessa plataforma eletrónica os seus resíduos em concurso e os retomadores ou recicladores poderão comprá-los aí,

num processo completamente transparente, intermediado pela MOR Online que cobra depois uma comissão e um

fee anual, além de também comercializar serviços complementares de apoio às transações.

Os objetivos operacionais do PNGR têm apenas, a si associados, tendências de evolução, que não corres-

pondem a metas quantitativas, pois está-se perante um plano global – e não abrangendo, por isso, apenas os resí-

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160 | Resíduos: uma Oportunidade

duos sólidos urbanos –, obrigando assim, para o seu sucesso, que haja uma consonância perfeita com outras polí-

ticas e estratégias sectoriais. No entanto, a avaliação destas tendências de evolução estará interligada a indicadores

de avaliação de nível macro, através do cruzamento da produção de resíduos com fatores económicos. Nesta ótica,

o PNGR estabelece, como horizonte do plano, o ano 2020 e, como metas intercalares, os anos 2013 e 2016.

Assim, tendo em consideração que o crescimento económico deve estar dissociado do aumento da produção

global de resíduos – ou seja, as políticas de redução deverão funcionar –, o PNGR propõe um indicador medido pelo

quociente entre a produção de resíduos e o produto interno bruto (PIB). O objetivo é que, em 2016, se atinja apenas

as 0,13 toneladas por cada mil euros de riqueza gerada, tendo como referência o valor de 0,18 toneladas registado

em 2009.

Em termos de aposta na integração de todos os resíduos na economia, reforçando as políticas de reutilização e

reciclagem, propõe que o indicador medido pelo quociente entre a preparação para reutilização e reciclagem e a pro-

dução de resíduos atinja um valor acima dos 70% em 2020, tendo em conta os 41,7% registados em 2009. Segundo

o texto da proposta do PNGR, este objetivo, sendo ambicioso, encontra-se em linha com a meta de preparação para

reutilização, reciclagem e outras formas de recuperação material para os resíduos de construção e demolição cons-

tante da diretiva-quadro sobre resíduos (70% em 2020) e meta do PERSU II para os resíduos urbanos (56% para o

cenário moderado e 66% para o cenário otimista, em 2016).

No caso da redução global de resíduos – colocando o ano 2009 como referência em que a produção foi na

ordem dos 28,8 milhões de toneladas –, o PNGR aponta como meta uma diminuição absoluta de 20%, a alcançar

até 2020. Note-se que este valor se refere à totalidade dos resíduos e que uma parte já está enquadrada nas ações

de prevenção do Plano de Prevenção de Resíduos Urbanos, aprovado em 2010. Ou seja, para o cenário de evolução

moderado, prevê-se uma redução da capitação de 10% para 2016 face a 2007, o que representa uma diminuição de

13,2% em comparação com 2009.

Em relação à meta proposta para a quantidade de resíduos a serem sujeitos à eliminação, o PNGR aponta,

para 2020, uma redução na ordem dos 62% comparativamente ao ano 2009, quando esta opção foi utilizada como

tratamento para 15,2 milhões de toneladas.

No caso da meta para a redução das emissões de gases com efeito de estufa no setor dos resíduos, medi-

do através da quantidade de CO equivalente, aponta-se para uma diminuição, no ano 2020, na ordem dos 8,1% em

comparação com 2010, quando foram emitidas 6,15 milhões de toneladas.

Em suma, se estas metas forem alcançadas, significará que Portugal conseguirá não apenas implementar

uma integração efetiva da gestão dos resíduos, mas também estará de boa saúde ambiental e económica. É que, de

facto, e ao contrário do que o senso comum julga, cada vez menos os resíduos serão um desperdício inútil daquilo

que se usou no passado. Pelo contrário, a forma como se olha, no presente, para os resíduos, a forma como se aborda

a sua gestão, permitirá saber em que estado ficará, no futuro, a economia e o ambiente de um país.

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Índice

Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5

Umas breves palavras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

Os imundos tempos da doença . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

A ignorância como peste . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10

O inferno das epidemias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

As pestes lusitanas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

A formosa estrebaria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20

Posturas para inglês ver . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

Os solavancos de uma limpeza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24

A montanha que pariu o lixo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29

Mais gentes e mais urbanos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32

A invasão dos inorgânicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39

A casa por varrer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42

Longe da vista, com o coração sujo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48

O pesadelo do jardim das lixeiras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51

O lento acordar da política de resíduos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53

O lixo no palco mediático . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56

A montanha revela-se . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57

Um cenário dantesco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61

Queixas (quase) em saco roto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63

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166 | Resíduos: uma Oportunidade

A limpeza da casa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67

Um plano ambicioso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72

A difícil recuperação da confiança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75

O fim das lixeiras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77

Os novos desafios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79

Na senda da integração . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85

Prevenir antes de remediar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86

Um mundo embalado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90

O declínio da reutilização . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94

Nos alvores da reciclagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100

Um modelo para o futuro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106

A hora da reciclagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109

Um sistema verde em maturação financeira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121

A universalização da gestão integrada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128

O português, esse reciclador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143

O primeiro impulso verde . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145

Do sacrifício ao benefício . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149

O futuro com novos horizontes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155

Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161

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