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RESENHA CRÍTICA Uma prova de amor. Dirigido por Nick Cassavetes. São Paulo: Playarte Pictures, 2009. 1 filme (109 minutos), Dolby Digital DTS, 35 mm. CONCEPÇÃO E NUANCE JURÍDICAS DO FILME UMA PROVA DE AMOR XXXX XXXXXXX XXXXXXXX XXXXXXXX 1 XXXX XXXXXXX XXXXXXXX XXXXXXXX r 1 XXXX XXXXXXX XXXXXXXX XXXXXXXX 1 Qual preço tem uma vida? Até que ponto é permissível procrastinar uma vida que se evapora? Como vitimar a vida de um filho em benefício de outro? É justo, é ético manter uma vida a qualquer sacrifício? Essas são algumas questões que o filme Uma Prova de Amor afligi- nos, as quais são capazes de revirar todos os valores morais, éticos e jurídicos válidos na sociedade contemporânea. O filme conta a biografia de Anna, sendo esta a narradora-personagem da história, uma criança que foi ‘projetada’ com uma finalidade específica: salvar a vida de sua irmã Kate que padece de um tipo de leucemia rara. Orientados pelo médico, os pais de Kate, Sara e Bryan, decidem realizar um procedimento de fertilização in vitro a fim de que a criança gerada (Anna) possa ser doadora de sua filha doente. Desde recém-nascida, Anna passa por procedimentos clínicos e intervenções cirúrgicas, quais sejam, doação de sangue do cordão umbilical, doação de medula óssea e células tronco, a fim de ajudar a irmã. No entanto, tais procedimentos ainda se tornam ineficazes e, devido a complicações renais, cogita-se então a doação de um rim para salvar a vida de Kate. Os pais, Sara e Bryan têm por certo que o transplante será realizado, vislumbrando, assim, uma possível cura para a filha mais velha. No entanto, a irmã doadora, contando já com 11 anos, decide não doar o seu rim, pois não aguenta mais submeter-se a tantos procedimentos, e para tanto contrata um advogado para defendê-la dos seus próprios pais! De forma brilhante e determinada, combinada com Kate, Anna reivindica sua emancipação médica, isto é, requerer o direito 2 de dispor do próprio corpo sem ter que passar por um transplante renal que não deseja; reivindica a sua autonomia diante do seu próprio corpo, na medida em que, repudia quaisquer intervenções contrárias a sua vontade. Para tanto, esta constitui advogado e leva adiante esta ação judicial na qual os seus pais configuram-se em réus do processo. 1 Acadêmicos do Curso de Direito da Faculdade do Bico do Papagaio - FABIC 2 No ordenamento jurídico brasileiro, o direito ao próprio corpo diz respeito ao direito à integridade pessoal constitucionalmente assegurado, através do princípio basilar da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1º, III), ampliado no Título II da Lex Mater que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais.

RESENHA CRÍTICA SOBRE O FILME UMA PROVA DE AMOR

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RESENHA CRÍTICA

Uma prova de amor. Dirigido por Nick Cassavetes. São Paulo: Playarte Pictures, 2009. 1 filme

(109 minutos), Dolby Digital DTS, 35 mm.

CONCEPÇÃO E NUANCE JURÍDICAS DO FILME UMA PROVA DE AMOR

XXXX XXXXXXX XXXXXXXX XXXXXXXX 1

XXXX XXXXXXX XXXXXXXX XXXXXXXX r 1

XXXX XXXXXXX XXXXXXXX XXXXXXXX 1

Qual preço tem uma vida? Até que ponto é permissível procrastinar uma vida que se

evapora? Como vitimar a vida de um filho em benefício de outro? É justo, é ético manter uma

vida a qualquer sacrifício? Essas são algumas questões que o filme Uma Prova de Amor afligi-

nos, as quais são capazes de revirar todos os valores morais, éticos e jurídicos válidos na

sociedade contemporânea.

O filme conta a biografia de Anna, sendo esta a narradora-personagem da história, uma

criança que foi ‘projetada’ com uma finalidade específica: salvar a vida de sua irmã Kate que

padece de um tipo de leucemia rara. Orientados pelo médico, os pais de Kate, Sara e Bryan,

decidem realizar um procedimento de fertilização in vitro a fim de que a criança gerada (Anna)

possa ser doadora de sua filha doente.

Desde recém-nascida, Anna passa por procedimentos clínicos e intervenções cirúrgicas,

quais sejam, doação de sangue do cordão umbilical, doação de medula óssea e células tronco, a

fim de ajudar a irmã. No entanto, tais procedimentos ainda se tornam ineficazes e, devido a

complicações renais, cogita-se então a doação de um rim para salvar a vida de Kate. Os pais,

Sara e Bryan têm por certo que o transplante será realizado, vislumbrando, assim, uma possível

cura para a filha mais velha. No entanto, a irmã doadora, contando já com 11 anos, decide não

doar o seu rim, pois não aguenta mais submeter-se a tantos procedimentos, e para tanto

contrata um advogado para defendê-la dos seus próprios pais!

De forma brilhante e determinada, combinada com Kate, Anna reivindica sua

emancipação médica, isto é, requerer o direito 2 de dispor do próprio corpo sem ter que passar

por um transplante renal que não deseja; reivindica a sua autonomia diante do seu próprio corpo,

na medida em que, repudia quaisquer intervenções contrárias a sua vontade. Para tanto, esta

constitui advogado e leva adiante esta ação judicial na qual os seus pais configuram-se em réus

do processo.

1 Acadêmicos do Curso de Direito da Faculdade do Bico do Papagaio - FABIC

2 No ordenamento jurídico brasileiro, o direito ao próprio corpo diz respeito ao direito à integridade

pessoal constitucionalmente assegurado, através do princípio basilar da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1º, III), ampliado no Título II da Lex Mater que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais.

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A Querelante foi oficialmente emancipada, decisão em 90% (noventa por cento), pela

Suprema Corte de Los Angeles, alegando que apesar de continuar fazendo os deveres de casa,

os pais têm restrições no Poder Familiar. Destacou – se os relevantes princípios do interesse do

menor, da liberdade de consciência, do poder de disposição do próprio corpo e da autonomia.

No filme ora refletido, é possível perceber inúmeras questões que envolvem o Direito, princípios

da autonomia, do interesse do menor, da dignidade da pessoa humana e o Poder familiar, faz-

nos refletir sobre questões que envolvem Justiça, Bioética, Biodireito, à luz do ordenamento

jurídico brasileiro.

De um lado, vê-se Anna reivindicando o direito à sua integridade física, o direito ao

próprio corpo, recusando-se a submeter-se a procedimentos cirúrgicos e ter a sua saúde

limitada, mesmo com o objetivo altruístico de salvar a própria irmã; por outro prisma, é possível

vivenciar a atitude dos pais que, no intuito de salvar a sua filha de doença terminal, gera outra

criança (Anna) com essa finalidade; o desequilíbrio emocional da mãe ao tentar de todas as

formas, manter a vida da filha que inexoravelmente se esvai; e por fim, o direito de Kate de

morrer dignamente sem passar por mais severas intervenções médicas.

No Brasil, o direito à vida está apregoado e garantido pela Lei Fundamental do Estado

Democrático de Direito – CF/88 – em seu artigo 5º, caput, devendo ser compreendido como um

bem inviolável que deve ser gozado dignamente. Assim, sendo a morte parte integrante da vida,

esta também goza de proteção jurídica, inclusive garantindo-se a esta etapa final, a mesma

proteção à dignidade da pessoa humana.

Desta forma, tanto o direito à vida digna 3 de Anna e a proteção à sua integridade física

4

estão previstos no ordenamento jurídico brasileiro, de modo que esta exerce tal direito ao

recusar-se a passar por um procedimento que vai de encontro ao seu direito personalíssimo,

irrenunciável e intransferível, pois que como giza o Novo Código Civil de 2002, em seu art. 13, “é

defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da

integridade física”. Versa ainda o art. 15 do mesmo diploma legal, “ninguém pode ser

constrangido a submeter-se, com risco de morte, a tratamento médico ou a intervenção

cirúrgica".

A responsabilidade dos pais ao gerar uma criança com o claro objetivo de dispor do seu

corpo para ajudar outro filho também é questão relevante para a seara do Direito, as quais

remontam os aspectos inerentes a Bioética e ao Biodireito. No entender de Anison Carolina

Paludo 5, a Bioética configura-se no “estudo interdisciplinar, ligado à Ética, que investiga, nas

áreas das ciências da vida e da saúde, a totalidade das condições necessárias a uma

administração responsável da vida humana em geral e da pessoa humana em particular”.

3 Constituição Federal , art.5º, caput.

4 Código Civil de 2002 – Direitos da Personalidade – Título I, Capítulo II.

5 PALUDO, Anison Carolina. Bioética e Direito: procriação artificial, dilemas ético-jurídicos. Jus

Navigandi, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: Acesso em: 07 out. de 2013.

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Questões que envolvem as técnicas de reprodução assistida ainda são pouco difundidas

no ordenamento jurídico brasileiro; são situações tal como a que se expõe no filme que

possibilitam a reflexão acerca da administração responsável da vida humana. O Conselho

Federal de Medicina, por meio da Resolução CFM 1358/1992, estabeleceu no Brasil, nos

meados de 1992, as primeiras normas éticas, objetivando a utilização das técnicas de

reprodução assistida, revogada em Dezembro/2010, substituída pela nova Resolução do

Conselho Federa de Medicina nº 1957/2010, a qual foi ampliada e atualizada em conformidade

com as questões éticas, uma vez que o novo Código Civil de 20026 limitou-se a reconhecer essa

realidade fática das reproduções humanas assistidas.

Contudo, caso o problema tivesse ocorrido no Brasil e os genitores de Anna,

resolvessem realizar a inseminação In vitro para a sua concepção, com a única finalidade de

adquirir órgãos da menor, para salvar a filha Kate da leucemia, isso não seria possível, primeiro

porque é proibida a fecundação de oócitos humanos com qualquer outra finalidade que não a

procriação humana, e segundo ela precisaria da devida autorização judicial, e o devido

consentimento de Anna, prevalecendo, desse modo, o princípio do direito ao controle do próprio

corpo, segundo ordena o art. 15 do Código Civil. Destarte, a lei nº 10.211/01 decide que a

doação, mesmo sendo aceita pelo doador, só será executada através de autorização judicial. De

outro modo, o § 2º, do art. 10, da lei 10.211/01, institui regras para o receptor juridicamente

incapaz, concedendo-lhes o direito de receber ou não a doação, no entanto, é omissa quanto ao

doador incapaz.

Por fim, urge mencionar a situação de Kate, essência basilar do filme; Kate, após

sucessivas intervenções reclama o seu direito de morrer dignamente, ao incentivar a irmã a não

ser sua própria doadora. Kate se diz pronta e quer conscientizar aos familiares que, diante da

doença terminal que a acomete, não há mais nada a fazer, senão viver o tempo que lhe resta de

forma intensa. Nos dias atuais, ante a intensa evolução biotecnológica, é possível prolongar

artificialmente a existência de um doente, ainda que a medicina não lhe possa oferecer nenhuma

expectativa de cura ou mais conforto nesse fim de vida prolongado.

O filme “Uma prova de amor”, reproduz a imagem de fatos bastante polêmicos e difíceis

de serem julgados, principalmente, no que concerne ao amor familiar, ao amor incontinenti de

mãe. Trata-se de direito personalíssimo, envolvendo a vida humana, questões filosóficas, éticas

e religiosas. Vale salientar, que devem ser observados os princípios da autonomia, do interesse

do menor, e da dignidade da pessoa humana. Desse modo, o paciente é o único responsável

pelo próprio corpo, necessitando, assim, de análise profunda e consciente por parte do doador,

sobre a disponibilização de seus órgãos.

6 Art. 1.597 do Novo Código Civil, III, IV, V.

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Factualmente, no Brasil, constitui-se crime a prática da eutanásia7. Esta se caracteriza

pela abreviação da vida de alguém que padece de uma doença terminal severa com a anuência

da vítima/paciente. Há ainda outros estudos envolvendo variações desta abreviação do ciclo vital

de alguém, quais sejam a ortotanásia e a distanásia. Esta última é a prática mais difundida na

realidade dos pacientes terminais, ou seja, a prolongação da vida ainda que de forma dolorosa e

sofrível para o paciente.

Entretanto, é admitida pela legislação brasileira a prática de transplante para fins

terapêuticos, através de hospitais públicos ou privados, por equipes médicas-cirúrgicas de

remoção e transplante, devidamente autorizados pelo SUS (Sistema Único de Saúde), desde

que não sejam comercializados. Vale ressaltar, que fere os princípios da autonomia e da

autodeterminação, decidir sobre transplantes, tecidos e doações de órgãos de outrem, sem o

seu consentimento. Assim sendo, a autonomia da vontade assegura a escolha do indivíduo na

tomada de decisão, na esfera particular, em conformidade com seus próprios interesses e

preferências.

Os direitos fundamentais estão presentes, desde a doação de um órgão até o transplante

do doador ao receptor, no que concerne à vida, à saúde, à integridade física, à liberdade de

consciência, à formação da personalidade, e o direito ao próprio corpo (direito à automutilação),

competindo ao doador decidir se deve ou não doar seus órgãos, desde que tal decisão não

prejudique a si próprio.

Hodiernamente, discute-se muito acerca do direito de morrer dignamente, o direito de

não prolongar uma sobrevida de sofrimento. Eis que os ramos da Bioética e do Biodireito

debruçam-se sobre esta temática a fim de que o ordenamento jurídico brasileiro possa dar uma

resposta positiva a estas demandas sempre levando em conta a dignidade da pessoa humana.

No filme, pungentemente, a prova de amor que Kate anseia é o direito à morte digna e tranquila,

em virtude da situação em que se encontra, marcada pela vivência intensa e feliz dos seus

últimos minutos vitais. Mas essa ainda é uma questão que merece mais estudo e reflexões por

parte do Ordenamento Jurídico Nacional.

O caso exposto, no Brasil, seria bem diferente, segundo o Ordenamento Jurídico vigente,

pois houve, por parte da mãe de Anna, violação aos direitos fundamentais, ao princípio do

interesse do menor, ao princípio da autonomia de vontade, tendo em vista que se trata de direito

personalíssimo.

7 A prática da eutanásia está punida pelo Código Penal Brasileiro vigente, no seu art. 121, e é

configurada em boa parte da jurisprudência brasileira como homicídio doloso, ainda que, a posteriori,

atenuada pelo seu caráter altruístico, em geral.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição Federal. Brasília, DF: Senado, 1988. IN: Vade Mecum. Organização de

Luiz Roberto Curia e Márcia Cristina Vaz Santos Windt. 12ª. ed. São Paulo: Editora Saraiva,

2011.

BRASIL. Código Penal. Brasília, DF: Senado, 1940. IN: Vade Mecum. Organização de Luiz

Roberto Curia e Márcia Cristina Vaz Santos Windt. 12ª. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2011.

BRASIL. Novo Código Civil Brasileiro Brasília, DF: Senado, 2002. IN: Vade Mecum. Organização

de Luiz Roberto Curia e Márcia Cristina Vaz Santos Windt. 12ª. ed. São Paulo: Editora Saraiva,

2011.

VILLAS-BÔAS, Maria Elisa. A ortotanásia e o Direito Penal brasileiro. Revista Bioética, 2008 16

(1). Disponível em:

http://www.revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/viewFile/56/59. Acesso

em: 07 de out. de 2013.