Resenha de a Parte Do Diabo

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    Michel MAFFESOLI. A parte do diabo. Resumo da subver-so ps-moderna. Rio de Janeiro: Record, 2004. 191 p.

    Cntia San Martin Fernandes*

    1 Doutoranda do Programa de Ps-Graduao em Sociologia Poltica da Universida-de Federal de Santa Catarina (UFSC).

    Em uma de suas obras, Z. Baumman chama a ateno sobre adiferena entre ser um socilogo ps-moderno e ser um soci-logo que estuda a Ps-Modernidade. Michel Maffesoli encontra-sena segunda definio. um pensador que olha para o que est nomundo. Olha para os fenmenos contemporneos. Preocupa-se emcompreend-los. E, seguindo o percurso de Weber, Simmel eHeidegger, nos convida a olhar fenomenologicamente para o viversocial contemporneo e a exercitar uma compreenso que seja ca-paz de retirar o julgamento moral de nossas anlises sociolgicas.

    Sua vasta obra, que se iniciou em 1976 com A Lgica dadominao, seguida em 1979 por A violncia totalitria, passandopor A sombra de Dionsio (1985) e Tempo das tribos (1987) entreoutros, oferece um material terico-epistemolgico diferenciado,no mnimo ousado, diante de sociologia produzida pelos pensa-dores da Modernidade. Michel Maffesoli inaugura uma sociolo-gia da sensibilidade. Uma sociologia que no despreza todos ossentidos e sentimentos que compem o viver social. Uma socio-logia que busca compreender as experincias coletivas e as rela-es intersubjetivas, considerando suas facetas ldicas, rotinei-ras, ou ainda perversas. Uma sociologia que est preocupadano somente com a razo instrumental (conforme osfrankfurtianos), mas tambm com a razo sensvel.

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    Em A parte do diabo, recm-publicado no Brasil, MichelMaffesoli apresenta o que chama de epistemologia do mal apartir do reconhecimento de que a vida cotidiana se constituide um hmus, de uma base fundante, onde o bem e o malperdem sentido no momento em que o homem busca viver oprazer e as sensaes mais primitivas como animal. O profanoest na vida banal. No entanto, isto no significa que o sagra-do tenha sucumbido. Pelo contrrio, Maffesoli nos anuncia umestar barroco, onde luz e sombra compem a teia social. Ondea tragdia, e no mais o drama, assume o enredo da vida co-mum. A vida trgica. A Ps-Modernidade assume a dualidadeda tragdia. A violncia, a dor e o sofrimento fazem parte davida, assim como a celebrao e as fantasias mais selvagens,mais cruas, mais animalescas.

    Neste sentido, Maffesoli argumenta:

    Apocalipse no significa necessariamente catstrofe. H uma exaltaono ar. E quando as techno-parades, as efervescncias musicais e ou-tras efervescncias anmicas encenam o selvagem, o brbaro, o de-monaco e outras fantasias animais, quando a pele, a epiderme e oshumores se exibem, tudo feito numa inocncia benigna e com umainegvel vitalidade. A teatralizao do daimon uma boa maneira dedomestic-lo, de proteger-se dele. Velha sabedoria popular que afirmaque mais vale compor com a sombra do que neg-la. No fugir dela,mas passar atravs dela... Posio pouco confortvel, verdade, masainda assim sabedoria, que, no dia-a-dia, homeopatiza o mal at fazercom que proporcione o bem de que tambm portador (p. 54).

    H na Ps-Modernidade um xtase fusional entre tribo,normas, sentimentos, formas, esprito, corpo, coletivo e indiv-duo (persona). H uma conjuno de tenso entre estes fatoresque compem a morfologia social. E, segundo o autor, o pensa-mento que melhor representa este momento aquele que parteda aceitao desta tenso, do conflito entre os fatores, no aque-le que busca obsessivamente esquematizar o mundo atravs daseparao e diviso (pensamento moderno), mas sim um quecompreenda e privilegie, de certa forma, a experincia, a inte-ratividade, os sentimentos humanos, ou seja, as coisas que cons-tituem a socialidade cotidiana.

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    Esta socialidade convive concomitantemente com os ar-casmos e com o desenvolvimento tecnolgico, convive com oracional e com o sensvel, com as paixes, com o indizvel. Con-vive com o vazio e com a criao que surge a partir deste. Convi-ve com o esprito e o desejo carnal, com o bem e o mal, com asede de um presentesmo sem fim, no qual os projetos polticosemancipatrios utpicos clssicos no representam mais o focoda juventude, mas sim o desejo de estar e sentir a vitalidade domundo, experimentando a dualidade.

    E justamente a sinergia de aliar os contrrios que d otom desta socialidade. Longe da linearidade da idia de progres-so da Modernidade e do social moderno centrado na razo, nautilidade e no trabalho, e cada vez mais prxima da idia de umacolcha de retalhos, onde o sincretismo impera, onde as imagenscotidianas trabalham sobre arqutipos que esto na pr-forma-o da vida social. A fim de existir a fuso do pathos, a socialidadeintegra parmetros essenciais como o ldico, o onrico e o imagi-nrio. Ela representativa de uma sabedoria integradora daalteridade, de uma sabedoria dionisaca,

    Trata-se de uma outra sabedoria, vale dizer, uma sabedoria integradorada alteridade, qualquer que seja ela... A crueldade, portanto, tem seulugar na socialidade ps-moderna. Esta sensibilidade em relao aooutro (em si, na natureza, na vida social) leva a uma concepo ampli-ada da realidade. Realidade plural, polissmica. Realidade absoluta. Ada experincia e do vivido coletivo (p. 149).

    Dentro desta existncia sincrtica os indivduos se re-co-nhecem e se re-encontram consigo mesmos e com os outros, den-tro de um movimento moto-contnuo, no qual, seguidamente,identificam-se tanto com um grupo como com outro. Ora fazemparte de uma tribo, ora de outra. Assim seguem costurando suasidentidades, que j no so mais fixas, mas sim complexas e am-bguas. Para Maffesoli, a identidade se fragiliza, e as diversas iden-tificaes, por outro lado, multiplicam-se.

    O autor preocupa-se sobretudo com o contedo das rela-es sociais e das formas sociais. Considera as formas estticas eas dinmicas como constantes do movimento social. No busca o

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    progresso nem a linearidade. Preocupa-se, sim, com o enraiza-mento dinmico. Preocupa-se em mostrar, atravs de sua socio-logia, a existncia e persistncia do ser duplo, do barroco.

    A recusa desta ambivalncia, das efervescncias orgisticasvividas nas raves, nas techno-parades, nos smbolos tatuados noscorpos, nos cabelos pintados, nos concertos de Madonna, RollingStones ou ainda em festas populares profanas, mascara a realida-de contempornea. Assumi-las significa, para a Sociologia, mos-trar a cumplicidade intuitiva e libidinal com a vida cotidiana. Tra-zer luz e reconhecer que existe uma proximidade libidinalentre as coisas que esto no mundo e ns mesmos significa umreligamento e uma aproximao entre sujeito e seu objeto de estu-do. Para alm de descrever, pode-se seguir a intuio, tentandoperceber o vitalismo e a pulsao da vida cotidiana. Para alm deobjetiv-la, pode-se senti-la. Pode-se de fato olhar por dentro.

    E olhar por dentro significa reconhecer a parte maldita,o instante obscuro e os excessos, embora, segundo o autor,isto parea sempre algo delicado, e no raro malvisto. Assim,Maffesoli empenha-se ao longo do texto em esclarecer o que de-nomina de orgia. Para ele,

    [...] o que esta orgia seno o aspecto fundador de uma paixo comum,de emoes tornadas comuns, de sentimentos que saem para a praapblica, em suma, de afetos que no se preocupam com o vertrusmo(V. Pareto) das almas boas? Nunca ser demais repetir como os ajunta-mentos techno, as mltiplas oportunidades de fazer festa, o sucessodas boates, dos lugares de trocas sexuais, tudo isto relembra que aocontrrio de uma simples economia de si, existem culturas que re-pousam essencialmente na despesa, no consumo, na destruio. Coisasperseguidas pela imperfeio, o mal, a sede do infinito (p. 80).

    Neste sentido, a proposta fenomenolgica de Maffesoli nosincita a olhar para o que no est na racionalidade instrumental.A parte do diabo nos convida a compreender que na Ps-Moder-nidade, o onrico, o hedonismo, as celebraes esto presentesnos domnios do corpo social. Estes excedem a esfera privada ecirculam na esfera pblica cotidiana. Estes, ao lado da economiae da poltica, ocupam espao fundamental nas expresses dosvalores e das emoes coletivas. Assim, os atores sociais no so,

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    de maneira alguma, enganados dos valores que praticam; elesjogam, criam e os recriam. Assume-se a perspectiva de que a ex-plorao, a alienao e a dominao so de certa maneira impo-tentes para apreender uma certa malcia estrutural e corriqueiradesse jogo social complexo.

    O interessante que Maffesoli, ao criticar a Modernidade, ecom ela a razo instrumental, no prope um retorno saudosis-ta a pensamentos pr-modernos, como tambm no aponta paraum niilismo ou fim da histria. Sua proposta epistemolgicacentra-se em reconhecer a riqueza presente no mundo social con-temporneo. Em reconhecer que na banalidade da vida cotidianaexiste uma organicidade, diferenciada da apresentada porDurkheim, que temos que compreender. Essa organicidade con-tm uma estrutura complexa, na qual poltica e economia assu-mem o mesmo patamar dos sentimentos e das emoes, convi-vendo num movimento de justaposio e complementaridade.Para o autor, tanto a esttica como as artes so expressivas destacomplexidade vivida contemporaneamente.

    Sua proposta a de compreendermos o mundo atravs dafigura metafrica de Dionsio, pois ele encarna o mito contempo-rneo, contrapondo-se figura de Prometeu, que representa todoo imaginrio da Modernidade. A figura de Dionsio, segundoMaffesoli, assume a cristalizao de uma multiplicidade de prti-cas e fenmenos sociais, que sem ele seriam incompreensveis.Essa figura emblemtica, que , por sua vez, essencialmente es-ttica, favorecendo as emoes e as vibraes comuns, contra-pe-se figura metafrica de Prometeu, que representa toda ainstrumentalidade racional do mundo.

    Um saber dionisaco o que consegue dar conta de apreen-der esta ambincia emocional e descrever os contornos, as nuances,participando assim de uma hermenutica social, revelando emcada um de ns os valores que esto sedimentados na memriacoletiva. Este saber dionisaco deixa aparecer o que est presentena subjetividade das massas. Mostrar que o contedo dos fen-menos que constituem a sociedade est repleto de sentimentosdos mais variados e ambguos. Voil, o saber dionisaco apresentaa possibilidade do socilogo fazer-com.

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    Neste sentido, o cientista social que atender ao convite daleitura ter a possibilidade de poder olhar por dentro e se inte-grar ao todo social a fim de compreender o fenmeno a ser estu-dado. Olhar a forma e o contedo da coisa a ser compreendida apartir de dentro. Porque tal leitura auxilia na revelao do que jest l. Revela tanto uma prtica pensada (racional) como umaprtica no pensada, fundada especialmente numa identifica-o afetiva. Identificao esta fundada na emoo que tem umafuno tica no plano social, seja no trabalho, seja nas festas, nosrituais religiosos ou nas artes.

    Para Maffesoli, o importante o reconhecimento da ambiva-lncia dos sentimentos, sem esquecer da parte do mal. o re-conhecimento da ambivalncia social e das possveis monstruo-sidades presentes nas relaes humanas. o reconhecimento dacomplementaridade do bem e do mal, da doura e da violncia,da luz e das trevas. reconhecer que somos barrocos. Para issonos convida, assim como Maquiavel, a retirar a moral da Sociolo-gia. Convida-nos a um banquete dionisaco.

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