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Universidade Estadual de Ponta Grossa
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas
Disciplina: Metodologia de Pesquisa e Seminário de Dissertação
Acadêmica: Fabiane K. Bogdanovicz
Resenha de tese de doutorado
A presente resenha diz respeito ao trabalho intitulado “Participação política como
exercício de cidadania”, tese de doutorado do autor Roberto de Barros Freire, orientado pelo
professor pós-doutor Renato Janine Ribeiro, no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, do ano de
2007. A tese analisa o que o autor chama de “crescente apatia pela cidadania ativa”,
entendendo política como “busca negociada de interesses particulares visando o bem comum,
como produto de um consenso possível”. O trabalho está estruturado em três partes, sendo a
primeira intitulada “Um animal político?”, a segunda “Um ideal de República” e a terceira
“Decorrências práticas: uma política de longo prazo”.
Na primeira parte da tese, o autor apresenta a relação entre política e poder, dominação
e violência. Conceitua que “há política quando se renuncia ao uso da força [dominação] para
impor as próprias idéias, e se admite a divergência de idéias ou ideais”, “quando se abre mão
da violência como meio de sujeitar as vontades sociais e se utiliza a fala para negociar os
interesses”, havendo poder político quando a ação de algum ente social exerça uma certa força
na sociedade, “não sob ameaça, chantagem, terror, etc.”, pois isso seria dominação. Não existe
dominação política, porque “se há domínio é porque a política foi banida”: enquanto política é um
ato de liberdade, “a dominação é sempre uma imposição de gestos e aparências para satisfazer o
dominante”.
Sobre o poder, Freire afirma que, atualmente, não se trata mais de “uma instância
repressiva e transcendente, mas uma instância de controle, que envolve o indivíduo mais do que o
domina abertamente”, “preocupa-se menos em reprimir a desobediência e mais em preveni-la, e
se estrutura não apenas para punir, mas também para disciplinar”. Acrescenta que o poder “é um
fato público e não alguma coisa que se adquire, se toma ou se divide, algo que se deixa escapar,
acumular, doar”, aproximando-se da concepção de poder como relação, apresentada por Foucault
em sua Microfísica do Poder.
O autor retoma a afirmação clássica de Aristóteles de que o homem é um animal político
(no sentido de participante da polis – cidade – , em suas atividades e decisões) e contrapõe a
expressão grega (zoon politikon) à sua tradução grega por Tomás de Aquino (animalis socialis).
Para Aristóteles, esse conceito que posteriormente chamou-se de sociedade não seria uma
característica unicamente humana, pois demais animais, como formigas, abelhas e macacos,
também têm sociedades. Assim, Aristóteles considerava que viver em companhia de outros seres
da mesma espécie era para o homem uma necessidade biológica, e não uma criação, “um produto
da liberdade e da racionalidade humana como era a política”. O autor cita Arendt e Lebrun para
esclarecer ainda mais a diferença entre societas e polis: societas seria “um conjunto de atividades
que não tem por objetivo o bem comum, e que apenas precisam exercer-se no quadro da paz”, não
mais uma “congregação de homens que são diretamente encarregados de zelar pelo
funcionamento do Todo”, mas “uma congregação de homens [...] a quem seus próprios afazeres
ocupam demais para que possam dedicar-se aos interesses do Todo, e que, por isso, devem ser
protegidos pela instância política, em vez de participarem dela”.
Os gregos não foram o primeiro povo a se organizarem em cidades. Contudo, foram os
primeiros a refletir sobre ela e sua organização. Ainda que tenham decorrido inúmeras
transformações históricas até os dias atuais, alguns problemas apontados pelas reflexões gregas
continuam prementes. O autor cita: os problemas ambientais, os problemas organizacionais –
burocráticos e administrativos – da política urbana, os problemas educacionais, e os problemas da
convivência social. Com o passar do tempo, a cidade, que inicialmente se tratava de um centro
político-administrativo e defensivo, tornou-se um “centro comercial, cultural e, mais
recentemente, na modernidade, um centro produtivo, educativo, industrial e financeiro, e que
abriga um contingente populacional significativo, ultrapassando nas últimas décadas o
contingente populacional do campo”. Ao mesmo tempo, a política foi se tornando uma profissão,
algo para especialistas, em contraponto à participação popular a que se assistia na Grécia antiga.
Naquela época, havia votações; porém, votava-se em propostas, e não em pessoas. Estas eram
escolhidas por sorteio para ocupar cargos temporários não-remunerados, para aplicarem as
decisões deliberadas em assembléias. A mudança da política participativa para representativa
levou a um estreitamento mínimo na participação dos cidadãos, muitas vezes restrita ao
pagamento dos impostos e votações em intervalos de tempo. Além disso, observou-se a “exclusão
tanto do mundo afetivo como ético da discussão política propriamente dita”, por uma
racionalidade e burocratização excessivas. Essas questões, afetivas e éticas, se tornaram da ordem
do privado, relaxando a moral na política como aparente parte da condição de liberdade moderna.
Para Freire, a política nasce quando o poder público se separa de três autoridades
tradicionais: “a do poder privado ou econômico do chefe de família, a do chefe militar e a do
chefe religioso”, através da invenção do direito e das leis (tribunais) e de instituições públicas de
deliberação e decisão (assembléias). A criação dessas instâncias democráticas acarreta a
necessidade de educar a população para a prática da participação e sua responsabilidade.
O autor chega a questionar a necessidade do governo, afirmando que este não decorre da
natureza humana, mas das condições que instituiu para si próprio. Afirma que
A governabilidade dos homens não é uma necessidade, é uma contingência; não decorre da natureza humana, mas das condições que instituiu. O governo é um instrumento arcaico de dominação social que aparenta concretizar o poder político, materializando-o para as pessoas (é mais simbólico do que efetivo). Sua permanência amplia os custos sociais e político da convivência humana, possuindo interesses próprios (e caros), cuja função hoje tem resultado mais em manobrar interesses, que se fazem valer pela sua força política. O gasto com sua segurança em muito supera o gasto com a segurança dos cidadãos, e o seu custo operacional para aparentar saber resolver e/ou resolver de fato problemas sociais (nada mais vago), é maior que os custos propriamente dito dos problemas a que se propõem resolver. Na verdade, o governo mais provoca problemas, torna desigual o embate dos interesses sociais, aliando-se e privilegiando uns em detrimento de todos. E enquanto se luta por mudanças governamentais, buscando os partidos políticos apenas tomarem o Estado para impor políticas econômicas, sociais e educacionais, se fortalecem os Estados, enfraquecendo a sociedade civil.
Conforme Freire, o maior objetivo da democracia contemporânea se tornou a
tranqüilidade e o consenso, reduzindo as iniciativas populares e intensificando a apatia, “bem
político que freia as tentativas bruscas de mudanças e ameniza a ignorância política”. Disso
decorre também a formação uma elite política a disputar os votos de uma maioria passiva. O autor
alerta para os perigos de se considerar, unanimemente, a democracia como a melhor forma de
governo, pois “se rejeita de antemão qualquer coisa que não se apresente como democrática,
inviabilizando talvez o surgimento de outras possibilidades políticas”. Essa unanimidade “tem
gerado a falsa percepção que ela é a solução de todos os problemas, quando ela só é operacional e
conveniente com a participação de cada um”. Quanto a essas “outras possibilidades políticas”, o
autor pondera se já não estão aparecendo, através das lutas das minorias, de debates políticos em
espaços diferenciados, até mesmo em ações individuais.
Na segunda parte da tese, o autor aborda o conceito de República. Acrescenta ao
entendimento etimológico da palavra (coisa pública), o sentido de “exposta ao público, exigindo
que o poder seja visível”, pois “o lugar onde se exerce o poder em toda forma de República é a
assembléia dos cidadãos e na praça”. Apresenta uma breve contextualização histórica,
contrapondo-o aos seus aspectos contemporâneos. Importante compreender que, apesar dessa
contextualização histórica, República não apresenta uma essência que vem se desenvolvendo com
o passar do tempo, culminando nas repúblicas atuais. O conceito é plural, tendo sofrido diversas
transformações nos diferentes locais e momentos históricos. Apesar das possíveis divergências, o
autor conceitua República como “uma reunião de homens associados por um reconhecimento
comum do direito e por uma comunidade de interesses particulares”, garantindo espaço de fala
para todos, “como meio de criar relações interpessoais, a vida política e/ou pública”.
É na República que a participação política pode ser entendida na sua plenitude, pois só nela a participação de todos os cidadãos é exigida como uma condição sine qua non para o seu funcionamento. Nela todos participam, conscientes ou não dessa participação, e o nível e a qualidade de participação dos cidadãos é que determina o sucesso ou insucesso da vida
republicana, e, paralelamente, a qualidade da atividade governamental [...].
O autor caracteriza um Estado republicano “quando está sob domínio da sociedade civil e
cumpre uma função pública”, tendo poucas leis que o regulamentem, forte ênfase na educação
para cidadania e valorização da fraternidade, igualdade e liberdade, com as figuras dos
governantes como substituíveis e, quiçá, dispensáveis pois ocorre uma certa forma de
autogoverno, “sua grande convicção é que os seres humanos são capazes de governar a si
próprios”. Entretanto, diferentemente da conceituação teórica, as Repúblicas contemporâneas
“com certas instituições previdenciárias mínimas, têm absorvido a função da família, de abrigo, de
acolhimento social, assim como muitas outras”, e garantem “que não se precisa deixar os afazeres
particulares ou os prazeres para participar de assembléias ou construir estradas, a não ser quando
isso é por vontade própria ou requisitado por esforços de guerra ou catástrofes naturais”. A
complexidade dos fenômenos políticos contemporâneos perdem importância na vida prática e
reflexão das pessoas, resumindo a política à administração e economia, exercida por técnicos e
profissionais: “a participação política está reduzida à escolha entre as diversas imagens
consumíveis”. A ética comum da vida pública foi banida para a moralidade privada do lar,
minimizando a vida política do cidadão ao cumprimento das leis, delegando ao Estado os deveres
(mas mantendo os direitos), desgastando a participação política e personalizando o poder nos
governantes.
Na terceira parte do trabalho, Freire esboça “parâmetros para a realização de uma ação
política que vise uma ética humanitária”, conceituando liberdade, moral, ética e cidadania. Para
ele, a liberdade é um poder. Destarte, “não fica restrito em receptáculos, não se acumula, não se
retém, nem pode ser armazenada e mantida em reserva: só existe na sua efetivação”.
Para o autor, temos na contemporaneidade “um animal político agindo sem virtude numa
República degenerada e temos um animal social numa sociedade de massas inconformado e
desejoso de mais”, pois essa organização social deixa pouco espaço para indivíduos que não
conseguem conviver com a rotina, sem lugar ou tempo adequados para expressarem sua
individualidade.
“Toda história do pensamento político pode ser considerada como uma longa, ininterrupta
e apaixonada discussão em torno dos vários modos de limitar o poder e a máxima, segundo a qual,
quem detém o poder tende a dele abusar.”
REFERÊNCIA
FREIRE, R. B. Participação política como exercício de cidadania. 2007. Tese (Doutorado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. Disponível em: <www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-01112007-154422/>