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Sumário Remeiros do Médio São Francisco Antônio Fernando de Araújo Sá . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .4 Remeiros do São Francisco Clientelismo e violência na integração são-franciscana Roberto Lima . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .10 Inventário do Capitão dos Portos Antônio José de Souza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 Viajando nos vapores e no tempo Glorinha Mameluque . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .25 Nossa história João Naves de Melo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27 Navegantes do São Francisco Antônio de Paiva Moura. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29 Velho Chico sem chavões Vapor Encantado (Blog). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .32 O estigma dos remeiros do São Francisco FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Divulgação científica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35 Resenha UNICENTRO NEWTON PAIVA Coordenação de Pós-Graduação e Pesquisa. . . . . . . . . . . . . .37 Comentário Comissão Mineira de Folclore . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39

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Carrancas contam a história dos ribeirinhos do Velho Chico Jornal MARCO – PUC – MG . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40 O Rio da Unidade Nacional Fernanda Lamego. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43 CARTAS Adriles Ulhoa Filho – Memorialista. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46 Ivan Passos Bandeira da Mota – Historiador. . . . . . . . . . . . . 47

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REMEIROS DO MÉDIO SÃO FRANCISCO1 Antonio Fernando de Araújo Sá2

Produto de uma dissertação de mestrado em Antropologia Social, defendida na Universidade de Campinas, em 1991, o livro sobre os remeiros do Médio São Francisco representa uma significativa contribuição de Zanoni Neves para o conhecimento da história daquele trecho do rio São Francisco, especialmente no período que compreende o final do século passado (século XIX) até a década de 1950. Embora o Autor insista, na apresentação do livro, que o texto seja “fundamentalmente descritivo”, talvez uma “descrição densa” tal como proposta por Clifford Geertz, o que percebemos é uma tentativa de inserir a vida social dos moços de barca (remeiros) dentro da estrutura de classes e o modo de produção predominante no Médio São Francisco, bem como a intenção de resgatar sua resistência cultural, baseando-se, principalmente, em entrevistas com remeiros, mestres e barqueiros, realizadas entre os anos 1980 e 1986, relatos de viajantes e cronistas desde meados do século XVIII até a década de 1950 e, em menor escala, documentos de arquivos sobre a história da navegação do rio São Francisco. ------------------------ 1 - Resenha sobre o livro de Zanoni Neves. Navegantes da Integração: Os Remeiros do Rio São Francisco. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998, 296 páginas. Texto publicado na revista LOCUS: Revista de História. Juiz de Fora: Núcleo de História Regional/Ed. UFJF, v. 5, nº 2. 2 - Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe. Mestre em História do Brasil pela Universidade de Brasília / Pesquisador do Centro de Documentação e Pesquisa do Baixo São Francisco - Programa Xingó.

Ao utilizar como principal instrumental de análise as entrevistas

com ex-remeiros e ex-barqueiros, o pesquisador explicita a importância da associação entre a História e a Antropologia, na medida em que

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evidencia a dinâmica interna de aculturações no interior das sociedades ribeirinhas. Contudo, ele não perde de vista a necessidade de inserir sua análise tanto no campo da História Social quanto no da História Econômica, pois é muito difícil deixar de visualizar as práticas culturais separadas das práticas que envolvem a manutenção das estruturas produtivas da sociedade.

Neste sentido, ao evidenciar a contribuição imediata que a Etnologia pode trazer para o estudo da História, Neves descreve tanto a cultura material (técnicas, alimentos, vestuário etc.), quanto as festas, os mitos e símbolos ligados ao universo simbólico dos remeiros; enfim, a tradição oral e tudo aquilo tido por “cultura popular”.

Nos primeiros capítulos do livro, tendo como temática central “a história da navegação”, o antropólogo mineiro reconstitui, partindo das crônicas coloniais, as primeiras incursões dos colonizadores nos sertões do Médio São Francisco – missionários, vaqueiros e bandeirantes -, facilitadas pelas boas condições de navegabilidade, mas que enfrentaram a resistência tenaz dos povos indígenas que habitavam a região. Em virtude da necessidade de comunicação entre aldeias, “currais” e missões situados ao longo de sua extensão, canoas indígenas, ajoujos e barcas eram os principais meios de transporte nos séculos XVII e XVIII. Logo nessa pare inicial, Neves constrói sua tese fundamental: questionar as teses recentes acerca do isolamento do Médio São Francisco após a decadência da mineração, defendidas por Paulo Pardal, Edyla Mangabeira Unger e Bernardo Mata Machado. Segundo o Autor, “as duas últimas décadas do século XVII e a primeira metade do século XVIII constituem um período histórico de transformações qualitativas sem precedentes na história do Médio São Francisco. Até 1750, muitos povoados são fundados e o comércio se intensifica sob a influência da economia mineira, sem se perder de vista o vínculo entre o Médio São Francisco, de um lado, e Bahia/Recife, de outro. Na segunda metade do século XVIII, são introduzidas as barcas no transporte de cargas entre povoados” (p. 42). Um dos sintomas evidentes desse desenvolvimento comercial no período foi a instalação da primeira barca de passagem no Médio São Francisco no início do século XVIII, entre 1727 e 1731. A barca servia de passagem de uma margem a outra do rio, provavelmente construída na Passagem do Juazeiro (BA). A integração do Médio São Francisco à sociedade nacional é reiterada por Neves, através dos relatos de viajantes do século XIX, como Richard Burton, James Wells e Saint-Hilaire. Segundo o último viajante, o comércio do sal era praticado intensamente entre Sento Sé, em Pernambuco, e as cidades mineiras de Formigas (atual Montes

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Claros), São Romão e Salgado (atual Januária), que, por sua vez, repassavam para as cidades da Província de Goiás, por meio dos tropeiros. Já Burton e Wells revelaram, em seus relatos, a presença de produtos industriais ingleses ao longo do Médio São Francisco, demonstrando uma articulação maior da região com a economia mundial. O Autor atribui também como um fator importante a integração cultural promovida pelo processo de migrações entre as populações ribeirinhas, através das barcas. Ele cita como exemplo o caso dos barqueiros (pequenos proprietários) e pescadores sergipanos, estabelecidos no Médio São Francisco, especialmente em Juazeiro/BA, que produziram mudanças importantes na economia da região nos anos 1950 com a introdução de dois traquetes (velas) nas barcas, o que permitia a navegação com vento contrário. Por último, o antropólogo afirma que “os portos do Médio São Francisco encontravam-se integrados à sociedade nacional, via serviço de telégrafos, desde as primeiras décadas deste século [século XX]” (p. 108), a partir das informações do engenheiro Agenor Augusto Miranda, que trabalhou na implantação dos telégrafos na região no período de 1906-1930. Na segunda parte reside, talvez, o trecho mais interessante do livro, pois, apesar da tese do rio São Francisco como fator de integração regional e nacional não ser nenhuma novidade na historiografia brasileira, presente, por exemplo, em obras de João Ribeiro e Euclides da Cunha, incompreensivelmente não mencionadas na bibliografia, a inovação do Autor é a tentativa de resgatar “a carne e o sangue” da vida social ribeirinha: os diversos grupos e categorias sociais interagindo e integrando-se às regiões adjacentes. Em sua descrição em torno das categorias sociais, Neves elenca uma multiplicidade de profissões que, direta ou indiretamente, estavam envolvidas com os remeiros: pescadores, tropeiros, “carreiros” e “guieiros” (que lidavam com os carros de bois), “vapozeiros” (tripulantes do vapor), canoeiros, carroceiros, ferroviários, camponeses, carpinteiros, marceneiros, serradores, seleiros, louceiras etc. O coronelismo e as relações de dominação pessoal, determinantes no processo social do Médio São Francisco no período analisado, acabavam por condicionar as formas de organização e resistência dos trabalhadores. Constituídas no mundo rural ao longo de toda a sua história, reproduziam-se no âmbito dos setores urbanos e, inclusive, no interior das barcas. Isso pode ser explicado porque, em uma economia fundamentalmente agrária, os trabalhadores das barcas eram, em sua maioria absoluta, originários do

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campo. Inclusive, um número significativo deles conciliava o trabalho no rio com o do campo, quando da vazante. É importante frisar que, em alguns casos, os “coronéis” ou alguém de sua parentela poderia tornar-se barqueiro como foi o caso de Wilson Castelo Branco de Remanso (BA), entrevistado pelo Autor. Exemplo da extensão das práticas coronelísticas nas barcas é a presença de “jagunços” no interior das barcas ou a “proteção” dos barqueiros aos remeiros quando da perseguição policial e a discriminação social dos ribeirinhos que, vez por outra, ocasionavam brigas e mesmo mortes. Essas relações pessoais de dominação são alteradas com a chamada Revolução de 1930, pois, apesar de os remeiros continuarem dependentes, objeto de favores e proteção, o papel de braço armado do patrão deixa de existir nas barcas. Apesar das precárias condições e do excesso de trabalho, o pesquisador aponta que a resistência dos remeiros se deu na esfera pessoal, como as sátira dos seus versos dos repentistas, ou, quando muito, à ação de pequenos grupos organizados improvisadamente no local de trabalho, como a fuga individual ou coletiva das barcas. Às vezes, ela descambava para a violência, que era proporcional à violência da “discriminação e desqualificação social” imposta pela sociedade ribeirinha. As únicas exceções de resistência organizada dos trabalhadores da região eram os “vapozeiros” e os ferroviários, que, por estabelecerem relações sociais de trabalho basicamente impessoais, puderam se organizar em sindicatos. Para completar sua pesquisa sobre o mundo dos remeiros do Médio São Francisco, o antropólogo mineiro resgata o universo cultural dos remeiros, tanto em sua esfera profana, quanto sagrada. Após descrever sua cultura material, Neves se debruça sobre o universo mental e religioso da região, evidenciando as diversas formas de manifestações do catolicismo popular: devoção a Bom Jesus da Lapa, a dança de São Gonçalo, o Reisado, a Festa do Divino, as festas juninas etc. Além dessas festas populares, o Autor elenca as crendices, rezas, benzeções, feitiçarias e os mitos como o Caboclo d’Água” e o Minhocão etc., que compunham a complexa religiosidade popular são-franciscana. As figuras de barca (carrancas), introduzidas na segunda metade do século passado (século XIX), além de sua função estética, exerciam tanto um papel místico de afastar o Caboclo d’Água e o Minhocão, quanto de identificação das barcas nas cidades ribeirinhas. Buscando continuidades, o Autor elenca a herança legada pelos remeiros em dois séculos de trabalho. De um lado, a integração do Médio São Francisco à sociedade nacional e, até mesmo, internacional,

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seja do ponto de vista econômico, especialmente o comércio das cidades ribeirinhas e adjacências, seja cultural, principalmente a difusão da religiosidade como, por exemplo, os milagres do Bom Jesus da Lapa ou as permanências culturais oriundas das fricções interétnicas do período colonial e que se manifestam ainda na contemporaneidade, como o fato de que a habilidade e o conhecimento das condições de navegabilidade demonstrados pelos índios “foram herdados pelo mestiço são-franciscano que se alugava nas barcas de figura, e, posteriormente, nos vapores e barcas motorizadas” (p.36). O viajante inglês Richard Burton é quem nos informa sobre a importância do rio para o homem ribeirinho: ”Todos os homens desta região são mais ou menos ‘anfíbios’: a canoa, como dizem, é o seu cavalo (...)” (p.116). De acordo com Neves, também podemos afirmar que certamente a desqualificação da profissão de remeiro pelas populações ribeirinhas na primeira metade do século XX provém do preconceito racial, oriundo dos três séculos de escravidão, já que sua maior parte era composta de negros e mestiços. Por outro lado, como produto da própria integração econômica e cultural da região ribeirinha percebe-se, com o avanço das relações capitalistas no campo na década de 1950, o fim da profissão de remeiros, ocasionada pela introdução das barcas sergipanas, equipadas de motor. Entretanto, o saber acumulado pelos remeiros sobre o rio não desaparece com a categoria dos “moços de barca”. Segundo o Autor, “ao se incorporarem à categoria dos ‘vapozeiros’, os ex-remeiros transmitiam seus conhecimentos de navegação – incluindo-se aqui o conhecimento dos acidentes fluviais - aos seus companheiros de profissão e à geração que os sucedeu. Assim, mutatis mutandis, perpetuou-se até os nossos dias aquele saber secular” (p.178). Para finalizar não seria demais afirmar que a etno-história está propiciando uma grande transformação na historiografia brasileira contemporânea, na medida em que possibilita ao historiador romper com concepções arraigadas sobre a documentação e pavimenta o debate sobre a interdisciplinaridade com outras ciências humanas. Talvez a grande contribuição de Neves seja exatamente alertar-nos para a necessidade da ampliação desse diálogo, mas também evidenciar que, apesar da centralidade do rio São Francisco na colonização e ocupação do território brasileiro, ele continua à espera de historiadores, antropólogos e outros pesquisadores que desvendem suas múltiplas facetas na história do Brasil.

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NEVES, Zanoni. Navegantes de Integração. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998, Col. Humanitas, 296 pp. Roberto Lima Doutorando em Antropologia Social - UnB Remeiros do São Francisco - clientelismo e

violência na integração são-franciscana *

O tipo social central neste trabalho são os remeiros, como eram designados na cultura regional, ou os moços (moços de barca), como se autodesignavam: aqueles que impulsionavam as “barcas de figura” no rio São Francisco, antes da introdução das velas e do motor a diesel. Seu trabalho consistia basicamente em impulsionar a barca utilizando o remo, quando a viagem era rio abaixo, ou o “varejão” (uma vara de madeira de quase 10 metros e pesando mais de uma arroba), que o remeiro apoiava no peito e no leito do rio, quando a viagem era a subida do rio. Um trabalho digno das galés exercido por negros, jovens (entre 20 e 30 anos), escravos no período pré-1888, camponeses oriundos do estrato mais baixo da população ribeirinha, altamente estigmatizados pelos segmentos elitizados da região que os designavam depreciativamente como “pés pubos” ou como animais, os “porcos d’água”. Originalmente escrito como dissertação de mestrado, com base numa pesquisa de campo iniciada em 1980, defendida na Unicamp em 1991 sob a orientação de Carlos Brandão, e finalmente editada em livro em 1998, o trabalho de Zanoni Neves manteve-se atual nas questões teóricas relativas à Antropologia e ganhou importância como documento histórico. ----------------------------------- * Resenha publicada na Revista de Antropologia. São Paulo: Departamento de antropologia - USP, 2001, v. 44, nº 2.

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Isso porque, do ponto de vista da teoria antropológica, o texto de Neves busca uma antropologia das “culturas viajantes”, dos atores que circulam em uma região bastante extensa (o médio vale do rio São Francisco), e antecipa as discussões atuais de uma Antropologia do subalterno que tem ganhado força através da leitura de autores como Said, Spivak e Bhabha, os quais, aliás, não são referidos no texto. De outro modo, sendo o foco do livro as complexas relações sociais que se davam ao redor da estigmatizada figura do remeiro, categoria profissional que praticamente se extinguiu na década de 1950, com o passar do tempo torna-se cada vez mais difícil conseguir relatos e histórias de vida de pessoas que tenham exercido tal atividade. O resultado da união destes dois fatores é que Neves não quer “resgatar”, mas, trabalhar a memória para tornar visível esta categoria. Dividido em cinco partes, o livro trata de avaliar a importância histórica desses trabalhadores, situando-os como principais agentes da integração entre as cidades ribeirinhas e possibilitadores do comércio inter-regional.

A primeira parte do livro faz uma apresentação histórica das cidades ribeirinhas e das barcas que as uniam. Tem a função de dar ao leitor um panorama da realidade regional e introduzi-lo nos diversos sistemas produtivos (ouro em Paracatu, sal em Pilão Arcado e Sento Sé, açúcar, rapadura e cachaça de Santa Maria da Vitória e Januária) e de comércio (gado, carne seca e couros, além dos já citados) vigentes naquele rio. Isso possibilita a relativização das teses recorrentes no pensamento social brasileiro sobre o “isolamento do Médio São Francisco” no período que vai do início do século XVIII, quando começam a ser mais abundantes as fontes escritas, até 1950. O panorama traçado por Neves mostra a região como cruzamento de diversos caminhos que demandavam os gerais, Goiás, Piauí, Salvador, as Minas Gerais e o Rio de Janeiro, com os quais as cidades ribeirinhas comercializavam mercadorias transportadas em barcas, tropas de mulas e carros de boi. Esta imagem do rio como paisagem de homens em movimento trata de envolver o leitor para pensar esses atores que raramente aparecem em mais que dois parágrafos de cada livro da literatura tradicional são-franciscana. Criado este vínculo, Neves situa os remeiros no quadro das possibilidades existentes de trabalhadores na região - sejam os trabalhadores do rio (agricultores de lameiros, passadores, balseiros e vapozeiros), sejam os que fazem o comércio em terra firme (tropeiros, carreiros, carroceiros e ferroviários) -, dentro do quadro de relações camponesas locais, atentando que, como 85% da população

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ribeirinha era rural em 1940, muitas vezes os remeiros conciliavam o trabalho na terra com o trabalho nas barcas. É aí que o livro começa realmente a crescer. O autor toma como fio analítico as diversas faces do coronelismo regional, ou, para usar a terminologia de Décio Saes adotada por Neves, as relações de dependência pessoal ao chefe local, como componentes estruturais das relações de trabalho dentro e fora da barca. A tripulação de uma barca era composta de 6 a 12 remeiros e um piloto ou mestre, o qual ficava no leme. Nas barcas pequenas, podia coincidir deste último ser o barqueiro, o proprietário da barca, mas nas maiores, este era um encarregado. Em teoria, os remeiros de um lado e o mestre de outro, fosse barqueiro ou encarregado, formam os dois pólos da tensão dentro da barca, como na fala do barqueiro e coronel Clemente Araújo Castro que chegou na Capitania dos Portos de Juazeiro e disse: “quero que matricule minha barca e os oito bandidos” (p. 163). Fala esta que explicita a atuação dos remeiros como jagunços no universo fora da barca (e havia barqueiros que só contratavam remeiros que fossem bons de tiro). Na prática, fora da barca havia um jogo de relações, seja de amizade instrumental, seja de parentesco, entre barqueiro e os coronéis locais, podendo haver a superposição destes papéis como no exemplo acima. Dentro da barca havia também, entre os remeiros, aqueles que eram “de confiança” (normalmente em número de dois) e que tinham a função de coibir qualquer reivindicação, através do linchamento do remeiro que “criava caso” . Neves é bem-sucedido na forma como apresenta o uso da violência, muitas vezes aplicada, nas palavras de um coronel transcrito no texto, “para dar exemplo”. A violência e a discriminação social encontram campos férteis em contextos de relações de dependência pessoal (p. 209). Trata-se do “reino do terror” que Taussig (1993) descreve e que tem como consequência a invisibilidade política (ao contrário dos pescadores e camponeses que criaram colônias e ligas, não havia qualquer associação reivindicatória de remeiros) e social (através da estigmatização), tornando a resistência quase sempre pessoal (ou, no máximo, restrita ao universo da barca, em forma de fugas). Muitas vezes o principal modo de mostrar resistência era a ritualística jocosidade, em toadas satíricas e mordazes: uma voz que é colocada no meio do rio, inaudível em suas margens. A invisibilidade social da presença do “remeiro na areia” é trazida pela constatação de uma dialética onde há, pelo lado das elites locais, a depreciação do trabalho: a expressão “foi para o sal” vem daí, era

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quando o remeiro sucumbia à doença ou à fadiga e ia recuperar-se deitado nas sacas de sal que as barcas carregavam. Zanoni traz para contrastar entrevistas de barqueiros que falavam que aquilo era “corpo mole” e animalizavam verbalmente os remeiros, os “bichos d’água”. Pelo lado dos que deixavam de ser remeiros, havia a prática do ocultamento do sinal diacrítico de sua condição anterior: as duas marcas no peito deixadas pelo apoio na vara, duas feridas que sangravam e às vezes necessitavam ser curadas, cauterizadas com toucinho fervendo. Ele conta como teve de criar relações de confiança com os entrevistados que lhe permitiram ver as cicatrizes que, mais de trinta anos depois, ainda as possuíam. No tocante às referências, o livro une uma bibliografia antropológica básica e consistente e uma criteriosa e ampla utilização da produção literária regional que, aliás, é fartamente apresentada sem cair nos perigos do enredamento no pensamento social, visto que a totalidade da produção literária regional é ligada aos coronéis (por exemplo: Wilson Lins, filho do coronel Franklin Lins e, Geraldo Rocha, coronel em Barreiras) e, muitas vezes, esta produção fala dos remeiros como um elemento folclórico, elidindo o sofrimento que era imposto. Vale trazer um trecho de uma entrevista: O trabalho (de remeiro), diziam que era bonito (...) Era bonito para você que estava de fora! O senhor ver seu sangue correr na ponta de uma vara não é brincadeira. (P. 186, entrevista com Nicolau Soares da Silva).

Existe um movimento de vaivém no livro que possivelmente fosse evitável, na construção do texto, decorrente talvez do desejo do autor de sempre relacionar cada tópico a todos os outros. Num país em que há uma imensa construção de conhecimento sociológico que a cada momento trata de esconder o conflito, a preocupação de Neves é compreensível e louvável e, se com isso o texto perde elegância, cria-se um ruído que acentua o incômodo, no leitor, da degradação a que eram submetidos aqueles trabalhadores. Bastante didático, o livro pode ser usado sem medo tanto para discussões avançadas quanto introdutórias, embora tenha alguns problemas relativos às imagens vinculadas aos indígenas regionais, que o autor parece usar uma espécie de “índio genérico”, na reconstrução hipotética de como o saber sobre o rio foi passado ao português e aos negros, mas este mostra-se um tema tão tangente que não chega a interferir muito.

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A única falta sentida ao longo do texto é a presença do rio. Há uma seção rápida sobre a profusão linguística dos topônimos e acidentes fluviais entre as páginas 175 e178 e um anexo que me parece sem sentido sobre acidentes navais (p. 296). Neves usa a afirmação de Evans-Pritchard, em “Os Nuer”, de que a profusão linguística indica centros de interesse, mas então, se esses trabalhadores não se constroem apenas diante de outras categorias sociais, mas são pessoas que se constroem ante o rio, rio muitas vezes humanizado no discurso dos “trabalhadores do rio”, talvez a voz do Velho Chico seja a grande ausente no livro.

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INVENTÁRIO DO CAPITÃO DOS PORTOS*

José Antônio de Souza**

Vida, Paixão e Morte nas correntes do Velho Chico. É o resumo dramático de NAVEGANTES DA INTEGRAÇÃO: OS REMEIROS DO RIO SÃO FRANCISCO (Ed. UFMG, 1998) e NA CARREIRA DO RIO SÃO FRANCISCO – TRABALHO E SOCIABILIDADE DOS VAPOZEIROS (Ed. Itatiaia, 2006), dois livros de Zanoni Neves sobre barcas e vapores que subiram e desceram as águas de Minas Gerais e da Bahia no percurso médio desta longa via fluvial que banha cinco estados da federação. Do alto porto da História, o autor mira a trajetória do rio e traça um panorama detalhado de tudo aquilo que foi movimento e pausa, tráfego de mercadoria e circulação humana, trepidação do comércio e pulsação das gentes. E como um caçador de vestígios que percorre a trilha e invade o refúgio de tesouros submersos, este sociólogo-escafandrista vai em busca da barca perdida lá naquele ponto improvável onde toda a navegação deste circuito é apenas uma fotografia na parede - lá onde o quadro animoso de antes é hoje apenas lembrança, apenas o vapor imaginário tangido pelo sopro da memória. Seu veículo é a pesquisa; o motor que o move é a determinação de arrancar do esquecimento o corpo integral desta manifestação que encheu as barrancas e o cais de cada cidade de espera e chegada, de surpresa e desengano, de perdas e lucros. Explorador de ação vertical e circular, ele cria um posto móvel em sua área de prospecção - e faz as vezes do Capitão dos Portos, aquele que anotava os pormenores da navegação, horários, cargas, passageiros, regras, tributos. Mas opera além ---------------- * Artigo publicado em Belo Horizonte na REVISTA DA ARCÁDIA DE MINAS GERAIS, Vol. VI, novembro de 2010. ** Natural de Januária - MG, José Antônio de Souza reside em São Paulo onde é diretor de teatro. Dramaturgo, escreveu diversas peças, dentre as quais “Crimes delicados” e “Pássaro da noite”. Publicou também o romance “Paixões alegres” (Ed. Globo, 1996), ambientado em sua cidade natal, e o ensaio “Um demônio que ruge e um deus que chora” (Ed. Giostri, 2011)

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e acima do fiscal de expediente: é o cronista do Tempo, o rigoroso anotador de detalhes; dá o balanço do pequeno e do grande com senso de minúcia e extensão, não esquece o legado do ter e não descura o do saber, inventariante apaixonado pelos bens que traz à tona, ciente de que retira da sombra o painel luminoso dos séculos de ação expressiva naquelas águas.

SUBINDO O RIO DE CANOA “As primeiras notícias sobre a navegação do Rio São Francisco informam-nos da utilização de canoas pelos grupos indígenas que viviam em suas margens. Em termos demográficos, os cariri eram certamente um dos grupos majoritários. É possível perceber sua habilidade como navegantes no relato escrito pelo padre Martinho de Nantes, missionário capuchinho do século XVII. Aqueles índios navegavam com desenvoltura numa área do Baixo São Francisco caracterizada por formações rochosas onde a forte correnteza era vencida por suas frágeis canoas.” (Neves, 2006, p. 16)

Esta é a introdução do tópico “Primeiros navegantes” de NA

CARREIRA DO RIO SÃO FRANCISCO. Crescem gradativamente na região as populações das margens e a assimilação nas águas do que Zanoni chama de “saber-fazer ancestral dos índios”: o domínio na construção dessas embarcações e na sua condução pela corrente, gerando uma tripulação inicial de canoeiros, remeiros, balseiros e pescadores. No final do século XVII já havia no São Francisco barcos maiores transportando pessoas e cargas. O colonizador avança rio acima, através de missionários católicos e leigos portugueses que vão expandindo a pecuária nas ribeiras. O livro relata a progressiva transformação do São Francisco no Caminho, no que isso implica em ação mística e em via comercial. Ajoujos, balsas, paquetes, lanchas, barcas, a variação dos meios de locomoção amplia e intensifica os modos de contato do navegador com o rio. Uma vida ativa, prática, de invenções e explorações, de experimentos e permutas utilitárias estabelece-se ao longo da região e na carreira dos anos. No século XIX a barca de figura e o vapor consolidam e caracterizam o transporte local. É quando então o remeiro que toca sua embarcação a muque, usando varas ou varejões que apoia no peito para forçar a subida nas águas, tem o contraponto do vapozeiro, marinheiro de água doce em múltiplas tarefas no navio médio movido a fogo de lenha. Povoados, arraiais, vilas, cidades emergentes vão pontilhando as margens, fixando solo e teto da população ribeirinha.

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Este fermento antropológico, bem como o miolo da cultura são-franciscana no Médio Rio, Zanoni recolhe, sopesa e mapeia com requintes de medida; entrega-nos o gráfico com a acuidade do cientista social - e com a emoção contida, mas sensível, do homem nascido na região, o barranqueiro solidário com seu povo e em especial com aqueles de quem a sociedade extrai o máximo e devolve o mínimo.

AOS QUE VIRÃO DEPOIS

Vejo na atividade dos sociólogos uma certa analogia com a do

prestador de serviço da atividade mística, independente de qualquer filiação religiosa do profissional. Há sem dúvida um impulso de missão nesse olhar para o todo que traz o particular para a boca de cena, põe o foco sobre ele, examina e esclarece suas ações, interliga-o ao geral e daí faz a somatória da observação e da análise. Pode-se inferir um sentido do sagrado, sem conotação salvacionista. A ideia do serviço tem aí a relação humanitária de quem estuda o meio para usufruto do sujeito; que haja ou não haja intenção ideológica, econômica, racial ou qualquer que seja, é um segundo assunto: o primeiro me parece sempre pertencer ao capítulo da doação, o emprego de uma parcela de empenho que se acrescenta ao cidadão e fortalece a cidadania. Doação e troca, complemento eu. Pois a própria sociedade também doa quando oferece o que buscar, através dos registros, dos depoimentos assinalados ou anônimos, da súmula afinal de sua consignação e feitura. É um exercício de reciprocidade, de integração mútua, aquele mover-se para fora e para dentro, avistar ao longe e enxergar de perto, o saber o que se tem e o ter o que se sabe.

O autor dedica-se a esse exercício com um equilíbrio de alto contraste. Estamos diante de um obsessivo a fazer uso da aparelhagem de aferição dos elementos compostos do lugar, expondo forças centrípetas e centrífugas da atmosfera local, todo ele provas, todo ele deduções, todo ele conhecimento e paixão diante de um mapa de confluências e refluências, de possibilidades e de ocorrências inequívocas, côncavo, convexo, e muito simples, e muito ao alcance de todos nós. Quem duvidar de mim, leia os livros. Mas não espere encontrar um estilo descabelado avalizando minha referência de obsessão. A escrita é sóbria, corredia, sem nenhum penduricalho do jargão “universitês”, feita para esclarecer, partilhar, dividir, multiplicar com todos que naquelas páginas ponham os olhos. Minha sensação é que Zanoni escreve primordialmente para os filhos e netos dos remeiros e vapozeiros, os descendentes daqueles que tangeram vapores e barcas pelas planícies aquáticas do Velho Chico. Escreve para os descendentes

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de tropeiros, arrieiros, canoeiros, paqueteiros, pescadores, carreiros, guieiros, carroceiros, boiadeiros, lameiros, barqueiros, vaqueiros, marceneiros, carpinteiros, serradores, louceiras, seleiros, costureiras, lavradores, roceiros de vazante - enfim, todos os que dali surgiam e para lá se dirigiam, os que transportavam e consumiam víveres e objetos, os anônimos operários da integração daquela parte do mundo com o mundo de outras partes. Como a dizer: “Meninos, eis aí a obra de seus antigos. Orgulhem-se dela”. Escreve para ser entendido pelos simples, mas não incorre no simplismo. Organiza suas palavras de modo que haja nelas a informação imediata e o pensamento elevado, o raciocínio que serve à percepção em começo e à fruição da complexidade. Os dois livros têm essa qualidade dual, prospectiva, do relato de dupla serventia.

Ele demonstra à saciedade a ligação do Vale do São Francisco com outras regiões do nosso vale de lágrimas. Não é um texto místico, é uma tese universitária absolutamente centrada na realidade dos fatos, na pesquisa do registro documental e oral, dos papéis de arquivos e depoimentos dos personagens e testemunhas do quanto ali foi vivido e acontecido. Para mim, o substrato do seu trabalho se traduz no verso de Gonzaga: “Eu tenho um coração maior que o mundo”. Está aí o significado de sua obsessão em contraste: não é a aceleração violenta das emoções, é o sentimento de serena intensidade que se alarga em viva estima pelos formadores da civilização barranqueira. Nisso ele reproduz o curso do Velho Chico, tranquilo à flor do estilo como o rio à flor das águas, porém denso e rumoroso na corrente interior, o subtexto pleno da intenção solidária e do controle da expressão. Trata-se de um homem que se doa em silêncio - e é nesse silêncio que está, em contrição inversa, a paixão do obsessivo.

Zanoni Neves une os pontais das águas corridas, revela o mistério da navegação submersa e o traz à mesa, para o nosso deleite e o conhecimento assombrado de sua História. Exerce com perícia a função do sociólogo e a do caçador da barca perdida.

Ô TEMPO, ÔI MEIO MUNDO Ana Lúcia Gomes de Melo faz a apresentação (“orelha”) de NA

CARREIRA DO RIO SÃO FRANCISCO. Sintetiza em poucas e lúcidas palavras a obra em questão e a trajetória do autor como cientista social. Sobre o que ela aborda, nada a acrescentar. Está tudo ali, dito com objetividade e elegância. Quase no fecho do artigo, ela resume: “Seu trabalho, conforme suas próprias palavras, ‘confere visibilidade a uma

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classe social desconhecida na história do Brasil’: os vapozeiros do Velho Chico”.

Num poema famoso Brecht pergunta: “Quem construiu Tebas de Sete Portas? Constam nos livros os nomes dos reis; Teriam os reis arrastado os blocos de pedra?” Zanoni nos conta quem, na construção da sociedade do Médio

São Francisco, teve função análoga ao arrastar dos blocos de pedra: os remeiros das “emas”, as barcas de figura - aquelas com carrancas na proa –, chamados na região de “moços de barca”. A esses cabia o trabalho brutal de empurrar a embarcação na corrente usando um instrumento de vários apelidos: varejão, vara ferrada, gancho, boi, caneta, ferrão, de uso e consequência que o autor transcreve do livro O RIO DA UNIDADE NACIONAL: O SÃO FRANCISCO, de Orlando M. de Carvalho:

“... o varejão no princípio faz uma chaga enorme no peito do remeiro. Ele pega, então, um pouco de toucinho quente e o derrama sobre a carne viva. Formam-se ali calos pretos e horríveis, que são como duas condecorações no peito desses infelizes. Às vezes, como eu vi, o calo se racha e a gente enxerga em baixo a carne viva latejando.” (Apud: Neves, 1998, p. 185)

“Medalha” era o nome que se dava ironicamente a esse calo. Entrevistado pelo autor, o ex-remeiro Gonçalo Adriano da Silva confessa: “Sofri muito nesse rio... Só boi de carro é que sofre igual ao remeiro das ‘emas’ velhas, vara no peito...” (Neves, 1998, p. 186)

O moço de barca está na escala mais baixa do sistema de trabalho desta navegação de Pirapora a Juazeiro. As velhas emas, contudo, são de fundamental importância na consolidação social daquele pedaço de rio. O de comer, o de beber, o de vestir, o de morar, as coisas e loisas de primeira necessidade transitam água acima, água abaixo, no bojo e na cacunda da embarcação que Neves assim especifica: “A cobertura de palha de carnaúba e o acabamento da popa lembram, sem dúvida, a grande ave reiforme”. (Neves, 1998, p. 186) Mesmo quando surge o vapor, e altera as medidas de velocidade e potência no transporte local, aumentando o peso das cargas e o número de passageiros, os remos e varejões das barcas de figura continuam ativos, necessários, ajudando a suprir em ponto menor o intercâmbio de mercadorias no Vale com a urgência possível e a permanência inalterada. Digo melhor: permanência inalterada até os anos 50 do século XX, quando vai-se

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escasseando o bando de emas aquáticas, em revoada para o esquecimento que não demora – lá pelos anos 1970 – terá também a frota de vapores singrando o mesmo vácuo do adeus para nunca mais.

Sou cúmplice de Zanoni Neves na consideração especial pelos remeiros. É notório que ele os elege para o posto maior de sua solidariedade. Filho de comandante de vapor, logo com uma relação direta e uma afeição particular pelos tripulantes da embarcação movida a chama de caldeira, onde as condições de trabalho são absolutamente mais civilizadas, mesmo as dos mais embaixo na hierarquia de serviço, as quais, ainda que precárias, não se mostram tão dolorosas ou degradantes, - o cronista da navegação são-franciscana não esconde que pelos sofridos moços de barca ele alimenta um sentimento além da simpatia dedicada aos vapozeiros: alimenta a compaixão, gênero de amor ao próximo recoberto do sofrimento pessoal ante o padecimento alheio. Esses, acima de todos, são uma classe social desconhecida no Brasil: a eles, mais que aos vapozeiros, o sociólogo humanista confere visibilidade. É o tipo próprio do pária da produção capitalista, aquele não excluído do emprego, mas incluído nele nos baixios da exploração empregatícia, aprisionado na miséria da remuneração e condenado ao plano viscoso de uma atividade deformadora do físico e da alma, castradora da energia e do sonho, sem perspectiva de evolução e de representatividade - o funcionário do vapor chega afinal ao sindicato de classe; já os moços de barca são os eternos exilados da dignidade humana, os degradados filhos de Eva, desde o início das viagens das emas até o seu amargo fim.

No artigo de apresentação, Ana Lúcia informa sobre o grupo de estudantes e professores da cidade de Pirapora, de que Zanoni fazia parte, criando o jornal Corrente em 1975, com o propósito de contribuir para fixação da memória ribeirinha e de “lutar por uma democratização do país que propiciasse às camadas populares condições de transformar as condições econômicas e políticas vigentes”. (Ana Lúcia Gomes de Melo na ”orelha” do livro) Foi a batalha daquele tempo, a entrega ao imperativo da liberdade e à utopia da ascensão participativa no rendimento da produção. Nisso fomos cúmplices e integrantes daquela parcela da juventude que no Brasil todo, em atividades diversas, fustigava os donos do poder, movidos todos nós – meus companheiros de teatro em Belo Horizonte e São Paulo - pela idéia insuflada por Brecht: “Os mandões sem mim se achavam mais seguros, eu esperava”. O livro dos remeiros abre um tópico expressivo sobre o espírito de resistência dos moços de barca. (Neves, 1998, p. 209-227) Aí vemos todo um painel de preconceitos, discriminações, violência policial, toda uma conspiração excludente das populações barranqueiras para afastar aquela classe de

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operários do convívio social e do benefício de alguma regalia nas cidades. Então era olho por olho, dente por dente. Vinha a perseguição, a fera ferida contra-atacava. “Soldado com eles cortava volta. A polícia temia eles. Era cada homem forte!” (p. 224)

Mas o melhor da resistência estava no deboche, na pilhéria, na maledicência - e no verso. O remeiro-cantador soltava a voz rio abaixo, rio acima:

“Remanso pra eleição Pilão Arcado da valentia Xique-Xique dos bundão Icatu cachaça podre Na Barra só tem ladrão (...)” (p. 214)

As cantigas tinham admiradores em todos os portos e às vezes

ganhavam uma alternância de métrica e de ritmo. Havia toadas lentas e a modalidade mais ágil, a toada ligeira:

“Ô tempo, ô meio mundo, trancilim, cordão, colar ô meio mundo a ligeira bem cantada faz o povo admirar ô meio mundo meu colega, não me agrava que eu não quero te agravar trancilim, cordão, colar meu mano, não titubeia que eu sou capaz de errar ô tempo, ôi meio mundo dê de lá que eu dou de cá meu mano, não titubeia não me faz titubear.” (p. 220)

DE VOLTA AO PONTO DE PARTIDA

No destaque à peleja dos moços de barca, Zanoni não deixa por menos a labuta dos vapozeiros. A batalha no vapor também é áspera e a tripulação trava combate permanente com o rio, as armadilhas e os

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obstáculos da corrente: bancos de areia, áreas de pedra, corredeiras, enchentes, pés de vento, tempestades, troncos submersos, provocadores de acidentes de percurso que vão do encalhe ao naufrágio. O trabalho nesta embarcação exige conhecimento técnico, mas a prática dos remeiros é incorporada e absorvida no trânsito das águas. O sociólogo observa:

“O saber dos grupos e classes sociais subalternas não mantém necessariamente uma relação de oposição com a chamada ‘cultura erudita’. A ciência e as chamadas ‘tecnologias de ponta’ utilizam frequentemente traços e componentes da cultura popular, que - vale ressaltar – possui seus intelectuais orgânicos. Por seu conhecimento das condições de navegabilidade, os mestres e proeiros eram autênticos intelectuais orgânicos da classe dos remeiros.” (Neves, 2006, p. 23)

O vapor é de fato o consolidador da civilização barranqueira. É nele que se opera a regularidade profissional de bordo e de portos; através dele se incrementa o comércio nos limites do Médio Rio e o intercâmbio com outras regiões, via Juazeiro e Pirapora. É o vapor quem propicia a integração, local e externa, e dá à navegação são-franciscana o seu aporte modernizador – ao menos até os meados do século XX. Neves embrenha-se no amálgama da tradição e do progresso, do popular e do erudito, extrai do seu miolo a substância que fez o pensar e o agir da gente ribeirinha. Ali a sociedade brasileira é reproduzida com suas nuances de miscigenação social e racial, com os cacoetes econômicos que geram reflexos do coronelismo e do patronato urbano, ali os usos e costumes repetem os modismos de fora e ponteiam os maneirismos internos - e ambos os livros nos dão o particular e o geral em simbiose, a cara da terra e a face do país como 2 rostos em 1.

O raio-x da navegação mostra os indícios do trânsito nas águas desde as primeiras lições indígenas, com o uso e fabrico das canoas, e acentua as referências do surgimento do vapor, a alternância do Estado e de empresários na criação das companhias que viriam a gerir o negócio através dos anos. Conhecemos a escala hierárquica do serviço interno e os compartimentos da nau em detalhes de função e localidade. Histórias de tripulantes e passageiros permeiam as informações. O mundo barranqueiro é exposto em progressão, através daquilo que compõe a realidade concreta e daquilo que dispõe o reino mágico das lendas do rio. O que eu chamo de Vida, Paixão e Morte nas correntes do Velho Chico é a sucessão de marcos civilizatórios que atravessa os séculos XVII e XVIII - correspondendo a uma fixação de vida local; a ascensão e o apogeu nos finais do século XIX até meados do século XX, um período

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de atividade trepidante, apaixonante para tripulações, usuários e populações; e a decadência depois de 1960, quando novos meios de transporte por terra – a chegada do asfalto e a multiplicação dos veículos de roda – provocam a morte do Caminho das Águas e o desemprego das velhas embarcações. Que poderiam ser aposentadas e não exterminadas. Conservadas e distribuídas em cada porto para apreciação das gerações que as sucederam. E não destruídas brutalmente pelo abandono e pelo fogo. Não me canso de repetir isso, e vou fazê-lo sempre, onde e quando tiver oportunidade de gritar esta denúncia, unindo minha voz às de outros barranqueiros indignados: a navegação do Rio São Francisco foi assassinada, apunhalada pelas costas, levada à ruína pela mentalidade abjeta que trata com descaso e desrespeito o patrimônio das cidades e regiões, queimada viva na fogueira dos vândalos, dos depredadores ignorantes que não admitem a coexistência do passado e do presente no mesmo espaço, os serviçais fuleiros de uma idéia de progresso que exclui a tradição, as bestas do apocalipse da mediocridade, os vermes da História, os apedrejadores da Beleza, os inimigos do Povo. O magnífico trabalho de Zanoni Neves tem o sentido consagrador de quem faz o caminho inverso na trajetória do Tempo: numa leitura simbólica, podemos dizer que ele parte dos escombros da Morte, revive os auspícios da Paixão e volta ao princípio da Vida da navegação no Velho Chico.

LONGE DAQUI, AQUI MESMO

Os dois livros, e o mais que o autor tem escrito sobre o tema, compõem uma obra de reconhecido valor literário e científico. Será este o seu primeiro mérito, aquele buscado e conseguido essencialmente pelo sociólogo: a tese da Integração foi aprovada ponto por ponto na Universidade, com distinção e louvor. Para mim, seu conterrâneo das barrancas, há um segundo mérito que (sem desmerecer o primeiro) considero de maior importância ainda: é o mérito sentimental, digo eu, e como leitor posso me dar ao direito de sobrepor às fichas classificatórias da aprovação racional as notas do coração, esse pequeno órgão emissor de razões que a própria razão desconhece. Nos dois livros eu obtive atributos para o conhecer e o sentir. E o que me foi dado saber privilegiou minha consciência e seduziu meu sentimento.

O Capitão dos Portos Zanoni Neves faz o inventário da falecida navegação, anota em caderneta tudo o que vestiu o corpo da defunta, prova-nos que não foi por estar isolada que ela sofreu o extermínio do

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seu bem mais precioso, e diz à nossa simbólica barca perdida a verdade terrível dos versos de Augusto dos Anjos:

“Vês?! Ninguém assistiu ao formidável Enterro de tua última quimera. Somente a Ingratidão - esta pantera – Foi tua companheira inseparável.”

Porém ele a salva do esquecimento. Porém ele preserva no nicho

da memória os traços sagrados de sua imagem. Porém ele oferta a todos nós, barranqueiros, no mapa do seu ofício, a moldura dos veículos imortais de Minas e da Bahia.

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VIAJANDO NOS VAPORES E NO TEMPO*

Glorinha Mameluque** Em minhas mãos, um dos livros de Zanoni Neves, membro da

ACLECIA – Academia de Letras, Ciências e Artes do São Francisco e do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais (entre outros títulos). Livro que ele generosamente me presenteou e que me trouxe grandes recordações. Trata-se da obra RIO SÃO FRANCISCO – História, navegação e cultura (Ed. UFJF, 2009), um dos seus temas preferidos, que já abordou em outras ocasiões. Isto porque quem nasce nas barrancas do São Francisco, mesmo migrando para outras plagas, não se esquece dele, de seus remeiros, de suas canoas, de suas lendas e de seus vapores.

Li o livro de um fôlego, adentrando-me nas histórias ali narradas, sentindo-me às vezes expectadora, às vezes personagem. É um livro rico em pesquisas e referências, que mostra o zelo e a profundidade com que o autor trata de cada assunto ou capítulo, que trazem ao leitor uma infinidade de informações por vezes desconhecidas.

Mas o que me fez enveredar entre as minhas lembranças foi o capítulo onde ele trata dos “Vapores do Rio São Francisco e seus tripulantes” (p. 127-145). Voltei à minha infância quando meu pai, correspondente de comerciantes de Pirapora e Januária, corria ao porto assim que ouvia o apito do vapor para receber ou despachar mercadorias, mesmo às madrugadas. O linguajar da tripulação é para mim muito familiar, pois desde pequena viajava nos vapores, único transporte disponível naquele tempo e quando acompanhava meu pai, amigo dos comandantes, sentávamos à mesa principal, na hora das refeições - deferência reservada a pessoas especiais.

------------------- * Artigo publicado originalmente no JORNAL DE NOTÍCIAS DE MONTES CLAROS. ** Natural de São Romão (MG), cidade ribeirinha do Médio São Francisco, Glorinha Mameluque é psicóloga e advogada. Membro da Academia Montesclarense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros e da Academia de Letras do Rio São Francisco, é autora do livro De Vila Risonha a São Romão (2010) sobre a história de sua cidade natal, dentre outras obras.

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Não conheci todos os vapores citados, mas lembro-me muito bem de alguns, como o “Barão de Cotegipe”, que tinha o apito mais bonito, “matando de saudades” aqueles que se despediam de seus parentes; o “Benjamin Guimarães”, que até hoje navega carregando turistas; o “São Francisco”, que me levou de Pirapora a São Francisco (MG), quando recém-formada viajei de Pirapora a São Francisco para assumir o meu primeiro emprego no Hospital da Fundação SESP naquela cidade; o “Wenceslau Braz”, que tinha um grande e espaçoso corredor no meio, onde nos reuníamos à noite quando fui com minha família a Bom Jesus da Lapa, e muitos outros: o “Coronel Ramos”, o “Baependi”, o “Salvador”, o “Engenheiro Halfeld”, o “Raul Soares”... Foi também a bordo dos vapores que meus filhos nascidos em Pirapora fizeram a sua primeira viagem até São Francisco, onde morávamos.

Conhecíamos todos pelo som do apito e já corríamos ao porto para ver os passageiros que chegavam e partiam e aqueles que desciam para andar pelas ruas da cidade e comprar alguma coisa.

São muitas as lembranças: fatos ocorridos nas viagens, as festas a bordo, os encalhes nos bancos de areia que retardavam a viagem e que para nós, na época estudantes, era uma festa, as amizades feitas. Foi uma época muito feliz, que o livro de Zanoni me fez viajar no tempo e nos vapores.

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NOSSA HISTÓRIA*

Os remeiros do rio São Francisco, de Zanoni Neves. São Paulo: Editora Saraiva, 2004, Coleção “Que história é esta?”

João Naves de Melo** Conquanto algumas ligeiras escapulidas, sem marcar o ponto de toda tarde, mergulhando os olhos no nunca igualável pôr do sol, o barranqueiro faz do rio o seu altar porque, como diz o mestre Saul Martins, “nele tem a sua alma”. Outros olham nosso rio em busca de promoção – de quando em quando surge um motivo para que dele tome conta a mídia, mas apenas nos pontos mais interessantes. O Governo também faz das suas, de quando em quando, e dele vêm equipes para discutir questões ambientais, hospedando-se no belo Hotel Canoeiros, em Pirapora, ou nos confortáveis hotéis de Montes Claros. Agora, novamente é suscitado o secular projeto de transposição das águas do São Francisco para servir às populações do semiárido nordestino. E deitam falação, arengas sem fim, e despropositadas, revelando uma imensa ignorância quanto à alma do rio. Cuidam do físico (no exame técnico disso e daquilo, resultando calhamaços de escritos, quase sempre jogados fora) e se esquecem do homem, não mergulham em sua história e, por isso, tudo que falam e fazem, causa arrepios nos desconfiados barranqueiros. --------------------- * Texto publicado originalmente no jornal O BARRANQUEIRO, de São

Francisco- MG, edição de 02 de outubro de 2004. * Residente em São Francisco-MG, cidade ribeirinha, João Naves de Melo é educador, advogado, membro efetivo da ACLECIA – Academia de Letras, Ciências e Artes do São Francisco e da Comissão Mineira de Folclore; autor do livro de memórias A saga de um urucuiano (2003) e de outras obras e artigos.

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Achei necessário (talvez não fosse) fazer esse preâmbulo para apresentar aos nossos leitores o formidável livro do Professor Zanoni Neves - Os remeiros do Rio São Francisco -, recentemente lançado.

Zanoni, bacharel em Ciências Sociais pela UFMG, pós-graduado em Sociologia pela PUC-MG e mestre em Antropologia Social pela UNICAMP, é membro da ACLECIA – Academia de Letras, Ciências e Artes do São Francisco, mas o que tem de maior mesmo é a qualidade de ser barranqueiro, de Pirapora, onde o rio canta nas pedras e levanta espumas como chuva. Assim, ele pôs a alma a navegar pelo rio - de onde o “peixe salta” até a foz – visitando todas as barrancas, bebericando em todas as águas chegantes das serranias ou de frescas veredas dos gerais, e viajou por tempos. Os remeiros do Rio São Francisco, um retrato pintado e escrito com sensibilidade, apuro que mostra um bom bocado de nossa história: conhecendo-se os remeiros, é possível acompanhar como nasceram e se desenvolveram civilizações barranqueiras e como vivia a sua gente. O relato de Zanoni abrange o período de 1680, com base em documento escrito por missionários, até 1950, quando “as barcas de figura desapareceram da paisagem são-franciscana”. Enriquecem muito o livro os mapas antigos e atuais do Médio São Francisco (trecho de Pirapora a Petrolina - Juazeiro), os desenhos de povoações antigas, as fotografias. Uma seção é dedicada às barcas de carranca, com ilustrações belíssimas, inclusive impressionantes fotografias do francês Marcel Gautherot que, nos idos dos anos 1940, empreendeu uma viagem pelo São Francisco e acabou apaixonado pelo Brasil, aqui ficando. Enriquecem muito o livro, também, as informações sumariadas em pequenos quadros, nas margens das páginas, explicando termos usados na região, ligados à atividade. Como exemplo, cito alguns, que tenho certeza não ser do conhecimento dos nossos jovens estudantes: “Água dura: trecho de forte correnteza que implica maior esforço dos remeiros nas viagens rio acima.” (p. 45) Portão: passagem profunda do canal navegável, mas em geral muito estreita.” (p. 47) Ipueira: (do Tupi) água passada, que já não corre, resultante do transbordamento do rio.” (p. 47)

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NAVEGANTES DO SÃO FRANCISCO* Antonio de Paiva Moura**

A obra “Na Carreira do Rio São Francisco: trabalho e sociabilidade dos vapozeiros”, de Zanoni Neves, publicado pela Editora Itatiaia (Coleção Reconquista do Brasil, Vol. 237), vem como sinal de sua nova fase. No início de suas atividades, a Editora estivera voltada para as publicações relacionadas com a historiografia mineira, embora contemplando somente a época colonial. Na sua fase intermediária, em parceria com a Editora da Universidade de São Paulo, reeditou livros de sua coleção, de amplo interesse nacional. No seu amplo repertório prevalecem os textos históricos, contemplando a literatura nacional, Folclore e Ciências Sociais. Este trabalho de Zanoni Neves constitui-se não só o mais novo da lista de 237 livros, mas também o de maior e mais atualizada renovação científica. Na primeira metade do século XX, os estudiosos de Ciências Sociais europeus passaram por renovações radicais, tanto os ligados à Escola de Frankfurt, quanto os das Escolas dos Annales. O cientista tradicional quase sempre era um esnobe, cujo produto de seu conhecimento não se constituía em benefício da sociedade como um todo. Chegaram a lançar teses preconceituosas como a de Gobineau que afirmava ser a “raça” ariana superior e assim justificar a ocupação dos outros continentes pelos europeus. A teoria de Spencer sobre a lei do mais forte, baseado na teoria de Darwin. Os cientistas modernos não só criticaram os cientistas tradicionais, mas propuseram novos métodos de pesquisa e de análise visando o progresso humano. Ao invés de buscarem autonomia metodológica para as Ciências Sociais, os cientistas ---------------------- * Texto publicado na Internet em 08 de maio de 2007: www.asminasgerais.com.br. ** Antônio de Paiva Moura é Mestre em História e professor da UNI-BH e da Escola Guignard/UEMG. modernos passaram a trabalhar de forma cooperativa, isto é, buscando a ação interdisciplinar como claramente expõe Le Goff: a

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interdisciplinaridade, que se traduz no surgimento de ciências que unem duas ciências num substantivo e num epíteto: história sociológica, demografia histórica e antropologia histórica. Outros criam também neologismos híbridos como Psicolinguística, Etno-história.

O que Zanoni Neves trilhou em sua carreira científica pelo rio São Francisco foi no sentido da história de longa duração, isto é, a persistência de traços culturais e mentalidades do passado em tempos recentes e atuais; as mudanças e substituições ocorridas e seus significados sociais; as embarcações vão se tornando mais complexas e mais potentes ao longo do tempo. Os indígenas expulsos pelos colonizadores ibéricos. Os brasileiros que ocuparam posições e papéis no entorno dos portos e na condução dos barcos. É, portanto, isso que Marc Bloch chama de “longa história”. Os herdeiros culturais dos índios, dos negros e dos portugueses estão presentes fazendo a história contemporânea e marcando presença na pulsação da vida social. Para Zanoni Neves a história não começa e nem acaba com o lançamento de um barco a vapor nas águas do Rio São Francisco. O que importa é que antes do evento havia uma longa história, uma estrutura formada, uma sociedade em pleno funcionamento. E depois do barco a vapor, essa sociedade ribeirinha mudou seu comportamento? O autor foi criterioso ao basear-se na noção de cultura de Lévi-Strauss sobre a lenta alteração das culturas. O autor tinha todos os ingredientes para elaborar sua obra. Viveu nas margens do São Francisco e filho de pai vapozeiro. Ouviu e anotou histórias orais de velhos navegadores; recorreu a farta documentação de fontes primárias e artefatos de navegação fluvial. Conta que até os anos 60 do século XX, era comum o vínculo de pescadores com fazendeiros proprietários das lagoas formadas no período chuvoso. Depois da pesca o proprietário da lagoa exigia para si a melhor e a maior parte do produto. A produção do Médio São Francisco não era monocultura de exportação e a navegação estava ligada à produção de pequenos e médios agricultores, além da pecuária de corte da Bacia do São Francisco. As populações urbanas que se formavam nas margens do rio dependiam da produção agropecuária e da navegação fluvial. Os canoeiros é que faziam esse elo de ligação dos produtores com os barcos maiores e com as cidades. É nesse homem canoeiro que Zanoni concentra sua atenção. O vapozeiro é recrutado entre os canoeiros e, por isso, é também um homem ribeirinho e terrestre. É aí que a obra de Zanoni Neves se reveste do caráter de uma antropologia histórica, isto é, os feitos humanos, os acontecimentos e as obras relevantes não partem

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das canetadas dos dirigentes de Estado, mas do fazer humano, do saber-fazer, da mentalidade reinante no sertão. Importante é o trabalho que brota das mãos dos homens do campo e da cidade; da poesia que vem de suas falas; dos cantos e contos que fluem de suas bocas; de tudo que fica materializado em suas obras e que representam a história de longa duração, isto é, os fatos que não acabam, apesar da moda e do modismo. Apesar de fazer referência à criação da Capitania dos Portos fluviais pelo Governo, conforme lei de 1926, o autor não lhe atribui função vital na permanência da navegação. As circunstâncias estruturais e as injunções sociais é que determinaram as condições de seu funcionamento.

Sem dúvida, o autor de NA CARREIRA DO RIO SÃO FRANCISCO é um cientista atualizado e moderno. Com seu trabalho, busca a formação humanística e o progresso humano.

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O VELHO CHICO SEM CHAVÕES*

Vapor Encantado (Blog)

Estou relendo o livro “Na carreira do rio São Francisco”, de Zanoni Neves. Com a naturalidade de um barranqueiro de Pirapora, cidade onde nasceu e passou grande parte de sua vida, ele navega pelas corredeiras da história, perpassa as “croas” da economia e mergulha nas profundezas da sociologia e da antropologia são-franciscanas, sem perder de vista a limpidez do texto.

O título já é uma boa indicação do que está dentro do livro, pois remete às viagens que eram realizadas rio acima e rio abaixo, desde os tempos coloniais até a segunda metade do século XX, embora seu objetivo explícito seja analisar o trabalho e a sociabilidade dos vapozeiros, tripulantes dos barcos a vapor. Faz-nos lembrar a célebre cantiga dos remeiros, conhecida dos habitantes das margens do São Francisco, pelo menos dos mais velhos:

“Januária é carreira grande, Corrente é meia carreira...”

Os remeiros, aqueles que empunhavam as varas na subida do rio

e os remos na descida para impulsionar as antigas barcas, eram contratados por “viagem redonda” – itinerário de ida ao porto de destino e volta ao de origem. Para eles, “carreira inteira” era a viagem de Juazeiro a Pirapora, “carreira grande” a de Juazeiro a Januária, e “meia carreira” a de Juazeiro a Santa Maria da Vitória, no rio Corrente. --------------- * Texto publicado em 21 de fevereiro de 2010 no Blog “Vapor Encantado” (Notícias, histórias, História e outras coisas mais do mundo encantado e desencantado do rio São Francisco com seus afluentes e arredores) - Jornalista responsável: Adalberto Silveira Passos.

O livro de Zanoni faz uma viagem pela história do Velho Chico e

procura definir e entender o papel de cada grupo social envolvido no que ele chama de Sistema Econômico Regional, o qual se integrava a sistemas

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mais amplos de alcance nacional e internacional. É aí que passamos a entender como um simples remeiro, que representava a classe mais baixa da sociedade sanfranciscana, ajudando a transportar mercadorias das mais diversas procedências, inclusive Manchester, na Inglaterra, contribuía para o desenvolvimento do Sistema Econômico Regional e, por conseqüência, dos outros sistemas que com ele interagiam.

O autor mostra também como o conhecimento e as tecnologias populares se somaram ao conhecimento dito científico ao longo da história do rio, e um dos diversos exemplos citados é o da navegação, em que práticas e saberes herdados dos índios acabaram por ser adotados nas barcas e nos vapores.

Nesse ponto, Neves demonstra como a ideologia do progresso, que impregnou os corações e mentes das elites regionais, já a partir do século XIX, orientou o crescimento econômico na bacia do São Francisco e exerceu influências no campo político. Em que pese o desprezo que os defensores da ideologia do progresso tinham pelas tecnologias tradicionais, elas continuaram a conviver com outras mais novas, tidas como símbolos de modernidade. Carros de bois e caminhões, carroças e locomotivas, canoas, paquetes, ajoujos, barcas e vapores, o velho e o novo andavam lado a lado e atuaram sinergicamente para dar vida ao Sistema Econômico Regional.

Um dos traços que marcou a ideologia do progresso foi o desprezo pelo meio ambiente, observa o autor. Como um dos exemplos, ele cita a introdução dos vapores na navegação. É verdade que eles trouxeram rapidez e aumento da capacidade de transporte de pessoas e cargas, porém, sendo embarcações que usavam a lenha como combustível, acabaram por provocar, em grande medida, a destruição das matas ciliares e, em consequência, o desbarrancamento e o assoreamento do rio.

O livro de Zanoni nos transporta pelo Velho Chico e nos permite acompanhar de perto a vida da tripulação, tanto na lida diária no interior do vapor, em todos os seus aspectos, quanto nas suas relações com as populações ribeirinhas. A categoria dos vapozeiros era dividida em três grupos: o “pessoal de bordo”, composto pelas tripulações, o “pessoal das oficinas” e o “pessoal dos escritórios”. Essas duas últimas compunham o grupo do “pessoal de terra”. As tripulações, que formavam o grupo do “pessoal de bordo”, eram distribuídas em diversos subgrupos, respeitando a divisão do trabalho.

Zanoni leva-nos também a uma viagem sentimental, mostrando o clima afetivo que envolvia vapores e habitantes da ribeira, ao ponto de cada uma dessas embarcações ser reconhecida pelo som de seu apito. O

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próprio autor, filho de comandante de vapor, tendo viajado muitas vezes nessas embarcações, testemunhou fatos que comprovavam essa aproximação.

Nessa viagem histórica e sentimental, destacam-se as histórias de vida de quatro personagens fascinantes do velho rio: João Francisco de Souza, o prático ou piloto mais conhecido como João de Félix; Joaquim Borges das Neves, o comandante Joaquim Sereno para seus colegas; Antônio de Souza, o rigoroso comandante que mudou a vida de um ladrão; e Antônio Joaquim d’Almeida Roque, o maquinista que veio de Portugal.

Acredite, leitor: aquele que ler o livro de Zanoni Neves nunca mais verá o Rio São Francisco da mesma forma. Nestes tempos de massificações banais e repetições emburrecedoras de chavões e idéias insignificantes, a obra desse autor de Pirapora pode ser um ótimo remédio para nos curarmos do mal de desconhecimento sobre o rio mais querido e importante do Brasil. Serviço Título do livro: Na Carreira do rio São Francisco Autor: Zanoni Neves Nº. de páginas: 289 Coleção: Reconquista do Brasil, nº 237 Editora Itatiaia (Belo Horizonte)

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O ESTIGMA DOS REMEIROS DO SÃO FRANCISCO*

FAPESP - Fundação de Amparo à pesquisa do Estado de São Paulo - Divulgação científica

Agência FAPESP – “Miguel Faiscô é remeiro. Remeiro do São Francisco não é gente. Não pode ser gente. Tem os pés redondos e frios como pacomão. Pés-de-mandioca-puba. Miguel sabe que é assim. Sabe. Por isso, sente-se, quando vestido de calção nu da cintura para cima, deslocado do mundo de outros homens”. O trecho do conto A Araponga, de Accioly Lopes, é um dos escolhidos pelo cientista social Zanoni Neves para compor o artigo “Os remeiros do São Francisco na Literatura”, publicado na mais recente edição da Revista de Antropologia (Departamento de Antropologia / USP).

A partir de sua imersão na cultura do sertão mineiro e nordestino – Neves é coordenador do Centro de Estudos da Cultura Mineira em Belo Horizonte – conseguiu identificar como os remeiros das barcaças do São Francisco eram estigmatizados pela sociedade da época.

O comércio ao longo do “Velho Chico” pulsou por dezenas de décadas. Entre cerca de 1720 e 1940, o trabalho dos remeiros foi procurado pelos barqueiros, pessoas de posse que eram donas dos barcos usados nos dois sentidos do rio. Como no período ocorreu a abolição da escravidão, é fácil perceber, pelos relatos colhidos na literatura regional da época, que a tarefa de enfrentar as águas era feita por negros e mestiços.

---------------------------- * Publicado em 05 de janeiro de 2004 pela FAPESP: http://www.agencia.fapesp.br/materia/1155/divulgacao-cientifica/o-estigma-dos-remeiros... O artigo de Neves está disponível na biblioteca on-line SciELO.

A marca não era apenas social. Uma vez remeiro, seria impossível

deixar de apresentar no peito ou nas mãos as cicatrizes da labuta. O calo

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feito no peito pela vara era chamado de “medalha” pelas populações ribeirinhas do Médio São Francisco. Autores que cruzaram os sertões da Bahia e Minas Gerais, na região do rio que hoje fica entre Januária (MG) e Juazeiro (BA), também conseguiram registrar outro traço social dos remeiros: a grande disposição para a violência física. Em qualquer cidade, onde que quer que existisse uma briga, possivelmente a peixeira de um remeiro teria sido a causadora da morte.

Segundo Neves escreve em seu artigo – e ele ratifica que não pretende justificar a violência dos remadores – o comportamento hostil dos trabalhadores dos barcos do São Francisco era o mesmo que a sociedade dava a eles. Conforme as pesquisas do cientista social, que inclusive já publicou um livro sobre o assunto, até mesmo as prostitutas eram encaradas pela sociedade da época como “superiores” na pirâmide social.

Apesar do estigma, é impossível, segundo o artigo, não considerar os remadores das barcaças como pessoas que colaboraram, e muito, para a integração regional das cidades que margeavam o Velho Chico. Eram esses “moços de barca”, como eles mesmos preferiam ser chamados, que levavam sal, açúcar, couro de boi e vários outros itens de primeira necessidade para, principalmente, o interior da Bahia e de Minas Gerais. Não existia outra forma de unir o Médio São Francisco naquela época. A ferrovia chegaria à região apenas na primeira metade do século 20.

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RESENHA

NEVES, Zanoni Eustáquio Roque - Navegantes da Integração: os remeiros do rio São Francisco. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 1998, Coleção Humanitas, 296 páginas.

UNICENTRO NEWTON PAIVA - Coordenação de Pós-Graduação & Pesquisa *

Dizem que os folcloristas são movidos a paixão, alguns querem que seja a paixão romântica, mas como deter o segredo de aliar esse sentimento execrado pelos princípios acadêmicos, produzindo uma obra com o necessário distanciamento e, ao mesmo tempo, marcada de sentimento poético e por uma saudável indignação? Essa é a obra do antropólogo Zanoni Neves que, como bem caracteriza o Professor Pierre Sanchis, mais que filho da terra, o é “dessas águas” do São Francisco. Para realizá-la, Zanoni se dirigiu à cidade de Campinas em São Paulo e se submeteu ao longo percurso do mestrado em Antropologia Social na UNICAMP, refinando, ali, o olhar antropológico para dialogar com o público acadêmico. Transformada em livro, o trabalho é dividido em cinco partes: a primeira, intitulada “A história da navegação”, busca familiarizar o leitor com a região, o rio e seus moradores; a segunda, “Os trabalhadores da região”, é dedicada à descrição da vida econômica e as relações que ela enseja, colocando no centro “os trabalhadores do rio”, descrevendo-se também o campesinato, os trabalhadores em transporte terrestre e outras categorias de trabalhadores, com atenção para as relações sociais e técnicas do trabalho nas barcas; “Remeiro na areia...” é --------------------------- * Texto publicado no informativo A MONOGRAFIA nº 7, de maio de 1998, da Coordenação de Pós-Graduação & Pesquisa do UNICENTRO NEWTON PAIVA em Belo Horizonte. o título da terceira parte que cuida de examinar as características e contatos dos trabalhadores com as populações ribeirinhas. Aqui e nas

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partes seguintes, o autor amplia o foco e mostra em detalhes as diferenças que marcam a condição de trabalhador que vive do rio; na quarta parte, “História de vida”, o autor desenvolve um amplo relatório com base nesse recurso tão proveitoso para destacar o particular e o singular, sem perder de vista o contexto onde se situam; a última parte revela a contribuição do folclorista para a Antropologia. Nela, são apresentadas as crenças, religião, mitos e o símbolo maior de identificação com o rio: a figura de proa das barcas. A importância atribuída pelo autor ao seu trabalho é declarada já na apresentação do livro: “Conhecer a saga dos remeiros certamente nos ajudará a conhecer um pouco mais o Brasil.” Essa é muito mais uma apresentação de um princípio de folclorista do que de antropólogo, e Zanoni faz tão bem isso quanto o uso dos instrumentos construídos no interior da produção antropológica, que é o objetivo mencionado na conclusão: “resgatar para a História e para a Antropologia Social a importância do trabalho dos moços (remeiros) no âmbito da cultura regional.”

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Zanoni Neves. Pirapora em tempos idos – poesia, artigos e ensaios. 2ª. edição, Belo Horizonte: Núcleo de Estudos do Vale do São Francisco, 2012.

Comissão Mineira de Folclore *

Os alunos que cursaram pós-graduação “lato sensu” no ano de 2000 se deliciaram com a primeira edição desta obra de Zanoni, contudo não suspeitavam que a segunda edição publicada após dez anos receberia maiores cuidados para alegria do leitor. Zanoni é antropólogo, poeta e folclorista. Talvez, a ordem não seja esta. Poeta, folclorista e antropólogo, fica melhor. Ou folclorista, poeta e antropólogo. Como antropólogo, publicou Navegantes da integração (Editora UFMG, 1998), relatório de dissertação de mestrado defendida na UNICAMP. Naquela oportunidade, comentamos que a obra não teria aquele sabor se o autor não fosse também folclorista. O folclorista precede, portanto, ou é irmão gêmeo do poeta, antes das elaborações do antropólogo. Zanoni é filho do São Francisco. É barranqueiro. Este senso de pertencimento ao rio precede as elaborações acadêmicas. Como tal, os recursos de comunicação assumem o de relatos e de expressões poéticas. Antes de qualquer elaboração para sensibilizar as associações especializadas nisso ou naquilo. A segunda edição de Pirapora em tempos idos se apresenta bastante ampliada e merece nova leitura. -------------------- * Publicado no jornal CARRANCA, órgão informativo da CMFL – Comissão Mineira de Folclore, maio/junho de 2012.

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CARRANCAS CONTAM A HISTÓRIA DOS RIBEIRINHOS DO VELHO CHICO *

Jornal MARCO – PUC-MG

A aluna Juliana Cristina da Silva, do 3° período do curso Comunicação Integrada da PUC Minas São Gabriel, foi a terceira colocada no concurso “Comunicador do Futuro” com a matéria publicada abaixo. O concurso, promovido pelo Governo de Minas, foi realizado no final do semestre passado. Juliana foi premiada com R$ 2 mil reais, além de garantir sua participação em uma expedição pelo Rio São Francisco e um diploma. Segundo a aluna, o tema da matéria foi proposto pela organização do Concurso, mas ela teve a liberdade para dar ênfase à cultura e a aspectos ambientais daquela região. Curupan, Salaô, Jerome, Muturãn e Muanê são algumas das carrancas do Rio São Francisco, esculpidas por Francisco Guarany, considerado o mais importante carranqueiro do Vale do Rio São Francisco, falecido em 1985. As carrancas ficavam nas proas das barcas, embarcações onde trabalhavam os remeiros. Eles acreditavam que elas protegiam as embarcações contra os maus presságios e seres mitológicos. Com a substituição das barcas pelos navios a vapor, as figuras esculpidas com traços de animais e humanos, características peculiares das carrancas de Pirapora, passaram a ser utilizadas somente como objetos de decoração de casas e escritórios. A navegação no São Francisco sofreu rigorosa redução devido à implantação do transporte rodoviário, à construção das usinas hidrelétricas que reduziram consideravelmente o volume de água, além do assoreamento, que arruinou muitos trechos do rio, extinguindo assim a profissão dos remeiros. -------------------- * Texto publicado no Jornal MARCO, do Laboratório do curso de jornalismo da PUC Minas, seção Cidadania – Cultura, em Setembro de 2008, p. 12. ADAPTAÇÃO De acordo com o antropólogo Zanoni Eustáquio Roque Neves, natural de Pirapora, região do Médio São Francisco, a cultura é

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dinâmica e os ribeirinhos adaptaram-se às transformações culturais ao longo do tempo, criando condições para sobreviver. “Novas tecnologias, novas formas de organização social, favorecem a adaptação e a transformação da realidade sociocultural”, completa Neves. O piraporense realizou diversas pesquisas sobre a região são-franciscana e revela que ama a terra natal, mas que esse fato não interfere nas pesquisas que realiza sobre Pirapora e região. “É necessário certo cuidado para que as relações afetivas não interfiram nos estudos, que devem ser conduzidos com o máximo de objetividade”, argumenta o pesquisador.

Zanoni relata que, para efetivar suas pesquisas sobre o trabalho dos remeiros, contou muito com a memória deles, que na época já exerciam outras profissões. “A metodologia de pesquisa em Ciências Sociais fornece ao pesquisador um instrumental que lhe permite superar alguns obstáculos como, por exemplo, o etnocentrismo, a idealização do passado, etc., muito presentes no discurso dos informantes. É evidente que a objetividade plena e total é difícil de ser alcançada, mas fazemos um esforço para produzir um conhecimento imparcial”, explica Neves.

MEMÓRIA O antropólogo discorre sobre a importância da preservação da memória social para a Ciência da História e para a Antropologia Histórica, para que as novas gerações conheçam o que foi realizado no passado para evitar a repetição de males e equívocos. “Uma sociedade sem conhecimento sobre o seu passado fica limitada em termos de aprendizagem. Como evitar novos genocídios contra os índios do São Francisco e de outras regiões sem uma reflexão sobre o passado?”, exemplifica. Zanoni Neves já escreveu vários livros sobre a região são-franciscana, entre eles, Navegantes da Integração: os remeiros do Rio São Francisco (1998, Ed. UFMG), Na carreira do Rio São Francisco (2006, Ed. Itatiaia), além de escrever artigos para jornais e revistas científicas. Atualmente está organizando o Núcleo de Estudos do Vale do São Francisco que terá um espaço para exposição, com acervo de peças artesanais, sala para palestras e outras atividades, com inauguração prevista para 2009. Segundo o antropólogo, para conter as consequências maléficas do progresso, é preciso que haja vontade política dos governantes e que esta só existirá quando a sociedade civil se organizar. “Os meios de comunicação e, sobretudo, o sistema educacional deverão ser sensibilizados para a educação ambiental. Certamente, as novas gerações de ribeirinhos estão tendo informações sobre os ecossistemas são-

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franciscanos que minha geração não teve. Assim, acredito, mudanças substanciais estão em gestação”, conclui.

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O RIO DA UNIDADE NACIONAL *

Fernanda Lamego** Em 1817, dois naturalistas alemães, o zoólogo Johann Spix e o botânico Philip von Martius, descreveram as lagoas marginais do rio São Francisco como um “maravilhoso espetáculo de um renovado quadro da criação do mundo”, ao avistarem, numa delas, mais de dez mil aves reunidas. Hoje, essas lagoas não existem mais. O Velho Chico nasce na serra da canastra, em Minas Gerais, atravessa o Norte de Minas e todo o sertão da Bahia, banha Pernambuco e deságua entre Alagoas e Sergipe. Seus 3.160 quilômetros de extensão, dos quais 1.320 são navegáveis, no trecho que vai de Pirapora (MG) a Juazeiro (BA), contribuíram para a unidade geopolítica e social do Brasil, sendo, por isso, considerado “ o rio da unidade nacional”. “Cerne da nacionalidade”, na definição de Euclides da Cunha, ou “grande caminho da civilização brasileira”, como chamou o historiador João Ribeiro, o São Francisco encontra-se, hoje, profundamente descaracterizado. Seus mais de 200 anos de navegação foram objeto de uma tese defendida recentemente na Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP pelo cientista social Zanoni Neves. Filho de um comandante de barco a vapor da região, Zanoni não só realiza um trabalho de pesquisa, baseado em depoimentos de antigos navegantes, mas também procura chamar a atenção para os problemas ambientais do rio, relacionados à história de sua navegação. ------------------ * Artigo publicado na revista ECOLOGIA E DESENVOLVIMENTO, ano 2, nº. 20, outubro de 1992. ** Jornalista e ambientalista.

Desde o século XVIII, o transporte de mercadorias era feito pelas “barcas de figura”, embarcações que tinham na proa estátuas de madeira que as identificavam, as assustadoras carrancas. Eram movidas pela força dos remeiros, homens que apoiavam uma vara de dez metros

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no peito – coberto de calos – e no leito do rio, transportando cargas de até 60 toneladas. Contratados pelos barqueiros para “viagens redondas” (de ida e volta) de até dois mil quilômetros, os remeiros desciam o rio cantando versos satíricos sobre as cidades ribeirinhas e dando nomes aos acidentes fluviais que encontravam. Com a introdução de vapores, esse tipo de embarcação perdeu importância, vindo a desaparecer por completo nos anos 1950. Em 1871 apareceram os primeiros barcos movidos a lenha e apelidados de “gaiolas”. Os vapores navegaram regularmente até a década de 1970, consumindo madeira de toda a área ribeirinha, removida e armazenada em “portos de lenha” ao longo do rio. Hoje, resta apenas um vapor, o Benjamim Guimarães, sendo o transporte feito por empurradores de chatas, movidos a diesel. A exploração de madeira continuou através das carvoeiras, que produzem carvão para a siderurgia. Zanoni denuncia o reflorestamento feito com eucalipto, extremamente prejudicial à região, que já é seca. Com o desaparecimento da vegetação original de cerrado, caatinga e matas de palmeiras, foi-se embora também a fauna: anta, veado, caititu, onça, tatu, lontra, aves. A pesca predatória incluía o método de envenenamento dos peixes, a “tinguijada” e até mesmo o uso de dinamite nas lagoas marginais até a década de 1960. Ainda hoje, apesar da proibição, permanecem algumas práticas criminosas: é feita a pesca na piracema e utiliza-se a “malha miúda”.

Por fim, as lagoas dos ecossistemas são-franciscanos, que se formavam às margens do rio depois da cheia, famosas por sua impressionante piscosidade, acabaram sendo destruídas com a construção das barragens e usinas hidrelétricas. Some-se a esse quadro o crescente assoreamento do rio, que causará problemas à navegação caso não seja evitado. Zanoni acusa as autoridades de não investirem em serviços de dragagem, que poderiam minimizar o problema. As populações ribeirinhas também encaminham suas reivindicações. Os pescadores da Diocese de Juazeiro, por exemplo, pedem ao governo a construção de uma “escada de peixes”, para facilitar a piracema acima da barragem. Eles, mais do que todos, precisam do rio para viver. SERVIÇO: Autor: Zanoni Neves Título: Os remeiros do Rio São Francisco – Trabalho e posição social

(Dissertação de Mestrado) Instituição: Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, 1991.

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CARTA Amigo Zanoni,

Escrevo para agradecer e tecer alguns comentários sobre o seu livro Pirapora em Tempos idos, que gentilmente me foi enviado por recomendação do nosso amigo comum, Paulo Gonçalves Pereira.

Como o Paulo, gostei muito do conteúdo. Seu poema de amor à Pirapora é lindo, e a sequência, mais

adiante, um documento importante para a história da cidade. A homenagem ao professor Francisco Iglésias, muito bem feita e

merecida. Depois, a magnífica viagem da “Barca Aurora” partindo de Pirapora mostra a importância do trabalho desenvolvido pelos “remeiros”, e vai, no remanso do Velho Chico, mostrando personagens das barrancas do rio e muito do folclore da região. Inclusive citando o Antonio Dó, romanceado no excelente Serrano de Pilão Arcado por Petrônio Braz. E outros personagens reais da Vila Risonha (São Romão) descritos pelo amigo Paulo G. Pereira.

Você não se esqueceu dos primitivos moradores índios, dos coronéis mandões (cheguei temer pela vida do moço de bombordo – seu alter ego? - por discordar do coronel). O cego cantador e o beato são também figuras que não poderiam faltar. Entendi que seu livro é também um belo ensaio sobre o São Francisco, tão amado por muitos e tão judiado por outros. Bom de ser lido ouvindo a música Sobradinho de Zé Rodrix com Sá & Guarabira (gosto meu!).

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Bem, Zanoni, desculpe ter demorado em responder sua mensagem. Coisa de aposentado que ainda rabisca algumas lembranças além de ter que curtir uma trinca de netos.

Estou lhe enviando o meu Caixa Grande para apreciação.

Adriles Ulhoa Filho ----------------- Natural de Paracatu (MG), Adriles Ulhoa Filho é memorialista, poeta, autor dos livros CAIXA GRANDE (edição da Academia de Letras do Noroeste de Minas, 2004) e REPÚBLICA ALVORADA (2012).

CARTA

Pirapora, 12 de setembro de 2012.

Caro Amigo Zanoni, Saúde e paz. Em primeiro lugar, reporto à nossa conversa por telefone e renovo meus sinceros agradecimentos pela oferta do exemplar de Pirapora em Tempos Idos, que na 2a edição, conforme suas palavras, “junta-se ao povo de Pirapora nas comemorações do seu centenário”. Sem dúvida, valiosa lembrança. As homenagens ao professor Francisco Iglésias e ao poeta Inácio Quinaud são mais que merecidas. Quanto ao professor Iglésias , tivemos a honra, Domingos Diniz e eu, no final da década de 1960, de formular a ele um convite, que foi aceito, para vir fazer, pela primeira vez, uma palestra em Pirapora e, principalmente, para conhecer sua terra, pois saíra daqui em tenra idade. Presenciamos a emoção do convidado que fotografou casinhas antigas da Rua Sete de Setembro – lugar em que nasceu – seu encantamento, sua alegria por estar aqui nas barrancas do rio. Um homem ilustre, culto, simples. Um ser humano de excelentes qualidades. Sobre Inácio Quinaud, é até desnecessário dizer mais algumas coisas, pois a sua lembrança é marcante em nosso meio, mesmo já

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decorridos tantos anos de seu falecimento. Tudo nele demonstrava seu idealismo, sua inspiração, sua preocupação destacada pela vida das pessoas. Tudo isto extravasado nos seus grandes dotes de oratória e em sua sensibilidade mostrada nas páginas de Oscilações. Em razão de sua convivência e amizade com meu pai Francisco Mota – seu colega de escritório na CIVP –, tive muitas oportunidades de estar com ele, especialmente nas férias de fim de ano no Independentes Clube, que era por ele frequentado com assiduidade. Por muitos motivos, foi para mim um prazer lhe ter emprestado, para subsídio, através da Dra. Letícia, o exemplar original do livro com dedicatória a meu pai, datada de 1947. Pirapora em Tempos Idos, como era de se esperar do autor, satisfaz a todos, particularmente a nós piraporenses, em razão de sua competência nas diversas abordagens do tema e da seriedade de suas pesquisas. O livro contém poesia de muito boa qualidade, fala sobre empresas, vapores, crenças, folclore e outros aspectos, e nos lembra, em especial, a vida sofrida dos barqueiros e vapozeiros – primeiros batalhadores da navegação no rio São Francisco. Registros importantes para a memória histórica da região. Mais uma vez, parabéns. Abraços do amigo,

Ivan Mota. ------------------------------- Residente em Pirapora, Ivan Passos Bandeira da Mota é advogado e historiador, autor dos livros PIRAPORA: UM PORTO NA HISTÓRIA DE MINAS (2000) e PIRAPORA, 100 ANOS DE HISTÓRIA – 1912-2012 (2012).

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