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DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. 1995-1997. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34. 715 pp. Ovídio Abreu Filho Prof. de Antropologia, UFF Em 1997, publicado seu quinto volume, concluía-se a edição brasileira de Mil Platôs, de Gilles Deleuze e Félix Gua- ttari, que se iniciara em 1995. O inter- valo entre a edição original dessa obra, que é de 1980, e a de sua tradução com- pleta para o português não deixa de re- velar as dificuldades na recepção desse livro que faz avançar o trabalho de cria- ção de uma nova imagem do pensa- mento e que questiona os pressupostos dominantes na filosofia e nas ciências humanas: a crença em uma tendência natural do pensamento para a verdade, o modelo do reconhecimento e a pre- tensão de um fundamento. Mil Platôs, que compartilha com O Anti-Édipo o subtítulo Capitalismo e Es- quizofrenia, não é uma continuação li- near das teses propostas no livro de 1972: de um volume a outro há mudan- ça de tom e avanços da criação. Mesmo que pudéssemos imaginar que o Anti- Édipo tivesse como subtítulo “pela filo- sofia”, nele a construção ético-filosófica se fez através de uma crítica. Mil Platôs, ao contrário, é um livro fundamental- mente positivo: não estamos mais dian- te de uma crítica do Édipo, e sim da construção do conceito de multiplicida- de, para além da oposição do Um e do Múltiplo, e dos dualismos da consciên- cia e do inconsciente, da natureza e da história, do corpo e da alma. A teoria da multiplicidade efetua uma interpretação do real que conjuga uma construção ontológica e uma leitu- ra do mundo e da sociedade que sur- preende com uma nova distribuição dos seres e das coisas: não admite unidade natural, uma vez que não se apóia em nenhuma necessidade e não visa a ne- nhum prazer; não reconhece a falta, uma vez que não se constitui em refe- rência a uma unidade ausente (recu- sando, pois, a noção de desejo como fal- ta); e não aceita nenhuma transcendên- cia – seja na origem, como idéia ou mo- delo, seja no destino, como sentido his- toricamente desenvolvido. A perspecti- va da imanência e o conceito de multi- plicidade fazem do pensamento uma atividade ética – sem modelos e finali- dades transcendentes – avessa a qual- quer conforto moral ou orientação his- tórica. Mil Platôs é composto de quinze “platôs”, conceito que, tomado de em- préstimo a Bateson, designa uma esta- bilização intensiva e, no caso, uma mul- tiplicidade conceitual. Pois os concei- tos, para Deleuze e Guattari, devem de- terminar não o que é uma coisa, sua es- sência, mas suas circunstâncias. Expli- ca-se, assim, que cada platô possua um RESENHAS MANA 4(2):143-167, 1998

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DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix.1995-1997. Mil Platôs. Capitalismo eEsquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora34. 715 pp.

Ovídio Abreu FilhoProf. de Antropologia, UFF

Em 1997, publicado seu quinto volume,concluía-se a edição brasileira de MilPlatôs, de Gilles Deleuze e Félix Gua-ttari, que se iniciara em 1995. O inter-valo entre a edição original dessa obra,que é de 1980, e a de sua tradução com-pleta para o português não deixa de re-velar as dificuldades na recepção desselivro que faz avançar o trabalho de cria-ção de uma nova imagem do pensa-mento e que questiona os pressupostosdominantes na filosofia e nas ciênciashumanas: a crença em uma tendêncianatural do pensamento para a verdade,o modelo do reconhecimento e a pre-tensão de um fundamento.

Mil Platôs, que compartilha com OAnti-Édipo o subtítulo Capitalismo e Es-quizofrenia, não é uma continuação li-near das teses propostas no livro de1972: de um volume a outro há mudan-ça de tom e avanços da criação. Mesmoque pudéssemos imaginar que o Anti-Édipo tivesse como subtítulo “pela filo-sofia”, nele a construção ético-filosóficase fez através de uma crítica. Mil Platôs,ao contrário, é um livro fundamental-mente positivo: não estamos mais dian-

te de uma crítica do Édipo, e sim daconstrução do conceito de multiplicida-de, para além da oposição do Um e doMúltiplo, e dos dualismos da consciên-cia e do inconsciente, da natureza e dahistória, do corpo e da alma.

A teoria da multiplicidade efetuauma interpretação do real que conjugauma construção ontológica e uma leitu-ra do mundo e da sociedade que sur-preende com uma nova distribuição dosseres e das coisas: não admite unidadenatural, uma vez que não se apóia emnenhuma necessidade e não visa a ne-nhum prazer; não reconhece a falta,uma vez que não se constitui em refe-rência a uma unidade ausente (recu-sando, pois, a noção de desejo como fal-ta); e não aceita nenhuma transcendên-cia – seja na origem, como idéia ou mo-delo, seja no destino, como sentido his-toricamente desenvolvido. A perspecti-va da imanência e o conceito de multi-plicidade fazem do pensamento umaatividade ética – sem modelos e finali-dades transcendentes – avessa a qual-quer conforto moral ou orientação his-tórica.

Mil Platôs é composto de quinze“platôs”, conceito que, tomado de em-préstimo a Bateson, designa uma esta-bilização intensiva e, no caso, uma mul-tiplicidade conceitual. Pois os concei-tos, para Deleuze e Guattari, devem de-terminar não o que é uma coisa, sua es-sência, mas suas circunstâncias. Expli-ca-se, assim, que cada platô possua um

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MANA 4(2):143-167, 1998

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título relacionado a uma data. Os títulosenunciam um campo de problemas e asdatas indicam que se pretende determi-nar a potência e os modos de individua-ção de um acontecimento. Cada platôrealiza um mapeamento, cujos movi-mentos descrevem um mesmo percur-so: parte-se do interior de um ou maisestratos e de seus dualismos na direçãode suas condições de possibilidade, das“máquinas abstratas” que os efetuam eos determinam como atualizações; si-multaneamente, os estratos são associa-dos aos agenciamentos de poder quelhes são anexos e primeiros; por fim,em um outro giro, o pensamento con-torna as máquinas abstratas e as reme-te a um plano de consistência a que seacede por desestratificação: revela-seassim, nesse percurso, a heterogenei-dade, a coexistência, as imbricações ea importância relativa das diferenteslinhas que compõem uma multiplicida-de. E ainda que a edição brasileira te-nha subdividido o original em cinco vo-lumes, percebe-se que os editores bus-caram recortar o livro de acordo comuma certa unidade de problemas.

O primeiro volume contém, além doprefácio à edição italiana (onde os auto-res avaliam a novidade e a recepção dolivro), uma apresentação da ontologiadas multiplicidades. Na Introdução: Ri-zoma, recusa-se a idéia do pensamentocomo representação, sua submissão àlei da reflexão e da unificação, e apre-senta-se Mil Platôs como livro-rizomaque, abolindo a tripartição entre o mun-do, como campo de realidade a repro-duzir, a linguagem, como instância re-presentativa, e o sujeito, como estruturaenunciativa, é capaz de conectar-secom as multiplicidades. A escrita rizo-mática, que se define pela operação desubtração dos pontos de unificação dopensamento e do real, realiza um ma-peamento e uma experimentação no

real que contribui para o desbloqueiodo movimento e para uma abertura má-xima das multiplicidades sobre um pla-no de consistência. O platô seguinte,1914. Um ou Vários Lobos?, consiste emuma crítica da psicanálise que aprofun-da as reflexões iniciais sobre o conceitode multiplicidade. O terceiro platô,10.000 a.C. A Geologia da Moral (Quema Terra Pensa que É?), apresenta a on-tologia como geologia das multiplicida-des, constituídas por movimentos de es-tratificação e desestratificação que seconjugam com movimentos de territo-rialização e desterritorialização traça-dos por máquinas abstratas que operamsobre diversos planos de consistência.

O segundo volume contém doisplatôs fundamentais: 20 de Novembro1923. Postulados da Lingüística e 587a.C. Sobre Alguns Regimes de Signos.Evitando pressupor qualquer relaçãode representação e de causalidade –material ou simbólica – entre os siste-mas de signos e os sistemas maquínicosdos corpos, Deleuze e Guattari dissol-vem os postulados de base do estrutu-ralismo e da teoria marxista da ideolo-gia. Atacam os pressupostos da semio-logia, questionando o primado da co-municação e sustentando ser a “pala-vra de ordem” a função primeira dalinguagem. Criticam a distinção lan-gue/parole e destronam a indepen-dência e autonomia da langue com osconceitos de agenciamento coletivo deenunciação e regimes de signos; nãoadmitem uma semiologia geral, negan-do qualquer privilégio de um regime designos sobre os outros.

O terceiro volume congrega platôsessenciais para a compreensão da mi-cropolítica e da esquizoanálise. 28 deNovembro de 1947. Como Criar para Sium Corpo sem Órgãos retoma e desen-volve o conceito de “corpo sem órgãos”proposto em O Anti-Édipo, conceito que

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permite pensar o desejo como processoque produz o campo de imanência deseus agenciamentos e não na depen-dência da idéia do corpo como origemdas necessidades e lugar dos prazeres.Criar, selecionar e articular os corpossem órgãos plenos, eis o programa daesquizoanálise. O platô Ano Zero. Rosti-dade faz o mapa de uma semiótica mis-ta, que combina significância e subjeti-vação, encarados como procedimentosde comparação e apropriação que asse-guram uma política de inclusão diferen-cial que ignora a alteridade e que defi-ne, segundo os autores, o racismo euro-peu. Os platôs 1874. Três Novelas ou “Oque se Passou?” e 1933. Micropolítica eSegmentaridade, ensinam que o real éfeito de linhas, isto é, de movimentosheterogêneos que operam segmenta-ções (binárias, circulares e lineares), du-ras ou flexíveis, constituindo dimensõesmolares ou moleculares, e fugas criado-ras, tudo em perpétua coexistência e in-terpenetração. A diferença de naturezados planos molares e moleculares – queremetem a sistemas de referência dis-tintos, linhas sobrecodificadas de seg-mentos e fluxos mutantes – não impe-de, pelo contrário, sua pressuposiçãorecíproca. Os autores propõem uma vi-são original sobre o que denominamcentros de poder, definidos por suasoperações de conversão dos fluxos mo-leculares em segmentos molares, e so-bre o Estado, pensado como agencia-mento de reterritorialização ou movi-mento de sobrecodificação que organi-za a ressonância dos centros de poder.

O quarto volume reúne dois platôs(1730. Devir-Intenso, Devir-Animal, De-vir-Imperceptível e 1837. Acerca do Ri-tornelo) dedicados a contornar a visãomimética da natureza, que se sustentaem uma ontologia onde o ser se diz demodo análogo segundo suas distribui-ções categoriais. Contrapõem a univo-

cidade à equivocidade e analogia doser, afirmando-o como potência de dife-renciação irredutível às idéias de mo-delo e de imitação. Como pensar, então,os entes concretos e suas relações? Osautores respondem que os entes são di-ferenças e suas relações devires, afetosou modificações, que devem ser pensa-dos independentemente das idéias deforma, função, espécie e gênero. O con-ceito de devir acompanha o abandonodas concepções substancialistas e daperspectiva “hilemorfista” da indivi-duação (simples encontro de forma ematéria), para pensar os corpos comosingularidades e seus devires como pro-cessos irredutíveis às sobrecodificaçõesdo organismo, do significante e do su-jeito. Nesse sentido, os devires são mo-leculares e minoritários; imperceptíveis(anorgânicos), indiscerníveis (assignifi-cantes) e impessoais (assubjetivos).Nesse universo de intensidades, o con-ceito de “ritornelo” enfrenta o proble-ma da consistência ou da consolidaçãode agenciamentos de heterogêneos,permitindo pensar a arte fora de qual-quer modelo mimético.

O quinto e último volume encontrasua unidade em uma filosofia políticaque postula um conjunto de teses críti-cas às concepções racionalista e liberal,bem como ao marxismo. Três dos platôsaí reunidos (1227. Tratado de Nomado-logia: A Máquina de Guerra; 7000 a.C.Aparelho de Captura; 1440. O Liso e oEstriado) deslocam a questão política dodireito e da liberdade civil para o pro-blema do domínio dos fluxos. Deleuze eGuattari afirmam, contra o racionalismoliberal, que o direito é impotente paracontrolar o Estado, uma vez que lhe éinterior e representa uma forma especí-fica de violência; contra o marxismo,questionam a dialética (a idéia de queuma sociedade se define por um modode produção e por suas contradições), o

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evolucionismo e toda idéia de progres-so histórico. O problema político é reco-locado a partir da distinção entre doisgrandes tipos de agenciamentos, quediferem em natureza mas que se pres-supõem e que são coextensivos a toda ahistória humana: a máquina de guerrae o aparelho de Estado. A criação des-ses conceitos, a análise de suas trans-formações e de suas relações, e a distin-ção de duas modalidades de temporali-zação e de espacialização configuramnovas direções para a compreensão dassociedades: não defini-las por suas con-tradições, mas por suas linhas de fuga;considerar não as classes e sim as mino-rias como potências revolucionárias;definir as máquinas de guerra não pelaguerra, mas, antes, por um certo modode ocupar e de inventar novos blocosespaço-temporais.

Finalmente, a Conclusão: RegrasConcretas e Máquinas Abstratas reto-ma, na forma de um léxico, os princi-pais conceitos desse livro, cuja atuali-dade está, não apenas no rigor de suasanálises, mas, sobretudo, na sua potên-cia de resistência às forças que buscamlimitar o pensamento a uma reiteraçãodas exigências do mercado ou de su-postas necessidades históricas. Nessesentido, Mil Platôs procura instigar – aomesmo tempo que neles se apóia – mo-vimentos que tentam escapar do con-trole dos axiomas capitalistas e das “ne-cessidades” postuladas pela modernateleologia liberal, bem como do niilismoque, ao contrário do que se gosta deimaginar, é imanente aos ideais de“progresso” embutidos nesses axiomase nessa teleologia.

FERREIRA, Elizabeth F. Xavier. 1996.Mulheres, Militância e Memória. Riode Janeiro: Fundação Getulio VargasEditora. 216 pp.

Carla Costa TeixeiraProfa. de Antropologia, UnB

O livro de Elizabeth F. Xavier Ferreiraapresenta, já em suas primeiras pági-nas, o projeto teórico e etnográfico emque a autora se engaja: a construçãoda memória social dos anos da ditadu-ra militar através das recordações deex-presas políticas, ou seja, de mulhe-res que vivenciaram o cárcere e a tor-tura nesse período. O título Mulheres,Militância e Memória quase consegueesconder, para um leitor desavisado,a complexidade singular que tal em-preendimento assume no texto, poisnão se trata de registrar versões de umconturbado período histórico – emboraeste objetivo esteja contemplado notrabalho –, e tampouco de averiguar oestatuto de verdade ou credibilidadedos relatos – questão considerada, massomente na medida em que constituiuma preocupação das próprias mulhe-res. A ambição é de outra natureza, enas palavras de Elizabeth Ferreira:“mais do que a busca de uma verdade(mesmo sendo esta sempre problemá-tica, por ser relativa), deve-se buscarum sentido para a pluralidade de ver-dades que brotam dos relatos” (:105).Seu desafio específico, portanto, é tra-duzir e recompor trajetórias indivi-duais em uma trajetória coletiva, atra-vés da “descoberta” de valores de re-ferência comuns aos discursos, ou seja,de núcleos de sentido.

A narrativa flui, alinhavando ostestemunhos em uma história de vidapartilhada em três grandes marcos:“A idade da inocência”; “A idade do

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perigo”; “A idade da razão”. A cadaum deles corresponde um momentocrucial da trajetória política das trezemulheres entrevistadas, respectiva-mente, a entrada no movimento políti-co; a clandestinidade, a tortura e a pri-são; e a volta à posição legal na socie-dade. A delicadeza do arranjo final ca-tiva o leitor, que se descobre transitan-do em meio a múltiplos níveis de reali-dade sem que, em nenhum momento,o fio condutor do texto perca densida-de. Esse é um dos grandes méritos deElizabeth Ferreira: a história coletivatorna-se viva nas recordações de seusagentes sem que estes sejam destituí-dos de suas singularidades; simulta-neamente, a identidade de grupo en-globa e dá significado às afinidades eidiossincrasias de seus membros en-quanto individualidades – valor centralno contexto histórico em que essas mu-lheres fizeram suas escolhas político-ideológica e existencial. Afinal, “asparticipantes dos ideais revolucioná-rios encontram-se numa mesma estru-tura que nivela as diferenças indivi-duais” (:104), sendo a adesão ao proje-to coletivo da “esquerda”, em si mes-ma, elemento essencial desse domínioabrangente. Esse engajamento e, nosalerta a autora, a própria disposiçãopara rememorá-lo e verbalizá-lo emsuas conseqüências, fazem parte deum processo em que projetos e esco-lhas pessoais são feitos nos limites deum certo contexto. Se o clima políticoda época incitava à participação, res-salta, “não é suficiente para explicar aadesão de determinados indivíduos àluta contra o regime, pois não explica-ria o recuo ou a indiferença de tantosoutros” (:85).

Assim, Catarina, Joana, Bethânia,Angélica, Milena, Vitória, Gilda, Dal-va... vão contando suas histórias de vi-da e (re)elaborando ganchos significa-

tivos entre o presente e o passado, quesão articulados, pela autora, em feixesde relações e visões de mundo familia-res, de motivações subjetivas para oingresso nessa nova forma de vida, deposições ideológicas, de tipos de inser-ção na militância, de condutas e repre-sentações da experiência de prisão,tortura e clandestinidade. Em diversosmomentos de suas trajetórias, essasmulheres experimentaram formas si-milares de situação-limite, mas, cadauma a seu modo, pois a “qualidade daexperiência” e mesmo sua duração va-riaram nos diferentes relatos.

A clandestinidade foi narrada, porvárias ex-presas, como uma experiên-cia de solidão e vulnerabilidade ante asociedade maior e a própria organiza-ção. A partir dessas rememorações,Elizabeth Ferreira leva-nos a explorara ambigüidade que essa situação en-gendra, ao se constituir em um proces-so de redefinição global da identidadedas militantes. A clandestinidade nãorepresenta uma ruptura com o conjun-to da sociedade, caracteriza-se porcriar um contexto de isolamento relati-vo. Desse modo, exige a adoção de no-vos nomes e, mais do que isso, de ou-tras personalidades, com distintas ca-racterísticas pessoais e profissionais,redes de relações sociais e estórias devida. Todos os laços anteriores têm deser cortados – e, como disse uma dasentrevistadas, até o sotaque há que serdisfarçado – sem que, contudo, novasrelações possam ser assumidas por re-presentarem riscos individuais e paraa organização. Dessa perspectiva, aclandestinidade consiste em uma expe-riência liminar (tema clássico da antro-pologia) que, na memória de algumas,ficou gravada como um sentimento de“extrema solidão”, sentimento que,para Joana, contaminou toda a sua vi-da a partir daqueles anos.

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A radicalidade da trajetória políti-ca que se iniciou para essas mulheresao assumirem a condição de clandesti-nas, se aguçaria e seria profundamenteexacerbada com a vivência da tortura.Impossível aqui deixar de evocar a es-trutura dos ritos de passagem, com suaseqüência de separação, margem eagregação, que se pode vislumbrar naproposta de ordenação das trajetóriaspolíticas apresentada pela autora a par-tir dos relatos ouvidos. Trata-se, po-rém, de uma atualização pervertidadas sucessivas passagens que, na teo-ria de Van Gennep, marcam a existên-cia social dos indivíduos. As “passa-gens” vividas por essas militantes seinserem em um contexto de acirradoconflito político, no qual a sucessão deetapas encontra sua razão de ser naquebra do consenso social. Como res-salta Elizabeth Ferreira, a prática datortura institucional no mundo moder-no significa uma completa inversãode seus valores: “Sem o valor pedagó-gico uma vez atribuído ao suplício empraça pública e sem o valor corretivoatribuído à pena por reclusão, a tortu-ra está sempre à margem dos princí-pios éticos e morais que ordenam oconvívio em sociedade. Sua existênciaé uma ameaça ao pacto social, sobretu-do quando é perpetrada por órgãos doEstado. Esta esfera, que deveria ser olocus da efetiva realização e garantiadesse pacto, torna-se, nesse caso, suaantítese, o centro privilegiado do arbí-trio” (:144).

Para o indivíduo torturado, essa ex-periência de dor dissocia e coloca emconflito corpo e mente, pois, nas pala-vras do psicanalista Hélio Pelegrino,trazidas pela autora, “o corpo torna-senosso inimigo e nos persegue” (:144).Quão distante estamos dos sofrimentoscorporais infligidos aos jovens nos ritosde iniciação nas sociedades tribais! Em

verdade, o que está em jogo nas tortu-ras políticas não é a construção de umnovo estatuto social, mas, sim, a incita-ção de uma fala através da busca do“ponto insuportável de sofrimento” decada ser humano, seja por meio da tor-tura física ou do desequilíbrio indivi-dual e coletivo produzido pela “ruptu-ra da noção tempo e a ausência de nor-mas que criem e regulem uma rotinade vida” (:150).

Sem dúvida, porém, a sobrevivên-cia a essa experiência redefiniu asidentidades individuais e permitiu aconquista de uma nova identidade co-letiva. Afinal, essa é uma propriedadedos contextos de profunda dor: gravarno corpo – social e do indivíduo – a me-mória indelével do vivido, que fica aexigir novos núcleos de sentido (pre-viamente elaborados ou não). De iní-cio, o novo estatuto veio com a entra-da oficial em órgãos do governo, as“desaparecidas” lograram tornar-sepresas políticas – identidade que, res-salta a autora, pela própria qualidadedo “crime” que a definia, era, em po-tencial, propiciadora de conversões fu-turas (em contraste com o crime “co-mum”). Assim, com o reconhecimentodo confinamento em instituições ofi-ciais, essas mulheres voltam a ter umaexistência legal e, com isso, iniciamsuas trajetórias de reintegração aoconjunto da sociedade. Dessa perspec-tiva, a prisão representou, para algu-mas, a “suspensão da vivência do ter-ror” e uma nova possibilidade de “cole-tivo”; para outras, o confinamento pro-longado trouxe a experiência de uma“rotina de vazios, de dias carregadosnas costas” e da difícil descoberta das“contradições e antagonismos entrecompanheiras de uma mesma causa”;contudo, para a grande maioria, a pri-são foi ambas as coisas em momentosdiferentes.

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Findo o encarceramento, a expe-riência de reinserção social dessas,agora, ex-presas políticas envolveu“cuidados especiais”, pois esse passa-do atuou inicialmente como uma “mar-ca”, um “estigma”, dificultando a re-construção de suas vidas. Desde então,por caminhos diversos e com ênfasesdiferentes, essas mulheres vêm bus-cando, sucessivamente, novos signifi-cados para essas experiências que, apartir do campo político, contamina-ram a totalidade de suas vidas.

A rememoração propiciada pela si-tuação de entrevista integra esse pro-cesso de ressignificação do passado,mas não só para as entrevistadas. Eli-zabeth Ferreira coloca-se como sujeitode um diálogo em que a escuta é tãoprodutora da memorização das ex-mi-litantes, quanto os seus testemunhos.Ancora-se, nesse empreendimento,nas idéias de Charles Peirce sobre acentralidade do terceiro elemento nalinguagem, ou seja, daquele termo quetorna possível a própria situação co-municativa. No plano das interaçõesface a face, a entrevistadora é o tercei-ro termo que permite a fala das ex-pre-sas políticas (sujeitos da fala) sobresuas trajetórias de militância (referen-te da fala) e, nessa mediação pragmá-tica, contribui para estabelecer umaconexão dinâmica entre passado e pre-sente no processo de construção damemória coletiva. Mas a função me-diadora do terceiro “peirciano” não seesgota no âmbito dos sujeitos envolvi-dos na situação dialógica, em verdadepode até dispensar sua existência em-pírica, pois o que está em jogo é a pró-pria função mediadora intrínseca aocontexto comunicativo, ou seja, o fatode que a comunicação requer, paraocorrer, um universo compartilhadoque garanta o sentido da palavra dita.No caso, o universo comum entre a au-

tora e suas entrevistadas revela-se noengajamento com a construção da me-mória social dos “anos de chumbo”,através de relatos de ex-presas políti-cas, isto é, de determinadas falas femi-ninas. Dessa perspectiva, a mediaçãosimbólica necessária entre entrevista-das e entrevistadora engendra-se naarticulação entre identidade política ede gênero, que se constitui em locusatribuidor de legitimidade à rememo-ração em processo. Nisso reside, a meuver, a força do gênero no texto: fio con-dutor dos testemunhos – tecido com acompetência teórica da autora na lite-ratura de gênero –, mas, principalmen-te, instituição social que preside a co-municação ao se apresentar como umespaço simbólico em que os sujeitos eminterlocução podem se reconhecer.

Nessa dimensão, a da identidadede gênero, a cunha da autora se fazmais presente, pois (ela própria nos in-forma), se é grande a consciência dasentrevistadas acerca da radicalidadede suas opções políticas e da importân-cia de suas conseqüências, o mesmonão se verifica com relação ao papel desuas experiências no que tange às re-lações entre gêneros à época. As arti-culações entre relação política e gêne-ro, entre as noções de poder e de assi-metria de papéis sociais nas históriasde vida dessas mulheres, estão sendofeitas por elas no presente e, como aleitura do livro nos sugere, graças nãoapenas ao “potencial de escuta” domomento atual – de que nos fala a au-tora –, mas, também, pela própria qua-lidade da escuta oferecida por Eliza-beth Ferreira.

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HERZFELD, Michael. 1997. Cultural In-timacy: Social Poetics in the Nation-State. New York/London: Routledge.226 pp.

Marcio GoldmanProf. de Antropologia Social,

PPGAS-MN-UFRJ

De origem britânica e vivendo hoje nosEstados Unidos, onde é professor naUniversidade de Harvard, MichaelHerzfeld vem, há 25 anos, pesquisandoe escrevendo sobre a Grécia moderna,trabalho que é, simultaneamente, umadas reflexões mais originais e produti-vas da antropologia contemporânea.Seu último livro reúne artigos escritosentre 1986 e 1995 – reelaborados para acoletânea –, bem como dois inéditosque abrem e fecham o volume.

A temática central do livro talvezpudesse ser localizada na retomada im-plícita de uma velha questão que sem-pre dividiu a antropologia anglo-saxô-nica. Como se sabe, são inúmeros osdebates opondo o privilégio concedidoàs relações sociais pela antropologia so-cial britânica, e o peso dos valores cul-turais enfatizado por boa parte da an-tropologia cultural norte-americana. Oproblema central de Herzfeld é justa-mente a investigação etnográfica domodo pelo qual os “valores” são agen-ciados na prática das “relações sociais”.Perspectiva que se opõe, por sua vez,àquela que, principalmente na Grã-Bretanha hoje, sustenta que o acesso doanalista à “sociedade” deve passar ne-cessariamente pelas concepções queseus membros dela fazem – espécie de“etno-sociologia” à qual Herzfeld pare-ce opor algo como uma “sociologia dacultura”. Vale a pena ainda observarque o fato de estudar uma sociedade“mediterrânea” faz com que o esforço

do autor seja ainda mais notável: comose sabe, os principais desenvolvimentosdo “mediterranismo” sublinham exata-mente o papel de valores, como “hon-ra” e “vergonha”, na singularização doque seria esse “tipo” de sociedade. Eainda que não seja possível exploraraqui os motivos que levam Herzfeld arecusar essa abordagem, merece regis-tro a enorme influência que os estudossobre sociedades “mediterrâneas” têmexercido sobre trabalhos antropológicosrealizados no e sobre o Brasil.

É no interior dessa perspectiva maisgeral que devem ser compreendidas asnoções que balizam o livro, e que sãoobjeto de detalhada discussão no capí-tulo 1. A “intimidade cultural”, essaproteção do espaço coletivo que o etnó-grafo tem de invadir, seria constituídajustamente por esses valores que os in-divíduos e grupos consideram como“seus”, e que eles devem, ao mesmotempo, seguir e apresentar aos demais,pois a apresentação de tais valores nãoobedece a nenhum script rigoroso: re-presentam-se os valores no sentido tea-tral do termo (a referência aqui sendoos “dramas sociais” de Victor Turner),mas isso só adquire sentido no quadrodas interações concretas, interaçõesque, simultaneamente, produzem oscontextos em que se processam (e é aostrabalhos de Erving Goffman que se re-mete agora). Isso significa, em pouquís-simas palavras, que os “dramas” são opróprio cotidiano e que a performance,em sentido teatral, é “performativa”, nosentido da filosofia da linguagem deAustin.

Aqui se situa a “poética social”, es-sa “apresentação criativa do eu indivi-dual” (:X); se os valores são atuados,mais que meramente seguidos, parte davida social pode passar a ser concebidanos moldes do que Jakobson denomi-nou “função poética da linguagem”: a

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possibilidade, imanente à própria lín-gua e à própria cultura ou sociedade, de“comentar” as mensagens no momentomesmo em que elas são emitidas, jo-gando assim com os códigos – digameles respeito aos valores ou às posiçõessociais.

A “poética social” não se confunde,entretanto, com a “poesia”, e seu estu-do não consiste de forma alguma emum “esteticismo” ou mesmo em uma“estética”. O capítulo 7 detém-se nesteponto, demonstrando que uma coisasão os modelos antropológicos “basea-dos na linguagem”, e outra, muito dife-rente, aqueles “derivados da lingua-gem” (:145). Se os primeiros consistemem tentativas mais ou menos bem-su-cedidas de esboçar semânticas e/ousintaxes socioculturais, os segundosdevem se concentrar nos aspectospragmáticos da linguagem ou da socie-dade, ou seja, nos agentes, suas rela-ções e suas práticas. É a retórica, naforma de uma “retórica social”, que de-ve servir de inspiração ao antropólogo,não a gramática, que tende a conduzi-lo na direção de formalismos e univer-salismos sempre mais ou menos duvi-dosos.

Podemos compreender, assim, queo terceiro termo do título da obra seja o“Estado-nação”, pois Herzfeld, comoboa parte de nós – se não todos nós ho-je – desenvolve suas pesquisas em umasociedade desse “tipo”. Quase todo o li-vro gira, conseqüentemente, em tornodessa questão, ainda que sejam os ca-pítulos 2, 3 e 4 os que abordam mais di-retamente o tema. Essa situação quaseinelutável coloca, para o antropólogo,uma série de problemas mais ou menosconhecidos. Como manter a abordagemetnográfica da disciplina sem perder osgrandes panoramas característicos des-sas formações sociais? Por outro lado,como atingir essa visão panorâmica

sem abrir mão da nossa marca registra-da, que é a de compartilhar e tornar in-teligíveis as experiências vividas pelosagentes? Aqui, Herzfeld não se refugiana solução mais fácil: abandonar o pla-no mais geral para outras disciplinas e,adaptando um velho chavão, dizer quenão estuda um Estado-nação, mas emum Estado-nação. Como se esse cortefosse possível, como se fosse indiferen-te, para agentes e antropólogos, o fatode estarem, ambos, imersos em forma-ções dessa natureza.

Como proceder então? Trata-se – ocapítulo 5 e o posfácio do livro são con-clusivos sobre esse ponto – de demons-trar de que modo a antropologia podecontribuir, de forma específica, para acompreensão do Estado-nação. E aquise fecha o círculo, na medida em que oantropólogo, que encara esse Estado-nação em seus planos de existênciamais concretos – aqueles das experiên-cias vividas pelos indivíduos e gruposque nele habitam –, percebe imediata-mente que o que se denomina com essenome consiste, na verdade, em um con-junto aberto de agentes e operações,possuindo como denominador comum ofato de estarem voltados para uma“despoetização” da vida social, ou seja,para a essencialização, naturalização eliteralização de experiências sociaissempre múltiplas e polifônicas. E aqui,de fato, o Estado encontra a cultura.

“O Estado” (o que não passa de umnome) é um conjunto de instituições eestratégias que se apóiam nos mecanis-mos sociais mais cotidianos e, em prin-cípio e ao contrário do que se gosta deimaginar, não ignoram nada do que osantropólogos costumam estudar: ascrenças e os mitos, o localismo e a seg-mentaridade, as identidades e os este-reótipos… É fundamental observar, con-tudo, que ao se apoiar ou combater es-ses elementos de toda vida social, o Es-

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tado opera através de sua essencializa-ção: a ninguém será permitido possuirmais de uma religião, um pertencimen-to local, uma etnia ou uma cor. “Esti-los”, sempre móveis e contextuais, con-vertem-se em “identidades” que, porsua vez, são cristalizadas em “etnicida-des” que, finalmente, se enrijecem co-mo “nacionalidades” (:42-43, e todo ocapítulo 4). A “labilidade semântica dosvalores locais”, que faz com que per-tencimentos familiares, grupais, étnicose mesmo nacionais funcionem comoverdadeiros shifters (:45-46) – ou seja,só façam sentido em relação aos agen-tes em interação em determinado con-texto –, tende a ser eliminada ou limita-da pelo Estado. Ao mesmo tempo, umavez substancializadas, essas variáveis(doravante “valores” ou mesmo “coi-sas”) retornam à vida social cotidiana ealimentam ódios, discriminações e mas-sacres (capítulos 4 e 5).

.A boa vontade da antropologia nãoé suficiente nesse caso. Não basta queafirmemos que as identidades são múl-tiplas, que as etnias são relacionais, queo conceito de raça não possui funda-mento objetivo e que o “caráter nacio-nal” é uma invenção. Não basta, tam-pouco, sustentar que é preciso evitar osdualismos e os essencialismos, nem atri-buir todo o mal à quebra de supostas re-lações de reciprocidade, forma de “nos-talgia estrutural” que, desde Mauss,tendemos a compartilhar com nossos in-formantes (cf. capítulo 6). Isto porqueestes podem não concordar conosco,chegando a matar ou morrer pela idéiade que o “sangue” define o pertenci-mento a um grupo, que o vizinho é “na-turalmente” inferior, e que tal ou qualminoria só pode mesmo se comportarde determinada maneira. Ao renunciar,em nome do “politicamente correto”, àanálise do que Herzfeld denomina “es-sencialismos práticos” (:26-29; 171),

corremos o risco de “essencializar o[próprio] essencialismo” (:171).

Nada disso significa, é claro, que oEstado seja menos “poético” do quequalquer outra coisa. Ao contrário, seupoder de produção e manipulação darealidade é bem conhecido. Ocorreapenas que faz parte da “poética de Es-tado” o esforço para apagar todos osrastros de sua própria criatividade, aomesmo tempo que busca impedir a detodos os demais. Desse modo, pode sus-tentar – e há quem nele acredite – quesuas invenções são “naturais”, semean-do assim essências por toda parte. Todocuidado é pouco por parte do antropó-logo: um descuido e ele está pronto aaceitar como dado aquilo cuja constru-ção deveria tentar demonstrar e tornarinteligível. Desse ponto de vista, é pre-ciso observar inclusive que a “democra-cia” não é necessariamente sinônimode maior tolerância, ou seja, de menosessencialização. É o contrário que podemesmo ocorrer, na medida em que, emnome da igualdade, toda diversidadetenda a ser suprimida (cf. :83 para o“igualitarismo essencialista”; e :111,para a “exclusão” em nome de “ideaisdemocráticos”).

....Por outro lado, e à medida que es-ses processos se disseminam, atingindoa menor das aldeias gregas, a verdadei-ra tarefa do antropólogo surge com cla-reza. Recusando a falsa separação entreetnografia e teoria, ele deve seguir, dealgum modo, contra a corrente. Acei-tando o caráter social de suas própriasteorias, bem como a força teórica dasrepresentações nativas, e a partir dasvivências mais concretas e das expe-riências mais profundas, deve praticar oque Roland Barthes denominou certavez uma etimologia às avessas (capítulo3): não a que busca a “verdadeira” ori-gem oculta das palavras, mas a que ten-ta dissolver em seus múltiplos processos

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de criação aquilo, palavras e coisas, quenos é apresentado como “natural”.

NEIBURG, Federico. 1997. Os Intelec-tuais e a Invenção do Peronismo. SãoPaulo: Edusp. 242 pp.

Regina AbreuPesquisadora-visitante, PPGAS-MN-UFRJ

Redigido inicialmente como tese dedoutorado para o PPGAS-MN-UFRJ,esse livro parte de um tema amplo, po-lêmico e crucial para a construção daidentidade nacional na Argentina: o pe-ronismo. Neiburg descarta desde o iní-cio as leituras apressadas e mais óbviassobre o tema, explicitando a multiplici-dade de significados que essa categoriafoi adquirindo ao longo do tempo: mo-vimento político nascido em meados dadécada de 40 e identificado com a figu-ra de Juan Perón; período da história daArgentina que se inicia em 1945 e ter-mina em 1955; partido político criadopor Perón logo após sua vitória nas elei-ções de 1946, que sobrevive até hojecom outras denominações; referênciapara a identidade política dos que pas-saram a invocar a figura de Perón e arecordação de seus governos para legi-timar diferentes posições no campo dapolítica.

A pesquisa é, na verdade, o estudode um período da história social e cul-tural da Argentina; ao mesmo tempo, oautor revela, com intensidade cada vezmaior, o papel ativo dos intelectuais na“invenção” do peronismo, noção quenada tem a ver com um juízo acerca daartificialidade das interpretações abar-cadas pelo termo. Pelo contrário, Nei-burg busca acentuar uma perspectivanão substancialista, atenta à dimensãoprodutiva das ações sociais sobre a

“realidade” social. Agindo desse modo,ele introduz uma série de surpresas pa-ra o leitor pouco familiarizado com ahistória social e cultural da Argentina.A primeira é a mudança de foco vis-à-vis boa parte da literatura sobre o tema,em que o peronismo aparece como o re-sultado de ações de grupos populares.Neiburg, ao contrário, parte do pressu-posto de que, como todo fenômeno so-cial e cultural, o peronismo resulta dasações de diferentes agentes sociais, si-tuados em distintas áreas do espaço so-cial. Nesse sentido, os intelectuais tive-ram desde o início papel central no pro-cesso de construção do peronismo, e éjustamente este o ponto investigado.No entanto, em vez de expor uma novainterpretação do peronismo – ou julgaro mérito das distintas interpretaçõesque o tomaram como objeto –, o interes-se do autor é “compreender a lógica so-cial subjacente à existência dos deba-tes, a gênese das figuras intelectuaisque deles participaram e seus efeitossobre a construção do próprio peronis-mo como fenômeno social e cultural”(:16).

Essa perspectiva permite uma esti-mulante reflexão acerca da relaçãoconstitutiva entre “representação darealidade” e “realidade”. Ao enfatizaro fato de que as interpretações e os in-térpretes do peronismo foram produzi-dos em uma dada sociedade e cultura,Neiburg amplia seu horizonte de pes-quisa, a fim de compreender a lógicado funcionamento da sociedade argen-tina em um dado período histórico. Ou-tra surpresa introduzida pelo autor dizrespeito ao período focalizado. Ao con-trário do que se poderia supor, Neiburgnão está interessado em analisar espe-cificamente o momento histórico da gê-nese do peronismo, com o golpe de Es-tado de 1943, quando Perón passou aser identificado como o “homem forte”

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do regime militar – ao mesmo tempoque se converteu em alvo de oposiçãode grande parte dos partidos políticos edas elites sociais e econômicas. Refle-tindo sobre as representações do pero-nismo e do antiperonismo, o autor de-cide focalizar justamente o período quese abriu em 1955, quando um golpe mi-litar pôs fim ao segundo governo Pe-rón. A percepção de que foi a partir dachamada “Revolução Libertadora” quese deu importante reestruturação doespaço social, com a eclosão de inúme-ras falas a favor e contra o peronismo,conduz Neiburg a privilegiar os discur-sos produzidos nesse momento. Trata-se de uma estratégia produtiva: tomara via do “fim” do peronismo para per-ceber a lógica subjacente à sua inven-ção. A destituição de Perón do poderteria provocado uma série de debatescom a finalidade de estabelecer umanova etapa na vida da Argentina, de-bates que construíram o chamado “fe-nômeno peronista” como objeto, aoprocurar entender a história recente dopaís. Neiburg debruça-se sobre algu-mas dessas representações, explicitan-do os pressupostos mais significativosque permitem compreendê-las em con-junto. Sua intenção não é isolar tais dis-cursos da trama social ou do contextoem que são produzidos, mas enfrentaras relações, os embates, os conflitos eos pontos de contato entre eles. Trata-se de analisar uma “retórica de comba-te”, colocando em evidência algumasdas dimensões das lutas de classifica-ção travadas não só em torno de repre-sentações do peronismo, como tambémdas diferentes posições que sustenta-vam os diversos pontos de vista sobreele.

No primeiro capítulo, no intuito defornecer um mapa das diferentes posi-ções (“repertórios”) acerca de peroni-zação, desperonização e reperonização,

Neiburg vê-se diante da difícil tarefade, dentro da ampla bibliografia exis-tente sobre o assunto, escolher os textose os porta-vozes mais significativos pa-ra compor seu universo de trabalho. Oautor decide lançar mão de apenas trêstextos, justificando sua escolha pelo fa-to de se tratar de três obras consagra-das, escritas por autores que são figurascentrais da Argentina pós-Perón, compotencial suficiente, portanto, para ilus-trar as dimensões constitutivas dos sis-temas de questões e diferenças cons-truídos pelos participantes dos debatessobre o peronismo após a “RevoluçãoLibertadora”. O primeiro é de um autorindividual, Mario Amadeo, e foi publi-cado em 1956 sob o título Ayer, Hoy yMañana. O segundo, intitulado Las Iz-quierdas en el Proceso Político, é o pro-duto de uma reportagem organizadaem fins de 1958 pelo advogado CarlosStrasser. O terceiro, La Naturaleza delPeronismo, foi lançado em 1967, porCarlos H. Fayt, titular da Cátedra de Di-reito Político, com o objetivo de “reunirmaterial para entender o quê e o por-quê do peronismo” (:37).

O segundo capítulo dá continuida-de ao primeiro, procurando mostrar co-mo o sistema de classificações gerado apartir de diferentes aproximações doperonismo é fundado em argumentosde autoridade que variam de acordocom as posições. Neiburg indica comocada indivíduo procura autorizar seupróprio argumento desqualificando oargumento de seu adversário, o que,paradoxalmente, implica o reconheci-mento de algum tipo de autoridade nosegundo. Vemos, assim, ampliar-se opainel dos protagonistas em torno daquestão peronista. A política é concebi-da como um campo de forças em que osagentes, ao lutarem para impor suaspróprias representações acerca do pe-ronismo, estão também constituindo a

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si próprios e planejando uma nova Ar-gentina. A própria “sociologia científi-ca” é tomada como uma voz dentre tan-tas outras que compunham o campo dasrepresentações sobre o peronismo. Atri-buir a si o papel de porta-voz da ciênciaera um dos seus principais argumentosde autoridade.

O capítulo 3 é dedicado ao exameda relação entre as interpretações doperonismo e os relatos consagrados so-bre a nação argentina e sua história.Sob o título “Peronismo e MitologiasNacionais”, o autor recorre à noçãoclássica de mito formulada por Lévi-Strauss, procurando os nexos entre operonismo e o “esquema de eficáciapermanente” do mito, sua capacidadede manter uma relação simultânea como passado, o presente e o futuro, sua du-pla estrutura histórica e anti-histórica.Por outro lado, retoma temas caros à so-ciologia weberiana ao procurar os vín-culos entre a consagração social de no-vas profecias e de novos profetas e umatradição particular. Subjacente a essaspreocupações está o anseio de com-preender o caráter construído das reali-dades nacionais e dos mitos que as le-gitimam, bem como descrever a lógicasocial que embasa e permite a emer-gência de novos profetas. O autor pro-cura demonstrar de que modo esses no-vos profetas, vivendo sob determinadascondições e agindo de acordo com inte-resses também socialmente construí-dos, foram consagrados como intérpre-tes autorizados dos dilemas nacionais –“dilemas” que, por seu turno, foramtambém socialmente construídos e pas-saram a legitimar a fala de seus “intér-pretes”. Acompanhando as representa-ções de cada intérprete fica evidente oquanto explicar o peronismo na Argen-tina era explicar a própria Argentina ede que forma cada explicação traziaconsigo um projeto para o país. Nesse

movimento de explicar o país, os inte-lectuais de 1955 resgataram ou atuali-zaram em suas análises antigos para-digmas, dentre os quais a tese de ser aArgentina um país permanentementedividido, marcado pela “contradiçãoentre duas Argentinas, uma visível, ur-bana, moderna, cosmopolita, voltadapara o mercado mundial por intermédioda metrópole de Buenos Aires; outraoculta, rural, tradicional, voltada para omercado interno, cuja expressão máxi-ma eram as províncias do interior dopaís” (:88-89).

Na segunda parte do livro, que en-globa seus três últimos capítulos, há, deum lado, a preocupação de assinalar osvínculos entre elites intelectuais e so-ciais na Argentina e, de outro, de re-constituir a história de uma importanteinstituição político-cultural, resgatandosignificativa passagem da história dafundação das ciências sociais nessepaís. Elegendo casos expressivos paraestudo, e trabalhando com trajetóriasinstitucionais ou biográficas, o autorcria as condições para analisar o pro-cesso de formação das redes de rela-ções. O primeiro desses “estudos de ca-so” focaliza o “Colégio Livre de Estu-dos Superiores”, importante centro dereunião de políticos, empresários, fi-nancistas e intelectuais de renome, fun-dado no início de 1930 e atuante até operíodo da “Revolução Libertadora”,responsável em grande parte pela for-mação de uma camada de dirigentesatuante na “Argentina pós-peronismo”.Analisando a composição social da ins-tituição e suas fontes de sustento, Nei-burg chega a conclusões importantespara a compreensão das relações entreas elites intelectuais e sociais, como ade que o principal apoio econômico ao“Colégio Livre de Estudos Superiores”provinha da atividade permanente deum grupo de mecenas.

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Para a análise da fundação da “so-ciologia científica”, o autor trabalhacom a trajetória de Gino Germani, iden-tificado como o “pai fundador” da disci-plina na Argentina. A análise da biogra-fia social e intelectual de Germani con-duz à compreensão do “processo de fa-bricação social” e de institucionalizaçãoda sociologia no país a partir da segun-da metade dos anos 50. Por outro lado, atrajetória de Germani permite um me-lhor entendimento das “possibilidadesabertas no campo intelectual para aconstituição de novos pontos de vista so-bre a sociedade durante o período dahistória social e cultural da Argentinaem que o peronismo e a desperonizaçãodefiniram uma agenda de problemasnacionais” (:158). Por fim, o último capí-tulo concentra-se na palavra de ordemdivulgada a partir de 1955 incitando àdesperonização. Neiburg procura traçarum painel dos diferentes significadosdessa palavra de ordem para os diversosagentes e grupos interessados.

Se cada capítulo contém uma análi-se instigante e reveladora de aspectoscentrais da história social e cultural daArgentina, o livro em conjunto faz umaincursão em expressivas teorias “nati-vas”, percorrendo “explicações do pe-ronismo” que são, também, “explica-ções da Argentina”. O autor leva a bomtermo o objetivo indicado no início dolivro de “mostrar que todas as interpre-tações do peronismo foram teorias so-bre a Argentina, que nas relações dasdiferentes figuras intelectuais com o pe-ronismo estava em jogo tanto sua pró-pria existência social, quanto o ideal deuma boa sociedade, uma proposta defuturo” (:158). Acompanhando a longae bem documentada argumentação, fi-ca evidente como uma sociedade nãoapenas constrói seus “enigmas”, comotambém as figuras encarregadas de im-por formas “corretas” de “decifrá-los”.

STOCKING JR., George (org.). 1996.Volksgeist as Method and Ethics. Es-says on Boasian Ethnography and theGerman Anthropological Tradition.Madison: The University of WisconsinPress. 349 pp.

Priscila FaulhaberPesquisadora do Museu Goeldi/CNPq

Lançada em 1983, a série History ofAnthropology, dirigida por GeorgeStocking Jr., se completa com um volu-me, o oitavo, inteiramente dedicado àtrajetória de Franz Boas. Não se trata,contudo, do fim da série, mas de umatransição: o próximo volume será aindaorganizado por Stocking Jr., mas já emcolaboração com Richard Handler –que, a partir do décimo volume, assu-mirá a direção da mesma.

Nesse último volume são examina-dos, sob diferentes ângulos, aspectos daformação intelectual e cultural (da Bil-dung) de Franz Boas – nascido em Min-den, Vestfália, província da Prússia –,sobretudo suas raízes e influências nopensamento alemão. Em linhas gerais,seu itinerário intelectual delineia-se natensão entre duas abordagens metodo-lógicas: a física e a cosmográfica.

Após uma introdução de StockingJr., que trabalha sobre a obra de Boasdesde os anos 60, é reeditado “TheStudy of Geography”, de 1887, onde opróprio Boas aborda o método e os limi-tes da disciplina. Neste artigo, ele nãopretende tender nem para o lado do fí-sico nem para o lado do cosmógrafo,mas atender aos critérios pessoais e àinclinação para abstrações (:14). O cos-mógrafo interessa-se pelo fenômeno co-mo um todo, e não dá mais valor ao es-tético (abordagem da física) que ao afe-tivo (abordagem da cosmografia); suaanálise não desqualifica o estudo dos

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fenômenos que parecem estar conecta-dos apenas na mente do observador. Aocontrário, a própria unidade de objetosdo físico lhe parece subjetiva (:16).

Matti Bunzl destaca, dentre outrasinfluências alemãs sobre Boas, os ir-mãos Humboldt. A cosmografia foi con-cebida por A. Humboldt no sentido deuma descrição dos homens e suas açõesa partir de seu próprio caráter e doseventos que influenciaram suas vidas,bem como a observação sistemática decada fenômeno a partir de sua própriaexistência (:13), no contexto das críticasà tentativa iluminista de reduzir o mun-do a princípios abstratos e à classifica-ção hierárquica dos fenômenos segun-do princípios positivistas de desenvolvi-mento (:39). Nos tratados de W. Hum-boldt, dentro do referencial do naciona-lismo romântico alemão, a linguagem,cuja necessidade e habilidade teriamoriginado a humanidade, é enfocadacomo representação do “gênio do po-vo” (:33). A partir dessas premissas,Bastian, de quem Boas foi assistente,concebe os seres humanos como produ-tos históricos constituídos duplamentepelo mundo espiritual (gestigen) e omeio ambiente físico, e as trajetórias doVolkergedanken (lógica popular) em re-lação com províncias geográficas (:52).Após a migração para os Estados Uni-dos, em 1887, Boas, apesar de acomo-dar-se a uma divisão institucional doscampos disciplinares, afasta-se, dentrode uma perspectiva pluralista, do etno-centrismo em vigor, dá prosseguimentoàs linhas traçadas por Bastian e realizao projeto de W. Humboldt de estabele-cer análises das estruturas da lingua-gem, da investigação de suas relaçõesgenéticas e das relações com a perso-nalidade nacional (:66). A partir de1900, Boas enfatiza os processos pelosquais o “espírito do povo” (Volksgeist)traduz elementos exógenos, bem como

a terminologia do parentesco, dos ri-tuais e das relações sociais.

Benoit Massin examina o papel dasteorias da raça na institucionalização daantropologia física na Alemanha. Ini-cialmente, os teóricos raciais represen-tavam uma minoria marginal (:94). Soba influência de Virchow, sobressaía-se,na comunidade dos antropólogos físicose médicos anatomistas, o humanitaris-mo monogênico herdado de Herder.Bastian travou uma “guerra” de trintaanos pela consideração da igualdade edignidade de todas as culturas, assu-mindo posições contrárias ao darwinis-mo social (:96). A maior parte dos antro-pólogos mantinha, contudo, o ponto devista da hierarquia evolucionista das ra-ças e culturas sustentada na dicotomia“povos da natureza” e “povos da cultu-ra”. Lushan, sucessor de Virchow (paraquem a própria idéia de raça, construí-da a partir de tipos estatísticos, não con-sistiria em uma construção biológica,mas uma construção mental (:114)),aproxima-se do darwinismo, adotandoa classificação racial como objetivo últi-mo e a craniometria como método. Navirada do século, passaram a prevale-cer as recomendações de intervençãoterapêutica, formuladas por biólogos efísicos que interferiam na política de Es-tado, em consonância com o crescenteantiliberalismo das elites alemãs (:120).

Através da leitura de diários e cartasde Boas, e traçando um perfil de suasleituras desde a primeira adolescência,Julia Liss indica que os dilemas de suaformação traduziam seu próprio confli-to cultural em termos de sua experiên-cia individual (:162). Formado dentro deinstituições de elite, viveu a ambivalên-cia de, judeu, não pertencer à culturadominante alemã. Na maturidade, ouniversalismo científico foi uma manei-ra de transcender os limites de suas con-tradições individuais e sociais (:163).

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Ira Jacknis desenvolve um estudode caso de como o conhecimento etno-gráfico é gerado na trajetória da meto-dologia de Boas. No começo de sua car-reira até 1890, período no qual realizoua maior parte de seus trabalhos de cam-po, a prática de pesquisa esteve centra-da na coleta de artefatos, ainda que seobservasse uma evolução para o tex-tual. O interesse dirigia-se também pa-ra as informações contidas nos relatosnativos, porém ainda voltado priorita-riamente aos objetos destinados aosmuseus, algo que pudesse ser coletado,preservado e estudado (:200). A partirde 1890 passa a considerar “‘toda a cul-tura de uma tribo’ – a orientação con-textual” (:200). Em The Limitations ofthe Comparative Method in Anthropo-logy, de 1896, os costumes e crenças jánão eram os objetos últimos da pesqui-sa, pois sua preocupação central seriaprincipalmente descobrir os processosatravés dos quais certos estágios de cul-tura se desenvolveram. Verifica-se, as-sim, um deslocamento do “objetivo” co-mo externamente observado para o ob-jetivo como culturalmente constituído.É formulada assim uma nova concep-ção do objeto etnográfico e do objeto daetnologia, com a qual se passa a priori-zar o exame dos contextos culturais nosquais os objetos são construídos. No fimde sua carreira, o interesse central nãoera tampouco o relato original enquan-to artefato, mas a reconstrução verbal.Os objetos passaram a ser vistos tam-bém como recursos para uma auto-re-constituição cultural pelos representan-tes dos próprios povos (:209).

Judith Berman analisa, em uma ten-tativa de constituir bases sólidas paraas generalizações antropológicas, asprimeiras etnografias de Boas, pilaresde todo o seu trabalho futuro (:215),bem como suas relações com seus “in-terlocutores de campo”, como Hunt,

também intérprete e autor. O trabalhoboasiano teria ficado marcado, até o fimde sua trajetória, pelas tensões mal re-solvidas entre o ponto de vista do antro-pólogo e o ponto de vista nativo.

Thomas Buckley mostra como Kroe-ber, proeminente discípulo de Boas,fundamentou sua trajetória enquantohumanista científico e historiador, in-fluenciado também pelo legado da an-tropologia alemã do século XIX. Kroe-ber buscou na história natural uma pon-te com as noções de cultura da antropo-logia do século XX, e uma solução parasua preocupação de explicar os proble-mas segundo leis gerais (:261). Enfati-zou, em sua noção de cultura, a criativi-dade humana conceituada em termosdo impulso do crescimento cultural e doprogresso humano, incorporando, as-sim, o primado do positivismo das ciên-cias naturais à sua perspectiva “huma-nista” de história natural, diferente-mente de Boas, cujas concepções dãoênfase à subjetividade. A qualificaçãoda cultura através do conceito de super-orgânico, leva-o a prescindir da consi-deração dos seres humanos, reduzidosa meras ilustrações, e incorpora os ví-cios do essencialismo e do determinis-mo cultural. E do idealismo, embora es-te conceito tenha sido cunhado comoum antídoto aos “fantasmas metafísicosdo século XIX” (:267). Apesar da apolo-gia aos vínculos morais com os destinosdos povos estudados, a tarefa da antro-pologia para Kroeber seria compreen-der objetivamente a cultura aborígineoriginal, e evitar o engajamento políti-co, a despeito dos indivíduos “em carnee osso” e dos testemunhos dos nativos.Ele ficaria, no mínimo, surpreso comtendências posteriores de incentivar asreinterpretações de suas próprias cultu-ras pelos descendentes de índios cujastradições foram transformadas pelo con-tato (:293).

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Suzanne Marchand aponta como oculto ao exótico por parte do classicis-mo e do romantismo germânico não le-vou os exploradores a conhecer e estu-dar apenas os chamados povos primiti-vos da América. A intervenção alemãna Ásia Menor (:334) gerou toda umapolítica cultural de coleta de artefatosarqueológicos vinculada à política im-perialista e colonial. Esta política, já nodespontar do século XX, não sofreu tan-ta influência dos ideais românticosquanto do positivismo e do cientificis-mo, e implicou a coleta de verdadeirostesouros. Tais artefatos, dissociados doscontextos culturais onde tinham umsentido, eram transformados em merosfragmentos para exposição nos museus,deleite dos seus usuários.

A leitura dessa coletânea de comen-tadores do itinerário de Boas é um con-vite à reavaliação de sua obra, aindanão publicada em português, apesardas inúmeras traduções elaboradas comfins didáticos. Boas constitui referêncianão só para etnólogos, mas para todosaqueles que se interessam pela etno-grafia de outras formas de saber. Vale-ria a pena um esforço editorial no senti-do de sanar essa lacuna.

TEIXEIRA-PINTO, Márnio. 1997. Ieipa-ri: Sacrifício e Vida Social entre os Ín-dios Arara (Caribe). São Paulo/Curiti-ba: Hucitec e Anpocs/Editora UFPR.413 pp., ilustr.

Julio Cezar MelattiProf. de Antropologia, UnB

O livro tem por foco uma importante ce-rimônia dos índios Araras, centrada emum poste, erigido no pátio, em cujo to-po, até tempos recentes, se punha o crâ-nio de um inimigo, hoje substituído por

uma bola de lama. Só isso já desperta aatenção do leitor, pois, vivendo os Ara-ras sobre o divisor que separa as águasque correm para o Iriri, afluente do Xin-gu, das que descem diretamente para oAmazonas (mas destas últimas retira-dos após lograrem o contato amistosocom os brancos), eles têm como vizi-nhos vários outros grupos tribais quetambém faziam a caça de cabeças poruma extensa área, desde o Xingu até oMadeira. Entretanto, tais grupos per-tenciam ao tronco tupi, enquanto osAraras, da família caribe, constituíamtalvez a única exceção.

Mas o autor opta por não comparar,permanecendo no universo dos Araras,entre os quais realizou pesquisa decampo de cerca de quatorze meses emvárias etapas, distribuídas pelos anos1987, 1988, 1992 e 1994.

Começa por uma apresentação ge-ral da cerimônia e das condições emque é realizada. Mostra-nos como cadatipo de festa arara inclui uma festa me-nor e pode ser englobada por outramaior, desde aquelas festas de beber,passando para aquelas de beber e co-mer, para aquelas em que também setocam instrumentos musicais, se cantae se dança, até chegar à mais inclusivae complexa, que é a do Ieipari, o posteencimado pelo crânio do inimigo. Des-creve a elaboração da bebida fermenta-da de tubérculos, frutas ou milho, a ma-neira de oferecê-la, sua relação comsubstâncias como leite e esperma. Exa-mina as técnicas de caça, o contato queum xamã (todos os homens Araras sãomais ou menos familiarizados com asatividades xamânicas) estabelece comum ser dono de uma espécie animal,pedindo-lhe que os dê para criá-los,abrindo a oportunidade assim para queos outros homens possam abatê-los.Descreve os instrumentos de sopro, aordem em que tocam, os seres a que es-

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tão associadas suas músicas. Mostra co-mo os caçadores, aguardados com a be-bida fermentada, que devem retribuircom carne, entram na aldeia fingindoum ataque, uma encenação agressivaomitida na forma mais abrangente dorito, quando há o Ieipari. Expõe o trata-mento do inimigo, o que lhe dizem nocântico entoado antes de matá-lo e es-quartejá-lo. Além do crânio, que inte-gra um instrumento musical antes devir a coroar o poste ritual, outras partesdo corpo lhe são retiradas, mas seu des-tino, talvez por lacuna na memória dosAraras atuais, é apenas esboçado: os os-sos das mãos e dos pés, a pele do rosto,o escalpo, as vísceras. Descreve a ere-ção do poste, como os homens o descas-cam com pancadas e palavras agressi-vas, e como as mulheres o abraçam for-temente e nele esfregam sensualmentesuas vulvas. A carne trazida pelos caça-dores disposta em torno do poste, assimcomo uma panela com bebida fermen-tada colocada ao pé do mesmo, são co-mo ofertas do Ieipari. E as mulheres, aotomarem dessa bebida, dizem revela-doramente que estão bebendo um filho.

Essa apresentação inicial, que cons-titui o primeiro capítulo, é em si mesmaautônoma, não depende do que se se-gue para ser compreendida. Dir-se-iaque o livro se compõe de partes queacrescentam mais sentido à apresenta-ção inicial, mas elas próprias tambémautônomas.

O capítulo referente à cosmogonia eà cosmologia aponta a origem de certoselementos integrantes do rito ou aspec-tos da condição humana que levam àsua realização: o instrumento de soproque a divindade principal tocava paramanter a calma e a boa ordem no céu,onde a humanidade vivia de modo pa-radisíaco, e que hoje faz a música defundo das festas; a eclosão de um con-flito que redundou na quebra da casca

do céu, obrigando a humanidade a vi-ver sobre os seus fragmentos, mistura-da aos seres maléficos até então manti-dos do lado de fora; o ensino da festa,destinada a trazer novos filhos, pelo bi-cho-preguiça, que também deu aos hu-manos as flautas, a tecelagem em algo-dão e palha e povoou a mata de animaisde caça; a recusa das mulheres de con-tinuar a aplicar as técnicas destinadas atrazer de volta à vida aqueles que mor-riam, como faziam antes da catástrofe,de modo que a morte se instalou defini-tivamente entre os humanos e serviupara que a divindade, agora transfigu-rada na vingativa onça preta, transfor-masse as partes em que se dividem oscorpos dos defuntos em uma série de se-res danosos; a viabilização da caça porintermédio das relações de reciprocida-de entre os xamãs e os espíritos donosde animais, em que estes dão àquelesbichos para criar e por sua vez criam umcerto tipo daqueles seres danosos oriun-dos dos mortos. Se o primeiro capítulosublinha a ausência da vingança naspalavras que os Araras dirigem ao ini-migo, o segundo não trabalha o teor davingança que atribui ao ser supremo.

A vingança ou sua ausência no con-flito com o inimigo poderia ter sido umdos temas de discussão no terceiro ca-pítulo, que se limita ao contato entre osAraras e os brancos. Não tenta reconsti-tuir as relações dos Araras com outrasetnias indígenas, a não ser com os Caia-pós, mas estes apenas enquanto partici-pantes das frentes de atração. Chama aatenção para o fato de os brancos nãose contarem entre as vítimas cujas ca-beças serviam de centro ao rito arara,até o momento em que a construção daTransamazônica pressionou fortementepelo estabelecimento do contato. Queetnias indígenas teriam sido alvo dasincursões araras, que motivos os mo-viam contra elas, ou, ao contrário, que

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razões os faziam limitar-se à defensivasão perguntas que talvez o autor não te-nha feito ou, se as fez, das respostas nãotirou proveito.

No quarto capítulo examina a coe-xistência de uma classificação horizon-tal dos termos de parentesco, aplicadaaos membros da própria unidade resi-dencial, com uma oblíqua, referente àsrelações com outras unidades. Mostracomo o oferecimento ritual da bebidafermentada, que se faz entre a irmã (ouo marido dela) e o irmão, moradores decasas diferentes, é coerente com a clas-sificação oblíqua. Observa também queum homem, ao dar sua irmã em casa-mento, pode reivindicar em troca a filhadaquele que a recebeu, que não precisanecessariamente ser filha dessa ou deoutra irmã. E ainda, quando uma mu-lher, dentre aquelas a que pode, pelojogo das trocas, aspirar a ter como es-posa, se casa com outro homem, este úl-timo passa a lhe dever uma irmã ou fi-lha. Em outras palavras, uma esposareivindicada que se torna cônjuge deoutro gera dívida como se fosse uma ir-mã a este cedida. Sem dúvida, tudo issoé muito convincente e feito com maes-tria, apesar de as trocas de mulheresexaminadas nos casos concretos maisparecerem deduções das genealogiasdo que descrições feitas a partir de de-poimentos dos Araras. Mas, tendo emvista o rito que constitui o tema do livro,este capítulo talvez fosse o lugar deexaminar também certas relações, co-mo a dos amigos de guerra, que, ao sa-crificarem juntos um inimigo, trocavamentre si temporariamente as esposas.Se, tal como a dos amigos de caça (re-crutados entre os afins reais do mesmogrupo residencial), essa parceria tinhacomo protótipo genealógico a relaçãoMB/ZS, mas escolhidos em outros gru-pos residenciais, no passado grupos lo-cais distintos, ela poderia ter sido mais

um motivo para o autor examinar aguerra como um fator de articulaçãoentre os vários grupos locais. Quemguardava o crânio do inimigo e o usavacomo instrumento musical? Quem guar-dava os ossos dos membros, a pele daface, o escalpo? Como se fazia a circu-lação desses troféus? Que importânciateriam eles nos ritos de passagem rela-tivos à idade? São questões que pode-riam ter sido exploradas neste capítulo.

O quinto capítulo, na verdade,abrange dois. Sua parte inicial (:305-343) trata da relação entre os modos dedar, as coisas dadas e as relações sociaisenvolvidas, de um lado, e os valores mo-rais, de outro. A classificação das for-mas de dar bens e prestar serviços mos-tra-se sobremodo complexa, a ponto demal poder ser ilustrada pela clássica es-fera que combina os diferentes tipos detroca com a distância social, desde o nú-cleo da reciprocidade generalizada ca-racterística dos parentes próximos até acapa mais externa da reciprocidade ne-gativa associada aos inimigos. Alémdisso, no caso dos Araras, esse gradien-te é distorcido pelos ideais de generosi-dade, gentileza, solidariedade, de ma-neira que a representação gráfica esco-lhida pelo autor lembra os esquemasdemonstrativos da influência do Sol eda Lua nas marés oceânicas (:337).

Na segunda metade do capítulo(:343-385), o autor retoma o grande ritoanteriormente descrito e o analisa se-gundo três seqüências paralelas: a su-cessão de festas, a das músicas, que jáapresentara anteriormente, e a ordemdas fases (marcadas por tarefas ou des-locamentos dos participantes). Uma in-cursão na teoria da linguagem deHjelmslev não nos parece ter trazidonovas luzes para a compreensão do rito.Por outro lado, neste capítulo e na con-clusão que o segue, a idéia de “sacrifí-cio”, presente no título do livro, é trata-

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da de modo demasiado sumário; Hu-bert e Mauss não são convocados, nemmesmo aquele que os seguiu no examedo mais discutido dos ritos de tratamen-to dos inimigos em nosso continente,Florestan Fernandes.

Tal como a classificação das bebidasde acordo com a altura das partes dosvegetais das quais são produzidas (:62)ou tal como o poste Ieipari, centro dogrande rito, poderíamos dizer que a in-terpretação desenvolvida no livro passado mais substancioso para o mais eté-reo à medida que se desloca da basepara o topo. Muito de mistério aindapaira sobre a cabeça do inimigo. Mas,certamente, o Autor continuará a buscade mais sentido com a elaboração deoutros trabalhos.

Não obstante, o livro constitui umaexcelente contribuição à etnologia indí-gena, tanto que a participação da An-pocs na sua publicação vem a ser o prê-mio que essa instituição lhe concedeucomo a melhor tese de doutorado de1995. Curiosamente, não há nenhumareferência ao prêmio no volume.

TILLY, Charles. 1998. Durable Inequa-lity. California: University of Califor-nia Press. 299 pp.

Jorge PantaleónMestrando, PPGAS-MN-UFRJ

A publicação desse livro poderia ser en-carada, em parte, como mais um capí-tulo da polêmica atualmente em cursosobre políticas públicas e sociais nos Es-tados Unidos. O cerceamento de fundospara assistência social, somado a umaseleção mais rigorosa dos seus benefi-ciários, à precarização do emprego e auma persistente racialização das rela-ções sociais, vêm se desenvolvendo em

um contexto de acirradas discussões,propiciando o posicionamento públicode atores importantes da academia nor-te-americana. A atualização de argu-mentos que tentam fundamentar as di-ferenças entre os seres humanos tendoem vista suas capacidades cognitivas –cuja formulação mais cristalina se en-contra no livro, de 1994, The Bell Cur-ve: Inteligence and Class Structure inAmerican Life, de Richard J. Hernsteine Charles Murray – desencadeou inú-meras respostas, dentre as quais o pró-prio livro do historiador Charles Tilly.

O autor é extremamente original aotratar da gênese e da permanência dasdesigualdades humanas – mesmo queessa constatação seja quase óbvia nasciências sociais, que têm demonstradoque tais desigualdades se estendem notempo e no espaço. Sua originalidadeconsiste na discussão e na utilização deteorias e perspectivas atuais, produzidasno âmbito de diversas disciplinas, tra-tando em conjunto temáticas que ten-dem a ser analisadas de maneira isola-da. O autor propõe, assim, desenvolver– com todo o peso que essa expressãopode carregar – “explicações gerais”.

Para Tilly, o motivo pelo qual as de-sigualdades sociais perduram está rela-cionado ao fato de que pares de catego-rias assimétricas estão sempre disponí-veis, fazendo parte do cotidiano e ofe-recendo, mesmo para os hierarquica-mente inferiores, a possibilidade de al-gum benefício, ou, o que é o mesmo, ailusão de tê-lo. O tom de provocação deseu argumento deriva da revelaçãodessa face “positiva” dos mecanismosgeradores e perpetuadores das desi-gualdades. Em outro plano, o autor exa-mina as relações entre categorizaçõesassimétricas e sistemas de governo. Doseu ponto de vista, as democracias re-forçam os mecanismos de inclusão e ex-clusão com muito mais energia que as

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autocracias, ainda que, ao mesmo tem-po, essas democracias possam ofereceràs suas populações canais de inclusãomais eficazes do que em qualquer outrosistema político. Se toda inclusão impli-ca algum tipo de exclusão, todo proces-so de incorporação de novas categoriassociais nos assuntos públicos reforçaráe criará desigualdades, e mesmo naspolíticas supostamente mais redistribu-tivas, como as do welfare state, pode-secomprovar a reprodução dos mecanis-mos de criação de desigualdades so-ciais.

Compartilhando uma mesma abor-dagem processual e histórica com ou-tros autores (como Skocpol, Wilson,Sen, Castel, Ewald e Rosanvallon, den-tre outros), Tilly, nesse livro, concentra-se na explicitação de esquemas e me-canismos gerais, segundo ele, “semprepresentes” na construção e na perdura-ção da desigualdade. É essa singulari-dade que, em contrapartida, confere aotexto um certo tom por vezes excessiva-mente esquemático e terminológico.

Coerente com sua intenção progra-mática, o texto define o que seriam osprincípios gerais da constituição dasrelações assimétricas (principalmentenos dois primeiros capítulos), obser-vando como esses princípios funcio-nam em situações históricas específicas(capítulo 3), através de vínculos sociaissingulares, como no caso da geração decategorias raciais, de gênero, cidada-nia, classe ou profissão (capítulos 4, 5 e6). Nos capítulos finais (7 e 8), Tilly tra-ta da “política e do futuro das desigual-dades”, desenvolvendo posicionamen-tos relativos a questões acadêmicas epolíticas do mundo contemporâneo.

A hipótese central é que as desi-gualdades duradouras entre os sereshumanos têm de ser compreendidas emrelação à gênese e reprodução das dife-renças entre categorias (como negro e

branco, homem e mulher, cidadão e es-trangeiro), mais do que a partir de dis-tinções simples no plano das capacida-des, gostos ou, ainda, desempenhos in-dividuais (:7). O livro descreve quatromecanismos básicos por intermédio dosquais as desigualdades duradouras se-riam geradas, e onde agentes sociais in-corporariam pares de categorias assi-métricas. O primeiro desses mecanis-mos, “exploração”, baseia-se na extra-ção, por parte dos indivíduos que con-trolam conjuntos de recursos específi-cos, de benefícios gerados por outros. Osegundo mecanismo, “acumulação deoportunidades”, desenvolve-se quandointegrantes de uma rede têm acesso arecursos que podem ser por eles mono-polizados a partir do próprio modusoperandi da rede – a criação de catego-rias excludentes em unidades militaresseria um exemplo disso. Os outros doismecanismos, “emulação” e “adapta-ção”, reforçam a efetividade das distin-ções categoriais: o primeiro, mostrandocomo uma organização se reproduz imi-tando modelos de desigualdade que jáobtiveram sucesso (a emulação das for-mas de organizar as burocracias em ou-tras nações, na formação de novos Esta-dos, por exemplo); o segundo, obser-vando como se cria e se rotiniza um“conhecimento local” constituído a par-tir desses modelos (os trabalhadores domundo da burocracia que, no seu dia-a-dia, assumem e reproduzem as hierar-quias existentes através da “elaboraçãode práticas evasivas, brincadeiras, epí-tetos, alianças e intrigas”).

Tilly afasta-se de uma simples con-denação, ética ou teórica, da desigual-dade, apoiando-se em uma constata-ção: as desigualdades teriam surgidopara resolver, a “baixo custo”, desajus-tes organizacionais, simultaneamentejuntando e separando agentes e grupossociais, e definindo as relações entre

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eles (:62). Uma das formas típicas depermanência das desigualdades consis-te, segundo o autor, na capacidade decruzar oposições e de sobrepor algumascategorias a outras. Segundo Tilly, as ca-tegorias assimétricas geram, indireta-mente, acumulação diferencial de ca-pacidades e, diretamente, recompensasdesiguais. A substancialização produz-se quando as diferenças se transformamsocialmente em qualidades que são atri-buídas aos indivíduos – surgindo aí asrazões e a linguagem da raça, do gêne-ro, da aptidão cognitiva, da idade, da na-cionalidade etc.

O autor realiza uma escolha nadaingênua ao operacionalizar, na análisehistórica concreta, o modelo construídona primeira parte do trabalho. Assim, aintrodução do capitalismo na África doSul e a constituição do apartheid será ocaso paradigmático para a ilustraçãodos mecanismos de exploração. A aná-lise mostra as relações entre os esforçoscoordenados dos indivíduos que se con-vertem em dominadores (funcionáriosde Estado e capitalistas brancos), o mo-nopólio dos recursos disponíveis (no co-meço, jazidas de minérios e, depois, aindústria e o comércio) e o retorno dife-renciado dos benefícios a partir dos pro-cessos de exclusão categorial (como nocaso dos mecanismos de controle dotrabalho, que incluem fronteiras defini-das segundo princípios étnicos no inte-rior das empresas capitalistas).

Estudando as formas de discrimina-ção das mulheres no mundo das empre-sas norte-americanas, Tilly observa acombinação dos mecanismos de explo-ração e acumulação de oportunidades,dos quais, por sua vez, derivam modali-dades de aquisição de capacidades e detreinamento diferenciais, que resultamem “aptidões diferentes”. Dessa forma,polemiza também com as explicaçõesdas diferenças sociais baseadas na no-

ção de “capital humano”, provenienteda economia empresarial. Os movimen-tos migratórios ilustram de forma privi-legiada o mecanismo de acumulação deoportunidades. O exemplo do processode estabelecimento e reprodução dosimigrantes italianos em um subúrbio deNova York serve para ilustrar a criaçãode nichos ocupacionais baseados emredes de relações sociais, ao lado da ex-clusão sistemática daqueles que não fa-zem parte da rede.

Os “nacionalismos” não estão forados fenômenos tratados como parte domecanismo geral da exploração; ser-vem, também, como ilustração do fun-cionamento dos mecanismos de emula-ção e de adaptação. Tilly identifica al-guns dos princípios constitutivos dasnacionalidades, tais como a criação deperformances públicas de auto-reco-nhecimento, a luta entre grupos quedisputam a representatividade oficialda nação, e a criação de crenças e práti-cas nacionalistas em territórios sociaisaté então altamente diversificados.

As páginas finais do livro revelam apreocupação do autor com as formasmais efetivas de intervenção contra asdesigualdades sociais. De acordo comTilly, se as desigualdades não podemser explicadas a partir de teorias gené-ticas, ou ancoradas em performancesindividuais, tampouco poderão ser es-peradas mudanças significativas a par-tir das formas individualistas de inter-venção, como as que se baseiam no “en-sino de atitudes novas mais tolerantes”.Ao contrário, Tilly sugere que a únicapossibilidade de mudança é a que visaromper com as superposições de paresde categorias assimétricas, amplamenteaceitas e generalizadas na vida social(:244).

Construído de uma perspectiva nãosubstancialista, o livro nos lembra umaevidência freqüentemente esquecida:

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toda diferença é sempre sustentada poruma relação. Tilly expõe também o fatode que, por razões que remetem menosao acaso e mais à existência dos pró-prios mecanismos da dominação, a ex-plicação da gênese das desigualdadescostuma ser substituída por reificaçõese pela substancialização das qualidadese das capacidades de indivíduos que,na verdade, são criadas no interior dasrelações sociais. Enfim, uma das virtu-des do texto consiste, de forma algo pa-radoxal, em seu caráter mnemônico, is-to é, no fato de apresentar uma de-monstração atualizada daquilo que, tor-nando-se óbvio, corre também o riscode tornar-se banal.

TRAVASSOS, Elizabeth. 1997. Os Man-darins Milagrosos: Arte e Etnografiaem Mário de Andrade e Béla Bartók.Rio de Janeiro: Ministério da Cultura/Funarte/Jorge Zahar Editor. 236 pp.

João Felipe GonçalvesMestrando, PPGAS-MN-UFRJ

Uma das formas mais promissoras deabordar as complexas relações entre osconceitos antropológico e humanísticode cultura é o estudo do ideário estéticoprimitivista. Baseado no aproveitamen-to, pela “alta cultura” erudita, de ele-mentos culturais populares tradicionais,esse ideário se confunde amiúde com areflexão sobre identidade nacional ecom o desejo de afirmação de uma arteautenticamente nacional. É o caso deMário de Andrade (1893-1945) e de Bé-la Bartók (1881-1945). Ambos comparti-lham a prática da coleta etnográfica demúsica popular, tida como instrumentode conhecimento da especificidade na-tural de seus povos, e, portanto, comobase de uma nova visão de mundo que

deveria orientar a cultura erudita deseus países.

Os pensamentos desses artistas sãominuciosamente comparados no livro deElizabeth Travassos, derivado de umatese de doutorado defendida em 1996junto ao PPGAS/MN/UFRJ. Nessa obra,marcada pelo trânsito por várias disci-plinas, a autora, professora de etnomu-sicologia da Uni-Rio, mostra as proximi-dades e as diferenças entre dois proje-tos de “modernização pela tradição”,que tinham em comum a idéia de quegrandes coletâneas impressas de músi-ca popular seriam a base da renovaçãoartística modernista. Sendo tanto umareflexão sobre as relações entre arte eidentidade nacional quanto uma etno-grafia de teorias de arte, o trabalho ébelamente apresentado em um livrocom várias ilustrações, dois mapas e umimportante quadro cronológico. O bomtratamento editorial tem como grandefalha a ausência de bibliografia, o que éparcialmente sanado pela distribuiçãode uma separata.

Elizabeth Travassos tem formaçãomusical e realizou trabalhos na Comis-são de Folclore e Cultura Popular daFunarte, tendo feito ainda uma disser-tação de mestrado sobre os índios Caia-bi e seus cantos xamanísticos. Com essebackground, debruça-se basicamentesobre os escritos teóricos e etnográficosde M. de Andrade e de Bartók, dandomenor atenção a seus trabalhos pro-priamente artísticos (à exceção da aná-lise de obras literárias do brasileiro).

O resultado desse esforço é umacuidadosa comparação de dois pensa-mentos, cotejados a respeito de váriasquestões inter-relacionadas. E ela é fei-ta de forma que cada um dos autoresilumine o outro, demonstrando suas es-pecificidades e trazendo à tona temaspouco explícitos. Como as questões tra-tadas são transdisciplinares e de ime-

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diato interesse da antropologia, muitosnomes da disciplina são trazidos à com-paração com os dois pensadores. Issoajuda a impedir que se torne labirínticaa riqueza de detalhes fornecida pelaautora, que demonstra habilidade emremeter pequenas soluções e idéias desutis meandros aos grandes problemasque estruturam o livro.

Na primeira parte da obra, Travas-sos aborda o ataque dos dois musicólo-gos à arte acadêmica, seja pelo comba-te de ambos ao virtuosismo, seja pelapreocupação marioandradiana de criaruma arte vital e expressiva sem ser sen-timental. Se Bartók é pouco preocupa-do com a questão da expressão e se M.de Andrade quer criticar o tecnicismoparnasiano, ambos têm de acertar con-tas com a arte romântica e dela distin-guir-se. Isso é mais importante para ohúngaro, que, inspirando-se nas teoriasde Herder e Grimm, corre o risco de seconfundir com o populismo românticoanterior. Assim, lança-se à construçãode métodos rigorosos para a determina-ção das diferenças culturais no LesteEuropeu e ao ataque impiedoso a pro-duções culturais “misturadas” ou “con-taminadas” pelo mundo moderno e ur-bano.

Esse tipo de produção – a culturapopular “falseada”, “inautêntica” – é ogrande “outro sinistro” de ambos os au-tores, desejosos de uma tradição pura egenuína. As “bandas ciganas” de Bar-tók e as modinhas de M. de Andradesão o emblema dessa semicultura,oposta igualmente aos dois pólos valo-rizados: o do folclore, coletivo, e o dacriação erudita, individual. Como mos-tra a segunda parte do livro, o repúdio aesse elemento híbrido é menos forte noautor brasileiro, que tem mais tolerân-cia e matizes, devido à sua concepçãodo Brasil como um país em formação,um povo ainda sem tradições firmes e

totais, com um perfil ainda por definir.Essa cultura “sem caráter” não leva opaulista a contestar o ideal de uma tra-dição autêntica a ser cultivada, mascontrasta com o populismo camponêsde Bartók, que o leva a traçar rigorosascartografias étnico-musicais – atividadede graves efeitos políticos no conflituo-so espaço interétnico do antigo impérioaustro-húngaro.

Esse contraste entre os autores é ex-plorado na terceira parte do livro, ondepercebemos que a arqueologia musicalde Bartók (e de seu colaborador ZoltánKodály) visa a uma essência magiar pri-mordial, enquanto a de M. de Andradebusca o fundo primitivo da humanida-de, uma base comum dada na mentali-dade pré-lógica – a leitura de Lévy-Bruhl foi influência fundamental – e nafisiologia extática da música como so-cializadora primitiva. Bartók distancia-se de M. de Andrade não só pela suaaversão à música ritual primitiva, comopor sua aceitação sem restrições da teseherderiana da criação espontânea pelacoletividade. M. de Andrade matiza es-ta tese com o reconhecimento da cria-ção individual no povo e da legítimaapropriação popular de obras eruditas.Ademais, para ele, o maior valor da mú-sica popular residia na superação devárias dicotomias que embaraçavam oOcidente, sobretudo entre subjetivida-de e cultura. Sustenta que o cantadorpopular possibilita a remissão a um uni-verso primitivo de indissociação entrelirismo e arte, entre culturas objetiva esubjetiva. Não busca, portanto, o coleti-vo puro de Bartók.

O capítulo conclusivo mostra comoessas diferenças levam a projetos dis-tintos sobre o destino das coletâneas. Asimples relação de afinidade naturalque Bartók vê entre seus pólos valoriza-dos é para M. de Andrade problemáti-ca, propugnando ele que seus pares

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Page 25: RESENHAS - scielo.br · DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. 1995-1997. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34. 715 pp. Ovídio Abreu Filho Prof. de Antropologia

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mergulhem nas coisas do povo não ape-nas para produzir obras nacionais, mastambém para superar grandes dicoto-mias como entre indivíduo e sociedade,entre expressão e técnica. Visam assimmenos “à boca do povo” do que às sa-las de concerto.

Desse esboço percebe-se que, sen-do antes de tudo uma metaetnografia, otrabalho de Elizabeth Travassos tem aespecial virtude de ter como interlocu-tor principal o seu próprio objeto. Seus“nativos” não são pensadores filiados àtradição das ciências sociais, mas discu-tem questões a elas pertinentes, estan-do na peculiar posição tanto de nativosquanto de colegas antecessores. A au-tora não poderia propiciar o diálogo en-tre Bartók e M. de Andrade sem entrartambém na conversa, pois a sua etno-grafia envolve posicionamentos sobre apossibilidade de intercâmbio entre ní-veis de cultura e sobre o caráter com-plexo e heterogêneo da cultura moder-na. A cultura aparece aí como produtoconstruído de um intercâmbio constan-te, e não como essência total e coeren-te. Sendo ela vista como um permanen-te processo, contrasta com a autentici-dade popular buscada pelos autores es-tudados. É como se Travassos lhes res-pondesse, narrando suas atividades, emque medida uma “cultura popular” éconstruída pela erudita e quanto os in-telectuais contribuem para criar a idéiade uma nação autêntica, que é mais in-ventada do que descoberta.

Se o debate “nativo” é, assim, enri-quecido pelo distanciamento relativiza-dor da antropóloga, nota-se tambémque esse livro é uma admoestação aque nós, antropólogos, dialoguemos eaprendamos com tradições com menorêxito acadêmico (como os estudos defolclore), bem como com tradições maisdistantes de nós (como teoria e críticade artes, e as próprias artes). O tipo de

antropologia da arte aí exercitado, tãoraro no Brasil, mostra quão fecundo po-de ser tratar os artistas como pensado-res sociais. Reconhecê-los como tal nãoé apenas ser fiel à crença nativa, comotambém ampliar o debate sobre nossasquestões tradicionais, trazendo à bailaconcepções diversas e contribuindo pa-ra o cumprimento de uma das mais am-biciosas promessas da disciplina: a deter no nativo um interlocutor e um es-pelho.