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Resumo A Reserva Extrativista (Resex) marinha Baía do Iguape, situada na Baía de Todos os Santos (BTS), exemplifica a política federal de conservação ambiental fundamentada no uso sustentável dos recursos naturais por populações tradicionais. Contudo, em 2009, o governo estadual propôs a instalação de um polo naval na extremidade sul da Resex. Dessa forma, a instância de decisão da unidade de conservação é desrespeitada por não ter sido consultada e as comunidades pesqueiras se veem diante da perspectiva de riscos no tocante à preservação do meio natural, base de seu sustento. O projeto governamental, que defende uma visão desenvolvimentista e anuncia uma elevada oferta de empregos, foi precedido de um breve estudo que não levou em conta os potenciais efeitos sociais de tal empreendimento. Configura-se, portanto, uma desterritorialização econômica, política e cultural – na imobilidade – das populações tradicionais, diante da imposição da lógica global no lugar. Este artigo analisa as relações de força entre os diversos agentes sociais, assim como os riscos que o empreendimento representa para as populações. Abstract The marine extrativist reserve (Resex, reserve of collect) Bay of Iguape, localized in the Bay of all Saints is un example of the federal policy of environmental protection, funded on durable use of natural resources by traditional populations. Composed of 20 communities practising fishing and/or agriculture, it has been created in 2000. Its deliberative counsel has been settled in 2005 for planning and management, in partnership with the Institute Chico Mendes and Biodiversity. However, in 2009, the State government of Bahia has proposed the installation of a naval pole on the extreme south of the Resex. In this way, the sphere of decision of the unit of conservation is disrespected as it hasn’t been consulted and the fishering communities are face perspectives of risks relative to the preservation of the natural ambient, base of their economical survival. The governmental project, that defends a development vision and announces a high offer of jobs, has been preceded of a brief study that didn’t consider the potential social effects of such an enterprise. It configures so an economical, political and cultural desterritorialization – in the immobility – of the traditional populations because of the imposition of global logic in the place. This paper intends, so, to analyse the relations of strength among the diverse social agents as the risks that the enterprise represents for the populations. Novos Cadernos NAEA v. 13, n. 1, p. 47-70, jul. 2010, ISSN 1516-6481 Resex marinha versus polo naval na baía do Iguape Cathérine Prost – Doutora pela Université de Paris VIII (1999). Professora adjunta da Universidade Federal da Bahia e do Programa de pós-graduação em Geografia da UFBA. E-mail: [email protected] Palavras-chave Reserva extrativista marinha. Participação. Desenvolvimento econômico. Polo naval. Keywords Marine extrativist reserve. Participation. Economical development. Naval pole.

Resex Marinha Versus Polo Naval Na Baía Do Iguape

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texto sobre o conflito na baía do iguape

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  • ResumoA Reserva Extrativista (Resex) marinha Baa do Iguape, situada na Baa de Todos os Santos (BTS), exemplifica a poltica federal de conservao ambiental fundamentada no uso sustentvel dos recursos naturais por populaes tradicionais. Contudo, em 2009, o governo estadual props a instalao de um polo naval na extremidade sul da Resex. Dessa forma, a instncia de deciso da unidade de conservao desrespeitada por no ter sido consultada e as comunidades pesqueiras se veem diante da perspectiva de riscos no tocante preservao do meio natural, base de seu sustento. O projeto governamental, que defende uma viso desenvolvimentista e anuncia uma elevada oferta de empregos, foi precedido de um breve estudo que no levou em conta os potenciais efeitos sociais de tal empreendimento. Configura-se, portanto, uma desterritorializao econmica, poltica e cultural na imobilidade das populaes tradicionais, diante da imposio da lgica global no lugar. Este artigo analisa as relaes de fora entre os diversos agentes sociais, assim como os riscos que o empreendimento representa para as populaes.

    AbstractThe marine extrativist reserve (Resex, reserve of collect) Bay of Iguape, localized in the Bay of all Saints is un example of the federal policy of environmental protection, funded on durable use of natural resources by traditional populations. Composed of 20 communities practising fishing and/or agriculture, it has been created in 2000. Its deliberative counsel has been settled in 2005 for planning and management, in partnership with the Institute Chico Mendes and Biodiversity. However, in 2009, the State government of Bahia has proposed the installation of a naval pole on the extreme south of the Resex. In this way, the sphere of decision of the unit of conservation is disrespected as it hasnt been consulted and the fishering communities are face perspectives of risks relative to the preservation of the natural ambient, base of their economical survival. The governmental project, that defends a development vision and announces a high offer of jobs, has been preceded of a brief study that didnt consider the potential social effects of such an enterprise. It configures so an economical, political and cultural desterritorialization in the immobility of the traditional populations because of the imposition of global logic in the place. This paper intends, so, to analyse the relations of strength among the diverse social agents as the risks that the enterprise represents for the populations.

    Novos Cadernos NAEAv. 13, n. 1, p. 47-70, jul. 2010, ISSN 1516-6481

    Resex marinha versus polo naval na baa do IguapeCathrine Prost Doutora pela Universit de Paris VIII (1999). Professora adjunta da Universidade Federal da Bahia e do Programa de ps-graduao em Geografia da UFBA. E-mail: [email protected]

    Palavras-chaveReserva extrativista marinha. Participao. Desenvolvimento econmico. Polo naval.

    KeywordsMarine extrativist reserve. Participation. Economical development. Naval pole.

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    Cathrine Prost

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    INTRODUO

    A zona costeira, embora estreita, do ponto de vista de sua extenso no

    globo terrestre, aparece, todavia, como uma rea especfica, por ser interface entre

    continentes e mares e oceanos. O litoral sempre foi muito atrativo, pela presena

    de recursos pesqueiros, de ecossistemas particulares de alta riqueza ecolgica

    (restingas, manguezais etc.), importantes em vrias escalas, do local onde se situam

    at a vida marinha em geral, mas tambm como plataforma para a descoberta do

    mar e das terras alm-mar. Observa-se, contudo, no sculo XX, uma tendncia

    litoralizao das formas de ocupao do espao (MIASSEC, 2001). Certos

    usos do solo ocorrem essencial ou principalmente na faixa costeira. Dentre as

    atividades registradas nessas reas do planeta, citam-se a pesca, a navegao, a

    atividade porturia e o turismo litorneo. Outros usos do solo no so atrelados

    a esse tipo de rea, mas tendem a privilegiar sua implantao; o caso de certas

    indstrias e particularmente no caso brasileiro da urbanizao. Miassec (2001)

    salienta que a revoluo industrial do sculo XIX no foi fundada sobre uma

    revoluo das tecnologias martimas, salvo o vapor. J a partir dos anos 1950,

    desenvolve-se uma verdadeira revoluo dos transportes martimos, permitindo

    uma maritimizao do mundo. A diversidade dos usos do solo e dos recursos

    hdricos pode se traduzir por uma potencial conflituosidade entre eles.

    O recorte espacial em escala local aqui utilizado para ilustrar esses conflitos

    a baa do Iguape, pertencente Baa de Todos os Santos, situada a cerca de 100 km a leste de Salvador. A baa do Iguape abrange uma reserva extrativista

    (Resex) marinha que se estende sobre guas interiores cuja principal origem o

    rio Paraguau e manguezais. Criada em 2000, ela visa proteger principalmente os

    ecossistemas de manguezal e aquticos, assim como o modo de vida das populaes

    locais extrativistas pescadores, incluindo marisqueiros em uma lgica de

    conservao ambiental. Em 2005, o conselho deliberativo da Resex foi criado com

    a eleio dos diversos delegados, no intuito de conduzir o planejamento e a gesto

    da unidade de conservao (UC). Contudo, apesar da existncia da UC, o governo

    estadual decidiu implantar um polo naval projeto reduzido ao de ampliao de

    canteiro naval aps consulta populao local ao sul do territrio da Resex,

    sem os preliminares e necessrios debates e tomada de deciso no seio da Resex.

    Esse trabalho objetiva, portanto, apresentar reserva extrativista Baa do

    Iguape, o modo especfico de funcionamento desse tipo de unidade de conservao,

    assim como prever o carter conflituoso com o projeto em curso, de ampliao de

    canteiro naval, cujos potenciais efeitos devem se traduzir em aspectos negativos

    sobre a dinmica da rea, do ponto de vista ambiental, social e econmico.

    A metodologia utilizada, alm de levantamento bibliogrfico, de trabalhos

    de campo com aplicao de questionrios e entrevistas para conhecer a rea

    de estudo, assim como de participao em audincia pblica e em reunies da

    Comisso Pr-Iguape1, no intuito de consolidar as discusses acerca dos riscos

    potenciais e da mobilizao das populaes locais.

    1 A zONA cOsTeIRA, Um esPAO geOgRfIcO RARO e esTRATgIcO

    A localizao litornea coloca como pressuposto usos particulares, sendo

    alguns deles praticamente exclusivos dessa rea. Com a revoluo industrial,

    as necessidades de matrias-primas como ferro e carvo aumentaram; para os

    pases que no as possuam, era necessrio import-las. Devido ao seu carter

    ponderoso, o transporte martimo apareceu como o mais adequado. A revoluo

    desse meio de transporte, aps a Segunda Guerra Mundial, permitiu um aumento

    exponencial, graas especializao dos navios e elevao das capacidades de

    carga (MESSIAC, 2001). Alm disso, como observa Moraes (2007), as zonas

    costeiras constituem as bases terrestres de explorao dos recursos martimos,

    tendo, em primeiro lugar, os recursos pesqueiros, mas tambm recursos minerais,

    como o caso da camada pr-sal, descoberta ao largo da costa brasileira (frente

    aos estados de So Paulo, Rio de Janeiro e Esprito Santo). A diversidade desses

    recursos indica, desde j, o carter estratgico do litoral para a explorao dos

    mesmos. Salienta-se que, o domnio de fachada litornea permite, graas ao avano

    das tecnologias, o domnio sobre espaos martimos e seus recursos, interesse que

    ganha destaque nas ltimas dcadas e est cada vez mais regulado por normas

    e acordos internacionais. De modo a viabilizar a explorao desses recursos

    martimos, acompanham infraestruturas especiais, como portos, indo de recortes

    da linha de costa, oferecendo abrigo natural, at os terminais porturios, com

    1 A Comisso Pr-Iguape formada por representantes de organizaes sociais (Movimento da Pesca, Conselho Pastoral dos Pescadores, etc.), entidades que tratam de temas ambientalistas (Grmen, Instituto Bzios, Onda Azul, Gamb) e instituies de ensino e pesquisa (MGEO-UFBA).

    AndreaNotaVerificar o ue litoralizao do espao.

    AndreaNotacitar as informaes de localizao e colocar no textos a questo da maritizao

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    seus equipamentos de transbordo e de armazenamento de mercadorias diversas.

    Desempenham uma funo importantssima ainda hoje, visto que a maior parte

    do transporte intercontinental de mercadorias utiliza o meio martimo como

    principal via de transporte. Embora se possa citar notveis portos fluviais, graas

    trafegabilidade de largos rios, como o caso de Manaus, a cerca de 1.500 km

    no interior das terras amaznicas, os portos martimos mantm a esmagadora

    predominncia nos fluxos de grande distncia, que representam cerca de 80% do

    comrcio mundial. Em uma configurao territorial como a brasileira, em que as

    ferrovias no chegaram a ser concebidas como uma rede de integrao nacional,

    a localizao costeira conserva um alto valor estratgico nos fluxos nacionais de

    circulao, alm do forte peso dos internacionais.

    Outro uso do solo, muito mais recente na histria da humanidade, mas que

    ganhou uma importncia significativa desde o sculo passado, reside no turismo,

    promovido pelas conquistas trabalhistas de frias pagas e pelo aumento do nvel

    de vida nos pases industrializados, a partir dos anos 1950. As praias se tornaram

    espao de lazer e os stios ambientalmente mais preservados, ensolarados e

    considerados de alta beleza cnica, que atraem o imaginrio de massas de citadinos

    em busca de frias para descansar ou, eventualmente, praticar esportes aquticos.

    No tocante distribuio geogrfica da populao mundial, embora essa

    seja dispersa no conjunto das terras emersas, observa-se, em vrias escalas, uma

    predominncia da ocupao humana em rea costeira. Moraes (2007, p. 21) lembra

    que cerca de dois teros da humanidade habitam em zonas costeiras, localizando-

    se beira-mar a maior parte das metrpoles contemporneas. Portanto, a

    densidade no litoral se revela alta, embora desigual, ao longo das linhas da costa.

    Uma consequncia que deriva em parte dessa concentrao populacional

    reside na implantao de muitas indstrias. A teoria de localizao industrial leva

    em conta uma srie de fatores2 para explicar a distribuio geogrfica desse setor

    econmico. O Brasil figura como um exemplo por excelncia de concentrao

    de vrios dos fatores citados na faixa litornea, em decorrncia do padro de

    ocupao a partir da costa atlntica por parte dos colonizadores portugueses, e de

    uma interiorizao mais efetiva do interior do pas, apenas a partir da segunda

    metade do sculo XX. Atualmente, a concentrao populacional na zona costeira,

    2 Preo de compra do terreno e construo do estabelecimento, preo da energia, nvel de impostos, proximidade da matria-prima/recurso a ser processado ou gua, proximidade dos eixos de comunicao, proximidade da mo de obra, proximidade de outras indstrias complementares, proximidade dos mercados consumidores

    incluindo a concentrao de numerosas metrpoles, acarreta a concentrao de mo

    de obra e de mercado consumidor, assim como a de indstrias nas regies mais

    desenvolvidas economicamente. Com isso, conclui-se que o alto valor estratgico

    da fachada litornea, especificamente no Brasil, onde os vetores de urbanizao

    espontnea ou no de industrializao e de turismo se mostram muito dinmicos.

    Mas, se o litoral apresenta vantagens locacionais mpares, lembra-se que

    se trata de um espao relativamente escasso, se comparado com a extenso das

    terras continentais. Esse carter lhe atribui um potencial de gerao de renda

    diferencial, podendo levar a uma renda monopolstica, quando do controle de um

    local de qualidade especial em relao a algum tipo de atividade (HARVEY, 2005, p. 222), mas tambm ou justamente por isso a uma potencial conflituosidade

    entre usos. Diversas escalas e paradigmas de valores so confrontados nos debates

    contraditrios acerca dos usos do espao costeiro.

    Em um perodo marcado pela preocupao com um desenvolvimento com

    sustentabilidade ambiental, a economia ambiental tem desenvolvido instrumentos

    de valorao dos recursos naturais, conferindo valor aos servios ambientais, ou

    ainda estimando os custos de impactos negativos sobre os ecossistemas. Todavia,

    como observa Moraes (2007), os recursos ambientais, condies de vida e

    produo, so de contabilizao muito mais complexa, ao envolver consideraes

    mais subjetivas, como as belezas cnicas, por exemplo. O debate, embora avanado,

    no forma consenso. Uma possibilidade a de buscar uma valorao de base

    espacial o valor dos lugares, composto pelo conjunto dos recursos de um lugar,

    equao muito mais complexa, uma vez que a totalidade no se reduz soma de

    seus componentes. O lugar entendido ento como um espao de produo e

    reproduo de um grupo humano, uma possibilidade de uso social com um dado

    potencial produtivo, o qual permite uma abordagem vocacional que desvendaria

    suas vantagens e desvantagens (em face de cada uso), em comparao a outros

    lugares (MORAES, 2007, p. 19). Parafraseando Santos (2008), ele o lcus que

    permite ao Mundo, entendido como modelo de produo global, realizar-se em

    funo de seus atributos. O lugar , portanto, determinado, no s pelos recursos

    que abarca, mas tambm pela sua localizao e caracterizao geral. Moraes prope,

    ento, a noo de valor contido, em que residem fatores naturais e histricos, com destaque para as tcnicas. Mas, necessrio tambm levar em considerao

    o valor criado, pelo modo de explorao do lugar, determinado em funo dos diversos interesses em jogo. O autor afirma que a sustentabilidade deve seguir

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    a opo por usos que permitam a manuteno das maiores possibilidades de

    exerccio de outros usos (MORAES, 2007, p. 20).

    Mas, observa-se que se a valorao consiste em atribuir valor de troca

    a bens ou conjuntos de bens, a valorizao remete apropriao material,

    transformando recursos da natureza em valores de uso. A valorao contabilizada

    por economistas, enquanto a valorizao o feito de classes sociais excludas dos

    grandes circuitos da economia e, no nosso pas, sistematicamente marginalizadas,

    em favor da lgica excludente capitalista. Estes usam, de fato, uma certa valorao

    dos recursos naturais (atravs da venda, por exemplo), mas a valorizao dos lugares

    contempla tambm um conjunto de relaes sociais historicamente construdas,

    o espao banal enunciado por Santos (2002). Para as populaes tradicionais,

    a natureza no representa apenas um amontoado de recursos, mas tambm

    um abrigo, por ser um local de moradia, um local onde se exercem relaes de

    solidariedade orgnica e que contm valores simblicos que contribuem para forjar

    uma identidade local. Na baa do Iguape, pode-se perceber uma densidade social

    entre os pescadores e marisqueiros, definida por Duvignaud (apud SANTOS, 2008,

    p. 318) segundo a copresena dos homens em um local cujas relaes so movidas

    pela afetividade e pela paixo, e levando a uma percepo global, holista, do

    mundo e dos homens.

    Todavia, como ressalta Santos (2008), no perodo do meio tcnico-cientfico-

    informacional, o espao permeado pelo processo contraditrio do Mundo, que

    se expressa no lugar, imprimindo a este uma lgica interna ao mercado que se

    exerce como lgica externa ao lugar. Ignorando a opinio da populao local,

    os agentes hegemnicos apenas buscam no lugar as condies para realizar

    seus objetivos de produo e/ou circulao com maior produtividade. O autor

    explica a luta que se desenrola para o uso do espao entre empresas e instituies

    hegemnicas em situao ativa, e outros agentes sociais em posio passiva. A

    lgica exgena do Mundo, quando se impe ao lugar, tende a excluir mais ainda

    os setores desfavorecidos, menos modernos e informados, provocando uma

    desterritorializao dos mesmos. Esse caso se configura em virtude da acelerao

    do tempo e da amplitude dos fluxos, em populaes geograficamente fixas, ou seja,

    surge uma desterritorializao de populaes locais marginalizadas das decises

    sobre o espao, embora elas tenham construdo, no curso da histria, laos fortes

    de identidade com o lugar. A desterritorializao, nas suas dimenses econmica,

    poltica e cultural, ocorre, neste caso, na (e por causa da) imobilidade em favor da

    territorializao de grandes empresas funcionando em redes que expressam a sua

    mobilidade (HAESBAERT, 2004). As populaes excludas perdem controle sobre

    o espao por elas historicamente ocupado, no garantem seus direitos fundamentais

    de cidadania e podem perder tambm sua identidade sociocultural, quando seu

    espao alterado. Essa situao se revela especialmente aguda quando se trata de

    populaes tradicionais, que vivem em estreita comunho com a natureza. Mas

    tambm em escala do lugar que se pode encontrar o acontecer solidrio em que

    horizontalidades ocorrem, defrontando-se e afrontando verticalidades.

    Diante da conflituosidade latente da diversidade de usos do solo e da

    gua na zona costeira, e da disparidade de foras entre agentes sociais, tal como

    acima citado, o planejamento e a gesto pelo Estado so cruciais. No litoral

    brasileiro, existem unidades de conservao (UC) de vrios tipos no Oceano

    Atlntico, como parques nacionais marinhos, e no continente, variando de APP3 a reservas extrativistas (Resex). A diferena das reas de preservao permanente

    para as de uso sustentvel incluem as populaes locais, no objetivo de proteo

    ambiental graas ao carter tradicional das mesmas, implicando em um profundo

    conhecimento do meio natural e uma consequente sustentabilidade dos modos

    de vida. o caso, em especial, das Resex, onde as populaes so organizadas

    de modo a cogerenciar seu territrio com o rgo ambiental, o Instituto Chico

    Mendes de Conservao da Biodiversidade (ICMBio). Os extrativistas participam

    da gesto, fundamentados nos seus saberes ambientais acumulados e transmitidos

    pela oralidade e experincias, ao longo de geraes.

    Todavia, as polticas pblicas mostram contradies internas, como o

    caso da implantao, pelo governo estadual, de um polo naval em uma Resex

    marinha federal. O exemplo mostra claramente o papel paradoxal do Estado, na

    encruzilhada entre um discurso pregando a proteo ambiental, visando reduzir

    as presses internas e externas no campo ecolgico-poltico, e aes de promoo

    do dito desenvolvimento econmico, em detrimento da citada proteo ambiental,

    embora vrios projetos utilizem o discurso de desenvolvimento sustentvel. Esse

    problema aguado quando os agentes sociais tradicionais no dispem de ttulo

    de propriedade. As Resex deveriam ser mais protegidas, uma vez que so registradas

    como concesso real de uso coletivo. Mas, a prtica demonstra que elas enfrentam,

    malgrado seu estatuto legal, questes fundirias e de uso dos recursos naturais

    no resolvidas, que se traduzem em conflitos.

    3 rea de Preservao Permanente.

    AndreaNotaUsar para falar da a relao dos recursos com as populaes tradicionais.

    AndreaNotaPode-se citar ao falar da questo da luta social e de como o empreendedor ver o territrio.

    AndreaNotapara citar ao descrever o que uma resex.

    AndreaNotaao falar da contradio e do favorecimento do estado para com os empresrios tratar ainda da questo quilombola e dos direitos violados. o caso de enseada e gua.

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    2 A ReseRvA exTRATIvIsTA BAA DO IgUAPe

    A Reserva Extrativista Baa do Iguape se estende sobre 8.117,53 hectares,

    sendo 2.831,24 ha de manguezal e 5.286,29 ha de guas internas brasileiras (Figura

    1). Sua criao expressa o reconhecimento do valor ecolgico que a rea contm,

    ou seja, uma valorao de tipo econmico-ecolgico, mas igualmente a valorizao

    consagrada pelas populaes locais para as quais o manguezal representa o lcus

    do seu habitat e de seu trabalho, assim como um lugar repleto de significados

    simblicos, o que leva considerao sobre a incomensurabilidade dos valores,

    como salientam autores como Martnez Alier (2007).

    Figura 1. Reserva extrativista Baa do Iguape.

    O manguezal representa um ecossistema costeiro extremamente importante

    para a vida, em razo de suas diversas funes ecolgicas. Situado preferencialmente

    na foz de um rio, esturio ou at em linha de costa, o manguezal cumpre muitas

    funes, tais como reteno de sedimentos e matria orgnica, proteo das

    margens, berrio e viveiro de diversas espcies da ictiofauna, como tambm de

    espcies de anfbias e de aves. Ele ainda se revela importante para a conservao

    de recifes de coral, localizados a dezenas de quilmetros dos mangueais. Essa

    riqueza, expressa entre as mais altas produtividades primrias, do ponto de vista

    biolgico4, serve de base para as prticas sociais e o consequente sustento de

    numerosas populaes costeiras, no mundo e no Brasil, tal como o caso na

    Baa do Iguape. Nela, encontram-se 20 comunidades5, agrupando cerca de 20.000

    pessoas vivendo da pesca artesanal, segundo os agentes do Conselho Pastoral dos

    Pescadores (CPP), que trabalham na regio do Recncavo baiano6.

    A pesquisa de campo se desenvolveu em vrias comunidades, sendo algumas

    de carter relativamente urbano, nas sedes de municpio e de distritos Maragojipe,

    Nag, Coqueiros e So Francisco do Paraguau, no municpio de Maragojipe; e

    So Francisco do Paraguau e Santiago do Iguape, no municpio de Cachoeira e

    outras de carter nitidamente rural, no municpio de Cachoeira Caonje, Calol,

    Imbiara, Dend, Engenho da Ponte e Engenho da Praia.

    A Resex marinha abriga a atividade de pesca artesanal, que se caracteriza,

    dentre outros fatores, por capturas multiespcies. De fato, peixes variados, de

    gua salobra e salgada, compem a dieta e a base da renda dos extrativistas, assim

    como crustceos, como camaro, e moluscos diversos (sururu, ostra, sarnambi

    etc.). A pesca desempenha um importante papel, seja pelo consumo direto, seja

    pela renda gerada pela venda das capturas.

    Na baa do Iguape, o carter artesanal da pesca se evidencia tambm por um

    grau de tecnologia extremamente simples: os apetrechos so variados, indicador da

    necessria polivalncia na pesca imposta por capturas que no fornecem uma renda

    substancial. Artes fixas, como as gamboas, ou mveis, como as redes de nilon

    grosso, formam os instrumentos dos pescadores nas suas variadas estratgias. As

    mulheres se voltam preferencialmente para a atividade de mariscagem, ou seja, de

    coleta de mariscos diversos em reas de manguezal ou em bancos de areia. Elas

    geralmente no dispem de embarcaes e se locomovem at os locais de captura

    4 Segundo Messiac (2001), a produtividade atinge 8.800 kilocalorias/m/ano. 5 Segundo o IBAMA. 6 O cadastramento dos extrativistas ainda no foi realizado, impedindo fornecer dados precisos.

    AndreaNota relevante citar no texto este aspecto da pesca artesanal.

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    caminhando ou embarcando em canoas, quando os pescadores lhes cedem espao.

    Os pescadores dispem, na sua maioria, apenas de canoas a remo, eventualmente

    movidas a vela, quando o vento permite. Os barcos motorizados so uma exceo

    na Resex; algumas comunidades organizadas em torno do Movimento da Pesca

    e do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP) obtiveram, atravs de projetos,

    canoas de fibra de vidro, motorizadas, utilizadas de forma comunitria por grupos

    previamente definidos. As aquisies visam uma economia do esforo manual e

    uma maior agilidade nas expedies de pesca. Mas, a predominncia da canoa a

    remo, aliada ausncia de tecnologia, implica, portanto, em um raio de autonomia

    limitado prpria baa do Iguape, com exceo de pescadores de So Roque do

    Paraguau, que se aventuram, s vezes, alm da chamada barra, na Baa de Todos

    os Santos. No entanto, no se observa deslocamentos mais longos, como se pode

    observar em outros segmentos da costa brasileira.

    Com esses meios de produo, a renda oriunda da atividade pesqueira

    permanece em nveis muito modestos. O censo do IBGE de 2000 mostra a

    predominncia, nas reas de estudo, de rendas baixas sendo todas as categorias

    profissionais confundidas ao indicar que dois teros dos recenseados afirmam

    ganhar at 2 salrios mnimos. Somado a isso, cerca de 23 % no declaram

    rendimento mensal, dando uma ideia do quadro geral de pobreza. A Figura 2

    ilustra o levantamento efetuado, em campo, da renda mdia da pesca incluindo

    a mariscagem na estiagem, perodo de maiores capturas, mas de preos mais

    baixos do que na estao chuvosa.

    Figura 2. Renda mensal mdia obtida na pesca (em reais).

    Fonte: dados de campo.

    Percebe-se que os levantamentos efetuados junto a pescadores e

    marisqueiras do resultados oscilando entre 30 e 650 reais mensais, salvo um valor

    extremo prximo de 1.600 reais. A modstia da renda deve ser ainda avaliada luz

    do tamanho das famlias. Nas reas rurais, apresentem padres elevados, sendo

    a metade das famlias com 4-5 filhos. A pobreza no se torna misria devido ao

    aporte dieta dos produtos da pesca e da agricultura, no caso das comunidades

    rurais. Como costumam dizer os entrevistados: S morre de fome quem

    preguioso. Todavia, as condies de trabalho e de moradia completam um

    quadro social desfavorecido, em particular nas reas rurais, haja vista a condio

    das casas (muitas feitas de taipa, com poucos mveis e cmodos) e dos servios

    bsicos deficientes ou inexistentes, como o caso do acesso gua para consumo,

    deficiente nas sedes urbanas e inexistente em quase todas as reas rurais.

    A importncia social da pesca apresentou um aumento relativo nas ltimas

    dcadas, em razo do declnio de atividades econmicas, como a indstria

    de charutos, que chegou a empregar at 5.000 funcionrios no municpio de

    Maragojipe. A crescente concentrao fundiria nas mos de grandes fazendeiros

    tambm compeliu as populaes voltarem-se para outras atividades, uma vez

    que as terras disponveis para a agricultura de subsistncia e para o extrativismo

    vegetal diminuram e que as fazendas privilegiam o (pouco) emprego a pessoas de

    outros municpios. Na Baa de Todos os Santos, a drstica diminuio, na dcada

    de 1990, da extrao de petrleo iniciada em 1950, constituiu mais um fator que

    levou os habitantes da regio a migrar para a regio metropolitana de Salvador

    ou a se dedicar atividade pesqueira (PROST, 2007). Enfim, o deslocamento do

    eixo principal de fluxos, provocado pela construo da rodovia BR 324 na dcada

    de 1930, em detrimento da via frrea que ligava Cachoeira e So Flix a Salvador,

    contribuiu mais ainda para frear a economia regional. Registra-se uma atividade

    industrial no distrito de So Roque do Paraguau, como a instalaode um canteiro

    de plataforma da Petrobras, na dcada de 1970, em que nativos tambm foram

    empregados. Todavia, sem encomendas, e, portanto, sem atividade durante uma

    dcada, a gerao de empregos desvaneceu. Hoje, o canteiro est novamente

    ativo, mas sua atividade irregular no proporciona uma segurana profissional

    aos moradores locais, alm de privilegiar tambm migrantes de outros municpios

    com a qualificao necessria.

    Em face desse quadro econmico, as solues encontradas pelas populaes

    locais foram principalmente duas: migrao e pesca. Quarenta por cento dos

  • Resex marinha versus polo naval na baa do Iguape

    59

    Cathrine Prost

    58

    entrevistados afirmaram que algum parente tinha migrado. Contudo, observa-se

    uma diversidade de migraes, com destaque para uma maioria de deslocamentos

    de at um ano (Figura 3). As alternativas de trabalho servem, portanto, como

    alternativas passageiras e no verdadeiras.

    Figura 3. Percentual do tempo passado fora da comunidade, pelos migrantes das famlias.

    Fonte: Pesquisa de campo.

    Para quem fica na regio da baa do Iguape, a soluo privilegiada foi,

    primeiramente, de se orientar para a explorao dos recursos pesqueiros,

    acentuando a presso demogrfica sobre os mesmos, contribuindo, em parte, para

    a evoluo negativa do esforo de pesca. Convm lembrar, todavia, os fatores

    estruturais que contriburam a ampliar os esforos de pesca acima elencados, alm

    de outros fatores, como a implantao da central hidreltrica na barragem Pedra

    do Cavalo, que prejudica a pesca (PROST, 2007).

    Como colocado na parte dedicada zona costeira, para ordenar a ocupao

    e o uso do espao preciso que um agente pblico, o Estado, intervenha de

    modo a prevenir ou resolver conflitos. Na rea de estudo, no intuito de proteger

    o ambiente natural e cultural da Baa do Iguape, uma Resex marinha criada por

    decreto, em 2000. A criao expressa o reconhecimento do valor ecolgico da

    rea, mas tambm o das populaes tradicionais e, enquanto tal, portadoras do

    direito de fixar sua territorialidade. As populaes tradicionais so definidas

    pelo rgo ambiental federal como grupos histricos que exercem determinadas

    prticas sociais de baixo impacto ambiental sobre a natureza, h pelo menos duas

    geraes. No Brasil, vrios espaos ocupados por diversas populaes tradicionais,

    tais os seringueiros, as quebradeiras de coco babau, os pescadores artesanais,

    as comunidades quilombolas, indgenas ou de fundo de pasto, dentre outras,

    fazem uso secular de territrios de uso comum, contando com regras coletivas

    de manejo construdas ao longo de um tempo histrico, com baixa ou densidade

    tcnica quase nula.

    Convm ressaltar aqui a observao de Almeida (2004) sobre outro

    componente da definio de populaes tradicionais alm do histrico e

    da relao com a natureza autorizado a partir da Constituio de 1988 e

    confirmado com a ratificao, em 2002, da Conveno 169 da OIT, que reside na

    autoidentificao. Esse marco provm no apenas de avano, na esfera dos poderes

    polticos, mas tambm de uma histria de luta para o reconhecimento de garantia

    de apropriao de seus territrios por grupos tradicionais diversos, entre os quais

    a aliana dos seringueiros do Acre e dos indgenas ganhou destaque internacional.

    Em outras palavras, o termo de tradicional no se refere apenas histria, mas

    incorpora as identidades coletivas redefinidas situacionalmente numa mobilizao

    continuada (ALMEIDA, 2004, p. 10).

    Essa situao manifesta na Baa do Iguape, onde, aps uma visita de

    exposio do IBAMA sobre reserva extrativista, um grupo de pescadores se

    mobilizou para a criao da Resex marinha. Apesar disso, a UC federal permaneceu

    praticamente sem concretude durante cinco anos, pois o conselho gestor s foi

    implantado em 2005, revelando a falta de prioridade do IBAMA nos assuntos

    costeiros. Assim sendo, os pescadores formaram o grupo pr-Resex, com apoio de

    segmentos da sociedade civil organizada, para pressionar o IBAMA a deslanchar o

    processo de constituio da esfera decisria da UC. De fato, o Sistema Nacional de

    Unidades de Conservao (SNUC) prev a criao de um Conselho Deliberativo

    nas Resex, presidido pelo rgo ambiental federal hoje ICMBio para cogerir

    a UC com sua populao extrativista. O estatuto de reserva extrativista se destaca

    em relao com as demais UCs, at as de uso sustentvel, por serem administradas

    por uma instncia de deciso deliberativa, contribuindo para o avano da cidadania.

    O Conselho formado por uma metade de representantes dos extrativistas e

    outra metade formada por rgos pblicos e demais instituies do setor privado

    e do terceiro setor, atuantes na rea da Resex e do seu entorno ou usurias dos

    recursos hdricos. Os extrativistas compem a maioria absoluta no Conselho e

    detm a vice-presidncia.

    Nas UCs de uso sustentvel, com a diversidade dos grupos tradicionais,

    evidencia-se uma diversidade de usos dos espaos ocupados, podendo aliar espaos

    de uso comum dos recursos naturais e apropriao individual de bens. o que se

    AndreaNotarelevante para ilustrar o a importancia o conceito da resex.

    AndreaNotaImportante para sitar ao falar da questo dos movimentos sociais e de conquistas importantes como a conveno 169.

    AndreaNotaImportante para o segundo captulo, mas necessrio estudar mais sobre o grupo pr-resex.

  • Resex marinha versus polo naval na baa do Iguape

    61

    Cathrine Prost

    60

    nota na Baa do Iguape entre os pescadores lavradores, que fazem uso de pequenas

    roas para a agricultura de subsistncia e usam de forma coletiva espaos cada

    vez mais raros de extrativismo vegetal, alm de pescar e mariscar na prpria

    Baa do Iguape. Como os meios aquticos so, por excelncia, espaos de acesso

    livre, as regras de uso comum so especialmente importantes para evitar a tragdia

    dos comuns. As regras consuetudinrias so traduzidas em normas jurdicas sob

    formas diversas, indo de acordos de pesca a planos de uso a serem elaborados no

    mbito de uma Resex. Com um plano de uso aprovado, toda pessoa pertencente

    a uma Resex ou no, deve respeitar as regras de uso dos recursos naturais no

    permetro da referida UC. O plano de uso objetiva garantir a sustentabilidade

    na explorao dos recursos naturais, preservando, por conseguinte, o modo de

    vida do grupo social que deles tira seus meios de (re)produo social. Ele torna

    norma reconhecida por lei, as prticas sociais sustentveis de manejo dos recursos.

    Alm desta meta, o Conselho Deliberativo exerce uma funo de controle social

    sobre os acontecimentos em curso ou projetados, dentro da Resex ou na rea do

    seu entorno (10 km). Isso significa que qualquer ao deve ser preliminarmente

    submetida apreciao do Conselho, quer seja de mera pesquisa, quer seja de

    interveno mais concreta sobre o meio natural ou a organizao do territrio.

    A partir de 2007, a Resex Baa do Iguape ganhou um coordenador local do

    ICMBio, impulsionando uma maior regularidade das assembleias para se pensar

    o planejamento e a gesto da Unidade de Conservao. Representa, assim, um

    avano concreto, embora persistam muitas dificuldades, em consequncia de uma

    mobilizao freada por limitao de recursos financeiros e materiais, e problemas

    locais de gesto. A participao dos extrativistas da Resex fundamental por vrias

    razes intrnsecas, mas tambm para melhor garantir os objetivos da Resex diante

    das aes de atores externos, tal como o caso da central hidreltrica da barragem

    Pedra do Cavalo, no rio Paraguau, ou do projeto em curso, de implantao de

    ampliao de canteiro naval em So Roque do Paraguau.

    3 POlTIcA DO gOveRNO: A AmPlIAO DO cANTeIRO NAvAl

    O setor da construo naval, concentrado nas regies costeiras, detm

    uma importncia estratgica para a defesa nacional, interessante, portanto, para o

    governo federal. Alm disso, conhecido por gerar milhares de empregos diretos

    e indiretos, atravs de contratos bilionrios e por engendrar repercusses sobre

    outros setores econmicos, como a siderurgia e as indstrias eltricas e mecnicas.

    Segundo dados do governo da Bahia, a indstria naval mundial fatura em mdia

    120 bilhes de dlares por ano. Nesses ltimos anos, as demandas interna e externa

    tm aumentado e devem seguir essa tendncia, incentivando os planejadores

    a pensar na ampliao do complexo naval no mundo e no Brasil. De fato, em

    escala nacional, com a descoberta da camada de petrleo na rea do pr-sal, a

    expectativa anunciada pela Petrobras de encomendar um pacote com dezenas de

    navios para transporte de leo e derivados, de embarcaes de apoio martimo e

    de plataformas7. Tendo em vista a insuficiente capacidade de construo naval na

    regio Sudeste, outras regies esto sendo contempladas nos projetos estaleiros

    e canteiros, como o caso do Sul e do Nordeste.

    Na Bahia, o governo tomou a iniciativa de planejar um projeto de ampliao

    de canteiro naval em So Roque do Paraguau, iniciado como um projeto de polo

    naval, com canteiro e estaleiro, inserido em um programa mais amplo chamado

    Acelera Bahia. Esse fomento ao desenvolvimento econmico se enquadra tambm

    em uma conjuntura favorvel, com o Plano de Acelerao do Crescimento

    (PAC), lanado pelo governo Lula. Desde o primeiro mandato, o presidente da

    repblica tinha se posicionado em favor de investimentos pblicos para dinamizar

    a construo naval. O programa Acelera Bahia foi elaborado no intuito de atrair

    novos investimentos para o estado.

    A Bahia goza de vantagens locacionais inegveis, com quase mil quilmetros

    de costa, em uma localizao central em relao ao pas e ao continente. A Baa

    de Todos os Santos, na qual est inserida a baa do Iguape, possui mais vantagens

    por ser umas das maiores baas do mundo, com 1.052 km de guas protegidas e

    profundas. Por isso, desde as dcadas de 1970 e 1980, cinco polos navais foram

    implantados nela, sendo trs em Aratu e um em So Joaquim, na Baa de Todos

    os Santos, e o maior em So Roque do Paraguau, no sul da baa do Iguape. No

    atual projeto, trs reas foram estudadas para receber o futuro polo. Em audincia

    pblica na Cmara Legislativa em Salvador, foi apresentada, de forma breve, a

    justificativa da opo pela localizao preferencial em So Roque do Paraguau,

    em relao aos dois outros locais estudados: Aratu e Madre de Deus. Dentre

    os argumentos, foram destacados o profundo calado existente em So Roque

    (10 metros), permitindo a entrada de navios de grande porte, a ausncia de

    7 O contrato est estimado entre 40 e 50 bilhes de dlares at 2012.

  • Resex marinha versus polo naval na baa do Iguape

    63

    Cathrine Prost

    62

    impedimentos ambientais e a fraca circulao de embarcaes o que se entende

    bem pelo fato de estar afastado dos portos de Salvador e Aratu, e de se tratar de

    uma reserva extrativista (!). Todavia, a simples vantagem locacional no suficiente

    para garantir a atrao de investimentos privados. Para tanto, o poder pblico deve

    tambm aplicar polticas para ganhar a preferncia em relao a outros Estados,

    fenmeno conhecido na geografia como guerra dos lugares.

    Destarte, o governo se encarrega de viabilizar a instalao do polo, de vrias

    formas. Estima-se que o investimento total seja de cinco bilhes de reais, sendo

    quatro por empresas e um por parte do governo, sob forma da implantao de

    infraestrutura. Na conjuntura atual, a infraestrutura industrial existente em So

    Roque vista pelo governo e vrias empresas como um trunfo para uma ampliao

    que permita uma atividade contnua, graas instalao de um dique seco, para

    permitir a construo, o reparo e a manuteno de plataformas e de navios. Os

    investimentos privados recebem incentivos fiscais, no mbito do projeto Programa

    Estadual de Incentivos Indstria Naval (PRONAVAL), institudo pela Lei n 9.829, de 2005, e regulamentado pelo Decreto n 11.015, de 20088. Por fim, a

    criao anunciada de mais de 10.000 empregos para os jovens da regio, em uma

    primeira fase do projeto, requer, contudo, qualificaes especficas. Os investidores

    solicitam que o Estado proporcione as condies de formao do pblico visado.

    Os prefeitos da regio tambm esto interessados nisso para evitar o que aconteceu

    at ento no canteiro de So Roque do Paraguau, que contratou essencialmente

    pessoas de fora, por falta de qualificao dos habitantes locais. Assim sendo, em

    maro de 2009, foram iniciados cursos de trs meses do Programa de Mobilizao

    da Indstria Nacional de Petrleo e Gs Natural (PROMINP), realizados atravs

    de parceria entre o governo estadual, a Federao de Indstrias da Bahia (FIEB),

    o SENAI e o SEBRAE9. Os cursos so gratuitos e distribuem bolsas para

    1.200 jovens de municpios do chamado Recncavo sul: Maragojipe, Salinas, da

    Margarida, Nazar das Farinhas, Santo Antonio de Jesus, Cachoeira, So Flix do

    8 Disponvel em: . Acesso em: 10 ago. 2009. Cita-se: i) a dilao de prazo de 72 meses para o pagamento de 98% do saldo devedor mensal do ICMS decorrente das operaes prprias resultantes do investimento previsto no projeto beneficiado pelo PRONAVAL, ii) a dispensa do pagamento do imposto incidente nas operaes com concreto, cimento, ao e bens do ativo destinados construo e reparo de dique seco por empresa habilitada ao PRONAVAL e iii) o deferimento do lanamento e pagamentos do ICMS relativos s aquisies de ativo fixo.

    9 Servio Nacional de Aprendizagem Industrial e Servio Nacional de Apoio s Pequenas e Mdias Empresas.

    Paraguau, Itaparica, Vera Cruz e Jaguaripe. Como a escolha dos jovens para a

    capacitao no atende o conjunto de perspectivas levantadas nas comunidades,

    vrios jovens pagam os cursos, aumentando a oferta de mo de obra potencial.

    A Secretaria da Indstria, Comrcio e Minerao (SICM) j assinou

    protocolos de intenes para a construo de trs estaleiros na baa do Iguape,

    sendo um com a empresa baiana Odebrecht, outro com a empresa Estaleiro

    da Bahia S.A., uma jointure da OAS, Setal e Piemonte e um terceiro com a UTC Engenharia. O objetivo do polo fornecer os seguintes produtos: sondas de

    perfurao, plataformas de produo de petrleo, navios FPSO (Floating,

    Production, Storage and Offtake) e navios de apoio a petroleiros. Segundo a CUT10, com a construo de dois navios ou duas plataformas por ano para atender as

    demandas da Petrobras, o canteiro-estaleiro movimentaria cerca de dois bilhes de

    reais, o que aparece como uma perspectiva muito lucrativa para o setor privado e

    vantajosa para o poder pblico especialmente se levamos em conta as eleies de

    2010 Este afirma uma forte gerao de empregos, o que visto pela populao

    no pesqueira dos municpios vizinhos como uma boa oportunidade, haja vista o

    declnio econmico que a regio conheceu nas ltimas dcadas.

    4 POTeNcIAIs ImPAcTOs NegATIvOs A cONflITUOsIDADe eNTRe DOIs mODelOs De DeseNvOlvImeNTO

    O polo naval , portanto, apresentado como uma excelente oportunidade

    para redinamizar a economia no Recncavo sul, alm de ter repercusses positivas

    sobre a siderurgia na Bahia. Todavia, se a populao no pesqueira do municpio de

    Maragojipe tende a aprovar o projeto, no se pode dizer o mesmo das populaes

    pesqueiras da Resex, nem de vrias organizaes sociais e ambientalistas e de

    parte da comunidade universitria, como atestam os questionamentos feitos em

    assembleia do conselho deliberativo da Resex aos representantes do governo e

    das empresas e em seminrios organizados em universidades11.

    O anncio de empregos que tanto atrai parte da populao questionvel, luz de eventos passados ocorridos na regio costeira. De fato, empreendimentos

    10 Disponvel em: . Acesso em: 10 ago. 2009.

    11 O projeto foi apresentado sumariamente na assembleia do conselho, no dia 16 de outubro de 2009. Dois seminrios foram organizados na UFBA, em 2009; no dia 18 de maro na Escola Politcnica, e no dia 24 de abril, no Instituto de Geocincias e na UCSal, no dia 27 de novembro.

    AndreaNotaPorque o fato de se tratar de uma reserva extrativistas no representou impedimento para a escola do Iuapa par construir o estaleiro ou polo naval.

    AndreaNotaQuais foram as politicas aplicadas pelo governo para atrair o empreendimento do polo naval

    AndreaNotaAprofundar o que incentivos fiscais. ver a questo do compromisso que que o governo da Bahia.

  • Resex marinha versus polo naval na baa do Iguape

    65

    Cathrine Prost

    64

    como a barragem e central hidreltrica Pedra do Cavalo ou a indstria petrolfera

    em municpios como Madre de Deus ou So Francisco do Conde mostram o

    quanto a populao local marginalizada no mercado de trabalho desses grandes

    empreendimentos. Em pesquisa realizada em Madre de Deus, as populaes

    pesqueiras do municpio sentiram uma diminuio sensvel das capturas desde o

    incio das atividades industriais, por razes diversas, elencadas a seguir: poluio

    por vazamentos de leo e derivados, obstruo de canal na mar baixa por causa

    da instalao de dutos, redes rasgadas nas estruturas de perfurao, dentre outros

    fatores. Nessas condies, pescadores e marisqueiras enfrentam muitas dificuldades

    de sobreviver apenas da pesca. Embora procurem se empregar na indstria de

    petrleo, muitos se queixam da precariedade da estabilidade do trabalho, alm da

    necessidade de investimento prvio para adquirir as qualificaes necessrias. Nem

    os royalties que as prefeituras recebem da Petrobras se traduzem em benefcios econmicos e sociais para esse segmento da populao.

    As perspectivas tampouco so promissoras na Baa do Iguape. Em visita na

    Enseada12 comunidade mais prxima de So Roque do Paraguau e do futuro canteiro naval , marisqueiras relataram que dos doze jovens que se candidataram a

    cursos de formao profissional, apenas trs foram selecionados. Outros pagaram

    um curso, de forma a concorrer s futuras vagas de trabalho.

    Alm disso, do ponto de vista social, o anunciado desenvolvimento sustentvel

    propalado pelo governo estadual corre fortemente o risco de se traduzir, na realidade,

    em efeitos danosos para as populaes, dos pontos de vista social e cultural. De fato,

    em excurso organizada pelo Instituto de Gesto das guas e Clima (ING), em

    agosto de 2009, no mbito do projeto Iguape Sustentvel, foram realizados encontros

    com representantes de vrias comunidades ribeirinhas contempladas no projeto. Um

    secretrio da prefeitura de Maragojipe informou equipe do Iguape Sustentvel

    que a perspectiva de indstria naval j desencadeou uma especulao imobiliria

    na sede municipal e fundiria no entorno da baa. As lideranas sociais tambm

    confirmaram que as grandes empresas interessadas no polo esto comprando

    terras de fazendeiros para futuros empreendimentos. Paralelamente, comunidades

    organizadas na resistncia aos grandes projetos industriais sofrem empecilhos na

    concretizao de certos projetos que lhes trariam melhoria na vida cotidiana, como

    o projeto de extenso eltrica at a comunidade de Salaminas13.

    12 Visita efetuada em dezembro de 2009. 13 Destaca-se o caso da comunidade de Salaminas, que ganhou financiamento por um edital

    lanado pelo rgo estadual Bahia Pesca, para um projeto elaborado pelo Movimento da

    Outros efeitos sociais decorrentes do projeto do governo so tambm

    previsveis, como o aumento das migraes, o que deve aguar a questo de

    moradia precria incluindo a habitao como o saneamento bsico , a deficincia

    em servios bsicos (educao e sade), o trfico de drogas j presente no

    municpio, a delinquncia e a prostituio. Essas consequncias foram observadas

    em municpios prximos, que sofreram profundas mudanas aps uma ampla

    implantao industrial, como comprovam os testemunhos de integrantes do

    Movimento da Pesca no II Encontro das Resex Marinhas da Bahia, realizado em

    Maragojipe, em outubro de 2009.

    Percebe-se desde j que as carncias de moradia, especialmente de

    saneamento, devero contribuir para o aumento de despejo de esgoto in natura no manguezal, considerado pelos prprios extrativistas como um supermercado

    vivo. Em estudo anterior sobre os impactos de atividades humanas na regio da

    baa (MONTEIRO; PROST, 2009), relatou-se a degradao do meio ambiente,

    notadamente por desmatamento de vertentes originado pela pecuria e pela

    extenso urbana da sede de Maragojipe. Com a chegada de novos habitantes,

    estima-se uma consequente urbanizao espontnea, uma vez que a Petrobras

    construiu em So Roque uma vila residencial para abrigar 200 funcionrios e

    uma vila de alojamentos para hospedar apenas 1.000 trabalhadores das empresas

    contratadas para a ampliao do canteiro14. Com isso, de se esperar uma

    ampliao e agravamento da mudana de processos morfogenticos para processos

    pedogenticos, expressados por eroso das vertentes e assoreamento da baa e

    cursos dgua. Na rea prevista do empreendimento, reas de manguezal devem ser

    retiradas, infringindo a lei ambiental em um total descompasso com o argumento

    alegado para justificar a extenso de uma linha eltrica como citado acima. Tambm

    sero desmatadas reas cobertas por Mata Atlntica e restinga. Embora o stio tenha

    sido escolhido em nome de um calado profundo, as empresas contratadas alegam a

    necessidade de dragagem e planejam o aterramento de parte do canal, implicando

    em profundas alteraes no meio aqutico e prejudicando a fauna presente em

    todos nveis de profundidade dgua (superfcie, coluna dgua e fundo). Os

    Pesca, que inclui a aquisio de equipamentos para produo, estocagem e beneficiamento da pescaria, assim como para consolidao da organizao social (ex: freezers, geladeira, televisor, leitor de DVD, etc.). O uso desses equipamentos est impossibilitado at hoje por falta de energia eltrica, cujo projeto de extenso est impedido pelo IBAMA, sob pretexto de evitar o corte de dois ps de rvores de manguezal para a instalao de postes. O argumento soa falacioso se comparado com as reas de manguezal que vo ser desmatadas para a extenso do canteiro de So Roque.

    14 Disponvel em: . Acesso em: 11 jul. 2009.

  • Resex marinha versus polo naval na baa do Iguape

    67

    Cathrine Prost

    66

    investidores declaram que a atividade no polui, mas a existncia do canteiro em So

    Roque j evidencia a concentrao de ferro na gua, o que propicia o agravamento

    de fenmeno de mar vermelha, tal como ocorreu em 2007, encadeando uma

    alta mortandade de peixes. Segundo o professor de biologia Everaldo Queiroz,

    estudioso da Baa de Todos os Santos, novos fenmenos como esse podem

    ocorrer, inclusive com espcies letais a humanos. O relatrio organizado por ele

    sobre o projeto do polo15 conclui que entre os impactos ambientais esperados,

    contam ainda com os efeitos das construes projetadas, que vo atingir as reas

    de rochas sedimentares que armazenam guas subterrneas. Last but not least, o projeto vai provocar srios impactos em guas jurisdicionais tombadas por decreto

    presidencial na condio de santurio para os mamferos aquticos16. A anlise do

    EIA-RIMA tende a minimizar os efeitos negativos da atividade sobre a natureza,

    com uma projeo limitada da rea de influncia direta, uma relativizao dos

    impactos ambientais, um reducionismo do conceito de territorialidade e uma

    viso pessimista sobre a sustentabilidade da pesca artesanal. Os efeitos negativos

    so surpreendentes, quando comparados aos efeitos positivos, entre os quais as

    consideraes econmicas (de alta significncia) predominam (Figuras 4 e 5).

    Figura 4. Distribuio dos impactos positivos e

    negativos (RIMA, 2009).

    Figura 5. Comparao dos escores cumulativos

    dos impactos negativos e positiva de mdia e alta

    significncia (RIMA, 2009).

    Apesar dos projetos de cunho social e ambiental apresentados pelo

    complexo de empresas para legitimar o empreendimento, afeta-se diretamente

    as condies de trabalho das populaes pesqueiras em rea de manguezal,

    prejudicando as condies socioeconmicas de vida das localidades do entorno da

    baa. So, assim, ameaadas as prticas dessas populaes, que integram uma cultura

    prpria, mas desprezada por uma sociedade moderna busca de crescimento

    econmico ilimitado.

    15 Polo naval uma proposta que no pertence a todos ns. Apresentado em seminrios: 18.03.09, na Escola Politcnica da UFBA, e 24 de abril no Instituto de Geocincias da UFBA.

    16 Relatrio da apresentao do Prof. Queiroz nos seminrios realizados na UFBA e na UCSal.

    O governo de Estado afirma adotar uma metodologia incluindo a

    participao das populaes. Nada mais inverdico do que essa afirmao. Como

    foi informado anteriormente, as Resex so gerenciadas por lei, por um conselho

    deliberativo, o que significa que qualquer interveno dentro do seu permetro deve

    passar por aprovao prvia. Ora, uma audincia pblica realizada em Maragojipe,

    em dezembro de 2008, a pedido dos ministrios pblicos federal e estadual, contou

    com uma imensa maioria de participantes contrria ao empreendimento. Contudo,

    a situao agravada por uma mobilizao contra o projeto, que se apresenta

    fragmentada e relativamente fraca diante dos interesses e aes dos governos

    estadual e municipal. Apenas as comunidades organizadas no seio do Movimento

    da Pesca se opem abertamente ao projeto, uma vez que as autoridades seduzem

    as populaes atravs da promessa de dinamizar a economia local, gerando

    emprego e renda.

    Esta situao em curso nos remete a deduzir a desterritorializao das

    populaes locais, em particular as extrativistas, uma vez que elas perdem controle

    sobre o seu espao tradicional de apropriao material e simblica de seu territrio,

    delimitado em reserva extrativista a partir de 2000. A lgica exgena do capital

    se impe ao lugar, sem levar em considerao a soma dos efeitos negativos

    para as populaes pesqueiras e de pescadores-lavradores. Utiliza-se o discurso

    do desenvolvimento sustentvel para retirar das populaes o poder sobre

    seu territrio. Estas chegam, portanto, a ser ameaadas de desterritorializao, apesar ou por causa de sua imobilidade geogrfica. Frente a elas, figuram

    atores econmicos que funcionam em rede e usufruem de uma mobilidade muito

    maior. O sinal disso a reflexo sobre uma transferncia do projeto ou parte

    dele para o estado do Rio de Janeiro, por parte do consrcio Setal/OAS, caso o

    projeto encontre dificuldades na aprovao do licenciamento ambiental17. O que

    as empresas requerem a acessibilidade ao local do projeto, o que garantido

    pelo Estado no af de atrair investimentos privados. Por sua vez, os pescadores

    no gozam da mesma capacidade de se locomoverem para exercer suas prticas.

    Isso particularmente o caso na baa do Iguape, com a grande maioria das

    embarcaes constituda de canoas a remo. A situao futura na baa do Iguape,

    no caso do projeto de polo naval vingar retrata, portanto e infelizmente ,

    a desterritorializao in situ, uma vez que as populaes locais, no estando conectadas com os grandes fluxos globais, arriscam perder o controle sobre suas

    17 Disponvel em: . Acesso em: 11 jul. 2009.

    AndreaNotaTentar ver o relatrio de Everaldo Queiroz sobre a bts.

    AndreaNotaAbordar a questo do da desterritorializao.

  • Resex marinha versus polo naval na baa do Iguape

    69

    Cathrine Prost

    68

    bases territoriais de reproduo e referncia (HAESBAERT, 2004, p. 255) e que

    o capitalismo globalizado acompanhado de um processo crescente de excluso

    socioespacial. A desterritorializao se expressa igualmente na mudana forada da

    poligonal da Resex atravs da Medida Provisria 462, sem passar pela consulta das

    populaes extrativistas representadas no Conselho Deliberativo, como deveria.

    Contudo, as populaes pesqueiras procuram resistir a essa lgica externa

    ao lugar, com a ajuda de redes de horizontalidades. O Movimento da Pesca, citado

    anteriormente, , por exemplo, assessorado pelo Conselho Pastoral dos Pescadores.

    Cita-se tambm a formao de uma comisso pr-Iguape, formada por vrias

    ONGs ambientalistas e professores de pesquisa da UFBA18. Os pescadores contam

    igualmente com o apoio do Ministrio Pblico Federal e o do Ministrio Pblico

    do Estado, que deliberaram, em dezembro de 2008, em audincia pblica realizada

    em Maragojipe, que a ausncia de estudos qualificados levar a medidas judiciais

    contra a implantao do polo em So Roque do Paraguau. Trata-se, contudo,

    de uma relao de foras difcil para os pescadores, uma vez que os interesses do

    setor privado convergem e recebem o apoio das autoridades polticas em nome

    do desenvolvimento. O apoio do Ministrio Pblico pode ser um trunfo para as

    populaes extrativistas locais, porm, no constitui uma garantia, como comprova

    os esforos semelhantes do MPF do Par contra o projeto de central hidreltrica

    de Belo Monte durante anos, mas que no impediu o leilo realizado no dia 20

    de abril de 2010 para a seleo das empresas responsveis pela obra to polmica

    dos pontos de vista social e ambiental.

    cONsIDeRAes fINAIs

    O pretendido desenvolvimento sustentvel , mais uma vez, utilizado

    como argumento para omitir numerosos impactos sociais, econmicos, culturais

    e ambientais negativos para as populaes tradicionais que o empreendimento

    do polo naval deve acarretar. Essas populaes devem, assim, sofrer uma

    desterritorializao sensvel, pela perda de poder efetivo sobre seu territrio,

    reconhecido, no entanto, por lei federal atravs da criao da Resex no ano de 2000.

    O principal problema dos pescadores de habitar uma rea considerada estratgica

    por sua localizao geogrfica e condies naturais, assim como por j abarcar um

    18 A Prof Guiomar Germani e a autora, ambas professoras do Mestrado em Geografia da UFBA.

    canteiro naval, facilitando assim o aumento de seu valor para os setores modernos,

    atravs de mais investimentos em infraestrutura. Mas, o lugar no apenas o local

    onde o Mundo, com sua lgica global, se manifesta; ele tambm o espao banal,

    onde se formam as resistncias a essa mesma lgica. Essa resistncia se revela

    extremamente importante. De fato, ela no se refere apenas defesa dos grupos

    tradicionais em escala local. Ela essencial para um combate, em escala nacional,

    caso o projeto do polo naval vingue, da mesma forma que foi a luta dos indgenas

    da Terra Raposa Serra do Sol para a poltica indigenista brasileira. Com efeito, se

    o polo for implantado, significar que as unidades de conservao no tm mais

    garantido o direito proteo ambiental (no caso das UCs de uso sustentvel,

    frisa-se a proteo socioambiental) na totalidade de seus respectivos territrios.

    Essa garantia constitui um amparo legal essencial embora no suficiente para

    a sustentabilidade da territorializao das populaes nelas inseridas. Aprovar o

    projeto do polo implicaria abrir uma brecha perigosa para o questionamento dos

    territrios das reas protegidas. Resistir aparece, portanto, como imprescindvel

    para garantir os direitos adquiridos e conquistados por populaes historicamente

    excludas, para garantir a justia ambiental das populaes tradicionais que tanto

    contribuem para uma real sustentabilidade social, cultural e ambiental.

    A autora agradece ao CNPq pelo apoio pesquisa.

    RefeRNcIAs

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    AndreaNotaImportante argumento para usar em relao a falta de efetividade das resex.

  • Cathrine Prost

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    Texto submetido Revista em 25.11.2009Aceito para publicao em 27.04.2010