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A MÁQUINA - 1

Ressonância - A Máquina

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20ª Edição

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A MÁQUINA - 1

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2 - RESSONÂNCIA

FICHA TÉCNICA

COORDENAÇÃO GERALAna BrochadoJosé DurãoManuel Morais

REDAÇÃOAna Rita MedeirosAna Rita MiraBeatriz LealCarolina AlvesCatarina Paias GouveiaEduardo BentoInês de Sousa MirandaInês PereiraJoana CabritaJoão GramaçaJosé DurãoMiguel Esperança MartinsPatrícia PiresRita MatiasSebastião MartinsSérgio BronzeVasco Peixoto

DESIGN GRÁFICOManuel Morais

CAPAManuel Morais

ILUSTRAÇÕESCatarina Paias Gouveia

IMPRESSÃOSecção Editorial da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de [email protected]

PROPRIEDADEAssociação de Estudantes da Faculdade de Medicina de LisboaAvenida Professor Egas Moniz,Hospital Santa Maria - Piso 01,1649-035 Lisboa217 818 890 | [email protected] www.aefml.pt facebook.com/ressonanciaaefml

Depósito Legal: 178455/02Tiragem: 200 exemplares

EDITORIAL

Com o intuito de celebrar a vigésima edição da Res-sonância, a Equipa Editorial decidiu aprimorar o con-ceito, apostando na imagem e na qualidade da revis-ta, tornando-a mais apelativa à leitura e mantendo a pertinência e atualidade dos conteúdos científicos abordados .

Agora que a Ressonância deu um passo rumo a um futuro diferente, expandindo-se para o mundo online através do site da AEFML e da sua página do Face-book, trazemos-te uma revista completamente refor-mulada de raiz, de forma a poder ir ao encontro dos teus interesses. Somos uma revista elaborada por es-tudantes, com a missão de te alertar para os assuntos daquele que vai ser o nosso quotidiano enquanto fu-turos médicos. Queremos ser um ponto de referência, uma plataforma de informação útil e fidedigna, onde poderás esclarecer as tuas dúvidas e até descobrir algumas curiosidades, nas mais diversas temáticas.

Twenty years from now you will be more disappointed by the things you didn’t do than by the the ones you did do. So throw off the bowlines. Sail away from the safe harbor. Catch the trade winds in your sails. Ex-plore. Dream. Discover. (Mark Twain)

UMA INICIATIVA DE

COM O APOIO DE

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A MÁQUINA - 3

ÍNDICE MENSAGEM DA AEFML

Caro Colega,

É com muito gosto que te apresentamos a nova edi-ção da Revista Ressonância! Como sabes, esta é fruto da dedicação e trabalho de vários colegas teus. Este semestre debruçamo-nos com particular atenção sobre um dos campos mais estimulantes da medicina da atualidade - a Neurociência!É frequente na comunidade médica o gosto pela arte e cultura, e em particular pela escrita. Os teus cole-gas não são exceção! É assim através de uma escrita independente, informativa e bem-humorada, que fica-rás a saber mais sobre o único prémio Nobel da me-dicina portuguesa, o Prof. Doutor Egas Moniz, sobre o trabalho desenvolvido recentemente pela Fundação Champalimaud na Neurologia e até sobre os detalhes mais curiosos da vida de Oliver Sacks, neurologista e autor do famoso livro The man who mistook his wife for a hat.O ano de 2014 foi considerado o Ano Europeu do Cérebro, o que explica a temática escolhida. Contu-do não ficámos indiferentes aos acontecimentos re-centes que têm testado os limites da medicina a uma escala global.O presente ano ficará marcado pelo surto do vírus do Ébola que tem afetado com particular importância os países da África Ocidental. Neste contexto, e porque cabe aos médicos o dever de informar corretamente a população, dedicamos parte da revista a explorar esta temática, para além das suas características mais re-feridas. Como está este vírus a influenciar tomadas de posição e decisões políticas? É desejável o efei-to mediático que se tem gerado à volta deste vírus? O que pensa o especialista Dr. Ricardo Mexia sobre tudo isto?Diz Fernando Pessoa: Sou do tamanho do que vejo. Queremos com esta edição inquietar-te, mostrar-te novas perspetivas, informar-te estimulando o teu es-pírito crítico. Porque ver mais longe é uma escolha. Sê interessado, torna-te interessante!

Contamos contigo para a próxima edição da Resso-nância!

Com os meus melhores cumprimentos,

Tomás Neto da SilvaPresidente da Direção da AEFML 2014-2015

4 CRÓNICA A Migração da Coruja Devia estar morto

6 2014 ANO EUROPEU DO CÉREBRO

António Egas Moniz - Um Nobel ControversoPrémio Nobel da Fisiologia ou Medicina 2014O Estranho Mundo de Oliver SacksMusicoterapia nas Doenças MentaisWall of FameHuman Brain Project

18 TECNOLOGIA Interface Cérebro-Máquina Nanotecnologia em Neurociências

20 O VÍRUS ÉBOLA História do Vírus Estatísticas Comparativas

Os Media e o Impacto Político-Social

26 GRANDE ENTREVISTA A Ricardo Mexia

34 CRÓNICA Arquivo

Nota: alguns autores escrevem sem o Novo Acordo Ortográfico.

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4 - RESSONÂNCIA

Lembro-me muito de Nampula, sabe?, exclamou a velha de repente, subitamente perdida em polaroids de negros e de marfins, de ardósia e giz, de noite e dia, se é que ainda os consegue distinguir. Soube-os a todos, em tempos, todas as noites e todos os dias, na ponta da língua, nem um escapava, continuou ela. De Nampula e do resto. Lá do alto, via as estepes em xadrez, cortadas por trilhos e estradas de distâncias que ninguém conseguia medir, se feitas por homem ou por besta, pou-co importa para o caso, nesta idade já são uma e a mesma coisa. Via as argilas e os ritos, os pós e as ervas, as chamas e as macumbas, os espíritos e as luas, os tempos e os sóis. Mas lembro-me muito de Nampula, sabe? A velha interrompeu-se, as mãos a ameaçar um tre-mor e o olhar a deslizar para o limbo. E o que fazia mais na altura?, perguntei na ânsia de que se mantivesse comigo, e que pareceu resul-tar visto que ela acordou com um estremecimento: Contava as gotas do Amazonas, quase sempre em lamacentas fileiras com séculos de andamento, excepto quando um colossal arapaima se decidia a projec-tar-se das turbulentas profundidades, como um sinal de que passára-mos a fronteira de um reino que não é o nosso. Lembro-me é muito de Nampula, sabe?, e ficou mais uma vez perdida em reminiscências, os mapas e as cidades a pender esfarrapados dos lábios finos, a mente certamente preenchida por imagens da escola, do posto dos correios e do colega Inácio. Lembra-se de mais alguma coisa?, experimentei eu, já sem esperança de resposta, mas olha, um arrepio e lá voltou a falar: O frio também, assegurou-me sem se virar para mim, As torres espira-ladas do Kremlin, como caudas torcidas de dragões chineses, as renas infatigáveis da Lapónia, que por esta altura já nem se devem lembrar se puxam o Natal, se os sonhos, se os contos ou se simplesmente o mundo, e o arbeit macht frei marcado a ferro e fogo, que é somente do mais gelidamente cruel que eu vi na vida. Fez uma pausa. Mas lembro-me muito de Nampula, sabe? E calou-se por longos momentos.Sem coragem para insistir, levantei-me em silêncio para deixar a velha descansar. Ia já a passar a porta do quarto, quando a ouvi de novo: Não me lembro de fazer anos, sabe? Virei-me para ela e dei conta de que estava a falar directamente para mim. Lembro-me de fazer os 80, lem-bro-me dos 81, não me lembro de mais nenhuns a partir daí. Há pouco

o meu sobrinho veio cá com a mulher e eu não sabia quem ela era. Imagine, uma mulher que eu conheço há mais de vinte anos. E uma mulher com quase oitenta e seis que não se lembra, que não sabe, que já foi nau portentosa e sagaz, riquexó e locomotiva, avio-neta e submarino, elefante indiano e balão de ar quente, foi o que quis ser e como quis ser, foi daqui à Lua e nunca se esqueceu do caminho, regressando de cada vez que abria um piano, os de-dos cumprindo hábil e inconscientemente o seu fado, e que agora nem as claves destrinça nas pautas, nem ela sabe onde as guar-dou ou à chave do piano, nem nada disso interessaria de qualquer forma porque nem a mão direita sabe onde deixou a esquerda.Eu podia apenas ouvir transfigurado. E pior que tudo isso, con-tinuou ela, o espelho está de mal comigo. Não me conhece, não me apanha, não me concebe. Portanto, esqueci-me tam-bém de mim. Sinto-me e a estes tubos, estas barras e estes len-çóis, sei que estou aqui. Mas não me sei para além do que me lembro. Esta e aquela viagem sim, mas não o todo, não a jornada da partida à meta, se da meta me aperceber quando a cruzar.

«Sinto-me e a estes tubos, estas barras e estes len-çóis, sei que estou aqui. Mas não me sei para além do que me lembro. Esta e aquela viagem sim, mas não o todo, não a jornada da partida à meta, se da

meta me aperceber quando a cruzar»

Parou por um momento e fixou-se em mim. Vi as pálpebras afasta-rem-se e uma imensidão de tudo encheu o quarto, o espaço infini-to diante de mim, as demandas de uma vida cristalizadas em relu-zentes diamantes, brilhando intensamente no límpido azul-escuro daqueles olhos que já não podiam fazer mais que reflectir, dois vas-tíssimos e profundos lagos espelhando o mastodôntico céu de Áfri-ca, preparando-se para serenar com o cair da noite, embalados pelos ternos roncos das manadas e o bafo morno da savana. A ve-lha ganhou fôlego e sussurrou de uma assentada: Mas lembro-me muito de Nampula. Recostou-se e seguiu no dorso do elefante.

A MIGRAÇÃO DA CORUJA

José Durão

CRÓNICA

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A MÁQUINA - 5

Já devia estar morto. À minha volta todos mortos e eu tranquilamente a respirar pelo nariz. Lembro-me bem dos funerais dos meus pais, dois dias de sol quase repetidos, a mãe primeiro, o pai depois, os dois postos na mesma cova. E é isto. Deles, nem uma recordação. Desenganem--se. Os pais não ficam, vão-se. O único rasto que tenho deles é este retrato, já velhotes, comidos pelo sol, numa moldura azul na minha se-cretária. Se falam em pais penso em caras ictéricas com um retângulo azul à volta. São só alguéns que conheci há muitos anos, demasiados anos, porque já devia estar morto. Avós, tios, primos, muito salário em coroas condolentes. Os meus irmãos marcharam um a um, cancro do pulmão, um enfarte e uns males no rim, por esta ordem, se a memória não se enrola e emaranha, para nunca mais se lhe saber a ponta. A mi-nha mulher foi-se logo a seguir, uma operação a uma anca partida que correu mal. Dei cabo daquele escadote à machadada. Ela não voltou.E assim, entre mortos, vivo. E humildemente vos peço o favor de me explicarem porquê. Depois de dois enfartes como o meu irmão e um cancro nos intestinos dos maus, os médicos adiantaram-se com uma justificação: um milagre. Mas a mim não me convencem, parece mais um engano. Queriam-me a mim, mas a morada estava errada e levaram o Sr. António do andar de baixo. No meu tempo, eram os bichos quem ditava a hora da sentença, assim que tivessem saciado a fome. Neste meu tempo que não devia ser meu, são estas pílulas amarelas e bran-cas, uma ao pequeno-almoço, duas ao almoço e outra antes do deitar, que dizem que, sim senhor, acorde amanhã, ou então, em caso de es-quecimento, não tem outro remédio, literalmente ironizando, senão cair para o lado. Eu, quero dizer, o Ribatejo, o Nabão, a tropa, a fábrica, os livros, os filhos, só ainda não é tudo pó por causa deste boiãozinho. Há uma perversão absurda em acabar a vida sendo um monte de compri-midos que se compram na farmácia, com comparticipação do Estado.Assim sendo, posso afirmar com toda a certeza que já devia estar mor-to. Os médicos disseram o senhor devia estar morto, mas graças a Deus, não está, e não estou. Vivo em casa da minha filha, com o marido e os filhos ainda pequeninos. De manhã vou ao café, de resto vivo em jeito de lapa apregoado a este sofá (escolham um, ou sou comprimidos ou moluscos). As pernas não aguentam mais, as mãos vacilam, os ou-vidos não prestam e a cabeça já não sabe ou não quer saber. Preciso de todos e já não sou preciso por ninguém. Pelo contrário, precisam urgentemente de se livrar de mim. A única coisa que me faz não pôr os comprimidos ao bolso para serem encontrados pelo médico dos mortos (esse não diz é um milagre), é saber que sirvo para me servirem. Para a minha filha me dar ordens, o paizinho coma mais, o paizinho olhe es-sas costas, o paizinho não ponha sal, e assim um dia poder dizer que foi uma boa filha, até ao fim do paizinho que Deus tem, fui uma boa filha.

«As pernas não aguentam mais, as mãos vacilam, os ouvidos não prestam e a cabeça já não sabe ou

não quer saber. Preciso de todos e já não sou preci-so por ninguém.»

Mas não era preciso tanta provação, deixem-na lá seguir com a vida, que já podia levar uns anos de avanço, já devia estar morto. Devia mas não quero. Não quero morrer. Tenho medo de morrer. É verdade que me doem estas rugas e este bigode branco quase tanto quan-to este joelho que há muito não tem solução. Que me dilacera esta sem-função, escapar-se o passado, mais que tudo a solidão. Mas o escuro assusta-me, e o esquecimento apavora-me (não se esqueçam de mim). E, enquanto este joelho não rebenta e as costas suportam, ainda vai sabendo bem a bica de manhãzinha no café da Lurdes.

DEVIA ESTAR MORTO

Beatriz Leal

CRÓNICA

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6 - RESSONÂNCIA

Cnosgeues ler etsa pirimera fasre? Qeuers sbear puqroê? É tduo uma qseuãto de ctonxteo. Btsaa que a pirimera e úmlita latres de cdaa plarava se mnateahnm praa que o teu cébrero ronechçea as plaravas.

PORQUÊ O CÉREBRO?

A máquina mais complexa do Universo encontra-se dentro de ti, en-tre as 8 paredes que compõem a caixa que a suporta: o cérebro humano. Anatomicamente bem definido sinapsa dúvidas e questões às quais o próprio tenta res-ponder. E quanto mais responde, mais dúvidas lhe surgem. É um ciclo de feedback po-sitivo que impulsiona novos ensaios, novos tratamentos, novos riscos e novos dilemas.Um cérebro doente é muito mais do que qualquer outro órgão doente. A sua patologia percor-re nichos que muitas vezes não são visíveis, palpáveis, identificáveis a olho nu, descritíveis sob a análise de um exame objectivo. A “dor da mente” é quantificável numa escala muito mais abstracta quando comparada à dor física. Afinal, o que é a mente? Qual a sua anato-mia? Qual a sua fisiopatologia? Qual a etiologia da nossa personalidade? É este enigma que aguça a fome de descobrir mais acerca desta estrutura enrugada a que chamamos cérebro.

EPIDEMIOLOGIA

Os dados epidemiológicos apontam que problemas associados ao cérebro, abrangendo desde traumas a doenças mentais e perturbações cognitivas, têm um enorme impacto na sociedade e colocam uma maior pressão nos sistemas de saúde, principalmente devido ao envelhecimento da população. Na Europa, cerca de mais de 27% da população (127 milhões) sofre de uma perturbação mental, o que equivale a um custo total de 798 biliões de euros.

O European Brain Council promoveu, em 2014, o ano europeu do cérebro. Contou com a colaboração intensiva de 200 organizações representadas por doentes, profissionais de saúde,comunidades científicas e indústrias especializadas em todas as perturbações mentais, bem como o apoio do Parlamento Europeu e Estados Membros.

O Ano Europeu do Cérebro surgiu com 3 objectivos chave:

1. Prevenção primária: educar a sociedade acerca de como estimar e pro-teger o cérebro e prevenir a doença mental;

2. Promover o acesso aos cuidados de saúde por parte dos doentes com perturbação mental;

3. Aumentar o investimento em doenças mentais para o benefício das futuras gerações.

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A MÁQUINA - 7

2 0 1 4ANO EUROPEU DO CÉREBRO

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8 - RESSONÂNCIA

MAIORES DESAFIOS DA SAÚDE MENTAL

Somos todos testemunhas do aspecto da migração em toda a Europa; o tempo de consulta com um médico são apenas 12 minutos; somos confrontados com as diferenças de acesso aos cuidados de saúde entre estados europeus. Com estes e outros problemas, há que lan-çar um alerta à sociedade e não apenas aos médicos, enfermeiros e políticos, mas sim, essencialmente, às famílias de toda a Europa. Qual o seu papel na manutenção das suas doenças à medi-da que envelhecem e como é que conse-guem obter a melhor qualidade de vida?

«A sua patologia percorre nichos que muitas vezes não são visíveis, palpáveis, identi-ficáveis a olho nu, descritíveis

sob a análise de um exame objectivo.»

Existem áreas de actuação onde é potencialmente viável a obten-ção de bons resultados, como aprevenção do acidente vascular cerebral (AVC), com o educar das populações não só relativamente à tensão arterial ou ao colesterol, mas a outros factores de risco associados ao AVC. O que po-demos fazer relativamente às doenças psicológicas e psiquiátricas como a de-pressão, a esquizofrenia, a perturbação bipolar, cada vez mais emergentes e que retiram qualidade de vida aos doentes? A depressão será, segundo a OMS, a doença mais prevalente em 2030, afec-tando mais pessoas do que qualquer ou-tro problema de saúde, incluindo cancro e doenças cardiovasculares. Como po-demos ajudar as famílias a educarem as crianças e adolescentes relativamente a comportamentos de risco como o con-sumo excessivo de álcool? O álcool e o

tabaco são drogas legais e, como tal, são desafios maiores quando compara-dos a outras drogas ilegais.

CONFERÊNCIAS REALIZADAS

Durante este ano europeu do Cérebro foram realizadas pequenas conferências por toda a Europa com o objectivo de alertar para estes maiores desafios da saúde mental. O European Brain Council juntou intervenientes europeus de todas as especialidades associadas às doenças cerebrais: neurologia, psiquiatria, neurociências, neurocirurgia, neurofarmacologia e grupos de doentes com perturbação mental e neurológica. Em Portugal realizaram-se inúmeras conferências, por exemplo:

Dia Aberto no Instituto de Farma-cologia e Neurociências, Instituto de Medicina Molecular (IMM) Universida-de de Lisboa – Como ter um Cérebro saudável? Apresentação do livro “Dormir é bom, Dormir faz bem”, Teresa Paiva e Helena Rebelo Pinto, 14 de Março, Pa-vilhão do Conhecimento – Ciência Viva. OS NEUROCIENTISTAS VÃO ÀS ESCOLAS - Sessões em escolas dos vários níveis de ensino, asseguradas por investigadores da Sociedade Portugue-sa de Neurociências. Twerk Your Brain - Promover enve-lhecimento activo da população através de workshops e acções de formação em universidades sénior. Organização: As-sociação Nacional de Estudantes de Me-dicina (ANEM) com o apoio do Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde (ICVS) da Escola de Ciências da Saúde (ECS) da Universidade do Minho. Dia 10 de Outubro celebrou-se o Dia Mundial da Saúde Mental.

Para além de tratar doenças, explora-ram-se as conquistas realizadas pelo cérebro para a humanidade: a cultu-ra, a poesia, o teatro e a música são

exemplos. Não só se exigiu melhor ciên-cia, como também se incutiu algum valor de entretenimento.

RECOMENDO

Exposição: LOUCAMENTE. Uma ex-posição sobre o bem-estar da mente a decorrer no Pavilhão do Conhecimento até Setembro de 2015. Procura comba-ter o estigma e incentivar os visitantes a cuidar do seu bem-estar mental. Livro: “Como tornar-se doente mental” de José Luís Pio Abreu. Trata-se de um “manual de instruções” que explica pas-so a passo como adquirir uma doença psiquiátrica. O autor inverte o prisma de forma a tentar desesperadamente contri-buir para a saúde mental das pessoas. O leitor encontra aqui muitos critérios de diagnóstico (segundo o DSM IV), bem como explicações experientes do próprio autor de muitas doenças mentais. Acaba até por se cruzar em muitas delas, por-que ser doente é coisa fácil, difícil é o tra-tamento e mais difícil ainda é manter-se saudável no meio desta civilização.

«Na Europa, cerca de mais de 27% da população (127

milhões) sofre de uma pertur-bação mental, o que equivale

a um custo total de 798 biliões de euros.»

CONCLUSÕES

De uma forma mais pessoal termino a apelar à destruição do estigma associa-do à doença mental, à desmistificação de muitos mitos e à valorização e estimu-lação desta relíquia que cada um trans-porta dentro de si. Ainda existem muitos axónios a percorrer e muitas sinapses a descodificar e só existe uma forma para o fazer: pôr a máquina a trabalhar. Votos de um Feliz Final de Ano Europeu do Cérebro! Inês Miranda

ARTIGO PRINCIPAL

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A MÁQUINA - 9

António Egas Moniz, reconhecido neurologis-ta português, cuja estátua se ergue à entrada da Faculdade de Medicina de Lisboa, nasce em Estarreja, no ano de 1874. Desde cedo mostra interesse pela cognição e, no seio de algumas dificuldades financeiras, ingressa em Medicina. Num percurso auspicioso, é em 1902 convi-dado para ser Professor Auxiliar na Faculdade de Medicina de Coimbra e, anos mais tarde, em 1911, transfere-se para a FML. É também em Lisboa que desenvolve todas as dimen-sões intelectuais que lhe são reconhecidas, como a vertente política. Chega a ser Ministro dos Negócios Estrangeiros de Sidónio Pais e cria um partido político, fiel aos seus ideais de liberdade de expressão, coadunando-se com a criatividade que imprimiu nas suas obras científicas. Também a literatura era uma pai-xão, deixando-nos um espólio que conta com mais de trezentas publicações. Apura nos primeiros tempos como artífice médico as suas perícias e passados largos anos de investigação descobre, em 1927, uma substância opaca aos raios-x, que quando injetada intra-vascularmente, permite obter uma angiografia, técnica amplamente deferida pelo seu inexorável contributo para o diagnóstico. O prestígio internacional começa a impor-se e é reconhecido como o percursor

das técnicas de imagiologia cerebral, ganhan-do o Prémio Oslo em 1945.Com a ousadia intrínseca a um grande cien-tista, começa a delinear as primeiras relações entre o cérebro e o comportamento, ou seja, a doença mental começa a ter como contributo etiológico a estrutura cerebral. Numa altura em que os psicofármacos ainda não eram conhecidos, muitos doentes psiquiátricos, es-pecialmente esquizofrénicos, acumulavam-se sem tratamento. Egas surge com uma inter-venção em 1936, a Leucotomia Pré-frontal, que tinha por base o corte de determinadas fibras de feixes nervosos que ligam o lobo frontal a outros territórios cerebrais.Com baixos índices de sucesso da terapêu-tica, os doentes no pós-operatório revela-vam-se apáticos, tomados pela soturnida-de e de caráter abúlico, o que leva Moniz a publicar “A Leucotomia em causa”. Com o aprimoramento da técnica, a cirurgia con-tinua a fazer-se até aos anos 50, vendo o seu fim quando surgem os psicofármacos.No outro lado do Atlântico, um médico es-tadunidense, Walter Freeman, populariza e massi-fica a Leucotomia, celebrando-a como Lobotomia. Neste processo industrializador são feitas mais de 50.000 cirurgias, e até Ro-semary Kennedy (irmã de John F. Kennedy) é submetida à cirurgia.

Já em 1949 é atribuído a António Egas Moniz

o Prémio Nobel da Fisiologia e Medicina, úni-

co português penhor do galardão. Mais tarde,

o sensacionalismo norte-americano começa

uma onda bem audível de controvérsia em

torno da Lobotomia, já considerada caduca-

da, para a qual contribuiu a massificação con-

duzida por Freeman e os baixos níveis de su-

cesso da técnica, na ordem dos 10%. A par da

glória com que fora coroado, outras correntes

argumentativas menos lisonjeiras surgiram,

com familiares de doentes lesados a protelar,

no decorrer do século passado, protestos no

sentido da revogação do Nobel, pedido pron-

tamente negado pela fundação sueca. Christi-

ne Johnson, uma jovem bibliotecária, cuja avó

saíra vegetativa da leucotomia de que fora

alvo, criou até um site onde adjetivava a técni-

ca como “bárbara”, criando uma militância de

familiares das vítimas, como dizia, no sentido

de desnobelizar Egas. Também alguns mé-

dicos, como Sobral Cid, discorreram sobre o

tema, com opiniões francamente divergentes,

dadas as diferentes escolas médicas de for-

mação.

Hoje olhamos para os avanços de Egas Mo-

niz como verdadeiros desenvolvimentos cien-

tíficos e nem tanto como práticas clínicas a

adotar, injeções de pujança no conhecimento

da relação das áreas cerebrais e comporta-

mento da espécie humana. Pelas primeiras

vezes se assumiu o quebrar da velha dicoto-

mia corpo/alma. E se a ciência pelos séculos

sempre esteve revestida de controvérsia e

falta de consenso, mais uma vez isso acon-

teceu. Pensando na história de quem, por

testamento, deixou ao mundo o prémio, Alfred

Nobel, também ele sairia incomodado com a

sua invenção, a dinamite. A ciência viva é uma

espada de dois gumes e sempre motivado

pelos melhores princípios subjacentes à boa

prática clínica, Egas, à luz do conhecimento

da altura, agia crendo fazer o melhor pelos

seus doentes. Guardamos e comungamos do

espírito audaz e genial com que conduziu até

1955 a sua vida. Uma marca verdadeiramente

indelével no panorama médico mundial.

Sérgio Bronze

ANTÓNIO EGAS MONIZUM NOBEL CONTROVERSO

ARTIGO PRINCIPAL

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10 - RESSONÂNCIA

Em outubro de 2014, o aclamado Nobel da Fisiologia ou Medicina foi entregue a três neurocientistas pela sua descoberta das células que constituem um sistema de posicionamento no cérebro. John O’Keefe, do University College de Londres, com 75 anos, e o casal de investiga-dores da Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia de Tron-dheim, May-Britt-Moser, 51 anos, e Edvard Moser, 52 anos, receberam a notícia de que as suas, ao todo, quatro décadas de investigação na área das Neurociências e, mais especificamente, da deteção de células nervosas no cérebro que são responsáveis pelo nosso sen-tido de “lugar” e geoposição, fizeram deles os mais recentes laurea-dos com o prémio mais cobiçado pela comunidade científica médica.Estas descobertas tornam cada vez mais possível a plena compre-ensão de uma das mais complexas funções corticais: a capacidade de navegação e orientação espacial. Logicamente, será necessá-rio uma espécie de mapa interno do ambiente que nos rodeia para reconhecer os sítios que nos são inequivocamente familiares e aqueles que nunca antes explorámos. Além disso, é fundamental a percepção da posição do nosso corpo no ambiente e, consequen-temente, em relação aos objetos à nossa volta. Dependemos intrin-secamente destas capacidades, interligadas com o sentido de dis-tância e a integração e coordenação dos nossos movimentos para delinear um rumo concreto, evitando um loop infinito de vagueação.

RUMO À DESCOBERTA DAS CÉLULAS PLACEFoi já no final dos anos 60 que John O’Keefe, com um passado que incluía a psicologia fisiológica e investigação acerca da dor, se co-meçou a interessar pelo comportamento animal. Foi então que des-cobriu as células place, quando registou a atividade neuronal de uma porção do hipocampo dorsal, designada área CA1, em ratos que se moviam livremente num espaço limitado. O padrão de neu-roatividade destas células revelou-se completamente inesperado. Cada célula place só ficava ativa quando o animal estava num lu-gar específico do ambiente. Ao mudar sistematicamente o espaço ocupado pelos ratos, O’Keefe mostrou que diferentes células es-tavam ativas em diferentes lugares e que a combinação desta ati-vidade em ambientes diferentes criava um mapa neuronal interno para a navegação dos animais. Concluiu, assim, que o hipocam-po pode conter um conjunto de mapas representados por combi-nações de atividade em diferentes células place que estavam ati-vas em diferentes períodos de tempo e em diferentes ambientes.Em experiências subsequentes, O’Keefe mostrou que estas células

podem ter funções de memória, levando a um processo que designou de remapping – um substrato celular onde a memória de um lugar pode ser armazenada através de combinações específicas de células place.

DO HIPOCAMPO PARA AS CÉLULAS GRID NO CÓRTEX ENTORRINALJá nos anos 90, May-Britt Moser e Edvard Moser, que se encontravam a estudar o hipocampo num laboratório em Oslo, questionaram a ori-gem da atividade das células place. Será que esta era gerada não no

PRÉMIO NOBEL DA FISIOLOGIA OU MEDICINA 2014O PRIMEIRO OLHAR SOBRE O GPS INTERNO DO CÉREBRO

À direita, está um es-quema do rato. O hi-pocampo, onde as estão as células pla-ce, está destacado. O quadrado cinzento representa um esque-ma do espaço onde o rato se movimentou.

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A MÁQUINA - 11

hipocampo, mas fora deste? A maioria do input de informação para o hipocampo vem de uma estrutura na margem dorsal do cérebro dos ratos, o córtex entorrinal. Grande parte do output desta porção cortical projeta-se depois para o corpo tufado (no hipocampo), seguindo para uma outra região do hipocampo chamada CA3, atingindo posterior-mente a área CA1 do hipocampo dorsal, onde O’Keefe descobriu as células place. Em 2002, este casal descobriu que a destruição da via neuronal que liga o córtex entorrinal, através de CA3, à área CA1, não abole a atividade observada nesta última região. Sabendo que o córtex entorrinal interno está direta e reciprocamente ligado à região CA1, os investigadores começaram a admitir que este tivesse alguma influên-cia na atividade das células place. Estas dúvidas estimularam-nos a desenvolver várias experiências que culminaram na descoberta de um novo tipo de célula, a célula grid, que tinha propriedades pouco usuais.As células grid mostraram um padrão de ativação deslumbrante. Es-tavam ativas em múltiplos sítios, ao longo do espaço percorrido pelos

ratos, e juntas formavam nódulos de uma extensa grelha hexagonal, muito semelhante ao que observamos numa colmeia de abelhas. Cé-lulas grid na mesma área do córtex entorrinal interno, ativavam-se ao mesmo ritmo e orientação da grelha, em diferentes fases no tempo. Juntas, cobriam todos os pontos no ambiente explorado pelo animal. Este padrão de disparo celular nunca havia sido observado em qual-quer outro tipo de célula do nosso corpo. Os Moser concluíram que as células grid fazem parte de um sistema abstrato de coordenadas espa-ciais, que providencia uma solução para a medição de distâncias e adi-ciona uma métrica aos “mapas espaciais” do hipocampo. Mostraram também que as células grid, as células head direction – que controlam o movimento da cabeça do animal – e as células border – informam o rato da existência de uma barreira – enviavam depois informações para as células place, presentes no hipocampo. Assim, a sobreposição da informação registada por ambos os tipos celulares permite ao animal saber onde estão os marcos de referência relevantes à sua volta, na-vegar entre eles e integrá-los na sua memória para futura utilização, lê--se no artigo publicado na revista Nature pelos cientistas noruegueses.

QUAL A RELEVÂNCIA PARA OS HUMANOS E PARA A MEDICINA?As doenças do foro cerebral são a maior causa de debilidade do ser humano e apesar do seu enorme impacto na qualidade de vida do doente, muito poucas são as formas de as prevenir ou tratar. Sabemos que o hipotálamo está intimamente relacionado com a memória episó-dica, a mais afetada em patologias como a demência ou o doença de Alzheimer. A melhor compreensão dos mecanismos neuronais que le-vam à consolidação da memória espacial e à criação do nosso sentido de navegação representa um salto gigante no avanço desta odisseia. Ainda não existem correlações clínicas diretas passíveis de aplicar na atualidade, mas o trabalho destes três corajosos neurocientistas veio revolucionar a forma como vemos e interpretamos a comunicação in-tercelular, abrindo portas para novas formas de tratamento e, quem sabe até um dia, cura. Carolina Alves

PRÉMIO NOBEL DA FISIOLOGIA OU MEDICINA 2014O PRIMEIRO OLHAR SOBRE O GPS INTERNO DO CÉREBRO

O córtex entorrinal está salientado a azul. Cada célula grid dis-para quando o animal alcança um determina-do ponto no espaço. Esses pontos estão arranjados segundo um padrão hexagonal.

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Oliver Sacks é um conceituado neurologista e escritor de ori-gem britânica que actualmente vive e ensina nos EUA, conhe-cido pelas suas narrativas de casos clínicos insólitos e cuja obra, pelo seu carácter enriquecedor, é uma excelente aqui-sição para a biblioteca pessoal dos estudantes de Medicina.Tendo desenvolvido um fascínio pelo invulgar e uma perspicá-cia excepcional, temperada com uma sensibilidade e eloquência que rapidamente nos deixam agarrados ao papel, Oliver Sacks considera-se simultaneamente um romântico e um cientista, um médico interessado nos seus doentes e respectivas doenças mas também no drama, na subjectividade e filosofia adjacen-tes. Nos seus livros, a ciência e a escrita conjugam-se numa harmonia descomplicada mas não por isso menos complexa.To talk of diseases is a sort of Arabian Nights entertainment - Eis uma frase que descreve a impressão que os livros de Oliver Sacks nos deixam – podemos encontrá-la no epígrafo de The Man Who

O ESTRANHO MUNDO DE OLIVER SACKS

No livro The Man Who Mistook His Wife For a Hat, Oliver Sacks mostra o estudo que realiza dos seus pacientes. Nesta perspetiva, não estuda apenas a Medicina da doença, estuda sobretudo a filosofia das perturbações da mente. Consideraremos até que Sacks vê a base da condição humana, avaliando a mente, as suas falhas, excessos e modificações com uma visão quase poética da Vida. A nossa leitura é transportada para histórias, quase em jeito de fábula, que nos detalham as nuances da mente humana, olhando não para a doença mas para a pessoa. Serão estas duas componentes indissociáveis mas por vezes separadas na clínica que tornam este relato de Sacks quase uma leitura romântica da paixão de um homem pela mente. Apresentamos então 3 exemplos dos casos de Sacks.

Sacks estabelece então contacto com Jimmie, principalmente por jo-gos, e nota que este procura um propósito nestes jogos. Procurava fa-zer, ser, sentir, queria senso na sua vivência, ou seja “Work and Love”. Foi na missa que Oliver Sacks identificou a essência de Jimmie, o seu espírito, a sua pessoa. Não viu a doença, não viu a perda de memória. Compreendeu que na presença de actividades espirituais, Jimmy, o verdadeiro Jimmy, voltava, ainda que não completamente, a ser um pouco mais a pessoa que era. Será então pertinente questionarmos o que Sacks reflecte ao longo do caso, quando um homem perde um membro reconhece esta perda, mas quando se perde a si mesmo, quem é que lá fica para reconhecer esta ausência? A perda orgânica traduz-se nesta consequência catastrófica da memória. No entanto, a

Mistook His Wife for a Hat, um livro que se baseia na exposição de um conjunto de histórias intrigantes e reflexões profundas. Tal como na história de As Mil e Uma Noites, deambulamos na lei-tura de diversos casos, casos desafiantes, diferentes e por isso mesmo muito interessantes, que não podemos ignorar – quer seja pela escrita cativante do autor como pelo tema insólito da questão. A narrativa é um meio, segundo o autor, de preservar a persona-lidade e identidade do doente aquando da descrição da sua do-ença. Assim sendo, não nos remetemos apenas à descrição do caso clínico ou da patofisiologia da doença. É uma história. Isto toma uma relevância excepcional no caso da Neurologia, onde a doença e a personalidade estão intimamente relacionadas.Oliver Sacks é um neurologista que possui um conhecimento vasto e um talento excepcional para a escrita. Demonstrando uma sensibilidade delicada, os seus livros e as suas histórias possuem um carácter humano e marcam-nos profundamente.

THE LOST MARINERQuando é que se perde o “Eu”? Esta é a questão principal de Sacks neste caso que nos conduz pela história de um doente, Jimmie, com Síndrome de Korsakoff, que não se recorda de nada após 1945. Per-deu o futuro e o passado, vive no presente que ocorreu há alguns anos, sendo esta a sua atualidade. Vive neste presente não profun-damente, com pensamentos e novas conceções mas sim com uma superficialidade da vivência. Sacks inicia este estudo com uma cita-ção de Luis Buñuel “You have to begin to lose your memory, if only

in bits and pieces, to realise that memory is what makes our lives.” Esta passagem leva-nos a uma reflexão da vivência humana e da sua validade. De facto, quando questionado se se sente vivo, Jimmie res-ponde: “Feel alive? Not really. I haven’t felt alive for a very long time.”

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A MÁQUINA - 13

música, a arte, o espírito de comunhão, reavivam e tornam visível o espírito humano.

YES, FATHER-SISTERA Srª B. sem alma. Sacks questiona a paciente, sendo que esta ora lhe responde “Sim, Pai”, “Sim, irmã” ou “Sim, doutor”. Após suposições como a hipomania, foi descoberto um carcinoma que envolvia a porção orbito-frontal dos lobos frontais. Os amigos diziam que se tinha tornado “superficial”, como se não se importasse com ninguém. Tal era verdade. De facto, a Srª B tornava equivalentes um Pai, uma irmã e um médico, tornava equivalente a direita e a esquerda. Via diferença, de facto sabia que ela existia, mas tal não tinha significado para ela, não se importava: “I know the diffe-rence, but it means nothing to me. Father, sister, doctor – what’s the big deal?”. Não estava presente, parecia ter perdido a alma. Esta indiferença é a chamada “joking disease”, traduzindo-se numa dissolução nervosa. A anarquia apodera-se da mente da paciente e esta equaliza tudo, nada mais importa e o caos instala-se. Sabendo então a busca incessante da alma por anatomistas durante muitos anos, será então que a equalização, ou seja, a perda do que torna o importante em algo a ser valorizado, a pista para encontrar a alma?

A PASSAGE TO INDIAPodemos viajar para lugares distantes dentro da nossa mente. É esta a ideia inicial de Sacks quando apresenta esta história pequena, de Bhagawhandi. Foi-lhe diagnosticado um astrocitoma que, após cirur-gia, voltou mais agressivo que nunca e começou uma sequência de alucinações que se iam tornando cada vez mais vivas. Bhagawhandi tinha um olhar “sonhador” durante as alucinações, eram como que reminiscências de lugares passados que estavam presentes ainda na sua mente e que revivia a cada alucinação. Tinha experiên-cias vívidas de pessoas, lugares, paisagens, até mesmo discursos e canções da sua Índia natal. Todas as vivências mentais que as aluci-nações lhe proporcionavam causavam um sorriso misterioso após o transe em que se encontrava quase dias inteiros.Rejeitou a mudança da medicação pois gostava de voltar a casa, fazer pequenas viagens a nichos passados escondidos na mente. Chegou então o momento da maior viagem, a de retorno a casa, para sempre. Durante 3 dias não respondia a estímulos externos, fez a viagem men-tal, de olhos fechados e apoiada pela equipa médica. No primeiro dia, antes da partida, Sacks perguntou: “Bhagawhandi, what is happening?” e ele respondeu: “I am going home. I am going back where I came from – you might call it my return.”Despediu-se e entregou-se ao passado na Índia, abandonando o pre-sente assim que chegou. Ana Rita Medeiros e Catarina Gouveia

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Todos nós ouvimos música todos os dias. Provavelmente, muitos de nós adoramos música, ouvimo-la no carro, durante o estudo ou até no banho. Mas a música tem também uma relação muito próxima com a Medicina. Talvez pouca gente saiba, mas o canto, a perceção ou apenas a audição, têm sido usados em várias terapias para as mais diversas doenças.

O uso da música na recuperação dos doentes é cada vez mais frequente e a musicoterapia é uma prática que tem vindo a ganhar milhares de apoian-tes e com resultados clínicos muito positivos, principalmente na área das doenças mentais.

MUSICOTERAPIANAS DOENÇAS MENTAIS

ARTIGO PRINCIPAL

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ARTIGO PRINCIPAL

A MÁQUINA - 15

aprendido quando eram crianças. Os mais recentes estudos provam que alguns doentes com Alzheimer se lembram muito bem de algu-mas melodias e a introdução de uma nova letra nessas melodias é facilmente retida pelo doente. Ou seja, imaginem cantar o nome dos familiares com a melodia do “Hey Jude” ou algumas memórias ao som de uma sinfonia de Mozart. O potencial terapêutico destas abordagens é imenso para o desenvolvimento da memória e talvez daqui a uns anos possa ser usado com mais frequência.Outra doença neurológica que recorre à musicoterapia é a Doença de Parkinson. Os tremores que tanto incomodam estes doentes quase que desaparecem enquanto ouvem música. Tem igualmente demons-trado resultados promissores na recuperação motora de doentes víti-mas de AVC ou paralisia cerebral.Doentes neurológicos que mal conseguem falar ou mexer-se, conse-guem cantar e, de vez em quando, dançar ao som de algumas músi-cas.Vários estudos têm sido feitos sobre a influência da música na de-pressão e os resultados têm sido positivos. A musicoterapia, associado ao uso de anti-depressivos, demonstrou ser eficaz no tratamento da depressão. Pensa-se que estas melhorias possam estar relacionadas com a libertação de dopamina. Em doentes esquizofrénicos, a música pode ajudar a melhorar o es-tado geral dos doentes, a sua atitude e as suas capacidades de so-cialização. Uma das faixas etárias em que a Musicoterapia tem sido mais testada é a adolescência. Um estudo recente demonstrou que a audição de Mozart antes de dormir, em adolescentes com epilepsia, diminui bastante os ataques epilépticos.Muitas outras áreas se têm testado com esta terapêutica, como a Es-clerose múltipla, o desenvolvimento de bebés que nascem prematuros, a resposta à música no coma, o efeito analgésico da música, entre tantas outras.A musicoterapia é uma área em constante renovação. Há falta de al-gumas evidências científicas e de estudos que comprovem mudanças fisiológicas e/ou bioquímicas que a música possa provocar no nosso organismo. No entanto, os efeitos clínicos da música são inquestioná-veis em algumas doenças, principalmente do foro mental e psicológico.Poderá chegar o dia em que iremos prescrever duas horas de Pink Floyd por dia, ou uma hora de piano à noite. Por estranho que pareça, esse dia pode estar mais perto do que imaginamos. Sebastião Martins

«Um estudo recente demonstrou que a audição de Mozart antes de dormir, em adolescentes com epilepsia, diminui bastante os

ataques epilépticos.»

MAS AFINAL O QUE É A MUSICOTERAPIA?A musicoterapia consiste no uso de intervenções musicais em contexto clínico para melhorar alguns aspetos físicos, emocionais, cognitivos e sociais do indivíduo. Esses aspetos podem ser o alívio da dor, a me-lhoria no discurso, coordenação motora em doentes com Parkinson, a prevenção da ansiedade e ataques de pânico em doentes mentais e tantos outros. Há evidências clínicas e científicas de que a música tem de facto efeito na melhoria de diversas doenças. E quando falamos em música não é a apenas a sua audição mas também a composição, o

o canto ou a dança. As primeiras as-sociações que defendiam a legaliza-ção e reconhecimento desta prática surgiram nos anos 50 nos Estados Unidos da América e desde aí di-versos países têm já associações nacionais e cursos superiores de musicoterapia.Muitos de nós conhecemos a musi-coterapia e até já a vimos em ação mas não a reconhecemos como tal: No filme o “Discurso do Rei” (2010) temos uma cena em que o rei, que tem problemas de gaguez, recita um poema de Shakespeare, ao mesmo tempo que ouve música muito alta através de uns auscultadores, de forma a que não consiga ouvir o que está a dizer. O resultado é incrível: O poema foi recitado do início ao fim, sem hesitação. Este é um excelente exemplo da musicoterapia usada em problemas de fala.No entanto, uma das áreas onde a utilização da música é cada vez mais

frequente é a saúde mental. E os resul-tados têm sido positivos e até intrigantes.Graças à sua capacidade da ativar diversas áre-as cerebrais e pelo facto de ser das atividades humanas que mais estimula o cérebro, a música

é atualmente uma terapêutica farmacológica em crescimento. O seu uso tem sido largamente estudado e aplicado em doentes com Alzheimer. Há registo de casos de doentes em estado avançado de demência que já não conseguiam reconhecer a família mas que aindaeram capazes de se sentar ao piano e tocar uma melodia que tinham

«O resultado é incrível: O poema foi recitado do início ao fim, sem hesitação. Este é um ex-celente exemplo da musicoterapia usada em problemas de fala. [...] Graças à sua capacida-de da ativar diversas áreas cerebrais e pelo facto de ser das atividades humanas que mais

estimula o cérebro, a música é atualmente uma terapêutica farmacológica em crescimento.»

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WALL OF FAME

ANTÓNIO EGAS MONIZ (1847-1955)

Neurocirurgião português, cujas descobertas mais importantes passaram pela angiografia cerebral,

(feita pela primeira vez no homem em 1927), e a leucotomia pré-frontal, (comummente conhecida por lobo-mia frontal) concretizada em 1935 e premiada com o Prémio Nobel de Medicina e Fisiologia em 1949.

THOMAS WILLIS (1621-1675)

Médico inglês, foi considerado um dos melhores neuroanatomistas de todos os tempos.

O seu nome está associado ao “Círculo de Willis” (rede arterial anastomótica na base do cérebro).

PAUL BROCA (1824-1880)

Neuroanatomista e antropólogo francês querealizou a autópsia de um doente que não con-

seguia falar e cujo nome ficou conhecido pela única palavra que conseguia dizer: “Tan”. Broca verificou que a por-ção frontal esquerda do cérebro de Tan estava gravemente lesionada (área de Broca).

DMITRI MENDELEEV (1834-1907)

Químico russo que criou a Tabela Periódica.O seu cérebro foi descrito como tendo 1570 g e

com forte desenvolvimento dos lobos frontal e parietal em comparação com o resto do cérebro.

SEGEY KORSAKOV (1854-1900)

Psiquiatra russo que estudou os efeitos do álcool no sistema nervoso e descreveu a polineurite

alcoólica com sintomas mentais distintos que, mais tarde, ficou conhecida por “Síndrome de Korsakov”. Na dis-

ALBERT EINSTEIN (1879-1955)

Físico alemão que desenvolveu a teoria da rela-tividade. Talvez o mais famoso dos cérebros, foi

preservado após a sua morte em 1955. As porções posteriores dos lobos parietais estavam muito desenvolvidas.

seção, o seu cérebro pesava 1603 g e todas as medidas in-dicaram superioridade do hemisfério esquerdo.

SABIAS QUE...

... o cérebro humano contém cerca de 100 biliões de células nervosas?

... durante o sono, o cérebro consolida as memórias adquiridas durante o dia?

... a área do cérebro humano associada à força de vontade, situada no córtex frontal, teve o seu desenvolvi-mento ao longo dos últimos 200 mil anos?... o cérebro de um recém-nascido aumenta 3 vezes de tamanho durante o primeiro ano de vida?... a falta de sono afecta a capacidade de criar novas memórias?

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Recorrendo a tarefas cognitivas já parcialmente estudadas (motiva-ção, decisão e recompensa, aprendizagem e memória, entre outras), o trabalho desenvolvido pelas equipas portuguesas irá contribuir para a aplicação de protocolos standard de estimulação e análise da asso-ciação de determinados padrões cerebrais de ativação com a dinâmica de resposta. Será assim possível identificar não só as regiões cere-brais envolvidas, como também os circuitos neuronais e os princípios de processamento de informação dentro e entre elas. Mais tarde, os resultados obtidos serão utilizados pelas equipas envolvidas nos ou-tros subprojectos, nomeadamente no desenvolvimento dos modelos cerebrais.

«O principal propósito por trás da formação deste

programa científico foi o aprofundamento do conhe-cimento sobre uma das áreas mais misteriosas e

inacessíveis da ciência.»

Infelizmente, é difícil afirmar que o atual estado da ciência no nosso país seja dos melhores. Até que ponto conseguimos competir com ou-tros centros de investigação? Com os recentes cortes nas bolsas de doutoramento e pós-doutoramento, muitos cientistas portugueses vê-em-se obrigados a emigrar ou a desistir da investigação, instrumento fundamental para o desenvolvimento de qualquer área científica e, cer-tamente, do país. A participação portuguesa no Human Brain Project,

ainda que modesta, mostra que é possível fazer ciência em Portugal com qualidade. O fato de dois investigadores de uma organização por-tuguesa terem sido escolhidos entre tantos para participar num projeto de tal dimensão é prova disso mesmo. Poderá ser este um ponto de partida para a evolução das neurociências em Portugal? Esperemos que sim. Inês Pereira

Fundado em outubro de 2010, com o objetivo de “Criar e desenvolver

(…) um ambiente propício ao desenvolvimento de programas avança-

dos de investigação biomédica e à prestação interdisciplinar de cui-

dados clínicos, (…) que resultem em descobertas pioneiras na área

da saúde com um reflexo direto na qualidade de vida das pessoas”, o Centro Champalimaud para o Desconhecido (CCD) demarca-se hoje da realidade científica portuguesa como pólo de investigação em neu-rociências e cancro de importância crescente. O Programa de Neurociências Champalimaud integra 17 equipas com-postas por elementos de várias nacionalidades com múltiplos objetivos no desenvolvimento e exploração daquilo que sabemos ser, potencial-mente, a melhor máquina do planeta – o cérebro humano. O principal propósito por trás da formação deste programa científico foi o aprofun-damento do conhecimento sobre uma das áreas mais misteriosas e inacessíveis da ciência. Sendo um dos centros de investigação na Europa que utiliza os mais avançados recursos tecnológicos, foram recentemente selecionados dois dos seus investigadores principais, que estão agora integrados naquele que é, possivelmente, um dos mais ambiciosos projetos cientí-ficos de sempre – o Human Brain Project (HBP). Iniciado o ano passa-do com o apoio da Comissão Europeia, o objetivo do HBP é consolidar todo o conhecimento neurológico disponível e reconstruir o cérebro humano com recurso à construção de modelos e simulações em su-percomputadores. O projeto tem a participação de 135 instituições eu-ropeias e internacionais em 26 países e terá uma duração de 10 anos. Zachary Mainen e Rui Costa estão entre os cerca de mais de 200 investigadores incluídos. Envolvidos na coordenação das equipas de Sistemas de Neurociência e Neurobiologia da Ação do CCD, fazem agora parte do terceiro dos 13 subprojetos do HBP - Arquiteturas Cognitivas. Este setor de investigação é coordenado por Stanislas Dehaene, do Collège de France.

... o primeiro sentido a desenvolver-se durante a vida intra-uterina é o tacto? Os lábios e região geniana experimentam a sensação táctil às 8 semanas. ... crianças que aprendem duas línguas antes dos 5 anos de idade têm um maior desenvolvimento da substância cinzenta?... durante o sono, se um indivíduo ressona, não está a sonhar?... não há recetores sensitivos no cérebro?... a leitura em voz alta promove o desenvolvimento do cérebro infantil? Ana Rita Mira e Patrícia Pires

HUMAN BRAIN PROJECT

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reformular as estratégias marketing, de um modo mais personalizado, baseado nos interesses do indivíduo e não tanto o marketing pouco dirigido que hoje se verifica. Um dos problemas que se verifica nas pessoas com uma lesão na me-dula espinhal é que não conseguem, por exemplo, controlar ou sentir a bexiga. A colocação de um sensor que ajude a decifrar quando é que a bexiga está cheia e quando é que começa a contrair poderá ser uma solução eficaz para o mesmo, enviando essa informação para o cére-bro do paciente (mais uma vez wireless), avisando-o da necessidade de urinar e acaba por concretizar, através do envio de uma mensagem pelo mesmo sistema, para algum dispositivo que esteja na bexiga e que a esvazie. Com diferentes sensores, poderá haver a possibilidade de restabelecer sensações e movimento, em pacientes com danos na medula espinhal.No entanto, a interface cérebro-máquina ainda está em fases muito ex-perimentais quer em humanos (sendo apenas eticamente aceitável os que tenham algum tipo de paralisia, epilepsia, esclerose múltipla amio-trófica e outras doenças debilitantes), quer em animais, além de que a utilização de EEG e do facto de todo este processo ser não invasivo ainda está longe de ser concretizável. Ainda é necessário um melhor conhecimento do cérebro, com recurso ao uso de uma ECoG (ele-trocorticografia), por exemplo, que se baseia num método muito mais invasivo, colocando-se um sensor em contacto directo com o cérebro, implicando, desta forma, cirurgia. Porém, é sempre bom pensar nas potenciais aplicabilidades que esta tecnologia poderá ter e pensar que um dia, por exemplo, um mudo ou um doente com esclerose múltipla amiotrófica, já em fases mais avançadas, poderia falar outra vez ou até ser possível jogar apenas com os nossos pensamentos ou controlar certas coisas, como a luz da casa ou um carro de brincar com esta tec-nologia (estes últimos já de uma forma não invasiva). Eduardo Bento

Na era tecnológica em que vivemos, próteses valvulares e dos mem-bros, pacemakers e transplantes (p.e. transplantes faciais com pele obtida por impressão a 3D) são uma realidade e, para além de tudo isto, pessoas completamente paralisadas podem manusear próteses emitindo apenas sinais do lobo frontal, sem que estas passem pela medula espinhal (ou seja, sem a dependência de nervos periféricos). Sabendo tudo isto, será que ainda há a possibilidade de jogarmos no computador apenas com o poder do pensamento, via wireless e de forma não invasiva?A interface cérebro-máquina consiste na ligação que se pode fazer en-tre o cérebro e um dispositivo externo. O que acontece é que são co-locados eléctrodos de electroencefalograma (EEG) na cabeça e esses eléctrodos detectam os sinais emitidos pelo cérebro, transmitindo-os para um dispositivo, seja este uma prótese, um iPhone, um compu-tador, um brinquedo, o que quer que queiramos utilizar para modular a actividade. Portanto, uma das grandes aplicabilidades clínicas que esta interface poderá ter será a aquisição de mobilidade total em pa-cientes cuja utilização de próteses convencionais não é possível, para além de poder ser utilizada para lazer, o que pode aumentar a atenção e até auxiliar no tratamento de transtorno do défice de atenção com hiperactividade.Para além disso, esta interface ainda pode ter outras funcionalidades: pode permitir uma melhor investigação do comportamento do cérebro enquanto o indivíduo utiliza esta inovação (portanto, é emitida radiação do EEG para um computador que traduz em imagem o que realmente está a acontecer em termos dos diferentes lobos) e assim, os sinais emitidos pelo cérebro podem ser usados para análise, por exemplo, em neuromarketing. Basicamente, no neuromarketing verifica-se o que capta mais a atenção do indivíduo em termos de produtos ou o que o faz ter mais afinidade emocional e, deste modo, passar-se-á a

INTERFACE CÉREBRO-MÁQUINA

TECNOLOGIA

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uma das áreas com maior investigação da utilização destes compostos para fins médicos. A título de exemplo, na Doença de Alzheimer encon-tra-se em estudo a utilização de nanopartículas péptidas revestidas com citrato que transportam iões de ouro até às placas de β-amilóide, cuja interacção provoca a destruição destas. No que toca à Doença de Parkinson, as terapêuticas visam a prevenção da destruição de células dopaminérgicas através de terapêutica genética com plasmídeos de DNA ou, por outro lado, à implementação de células estaminais levan-do a posterior diferenciação celular adequada. Também se procura, noutras situações, técnicas semelhantes, mais concretamente após ruptura neural por trauma, onde a regeneração tecidual poderia permi-tir grandes alterações na qualidade de vida das populações afectadas.

«São conhecidas as principais dificuldades apresentadas no tratamento destas doenças: o

diagnóstico tardio e muitas vezes de exclusão; a formulação de terapêuticas adequadas ao tecido

neural e às características celulares dos neurónios, não existindo replicação celular para colmatar a

degradação da doença.»

Nada disto se faz sem antes existir um correcto diagnóstico e aqui também entram as nanopartículas. O cérebro, como órgão essencial a vida, apresenta extraordinárias defesas, como a barreira hematoen-cefálica já mencionada anteriormente. Para além disso, a sua localiza-ção na cavidade craniana dificultou o diagnóstico imagiológico durante anos. Actualmente o grau de conhecimento anatómico é extremamen-te elevado, mas o conhecimento funcional ainda não é completo. A utilização de técnicas de contraste com o auxílio de nanomateriais per-mitiria, em teoria, uma maior discriminação imagiológica, tal como o diagnóstico de depósitos de β-amilóide na doença de Alzheimer, entre outras. As possibilidades são incontáveis mas a realidade ainda escassa. Serão necessários anos até à franca utilização de nanopartículas na prática clínica, no entanto os dados são promissores. A segurança e fiabilidade destas técnicas terão ainda de ser colocadas à prova, mas a promessa que trazem deixa esperança no futuro das Neurociências.

Rita Matias

Polímeros, nanopartículas, nanotubos de carbono, biomateriais, terapêutica celular… O novo mundo criado pela Nanotecnologia começa agora a surgir no quotidiano mas não deixa de ser futuris-ta. A sua utilização abrange uma multiplicidade de áreas, desde a indústria à farmacologia, sendo uma fonte de possibilidades e espe-ranças para muitos. Na área da saúde, o estudo da sua aplicação destaca-se nalgumas áreas, nomeadamente no desenvolvimento de sistemas de entrega de fármacos mais eficazes, seguros e es-pecíficos. Assim, a par do desenvolvimento medicamentoso, impor-ta também assegurar uma correcta entrega do fármaco ao tecido alvo, a manutenção mais fácil de níveis terapêuticos e a diminuição de efeitos adversos causados pelos dados em células saudáveis.Em Medicina, uma das mais promissoras áreas de desenvolvimento destas tecnologias foca-se nos tratamentos que necessitam de ultra-passar uma das barreiras mais complexas do corpo humano – a barreira hemato-encefálica. Actualmente é necessário desenvolver moléculas com efeito terapêutico e também propriedades que permitam alcançar o sistema nervoso central após libertação na corrente sanguínea. Com a criação de um “invólucro” especializado, a libertação farmacológica pretende-se mais localizada e controlada, permitindo igualmente a uti-lização de diferentes terapêuticas, quer iónicas, quer terapêutica ge-nética, quer utilização de células estaminais para regeneração celular.

«Actualmente é necessário desenvolver moléculas com efeito terapêutico e também propriedades que permitam alcançar o sistema nervoso central após

libertação na corrente sanguínea.»

Com o envelhecimento populacional, as doenças neurodegenera-tivas necessitam de uma atenção cada vez maior, o que levou à criação dos inúmeros centros de investigação dedicados a estas doenças. São conhecidas as principais dificuldades apresentadas no tratamento destas doenças: o diagnóstico tardio e muitas ve-zes de exclusão; a formulação de terapêuticas adequadas ao te-cido neural e às características celulares dos neurónios, não exis-tindo replicação celular para colmatar a degradação da doença.A extraordinária capacidade de transporte das nanopartículas torna--as um alvo perfeito para a atenção dos neurocientistas, sendo esta

NANOTECNOLOGIA EM NEUROCIÊNCIAS

TECNOLOGIA

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20 - RESSONÂNCIA

O Ebolavirus é um vírus da famíl ia Fi loviridae e constitui o géne-ro Ebolavirus, no qual se enquadram 5 estirpes, nomeadas con-soante o local onde foram identif icadas pela primeira vez: Zaire ebolavirus, Sudan ebolavirus, Tai Forest ebolavirus (Costa do Marfim), Bundibugyo ebolavirus (Uganda) e Reston ebolavirus (Uganda).

LETALIDADE: cerca de 50%

ÁREAS AFECTADAS: Guiné-Conacr i , L ibér ia e Serra Leoa

TRANSMISSÃO: contacto directo com f luídos ou secreções corporais (sangue, vómitos, fezes, sa-l iva ou sémen) de pessoas infectadas, mortas ou vivas (quando apresentam sintomas), e de ani-mais portadores da doença ou pela ingestão da sua carne; contacto directo com superf íc ies, ob-jectos ou roupas contaminadas; contacto sexual não protegido até t rês meses após recuperação da doença.

IDENTIFICAÇÃO DE CASO SUSPEITO - iníc io dos sintomas 2 a 21 dias após a exposição ao vírus:

FEBRE E UM OU MAIS DOS SEGUINTES SINTOMAS/SINAIS: Náuseas, vómitos, d iar-reia, anorexia, dor abdominal ; Mialgias, aste-nia, cãibras, odinofagia; Cefaleia, confusão, prostração; Conjunt iv i te, far inge hiperemiada; Exantema maculopapular, predominantemen-te no tronco; Tosse, dor torácica, d i f iculdade respiratór ia e ou dispneia; Hemorragias. Em estádios mais avançados pode ocorrer insuf i -c iência renal e hepát ica, d istúrbios da coagu-lação e evolução para fa lência mult iorgânica.

ESTADIA (v iagem ou residência) em área afectada até 21 dias antes do iníc io dos sin-tomas ou CONTACTO PRÓXIMO com doente infectado por vírus Ébola ou outras s i tuações de possível t ransmissão. Rita Mat ias

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A MÁQUINA - 21

O VÍRUSÉBOLA

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HISTÓRIA DO VÍRUS

Em 1976 surgiram 284 casos de febre he-morrágica aguda viral em Nzara, no Sudão, e também 318 casos da mesma patologia no Zaire (actual República Democrática do Congo), a maioria num raio de 70 Km de Yambuku. Embora tenham surgido em dois locais diferentes, tais casos viriam a cons-tituir o primeiro registo de infecção do ser humano pelo vírus, com percentagens ele-vadas de mortalidade entre os afectados. Em virtude da proximidade entre Yambuku, um dos focos originais da doença, e o rio Ébola, o vírus causador fora baptizado com o nome que todos hoje conhecemos. Esta estirpe, o Zaire Ebolavirus, é a mesma res-ponsável pelo surto que se iniciou este ano.

Desde o ano de identificação até à ac-tualidade são vários os casos repor-tados de infecção por Ébola, funda

mentalmente no continente africano.O presente panorama, que afecta o Este Africano, e cujos casos iniciais re-portam a Março deste ano, constitui o maior e mais complexo registo de infec-ção pelo vírus desde a sua descoberta.

ESTATÍSTICAS COMPARATIVAS

Do ponto de vista epidemiológico, a esmaga-dora maioria dos surtos foi da responsabili-dade das estirpes Zaire Ebolavirus e Sudan Ebolavirus, tendo ocorrido essencialmente em 4 países antes do surto actual: República Dominicana do Congo (RDC), Gabão, Sudão e Uganda - e com o número de casos identifi-cados a oscilar entre relatos de doentes isola-dos e surtos com 300 a 400 doentes. Contu-do, o surto actual demonstrou uma tendência díspar em relação ao que havia sucedido previamente, com cerca de 10.000 infectados até à data e com uma dispersão geográfica superior ao que vinha sendo hábito, tendo o seu início na Guiné-Equatorial e espalhando--se pela Libéria, Serra Leoa, Nigéria, Sene-gal e Mali. Não são aqui incluídos os casos de exposição secundária – isto é, infecção adquirida pelo contacto com doentes infec-tados, em contraposição aos de exposição primária, definida pela infecção num país no qual o vírus seja endémico -, nos quais se in-cluem os doentes infectados nos EUA ou em Espanha. Os últimos dados oficiais do CDC (Center for Disease Contol and Prevention) davam conta de 8997 casos relatados até 17 de Outubro, com 4493 mortes confirmadas, ou seja, uma taxa de mortalidade de 50%.

Por fim, falamos do prognóstico. Há que sa-lientar que a mortalidade inerente à infecção por este vírus depende de vários factores – não sendo os menos importantes as con-dições sanitárias dos locais onde os surtos surgem e os meios médicos disponíveis para providenciarem os cuidados necessários. Na linha temporal abaixo apresentada podemos verificar as diferenças entre as taxas de mor-talidade das estirpes virais. Destaca-se um dado em particular no que se refere à estirpe responsável pelo surto actual – o Zaire Ebo-lavirus. Este vírus é responsável pela maior taxa de mortalidade registada, contudo, ao considerar todos os doentes infectados em todos os surtos registados até à data, verifi-ca-se que a mortalidade global é de 53.7%.

O prognóstico nos doentes infectados é muito reservado, face à falência multiorgânica que rapidamente se instala perante a agressivi-dade da febre hemorrágica viral. Contudo, existem dois dados que se verificam perante a experiência adquirida ao sermos confronta-dos com o maior surto de Ébola de sempre: os sobreviventes às 2 primeiras semanas conse-guem lentamente recuperar; os infectados após exposição secundária têm, regra geral, uma taxa de sobrevivência muito superior, o que pode ser explicado por uma menor carga viral ou um menor tempo de exposição, por exemplo, ou então pelo facto de estes casos geralmente ocorrerem em locais com melho-res infra-estruturas médicas capazes de ofe-recer cuidados de suporte diferenciados, ou ainda por uma conjunção de vários factores, entre os quais estes.

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DEMOGRAFIA ETÁRIA E DO GÉNERO

As crianças parecem ter uma menor probabilidade de se-rem infectadas. Num surto bastante estudado, no RDC em 1995, apenas 8.6% (27 em 315 casos) dos doentes tinham 17 ou menos anos. O que é curioso, uma vez que a população neste país é composta em 50 % por crianças com menos de 16 anos. Noutros surtos parece verificar-se a mesma tendência. Embora não exista evidência epide-miológica de uma razão para este fenómeno, os dados sugerem que as crianças têm menot probabilidade de en-trar em contacto directo com doentes do que os adultos.Já quanto ao género, não existe qualquer tipo de diferen-ça no risco de contágio.

O ESTRANHO CASO DO RESTON EBOLAVIRUS

Esta estirpe foi identificada pela primeira vez em 1989, em macacos oriundos das Filipinas, e entre esse ano e 2008 foram identificados 13 casos de evidência seroló-gica de infecção em humanos nas Filipinas e nos EUA, todos eles em tratadores de animais a trabalhar em instalações a albergar primatas. No entanto, apesar de este vírus ser um Ebolavirus, não tem qualquer efeito patogénico no ser humano, não existindo qualquer tipo de doença associada à infecção com esta estirpe. Joana Cabrita e João Gramaça

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O outbreak do vírus Ébola é um bom exem-plo da importância da informação e da gran-de necessidade de aumentar a qualidade da mesma. É fácil de perceber que, pelo mundo fora, os media tiveram dificuldade em informar correctamente e em manter a opinião pública dentro do razoável. Foi dado espaço à especulação e tempo de antena a imagens e discursos pouco escla-recedores e a avisos de cenários apocalípti-cos pouco prováveis (como o anúncio na Fox News de que o vírus passaria a ter transmis-são aérea, nunca demonstrado e bastante im-provável segundo o CDC). Os riscos são reais mas são pequenos para a Europa e para os países com medidas de controlo adequadas, segundo o European Center for Disease Con-trol e outras entidades.A informação com qualidade foi aparecendo mas nem sempre foi transmitida eficientemen-te à população. Os mass media continuaram a “vender” o tema e percebeu-se em várias situações a desinformação e irresponsabilida-de do jornalismo. Muito provavelmente faltou, e falta, em muitas situações relacionadas com a saúde, uma maior e mais precoce proximi-dade da comunidade médica e científica com a população e com os media. É preciso uma comunicação honesta e abrangente, que in-clui informar sobre aquilo que não se sabe ou que se sabe com um grau menor de certeza. Parece que informar a pessoa comum correc-tamente e de forma acessível não é relevante.

«Muito provavelmente faltou, e falta, em muitas situações relacio-nadas com a saúde, uma maior e mais precoce proximidade da co-munidade médica e científica com

a população e com os media.»

Deixa-se andar. Alguém, algum canal ou jornal há-de fazer um artigo como deve ser. Aquilo que de errado for dito por outros não vai ter consequências graves. Mas tem. Nos EUA e pelo mundo não faltam exemplos de atitudes irracionais e discriminatórias toma-das por parte da população e de alguns po-líticos e governantes por ignorância e medo desproporcional. Em alguns locais nos EUA, a opinião pública demonstrou situações de pâ-nico em que quase se pretendeu isolar África do resto do mundo e cancelar ajuda humani-tária (ideias apoiadas por alguns congressis-tas), em que se quis fechar escolas e empre-sas e isolar pessoas que estiveram no lado oposto de África. Um congressista especulou que terroristas do Hamas tentariam trazer o ébola para os EUA. Relatos de situações que, sendo tristes, chegam quase a ser cómicas. Foram postas no palco do mundo imagens assustadoras e foco em casos pontuais (que acabaram por não ter transmissão) nos paí-ses desenvolvidos, que em pouco ou nada contribuíram para uma visão correcta da do-ença, levando apenas ao medo irracional de contágio nesses países e para o desvio da atenção do local de origem do problema e onde ele é realmente grave. A ajuda em África é essencial para parar a epidemia. Afastou-se a opinião pública da ideia de que é controlan-do a doença em África que a controlamos no mundo e de que o risco de enviar ajuda com condições de segurança máxima é muitíssimo menor do que não enviar e esperar a disse-minação da doença, tentando fechar frontei-ras. Já para não falar no dever das nações do mundo de prestar apoio humanitário numa situação como esta, que pode potencialmente trazer uma grande destruição de vidas, socie-dades e países.Os media esqueceram-se quase sempre de relembrar algumas das circunstâncias

pelas quais a situação se tornou facilmente grave em África: condições básicas e de hi-giene muito precárias, cuidados de saúde pra-ticamente ausentes e medidas de contenção quase nulas. Esqueceu-se também de utilizar esta situação para relembrar a importância da acção humanitária de prevenção e criação de infra-estruturas de suporte à saúde e à econo-mia em regiões em desenvolvimento, já que a sede, a fome, a falta de cuidados de saúde e tantas doenças infecciosas são um problema de saúde pública em África e contribuem de forma muito importante para as proporções que tomam estas epidemias.

«Talvez seja importante dar pou-ca relevância à opinião política

interna nestes assuntos, embora as relações diplomáticas entre países sejam essenciais para

promover uma ajuda humanitária de escala global.»

Os casos de contágios fora dos países afec-tados (p.e. nos EUA e em Espanha) e as possíveis tomadas de acção atrasadas de organizações de saúde nacionais e sistemas devem ser analisados e transmitidos mas com precaução e sem especulações desproposita-das.Nos EUA assiste-se a um género de guerrilha política em que o governo e as organizações de saúde (CDC) são acusados por políticos da oposição, sem fundamentos científicos, de não fazer o suficiente para proteger o país, chegando a ser sugerido o cancelamento de todos os voos para países afectados, in-cluindo o envio de militares e profissionais de saúde para ajuda humanitária com um ris-co perto de zero e esta é uma questão que

OS MEDIA E O IMPACTO POLÍTICO-SOCIAL

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pode pôr em causa a confiança da população nas organizações de saúde, levantando vá-rios problemas, contribuindo para o pânico e atrasando o envio de ajuda e a contenção do surto. Para além disso assiste-se a um debate em relação à necessidade real de quarentena e ao seu tipo entre organizações médicas hu-manitárias e as autoridades governamentais, já que a doença só se transmite depois do iní-cio dos sintomas e os profissionais de saúde voluntários estarão supostamente mais aten-tos do que qualquer um a alterações. Talvez seja importante dar pouca relevância à opi-nião política interna nestes assuntos, embora as relações diplomáticas entre países sejam essenciais para promover uma ajuda humani-tária de escala global.Parece importante que os media e a popu-lação dêem relevo e importância às informa-ções produzidas por organizações de saúde antes de outras fontes e que não usem estes temas para criar notícias sensacionalistas que ficam gravadas na imaginação e fomentam o medo nas pessoas durante muito tempo, im-pedindo-as de ser racionais.Por todos estes motivos deve existir uma maior responsabilidade e proactividade da parte da comunidade médica e das organiza-ções de saúde na comunicação à população

dos riscos conhecidos e na gestão da opi-nião pública, evitando estados de ansiedade exagerada, instaurando todas as medidas necessárias à prevenção e informando a po-pulação das mesmas e da sua eficácia, colo-cando sempre a evidência científica à frente do resto.

“A TV e os media alimentam a estupidez colectiva e o medo”

Mas não tem que ser assim. Se uma má co-bertura dos media pode levar a um clima de ansiedade e desinformação, uma cobertura correcta poderia levar a uma melhor resposta do público. E não é só no caso do ébola que assim é. Desde crenças como “a vacinação causa au-tismo”, “o aquecimento global não existe”, “a adição de fluor à água é má para a saúde”, “as medicinas homeopáticas funcionam ga-rantidamente”, às notícias mal construídas e enganadoras sobre novos possíveis tra-tamentos e curas e à publicidade enganosa que usa ciência apresentada de uma forma incompleta e manipulada para influenciar um consumo baseado em crenças erradas, é im-portante existir uma comunicação próxima do

público, honesta, abrangente e baseada na evidência por parte da comunidade médica e de organizações médicas reconhecidas. E aqueles que não forem convencidos devem ser combatidos, especialmente se tiverem peso na opinião pública.Relembrando: o risco de transmissão em pa-íses desenvolvidos é baixo, a taxa de sobre-vivência com cuidados adequados é bastante mais alta e o vírus só se transmite quando a pessoa infectada começa a mostrar sinto-mas, havendo uma redução da transmissão com medidas de higiene e protecção simples adequadas. A ajuda em África tem um impac-to definitivo e o risco de contágio a partir de voluntários infectados na população dos seus países de origem é considerado perto de zero. O importante é que o mundo mobilize forças e recursos para parar o surto em África em vez de alimentar fobias, dificultar a ação humani-tária e tentar fechar fronteiras. Vasco Peixoto

“O ébola é um adversário difícil, encontrou fraquezas no nosso organismo mas pior que isso

explora as fraquezas na fábrica da nossa cultura.”

in ”Yes Ebola Is Scary. But the System Is Working.”

in ”Quality of Fear - What the Ebola Crisis Reveals About

by Harold Pollack

Culture” by David Brooks

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GRANDE ENTREVISTA

DR. RICARDO MEXIAentrevistado por Miguel Esperança Martins

É um dos temas mais vibrantes da actualidade. Marcou, transversalmente, o ano que agora termina e colocou, de modo particularmente evidente, a área da Saúde nas luzes da ribalta. Despertou apreensão e preocupação um pouco por toda a geografia ter-restre, fez soar os alarmes de toda a sociedade ocidental, ocupou capas dos mais prestigiados jornais e revistas internacionais, preencheu sema-nas de telejornais, ressuscitou, nos mais cépticos, o fantasma do aparato montado em torno da gripe aviária, redirecionou o olhar da sociedade e dos profissionais de saúde para a importância actual e futura das doenças infecciosas na aldeia global em que vivemos, testou o timing e a eficácia da resposta de organizações nacionais e internacionais a uma situação súbita e complexa, estabeleceu novos recordes epidemiológicos, e fomentou o avanço terapêutico e vacinal para uma patologia em particular. A causa desta tamanha plêiade de situações e realidades é o surto do vírus Ébola.

O Dr. Ricardo Mexia, médico especialista em Saúde Pública e um dos ele-mentos responsáveis pela elaboração do mais recente relatório sobre o simulacro nacional para avaliação da resposta de diversas infraestruturas, em casos de suspeita de infecção por vírus Ébola, esclarece-nos relativa-mente a questões sobejamente analisadas pelos media mas que nem sem-pre reflectiram a verdade e exactidão científicas que um tema destes exige.

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AS FONTES E OS REFLEXOS

EPIDEMIOLÓGICOS

Quais os factores que poderão estar na origem deste surto de Ébola em África, o mais grave já registado, no que respeita quer ao número de casos, quer ao número de vítimas letais?

Desde 1976, já existiram vários surtos de Ébola com maior ou menor número de casos, no entanto este assumiu uma dimensão in-comparável relativamente aos anteriores. Quanto àquilo que foi diferente neste caso em particular, eu diria que, fruto de um conjunto de vicissitudes no início da situação, nome-adamente a deslocação das pessoas prove-nientes dos países afectados (um padrão de grande mobilidade, sublimado pelo enorme alarme social associado à doença em ques-tão, o que levou a que estas mesmas popula-ções procurassem afastar-se dos locais onde o surto teve origem e procurassem cuidados médicos noutros pontos geográficos), o que levou a que não existisse nenhum link epide-miológico que pudesse ser seguido, associa-da à fragilidade dos sistemas de saúde, com graves défices de recursos humanos e infra–estruturas, dos três países (Guiné-Conacri, Libéria e Serra Leoa) inicialmente envolvidos, houve uma detecção tardia da doença e da situação. Quando a situação foi efectivamen-te reconhecida e “diagnosticada”, existia já uma disseminação quer geográfica quer em termos de número de casos muito significati-va, o que acabou por resultar num efeito “bola de neve” incontrolável. Face à dimensão do surto e em virtude da tal incapacidade de uma resposta adequada por parte dos sistemas

«Quando a situação foi efectivamen-

te reconhecida e “diagnosticada”, existia já uma disseminação quer

geográfica quer em termos de núme-ro de casos muito significativa, o que acabou por resultar num efeito “bola

de neve” incontrolável.»

de saúde dos países inicialmente afectados, também essa resposta acabou por ser tardia. A partir do momento em que o surto atingiu certa magnitude tornou-se particularmente complicado implementar medidas que permi-tissem resolver o surto numa área geografica-mente limitada.

Como se explica o aparecimento de duas situações de surto não relacionadas, uma na África Ocidental (Guiné, Libéria, Serra Leoa, Senegal, Mali, Nigéria) e outra no Congo?

Na sequência do que referi previamente, des-de há 38 anos atrás que têm existido vários surtos, muitos deles com uma dimensão e uma extensão relativamente limitadas. O de-nominador comum a todos os surtos docu-mentados está precisamente na passagem da barreira da espécie pelo vírus, isto é, existe um conjunto de animais selvagens, nomeada-mente morcegos, antílopes e macacos que, estando infectados pelo vírus, são caçados, manipulados e consumidos, acabando por transmitir a doença aos humanos. A partir do momento em que temos um caso índice é re-lativamente normal que exista uma dispersão e multiplicação dos casos, inicialmente dentro de uma família, posteriormente dentro de uma aldeia e, por fim, numa área geográfica mais alargada. Não é surpreendente a existência de dois surtos concomitantes em áreas ge-ográficas distintas e distantes em função do que expliquei.

Tendo sido feito o sequenciamento gené-tico do vírus em Agosto de 2014, conside-rando que foi sequenciado 99% do genoma do vírus Ébola, como se justifica a identi-ficação de 395 mutações genéticas que di-ferenciam o genoma do vírus de Ébola do surto de 2014 do genoma do vírus de Ébola de surtos anteriores?

Estes surtos esporádicos de que lhe tenho vindo a falar têm ocorrido numa área geográ-fica relativamente alargada, logo a potenciali-dade de mutação do vírus em função desse factor é muito elevada. No entanto, do ponto

de vista do comportamento em humanos, o vírus tem-se mantido relativamente estável e não tem, felizmente, adquirido outras vias de transmissão como, por exemplo, a via aeros-sol.

Passados 12 meses após o início do sur-to, como foi possível não controlar a situ-ação? Quais as medidas que consideraria adequadas terem sido tomadas para con-trolar o surto e que não o foram atempa-damente? Por exemplo, qual a sua opinião relativamente às medidas preventivas to-madas para viajantes?

Pegando naquilo que explanei na questão que começou por colocar-me, opto por não me repetir quanto à justificação para a magni-tude do surto. Retrospectivamente falando, e agora é fácil falar, se a detecção tivesse sido feita mais atempadamente e se o isolamento de todas as pessoas que contactaram com os primeiros casos tivesse sido feito, provavel-mente hoje não estaríamos perante um fenó-meno desta dimensão.

«(...) é relativamente normal que exista uma dispersão e multiplicação

dos casos, inicialmente dentro de uma família, (...) por fim, numa área

geográfica mais alargada»

Tendo em conta que esta situação teve ori-gem numa pequena aldeia na Guiné-Conacri, é, no entanto, óbvio que não é comportável termos um centro de saúde ou um posto de atendimento médico a cada cinco quilómetros quadrados. Quanto à questão dos viajantes, só há, actualmente, três países que apresen-tam uma transmissão disseminada. Felizmen-te Portugal, no caso concreto, não tem voos directos para e de qualquer um desses paí-ses, sem prejuízo, claro, de haver alguns voos com escalas em que os passageiros originá-rios dessas áreas transitem para voos com destino a Portugal. O que está preconizado, com muito limitada evidência científica, é o exit screening, isto

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é, a monitorização de todos os passageiros provenientes de áreas afectadas, fazendo-se também a identificação dos passageiros com factores de risco para o desenvolvimento da doença para que sejam acompanhados du-rante o período de incubação de cerca de 21 dias. Os conselhos para os viajantes portu-gueses têm ido no sentido de evitar a desloca-ção para essas zonas. Têm sido distribuídos folhetos sobre essa matéria nos voos para esses locais, existindo informação afixada nos aeroportos e portos. Os indivíduos que cumprirem os três requisitos, nomeadamen-te ter estado na área afectada, ter estado em contacto com alguém com suspeita ou infec-ção confirmada por Ébola e que apresentem sintomas iniciais associados à doença, devem contactar a linha de saúde 24 (808 24 24 24) e, mediante validação ou não do seu caso, serão encaminhados para um hospital de re-ferência pelo INEM. Em retrospectiva, houve um único caso em que, eventualmente, existi-ram problemas com um viajante. Ocorreu nos Estados Unidos, decorrendo essa situação da falta de informação por parte do próprio via-

jante relativamente ao seu percurso. Foi o úni-co caso de que resultaram também infecções secundárias, não directamente relacionadas com o facto de ter viajado, mas relacionadas com a própria etapa do tratamento. Os outros casos que conhecemos ocorreram na sequ-ência de evacuações médicas, não podendo ser considerados como casos associados a viajantes, como em Espanha, nos Estados Unidos, na Noruega e na Suíça. No geral, não têm ocorrido falhas.

Qual a sua visão relativamente ao modo de actuação da Organização Mundial de Saúde, entidades internacionais e, especi-ficamente, da Direcção-Geral de Saúde em todo este processo? Qual a sua visão re-lativamente ao papel desempenhado pelos Media, nacional e internacionalmente, nos últimos meses face a todo o circo mediáti-co montado em torno do assunto?

Relativamente ao modo como as autoridades internacionais e a própria OMS têm lidado com a questão eu diria que se inicialmente

tivesse existido uma resposta mais “muscula-da”, eventualmente a situação poderia ter sido diferente. No entanto, não devemos retirar a questão do seu contexto. Num passado rela-tivamente recente tivemos o exemplo de uma situação que, fruto de circunstâncias várias, levou a um grande alarme social e à imple-mentação de um conjunto de medidas com grande impacto, tendo-se enfrentado, na se-quência da implementação dessas medidas, um grande criticismo face à forma como as coisas foram feitas e tendo sido aventada e defendida a teoria da existência de uma res-posta excessiva face à ameaça em causa. Esta circunstância condicionou uma resposta particularmente cautelosa das organizações. Sem prejuízo disso, eu penso que a resposta tem sido aquela que tem sido possível, mes-mo com a existência de algumas dificuldades em enviar staff para o terreno. No entanto, quer através de organizações não governa-mentais, quer através das estruturas gover-namentais, a resposta tem sido levada ao terreno. Por outro lado, existe já um esforço marcado no desenvolvimento quer de vacinas

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quer de terapêutica. A resposta internacional, do ponto de vista técnico e do ponto de vista comunitário, tem sido positiva.

«Os indivíduos que cumprirem os três requisitos, ter estado na área afectada, ter estado em contacto

com alguém com suspeita ou infecção confirmada por Ébola e que apresentem sintomas iniciais, devem

contactar a linha de saúde 24»

É-me particularmente difícil responder a essa questão a nível nacional, tendo em conta que estou envolvido na plataforma de resposta à doença por vírus Ébola. Existiu, também em Portugal, algum alarme social promovido e ali-mentado pela comunicação social, com todos os seus interesses comerciais insuflados de igual modo pela propaganda da exuberância do quadro sintomático e letalidade da doença, o que fez com que se criasse alguma ansie-dade quer na população, quer nos próprios profissionais de saúde. É importante dizer que o risco de termos um caso é extremamente baixo, mas, apesar disso, é muito importan-te tranquilizar as pessoas no sentido de que estas percebam que existe um plano, orienta-ções técnicas, profissionais treinados e estru-turas direccionadas, que permitem responder a qualquer porta de entrada ou possibilidade. A campanha que levámos a cabo foi muito útil para esclarecer a população e os próprios profissionais de saúde e contribuiu para pro-porcionar alguma serenidade face aos proce-dimentos a adoptar e às perspectivas relativa-mente a esta realidade.

A CLÍNICA DA PROBLEMÁTICA

Focando-nos numa vertente clínica, quais as principais causas e factores de risco, actualmente, a ser investigados na anam-nese de um doente suspeito, quais os principais sintomas numa fase precoce e com que diagnósticos diferenciais temos de jogar?

As orientações técnicas da DGS são muito claras neste aspecto. Primeiro que tudo tem de existir um link epi-demiológico, isto é, ou a pessoa esteve num país afectado pelo Ébola, ou esteve com do-entes com Ébola, ou ambas. Quanto à componente clínica, que em fases precoces é altamente inespecífica, temos a febre, o mal-estar, e a dor abdominal inicial-mente, e numa fase já muito avançada, a tal sintomatologia hemorrágica que acaba por condicionar o grande alarme social. O diagnóstico diferencial numa fase inicial é muito complexo, ainda para mais consideran-do o tipo de doenças de que estamos a falar neste contexto geográfico, como a malária, o dengue, entre outras, que inicialmente podem ser facilmente confundidas com o Ébola. Em Portugal essa realidade fica muito limitada pelo link epidemiológico. A título de exemplo, digo-lhe que desde o início do problema exis-tiram em Portugal cerca de uma dezena de casos validados, isto é, casos a quem foram feitos os testes laboratoriais. Foi fácil do pon-to de vista técnico diferenciar pessoas com sintomatologia compatível com a do Ébola mas que poderiam ter muitas outras doenças com sintomatologia semelhante, relativamen-te àqueles que tinham risco efectivo de estar infectados com Ébola.

Sendo os profissionais de saúde um dos principais grupos de risco, que desafios enfrentam face a esta situação, nomeada-mente no que se refere a formação para a utilização de equipamentos de protecção individual e manuseamento de produtos biológicos?

Começo por desmistificar um dado associado à sua questão. Inicialmente considerou-se, nos primeiros casos ocorridos no surto na África Ocidental, a existência de uma taxa de incidência e, consequentemente, de letalida-de muito elevadas no grupo dos profissionais de saúde. Segundo os dados mais recentes da OMS, o aspecto estatístico prende-se com infecção ocorrida não no contexto de presta-ção de cuidados de saúde, mas sim, maiori-tariamente, no contexto geográfico em que

os profissionais de saúde se movimentavam. Foram infectados como cidadãos que convi-veram com outros cidadãos e não como pro-fissionais de saúde. Por outro lado, não é ile-gítimo pensar no que aconteceu nos Estados Unidos e em Espanha. De facto, os casos de transmissão secundária ocorreram em profis-sionais de saúde. Existe já ampla literatura nas orientações técnicas sobre o que fazer e como fazer. As orientações têm-se pautado por limitar ao máximo a interacção entre os profissionais de saúde e os doentes e, nos casos em que isso é estritamente necessário, existem pes-soas que treinam de forma rotineira a colo-cação e remoção dos EPI’s e a abordagem dos doentes. Isto para dizer que a técnica de colocação e, principalmente, de remoção dos EPI’s é bastante complexa, implicando que, enquanto um dos elementos está a colocar ou a remover o equipamento, o outro está a ob-servá-lo e a preencher a checklist que elenca todos os passos da técnica a ser cumpridos para que esta seja cumprida de forma ade-quada. Háportanto, um conjunto de equipas responsáveis quer pelo transporte de doen-tes quer por idas ao terreno para abordar um doente, que têm treino regular. Os restantes profissionais devem também treinar a técnica de abordagem inicial, que passa muitas vezes por um distanciamento. Não é necessário uti-lizar um fato protector, como muitas vezes é visualmente veiculado pela comunicação so-cial, para abordar um doente estável. Basta, por vezes, uma distância de dois metros. Em caso de suspeita basta colocá-lo numa sala, isolado, enquanto se aguarda pelo transporte secundário ou pela não validação do caso. Paralelamente a isso as ARS estão a promo-ver a formação e a realização de exercícios que permitam treinar esses procedimentos.

«Não é necessário utilizar um fato protector, como muitas vezes é visu-almente veiculado pela comunicação social, para abordar um doente está-vel. Basta, por vezes, uma distância

de dois metros.»

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Qual a sua opinião quanto à realização de Sessões Clínicas sobre a doença nos hos-pitais universitários? Considera ser um bom método de preparação para médicos e estudantes de Medicina ? Que outrasme-didas propõe nesse âmbito?

A nível da formação pré-graduada faz senti-do que a patologia seja abordada no contexto da disciplina de Doenças Infecciosas, como é abordada a Tuberculose, por exemplo, com a devida ressalva de que o Ébola tem uma taxa de incidência francamente baixa. Não me parece que o Ébola careça de uma formação ultra-especial ou diferenciada. Pode e deve ser abordada até para aumentar o grau de confiança do futuro profissional de saúde na abordagem de um eventual doente com Ébo-la, mas sem grande espalhafato ou alarmismo na abordagem. No entanto, é um assunto com grande actualidade e projecção mediática e a realização desse tipo de sessões contribui para aumentar o grau de informação e prepa--ração da comunidade médica. A informação é poder, pelo que acaba por aumentar a ca-pacitação dos profissionais de saúde face a esta realidade.

OS HORIZONTESTERAPÊUTICOS

Qual a sua opinião relativamente às tera-pêuticas experimentais, sejam elas far-macológicas, sejam elas soro de dadores convalescentes? Existe expertise suficien-te relativamente à sua utilização e resulta-dos que atestem a sua eficácia?

Não existe evidência seguramente quanto às terapêuticas farmacológicas experimentais. Os estudos que existem na área são muito preliminares. A ciência está a evoluir rapida-mente nesse campo, mas não existe eficácia, tanto quanto sei, comprovada. É preciso per-ceber que estamos perante uma doença com uma taxa de incidência baixíssima, logo temos poucos doentes para estudar, e que estamos perante uma doença que anteriormente se caracterizou por surtos relativamente contro-lados e com um número de casos baixo e as-sim, lamentavelmente, pouco estímulo existe para se investir em recursos muito alargados no desenvolvimento de soluções terapêuticas ou vacinais para esta doença.

Subitamente, a situação mudou. Estamos pe-rante uma maior apetência para desenvolver investigação nessa área, o que só pode ser salutar. A breve trecho acredito que seja pos-sível haver quer vacinas quer terapêutica. Quanto ao soro convalescente, é uma técnica de imunização passiva já previamente utiliza-da noutras áreas. Tem apresentado taxas de sucesso relativamente interessantes.

«É preciso perceber que estamos perante uma doença com uma taxa

de incidência baixíssima, logo temos poucos doentes para estudar (...). Subitamente a situação mudou.»

Não existindo doentes e não havendo da-dores convalescentes em Portugal, terá Portugal acesso a esta possibilidade tera-pêutica em caso de necessidade?

Isso está perfeitamente protocolado a nível internacional. Basta pensarmos que antes de terem existido casos também ainda não havia nenhum doente, pelo que os poucos

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sítios onde existe esse tipo de soro estão ple-namente disponíveis para colaborar em caso de necessidade, como aconteceu nos casos de Espanha, Noruega e Suécia, onde ainda não tinham existido casos previamente. Exis-te uma rede internacional pronta a ser activa-da nessa circunstância.

Qual é o ponto de situação actual e quais as nuances de que se revestem os parece-res das Comissões de Ética e os modelos de consentimento informado dos doentes relativamente a estas terapêuticas experi-mentais?

Eu diria que tem de haver um equilíbrio en-tre a forma como é obtido o consentimento informado, que obviamente tem de existir, dependendo dos doentes estarem ou não em condições de o fornecer de forma explí-cita. Os casos podem estar num estádio mais crítico ou mais ligeiro. Quanto às Comissões de Ética penso que têm experiência em situa-ções mais “normais”. Terão de adaptar não a forma de avaliar, mas a celeridade com que o fazem. Considero que estão e estarão à altura da situação, avaliando aquilo que faz ou não sentido, tomando uma decisão, seja ela qual

for, em tempo útil.

Qual a sua opinião face ao envolvimento e motivações da indústria farmacêutica rela-tivamente a esta situação?

Segundo o que me é dado a conhecer pela comunicação social sei que alguns laborató--rios têm vindo a desenvolver e a testar algu-mas soluções terapêuticas, mas não possuo nenhuma informação privilegiada quanto a essa temática. Eu percebo o que as pessoas acham que está em causa, ou o que pode es-tar em causa, ainda por cima na sequência do exemplo recente de que já falámos. Mas re-forço algo que já referi, o universo de doentes de que estamos a falar, mesmo pensando nos 15000 que tiveram a doença, é relativamente diminuto do ponto de vista do interesse da in-dústria. Hoje em dia o pipeline para desenvol-ver um medicamento para o que quer que seja envolve custos perfeitamente astronómicos, pelo que a decisão de investigar determinada área com tão poucos doentes não é tomada de ânimo leve. Existe certamente interesse da indústria farmacêutica em encontrar situações terapêuticas para o Ébola, como existe relati-vamente a centenas de outras doenças. Tem

é de existir sempre transparência, razoa-bilidade e as coisas devem processar-se da forma mais clara possível. No entanto, uma vida é uma vida, conseguir encon-trar soluções terapêuticas que ajudem a preservar uma vida é sempre uma mais valia e é aí que reside a responsabilida-de social que a indústria farmacêutica tem face a esta realidade e que tem de cumprir.

O PARADIGMA DAS DOENÇAS INFECCIOSAS

EMERGENTES E REEMERGENTES

Que doenças infecciosas emergentes e reemergentes considera serem de maior relevância para a Saúde Pública no futuro próximo?

Há várias estruturas a nível europeu que acompanham essa realidade e que divulgam quais são as maiores ameaças desse ponto de vista. Fala-se muito, actualmente, no cam-po das doenças emergentes, da variante do Médio Oriente do Coronavírus, do Enterovírus

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A MÁQUINA - 33

«o universo de doentes de que estamos a falar, mesmo pensando nos 15000 que tiveram a doença, é relativamente diminuto do ponto de

vista do interesse da indústria»

D68, do Dengue, do Chikungunya, do West--Nile Virus, da gripe e, claro, do Ébola. A tóni-ca está na cultura global que envolve o rápi-do fluxo de pessoas à volta do mundo, o que propicia que as doenças se disseminem, nas alterações climáticas que proporcionam alte-rações da localização dos vectores e na en-trada em novos ecossistemas e consequente exposição a outras doenças a que anterior-mente não nos expúnhamos. Quanto às doenças reemergentes, destaco as resistências à antibioterapia, como por exem-plo os microorganismos MRSA e a própria tu-berculose multi-resistente.

Quais os mecanismos de vigilância exis-tentes, e de que modo podem ser aprimo-rados e adaptados?

Temos um sistema de vigilância renovado

relativamente recente. O SINAVE é uma fer-

ramenta relativamente recente. A partir de 1

de Janeiro a notificação através do SINAVE

passa a ser obrigatória e isso vai permitir me-

lhorar um problema há muito diagnosticado,

a sub-notificação das doenças de declaração

obrigatória. Vamos entrar num período em

que vai subir o número de casos de doença,

não por estarmos mais doentes, mas por um

marcado aumento da notificação. Como su-

gestão, deixo algo que já esteve para aconte-

cer e que espero que se venha a concretizar,

nomeadamente a notificação de base labora-

torial. Muitas das doenças de declaração obri-

gatória são de diagnóstico laboratorial. Não

há razão nenhuma para que não exista notifi-

cação laboratorial. Obviamente que é neces-

sário obter a informação complementar junto

de quem segue o doente, mas logicamente

que se a notificação for laboratorial reduzimo-

sa taxa de sub-notificação a zero.

Considera que Portugal está preparado para responder eficazmente a esta reali-dade?

Temos sempre espaço para melhorar, e é

isso que deve nortear o desenvolvimento de

qualquer sistema, a melhoria contínua e a

avaliação constante do que está a ser posto

em prática. Tenho dificuldade em responder

especificamente quanto à nossa capacidade

de resposta, mas diria que sim.

«Temos sempre espaço para melhorar.»

Observando o tipo de instituições e de profis-

sionais de que dispomos e o modo como os

profissionais se articulam, existe todo o poten-

cial para que as coisas corram bem. Temos

tido alguns testes práticos como o Dengue, a

Legionella, e o próprio Ébola, que têm coloca-

do o sistema sob stress e, até ver, a situação

tem sido sempre resolvida. A questão que se

coloca é: será que o sistema poderia ter de-

tectado ou identificado o problema mais pre-

cocemente e, consequentemente, permitido

intervir mais cedo, evitando que o problema

assumisse a dimensão que assumiu? Eventu-

almente sim. No capítulo da vigilância sindró-

mica considero que temos ainda muito para

melhorar.

GRANDE ENTREVISTA

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34 - RESSONÂNCIA

Os dias vão ficando dispneicos, talvez numa concorrência contigo, e eu cristalizado neste banco, vou visitando aqueles capítulos que es-crevia quando ainda éramos felizes. As memórias, oníricas, fazem a prosa saber-me a poesia e ouso traçar um sorriso. Não me vês, bem sei, mas nesse estado agudizado a nostalgia torna-se sistémica e sinto correr nestas veias todos os desvarios e naufrágios que salpicaram a nossa história.

Os meus traços barrocos de sempre, remontam à frescura dos teus olhos, castanhos como tantos milhões, mas que numa perfeita trajetó-ria retilínea se cruzaram com os meus. Naqueles dias áridos, enfastia-do pela soturnidade de quem sobrevive, conhecer-te foi desaprender a ser infeliz. Os dias que esbanjei, fizeram-me querer tornar mais memó-ria os rascunhos que a nossa virtuosidade nos fazia rabiscar.

Sentir-te tomada pela doença, faz a minha órbita de interesses morrer e, tal como o profetismo da eternidade que nos foi prometi

do naquela igreja cosida a ouro se desvaneceu, também as aliadas da gravidade se desvanecem. Já nem tu choras!

O ar lascivo da adolescência foi tomado pela pele encortiçada que se cola aos ossos e esperamos que um mês sofra o milagre da multipli-cação, tornando-se em anos. O ócio toma conta do teu tempo e o teu estado de latência do meu, simplesmente para que uns índices gritem valores mais altos, sem que tu possas desfrutar da beleza até no can-tar do pardal que nos acorda. E neste mundo ávido de percentagens, taxas, gráficos e linearidades, o obscurantismo não toma conta apenas de quem nos conduz, mas também se vai apoderando de nós, na eter-na idiossincrasia humana.

A noite fecha-se e ao longe um cão dá sinais da lua cheia, que contras-ta com o coração esvaziado de quem escreve. Se a vida tem propósito, creio que está cumprido.

ARQUIVO

Sérgio Bronze

CRÓNICA

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A MÁQUINA - 35

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